ernst bloch_utopia_esperança e messianismo

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RESUMO Utopia, esperança e messianismo no pensamento de Ernst Bloch Rui Bragado Sousa 1 Este artigo pretende analisar alguns conceitos aparentemente antitéticos, mas dialeticamente complementares na filosofia de Ernst Bloch. As utopias sociais, em grande medida suplantadas, romantizadas apenas como abstração por uma espécie de ditadura racionalista, herdada do iluminismo e que perpassa até mesmo o discurso cientificista do marxismo (vulgar), ganham status de uto- pia concreta no pensamento blochiano. Para romper com o saber puramente contemplativo e idealista das utopias, Bloch as articula com a filosofia da práxis de Marx e com a ontologia da “consci- ência antecipadora” ao que “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse proces- so, o homem, compreendido como um ser ainda em formação, é remetido em direção do futuro, ao novum, ao devir. O impulso ou interrupção que nos move necessariamente rumo ao novo é abordado por Bloch de uma forma bastante peculiar e distinta às pulsões freudianas; a fome, as profecias, os movimentos messiâni- cos e escatológicos são os motivadores das irrupções históricas e cuidadosamente articulados às utopias. Palavras-chave: Utopia concreta. Materialismo histórico. Espe- rança messiânica. 1 Graduado e mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá-PR, UEM. REVISTA GUAIRACÁ - P. 143 - 164 - NÚMERO 27 - 2011 - ISSN 0103-250X

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  • RESU

    MOUtopia, esperana e messianismo no

    pensamento de Ernst Bloch

    Rui Bragado Sousa1

    Este artigo pretende analisar alguns conceitos aparentemente antitticos, mas dialeticamente complementares na filosofia de Ernst Bloch. As utopias sociais, em grande medida suplantadas, romantizadas apenas como abstrao por uma espcie de ditadura racionalista, herdada do iluminismo e que perpassa at mesmo o discurso cientificista do marxismo (vulgar), ganham status de uto-pia concreta no pensamento blochiano. Para romper com o saber puramente contemplativo e idealista das utopias, Bloch as articula com a filosofia da prxis de Marx e com a ontologia da consci-ncia antecipadora ao que ainda-no-veio-a-ser. Nesse proces-so, o homem, compreendido como um ser ainda em formao, remetido em direo do futuro, ao novum, ao devir. O impulso ou interrupo que nos move necessariamente rumo ao novo abordado por Bloch de uma forma bastante peculiar e distinta s pulses freudianas; a fome, as profecias, os movimentos messini-cos e escatolgicos so os motivadores das irrupes histricas e cuidadosamente articulados s utopias.

    Palavras-chave: Utopia concreta. Materialismo histrico. Espe-rana messinica.

    1 Graduado e mestrando em Histria pela Universidade Estadual de Maring-PR, UEM.

    Revista GuaiRac - p. 143 - 164 - NmeRo 27 - 2011 - issN 0103-250X

  • ABST

    RACT

    This article analyzes some concepts seemingly antithetical, but complementary dialectical in the philosophy of Ernst Bloch. Ro-manticized only as abstraction by a kind of rationalist dictatorship, heir of the Enlightenment and the legacy that permeates even the scientificist discourse of Marxism (vulgar), the largely supplanted social utopias earn status of concrete utopia in blochian thought. To break with the purely contemplative knowledge and idealistic utopias, Bloch articulates with the philosophy of praxis of Marx and the ontology of anticipatory consciousness to the not-yet--came-to-be. In the process, the man, understood as a being still in training, is sent toward the future, the novum, to the becoming. In a way that is very peculiar and distinct from the Freudian dri-ves, Bloch approaches the impulse or disruption that necessarily moves us toward the new. Hunger, prophecies, eschatological and messianic movements are the motivators of historical eruptions, being carefully articulated to the utopias.

    Keywords: Concrete utopia. Historical Materialism. Messianic expectancy.

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    UTOPIA, ESPERANA E MESSIANISMO NO PENSAMENTO DE ERNST BLOCH

    Introduo

    Ernst Bloch o tpico caso do pensador inclassificvel. Um romntico revolucionrio ou um judeu apocalptico catoli-cizante eram adjetivos pertinentes s suas primeiras obras como Esprito da Utopia, de 1918 e Thomas Munzer: Telogo da Revolu-o, de 1921. Essa dimenso escatolgica do pensamento blochiano ir se articular, no decorrer da dcada de 1920, com o materialismo dialtico de Marx, uma aproximao original e coerente entre Ma-terialismo Histrico e teologia, entre messianismo judaico-cristo e marxismo. Esses conceitos aparentemente contraditrios e as-sincrnicos so, ao lado de sua erudio quase enciclopdica, os elementos essenciais de sua maior obra, O Princpio Esperana, em trs volumes, que totalizam quase mil e quinhentas pginas repletas de sonhos, desejos e imagens de um mundo melhor, a concepo mais ousada da prosa dialtica de nossa poca.2

    O ponto central de O Princpio Esperana , de acordo com Suzana Albornoz e Eric Hobsbawm, a espiral de um sistema aberto, ou seja, do homem ainda em formao e da Histria como um processo aberto, compatvel com vises cclicas de mudanas, rupturas, avanos ou mesmo regresses e incompatvel com a ideia de progresso contnuo. Esse pensamento pode ser sintetizado na conhecida frmula S ainda no P, sujeito ainda no predicado. O componente dialtico de Ernst Bloch, apesar de certa influncia de Hegel, no , de forma alguma, idealista, puramente contem-plativo; ele est repleto de uma carga revolucionria materialista.

    Isto porque a matria dialtica e se d num constante movimen-to de abertura e fechamento, de indeterminao e terminao. A matria dinmica; ela traz em si mesma o dynamei on, o ser-em-

    2 MUNSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. So Paulo: Unesp, 1997.

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    -possibilidade; mas ao mesmo tempo contm o kata to dynaton, o ser-segundo-as-possibilidades; por isto, determinada, torna-

    -se determinada e determina-se segundo as possibilidades (...).3

    Em recente artigo4, Antonio Rufino Vieira afirma que a anlise dos princpios originrios da esperana permite-nos com-preender que ela constitutiva do ser humano, do homem como um animal esperanoso, no como uma essncia abstrata, mas in-versamente, acontecendo na prtica social daqueles que buscam modificar o estado de coisas vigente. Nesse sentido, Bloch rela-ciona os conceitos de utopia e esperana filosofia da prxis de Marx, sobretudo com as Teses sobre Feuerbach, onde se pode ler, na dcima primeira tese: Os filsofos no fizeram mais que inter-pretar o mundo de diferentes formas; trata-se, porm, de transfor-m-lo. Por essa razo, escreve Bloch, a transformao filosfica ocorre, em ltima anlise, essencialmente no horizonte do futuro totalmente incapaz de contemplar, incapaz de interpretar, mas re-conhecvel em termos marxistas.5

    O topos da Utopia Concreta6

    Discpulo de Georg Simmel e assduo participante do cr-culo Max Weber de Heidelberg, influenciado por Freud e Kant,

    3 ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperana. Petrpolis: Vozes, 1998, p. 27 e 28.

    4 Princpio Esperana e a herana intacta do marxismo em Ernst Bloch. Uni-versidade Federal da Paraba, s/d.

    5 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. Volume 1. Traduo Nlio Schneuder. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 277.

    6 O termo utopia, do grego u-topos, significa originalmente nenhum lugar, o que ainda no existe, uma aspirao que est em contradio com o existente, com a ordem estabelecida. Todavia, restringir ou at orientar o utpico ao modo de Toms Morus seria como querer reduzir a eletricidade ao mbar--amarelo, do qual ela recebeu o seu nome em grego e no qual ela foi percebida pela primeira vez. BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1, p. 25.

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    UTOPIA, ESPERANA E MESSIANISMO NO PENSAMENTO DE ERNST BLOCH

    Ernst Bloch o filosofo da Esperana e da utopia concreta e de-fende o conceito escatolgico-utpico-messinico da Histria. Nas palavras de Arno Munster,7 Bloch desconfia de uma compreenso exclusivamente cientfica do marxismo, que v nele apenas uma cincia das contradies econmicas: ele reivindica o marxismo como uma prtica humanista e como tica renovadora. Ao abordar o tema das utopias concretas, Bloch no est apenas interessado na valorizao barata do elemento irracional da humanidade, pelo contrrio, na superao do elemento sociolgico e econmico vul-gar e na introduo do elemento religioso e metafsico como um impulso que acompanha a conscincia revolucionria, rompendo, assim, com o conceito historicista de linearidade.

    Apropriando-se dos conceitos de Karl Mannhein8 em Ide-ologia e Utopia, Ernst Bloch caracteriza as utopias como ideias e doutrinas transcendentes, exprimindo uma fora subversiva e tendo um efeito de transformao com relao ordem social vi-gente. Uma realidade histrica com todas as suas insuficincias cria a utopia concreta e isso ocorre na sociedade moderna desde a Uto-pia de Thomas Morus como crtica sociedade inglesa do sc. XVI, passando por Francis Bacon e sua Nova Atlantis, Campanella com a Cidade do Sol, at Brave New World de Huxley.

    A propsito disso, Bloch destaca que a Histria uma formao polirrtmica, e que o descobrimento da nova dimen-so profunda do ser, que deveria ser realizado pela metodologia do materialismo histrico e dialtico, pressupe no somente a valori-zao do pensamento social do homem, ainda ignorado, mas tam-

    7 MUNSTER, Arno. Ernst Bloch: filosofia da prxis e utopia concreta. So Pau-lo: Unesp, 1993. P. 99.

    8 O milenarismo tem acompanhado sempre as irrupes revolucionrias, em-prestando-lhes o seu esprito. Quando esse esprito enfraquece e abandona estes movimentos, ali permanece latente um frenesi coletivo e um fervor de-sespiritualizado Apud Edward Thompson (1987, p. 265).

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    bm, a valorizao do pensamento artstico, religioso, metafsico do homem secretamente transcendental. Seria um erro a sepa-rao dessas dimenses profundas e dialeticamente complementa-res. Para Bloch, a funo utpica uma funo transcendente sem transcendncia:

    A utopia , na sua forma concreta, a vontade testada rumo ao ser do tudo; nela atua, portanto, o pthos do ser, que an-teriormente esteve voltado para uma ordem do mundo, at uma ordem do supramundo, bem sucedida, supostamen-te fundada j de modo bem acabado. Porm, esse pthos age como um pthos do ainda-no-ser e da esperana (...).9

    De acordo com o historiador Jean Delumeau, as utopias contriburam para a emergncia da esperana e para a laicizao do milenarismo10. No se compreenderia uma histria do milenaris-mo sem dar uma ateno a esse gnero, na medida em que props progressivamente projetos de melhoramentos polticos e sociais e passou do alhures geogrfico antecipao do tempo. Embora re-servem espao religio, so resolutamente terrestres; as utopias e os projetos igualitrios juntam-se assim esperana milenarista. 11

    As utopias nos afastam aparentemente do milenarismo, mas s aparentemente, pois elas constituem um dos canais pelos quais se insinuou nas mentalidades ocidentais a esperana de uma felicidade terrestre coletiva para a humanidade do amanh. A his-tria, desde ento, no mais considerada como um eterno retor-

    9 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. V.1, p. 307. 10 O milenarismo representa uma das formas assumidas pela frustrao da espe-

    ra messinica [...]. Elas enunciam uma mudana radical, uma salvao cole-tiva, iminente, total. Afirmam o sentido da histria. Apelam ao agir humano. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade, p. 18.

    11 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade..., pp. 165 e 257.

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    UTOPIA, ESPERANA E MESSIANISMO NO PENSAMENTO DE ERNST BLOCH

    no sobre si mesma, mas como um vetor dirigido a uma realizao final.12

    Esse potencial utpico pode assumir uma concepo his-trica, a partir do momento em que o movimento religioso quilias-ta13 na superestrutura, unir-se produtivamente a um movimento plebeu na base, radical e dinmico. Foi exatamente esse conceito que Bloch utilizou para abordagem das Guerras Camponesas ale-ms no sc. XVI, que teve em Thomas Munzer um telogo e revo-lucionrio:

    No tocante guerra dos camponeses, campanha contra as imagens e ao espiritualismo, preciso considerar, ao lado dos elementos econmicos, o elemento originrio essencial do con-flito: o sonho mais antigo, a irrupo da histria hertica, o x-tase do andar ereto e a vontade rebelde, sria, impaciente, que anseia encontrar o paraso. Inclinaes, sonhos (...) alimentam--se de fontes que no so as da necessidade mais visvel: mesmo assim elas no so pura ideologia; no desaparecem, do colori-do a amplas etapas do caminho, nascem de um ponto original da alma que produz valores, continuam a arder mesmo depois de catstrofes empricas, mostrando a todas as pocas [que] o qui-liasmo da guerra dos camponeses permanentemente presente.14

    Em suma, para este autor, o conceito de revoluo ainda est longe de ser puramente social ou poltico; ele conserva a carga tico-religiosa, milenarista dostoivsquiana15. Mas nos trs volu-

    12 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade..., p. 268.13 Tambm pode ser designado como movimento milenarista ou escatolgico.14 BLOCH, Ernst. Thomas Munzer, o telogo da revoluo. Traduo Vamireh

    Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. P. 215. 15 Bloch cita Os Irmos Karamazov onde Dostoivski escrevia que o socialismo

    a Torre de Babel que se constri para fazer o cu descer sobre a terra e faz uma analogia entre J do Antigo Testamento - como sendo um Prometeu he-braico, defendendo energicamente o direito e a rebelio - e o personagem Ivan Karamazov: Creio em Deus, ms recuso o seu mundo. MUNSTER, Arno. Ernst Bloch, p. 65.

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    mes de O Princpio Esperana que a filosofia da histria de Bloch ganhar fundamentao prtica. Na primeira parte de sua obra-pri-ma, o autor trata de conceitos ontolgicos como ainda-no-ser ou ainda-no-consciente e sonhos acordados; enfim, das po-tencialidades imanentes do ser-humano que ainda no foram exte-riorizadas, mas que possui uma fora dinmica e projeta o homem necessariamente para o futuro. Ligando a dimenso de Esperana ao conceito de Antecipao, de utopia e prxis, Bloch consegue integrar perfeitamente este conceito teolgico-filosfico ao projeto de uma filosofia da prxis revolucionria e transformadora.

    tempo, talvez, para Das Prinzip Hoffnung escreve Eric Hobsbawm os que realmente negam a utopia so aqueles que criam um mundo medocre e fechado, do qual as grandes ave-nidas que se abrem para a perfeio esto excludas: a burguesia.16 Em Revolucionrios, Hobsbawm classifica Ernst Bloch como um autor soberbo, que desdenha Freud e Jung. No entanto, refere-se a ele respeitosamente como Professor Bloch e surpreende-se com a erudio do filsofo da esperana:

    Quantos livros filosficos, marxistas ou no, contm anali-ses da relao entre msica e a lgica escolstica medieval, discusses sobre o feminismo como uma variante da Utopia, sobre Dom Juan, Dom Quixote e Fausto como mitos, sobre o Direito Natural do sculo XVIII, a evoluo do rosacru-zismo, a histria do planejamento urbano, a yoga, o barroco, Joachim de Fiore, os parques de diverses, Zoroastro, a na-tureza da dana, o turismo e o simbolismo dos alquimistas?

    E conclui enfatizando que no todo dia que somos lem-brados, com tanta sabedoria, erudio, inteligncia e domnio da

    16 HOBSBAWM, Eric. Revolucionrios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Pp. 141 e145.

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    lngua, de que a Esperana e a construo do paraso terreno so o destino do homem. Como escreveu Marx a Ruge em 1843: Ficara evidenciado [...] que o mundo j h muito possui o sonho de uma coisa de que ele apenas precisa ter a conscincia para possu-la de fato. No entanto, como demonstra Bloch, a tomada de conscincia um processo doloroso na moderna sociedade industrial, reificada, consumista; as ideologias ou imagens idealizadas no espelho, um espelho embelezador que reflete apenas o que a classe dominante quer do desejo e como ela o quer, so reformuladas por Ernst Blo-ch de modo que o espelho se origine do povo. Parte substancial dessa reformulao e, igualmente relevante para o desenvolvimen-to das utopias concretas, investigao da psicanlise burguesa, do inconsciente freudiano e dos arqutipos junguianos.

    Ontologia do ainda-no-consciente

    H uma clara influncia da psicanlise freudiana em Blo-ch, mas h uma distino entre seu conceito de ainda-no-cons-ciente ou pr-consciente e o inconsciente de Freud ou id, o qual cerca a conscincia como se fosse um anel, estando fixado no passado, tendo a funo de liberar as imagens e desejos comprimi-dos; enquanto que os sonhos diurnos so voltados para o futuro. Dito de outra forma, o ainda-no-consciente est para o incons-ciente freudiano assim como o sonho diurno est para os so-nhos noturnos.17

    Para Ernst Bloch, o inconsciente da psicanlise nunca um ainda-no-consciente, um elemento de progresses; ele consis-te, antes, de regresses. Tornar consciente esse inconsciente revela

    17 MUNSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. Traduo Flvio Beno Siebeneichler. So Paulo: Unesp, 1997. P. 26.

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    apenas o que j foi, o que vale dizer que no inconsciente de Freud no h nada de novo. Isso ficou claro tambm em C. G. Jung, que reduziu a libido e seus contedos inconscientes a um fenmeno pr-histrico, onde residiriam exclusivamente memrias ou fanta-sias primordiais da histria tribal, denominadas arqutipos. Blo-ch um crtico ferrenho de Jung, qualificando-o como o fascista psicanaltico que menospreza a conscincia, como algum que desdenha a luz.18

    Freud e Jung concebem o inconsciente meramente como algo passado na evoluo histrica, como algo submerso no poro e existente apenas ali. Um e outro conhecem, ainda que de modo diferenciado, apenas o inconsciente voltado para trs ou situado abaixo da conscincia j existente, eles no conhecem uma pr--conscincia do novo. Um agravante, para Bloch que, tanto em Freud, Jung ou Adler, a doutrina das pulses jamais discutida como uma varivel das condies socioeconmicas.

    Porm, se de fato se pretende distinguir pulses fundamen-tais no homem, elas variam em funo das condies mate-riais tais como classe e poca, e conseqentemente tambm conforme a inteno e a direo da pulso. [...] Elas no se destacam de modo to evidente como, por exemplo, a fome, que psicanaliticamente foi deixada de fora em toda parte.19

    Bloch adverte que a apreenso da fome como uma pulso fundamental no restringe a expresso real da questo ao interesse econmico, ao velho debate da base e superestrutura; o fator eco-nmico no o nico, mas o fundamental; nunca determinante, embora condicionante. A partir da fome formam-se os afetos ex-pectantes (angstia, medo, esperana e f) que se estendem atravs

    18 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1. p. 59.19 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1. p. 67.

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    do aspecto desejante at o alvo de uma vida melhor: formam-se so-nhos diurnos. Eles sempre procedem de uma carncia e querem se desfazer dela. Todos so sonhos de uma vida melhor (...), o que intudo pelo impulso de auto-expanso para frente um ainda--no-consciente.20

    Todos os afetos expectantes indicam para frente, o con-texto temporal do seu contedo o futuro, sendo que a esperan-a implica o bem-supremo, a bem aventurana irrompendo, que dessa forma ainda no existiu. A esperana e a confiana (afetos expectantes positivos) frustram o medo e a angstia ou desespero. Bloch cita uma passagem de Hlderlin que exemplifica o potencial utpico da esperana: Onde h perigo, cresce tambm o que sal-va. Perigo e f so a verdade da esperana, de tal modo que ambos esto reunidos nela e o perigo no tem medo, nem a f tem em si uma quietude indolente.21 A esperana , em ltima anlise, um afeto prtico, militante.

    O contedo ativo da esperana, na qualidade de cons-cientemente esclarecido, cientemente explicado, a fun-o utpica positiva, enquanto o contedo histrico da esperana, evocado primeiramente em representaes, in-vestigado enciclopedicamente em juzos concretos, a cultu-ra humana na relao com seu horizonte utpico-concreto.22

    Dessa forma, a utopia torna-se um elemento da atividade humana orientada para o futuro, um topos da conscincia antecipa-dora e fora ativa dos sonhos diurnos. Esse topos utpico possvel pelo fato de que o mundo no um lugar fechado, ou processo acabado, porque possui horizonte aberto e cheio de possibilidades

    20 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1. p. 79.21 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1. p. 115.22 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.1. p. 146.

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    ainda-no realizado; tudo, no mundo, movimento e agitao, s vezes, em estado de latncia, s vezes, revolucionrio.

    No segundo volume da enciclopdia dos sonhos e da es-perana, Bloch desenvolve a fundamentao, revisando pratica-mente todas as utopias sociais, mdicas, dos contos de fadas, as uto-pias arquitetnicas, geogrficas, os socialistas utpicos do sc. XIX; sendo relevantes para a anlise deste artigo, as utopias messinicas da Bblia, de Agostinho e Joaquim de Fiore. Para Ernst Bloch, o monge calabrs Joaquim de Fiore, por meio da doutrina do tercei-ro Evangelho23, provocou o ressurgimento dos temas apocalpticos que, desde Santo Agostinho, haviam sido marginalizados. Joaquim representa o esprito da utopia social crist revolucionria; inver-samente transcendncia de Agostinho, a sua aliana de irmos no nenhuma fuga do mundo para o cu ou alm, pelo contrrio, o reino de Cristo pertence decididamente a este mundo como em nenhum outro momento desde o cristianismo primitivo.

    Em A Cidade de Deus, Agostinho conferiu nova terra, como um alm sobre a terra, expresso mais vigorosa, e obviamen-te a expresso utpica formadora da Igreja. Nessa concepo, os desejos terrenos podem ser contemplados secundariamente, nun-ca atendidos. A utopia do Estado aparece pela primeira vez como Histria, sim, ela a gera, a histria surge como histria da salva-o rumo ao reino, como processo ininterrupto uniforme; a Civitas Dei era literalmente concebida como um pedao do cu na terra. Muda-se a prpria concepo de tempo histrico; acabou-se igual-

    23 Para Joaquim de Fiore, os trs estgios da histria so o do Pai, do Antigo Testamento, do temor e da lei conhecida. O segundo o do Filho ou do Novo Testamento, do amor e da Igreja que est dividida em clrigos e leigos. O ter-ceiro estgio, que est por vir, do Esprito Santo ou da iluminao de todos, numa democracia mstica, sem senhores nem Igreja. O primeiro Testamento forneceu o caule, o segundo a espiga, o terceiro produzir o trigo. BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana. v.2, p. 64.

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    mente o eterno retorno de um processo circular; o tempo linear da histria mundial nica, juntamente com seu ponto alto, Cristo e a salvao. Agostinho chega a afirmar que A Civitas Dei est to lon-ge da civitas terrena quanto o sol est distante da terra, ou ainda que a Deus e alma anseio conhecer; nada mais? Nada mais que isso. Dessa forma Agostinho colocou a Igreja acima do Imprio.24

    A contraposio de Joaquim de Fiore ao idealismo de San-to Agostinho teve, de acordo com Bloch, importantes desdobra-mentos e influncia nas seitas herticas dos albigenses, hussitas e, sobretudo em Thomas Munzer e nos anabatistas. Para Joaquim, a utopia, como nos profetas, aparece exclusivamente na modalidade e na condio de futuro histrico25, sem o separatismo do pecado e seu mundo, do cu e da terra.

    Porm, a base do messianismo como uma utopia social est historicamente relacionada ao Antigo e Novo Testamento, religio judaica e crist, que Bloch define, respectivamente, como religio do xodo e religio do reino. esse estudo scio-hist-rico do messianismo relacionado s sagradas escrituras que acre-ditamos serem pertinentes na compreenso da gnese messinica do pensamento blochiano26 e, conseqentemente, no messianismo como um fator decisivo e aglutinador das utopias.

    Messianismo e Utopia:

    O reino do cu como um gro de mostarda que um homem to-mou e semeou no seu campo. Ela a menor de todas as sementes, mas quando cresce a maior e trona-se em rvore, de tal modo que as aves sob o cu vm morar nos seus ramos (Mateus, 13,31).

    24 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.2, pp. 59, 59, 61, 406, 409. 25 BLOCH, Ernst. Op.cit, p.68. 26 Em Esprito da Utopia de 1918, ele sada o conselho de operrios e soldados

    como pretorianos que, na Revoluo Russa, instauraram, pela primeira vez, o Cristo como Imperador. LWY, Michael. Romantismo e Messianismo, p. 183.

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    A maturao profissional de Ernst Bloch, ao lado de inte-lectuais como Max Weber, Karl Manheinn, Georg Lukcs27 e, na dcada de 1920, com Walter Benjamin, produziu um pensador no-tvel, um filsofo que impressiona pela erudio e pela clareza das ideias. Mas o ponto essencial e original de Bloch a aproximao entre materialismo histrico e teologia, sem cair no determinis-mo economicista de Karl Kautsky, por exemplo, em A origem do cristianismo. Desde Esprito da Utopia, obra de 1918, at Atesmo no Cristianismo, h nas palavras do prprio Bloch um vasto sistema do messianismo terico. Theodor Adorno afirma que a perspectiva do fim messinico da histria e da passagem para a transcendncia o centro em torno do qual tudo se ordena em Geist der Utopie28.

    Onde h esperana, h religio, escreve Ernst Bloch no terceiro volume de O Princpio Esperana. Esperana que no poderia faltar ao povo hebreu escravizado no Egito; escravizado representa a a necessidade que ensina a rezar. O sofrimento e a indignao esto na origem de tudo, assim que, de antemo, fazem da f um caminho para a liberdade29. O Deus do xodo, ou Jav, que Moiss fez acompanhar sua tribo durante a saga do deserto, jamais perdeu seu poder final: ele impregnou a mstica gnstica do princpio do mundo, direcionando para o mega messinico.

    Portanto, j em Moiss estava implantado o Deus Espe-rana, mesmo que a imagem derradeira para fora do Egito, ou seja, do Messias, surja s mil anos mais tarde; o messianismo mais antigo que a f no Messias.30 O sonho culmina no perodo

    27 Um epigrama bastante irnico e bem humorado resumia com perfeio a viso de mundo comum a eles: como se chamam os quatro evangelistas? Mateus, Marcos, Lukcs e Bloch. Op., cit. P. 56.

    28 Citado por LWY, Michael. Romantismo e Messianismo, p. 183.29 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.3, p. 316.30 Op, cit, p. 321.

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    romano: o Messias o rei secreto, o ungido do Senhor, restaurador do reino de Davi. Assim:

    A f no Messias faz com que se levante, alm do rei esperado da linhagem de Davi, um Moiss esperado de condio mais elevada. As dez pragas, a destruio dos egpcios no Mar Ver-melho, tronaram-se apocalpticas: precondio para a chegada do reinado de Deus a destruio da potncia que atualmente manda e desmanda na terra [...] como o novo cu, a nova terra.31

    Bloch salienta que o conceito de messianismo no ex-clusividade dos judeus: a formulao apocalptica da f no Messias tem incio concomitantemente entre os persas e caldeus. No en-tanto, exclusivamente os judeus tinham a seu favor toda a fora do sofrimento e, por essa razo, toda a seriedade da esperana. Pois os persas sob Ciro e os caldeus sob Nabucodonosor dominavam o mundo, e seu Deus nem mesmo necessitava do futuro para ser vitorioso (...). A Judia, em contrapartida, tambm, aps o retor-no dos judeus, encontrava-se numa situao to ruim que s ali a f no Messias pde assumir a forma de uma f explosiva.32 Nesse aspecto, a analogia feita por Max Weber, do messianismo como ca-racterstico dos povos prias33, torna-se patente.

    Todo fundador de religio, o numinoso, entrou em cena com uma aura que prpria do Messias, e toda fundao de reli-gio, sendo uma boa nova, tem, no seu horizonte, o novo cu e a nova terra, at mesmo quando essas duas grandezas consumadas

    31 Op, cit. 32 Op, cit, p. 323.33 Em povos subjugados pela opresso poltica, como os judeus, a qualificao

    de salvador foi ampliada originalmente aos salvadores dos infortnios pol-ticos, tal como apresentavam-se os heris lendrios. [...] Essas lendas deram lugar s promessas messinicas. WEBER, Max. Sociologia das Religies. Traduo de Claudio J. A. Rodrigues. So Paulo: cone, 2010.

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    foram manipuladas pelas Igrejas senhorias visando idealizao. Assim que entra em cena um fundador, d-se o elemento Messias, e em cada boa-nova implica-se um experimento Cana. Para Blo-ch, o messianismo , na religio, a utopia que permite comunicar o totalmente-outro do contedo da religio de tal forma que ele no corre o risco da uno senhorial nem da teocracia.34

    Os fundadores das religies j se portaram messianicamente muito antes de os judeus levarem o messinico ao p da le-tra e o transformarem em sumrio basilar do religioso, em construo do reino pura e simplesmente. O messianismo o sal da terra e do cu tambm; para que no s a terra, mas tambm o cu intencionado no se tornem inspidos. O que o numinoso prometeu o messinico se dispe a cumprir [...].35

    A antigussima tradio judaica que liga Moiss a Jesus passa pela pregao messinica dos profetas. Devidamente inter-pretado, o profetismo apareceu em pocas de intensas tenses in-ternas e externas. Ams o mais antigo entre os profetas (por volta de 750 a.C.) o que acende o estopim: Atearei fogo a Jud, e ele devorar os palcios de Jerusalm [...]. Porque venderam o justo por um dinheiro e o pobre por um par de sandlias, [...] porque desviam os recursos dos humildes (Ams 2,5-7). De maneira se-melhante, em Isaas, Jav invocado como inimigo dos expropria-dores dos camponeses e da acumulao de capital, como vingador e tribuno do povo: Eu punirei o mundo por sua maldade, os m-pios por seus crimes. Porei fim ao orgulho dos insolentes, farei cair a arrogncia dos tiranos (Isaas 13,11). E, num captulo posterior, Sim, vou criar novo cu e nova terra; assim, o passado no ser mais lembrado, no subir mais ao corao (Isaas 65,17).36

    34 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.3, p. 324.35 Op, cit, pp. 384 e 385. 36 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.2, pp. 53-55-56.

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    Mas a preparao para a chegada do Messias se d por volta de 160 a.C., atravs do livro de Daniel, que Kautsky define como um panfleto predizendo para os oprimidos que logo Israel se levantaria e se libertaria. Israel seria seu prprio salvador, seu prprio Messias.37 Na viso da Daniel, o messianismo ganha a se-guinte substncia: Vinha com as nuvens do cu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancio e foi trazido sua presena. Este deu-lhe poder honra e o reino, para que o servissem todos os povos, naes e lnguas (Dan 7,13).38 Por fim, a ideia do Mes-sias recebeu formulao erudita por meio de Filo, contemporneo alexandrino de Jesus: o primitivo homem celestial (o Ado criado a partir da imagem e semelhana de Deus e no aquele criado a partir do p) o filho primognito de Deus, o segundo Deus, trata-se de um Deus intramundano ou humano. Dessa forma,

    [...] o Deus incognoscvel do cu cede cada vez mais a coluna de nuvem e de fogo, a autoridade do xodo e do salvador, figura do Messias; apesar de sua subordinao a Jav, o Messias quase igualado a ele, s que como um Deus bom, como auxiliador e o lado bom de Deus. [...] Configurou-se como um voto de desconfiana praticamente indissimulvel, como apostasia em relao a Jav.39

    Com relao ao Jesus histrico, Bloch faz uma leitura que difere da concepo de Paulo e Agostinho, como puramente trans-cendental. O Sermo da Montanha e passagens como Dai a Csar o que de Csar ou Meu reino no deste mundo, que justifi-caram um cristianismo contemplativo, so apreendidos por Bloch como pregao escatolgica, que possui em Jesus a primazia so-bre a pregao moral, determinando-a. Pois, o cristianismo no

    37 KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo, p. 314. 38 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.3, p. 321.39 Op, cit, p. 322.

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    apenas um clamor contra a privao, um clamor contra a morte e o vazio, engajando o Filho do Homem contra ambos.40

    Se Jesus tivesse sido pronunciado como Messias ou Fi-lho de Deus apenas no sentido tradicional, ou seja, como restaurador, ele teria sido protegido pela casta sacerdo-tal e no chegaria a ser denunciado aos romanos; mui-to menos o sumo sacerdote Caifs teria feito questo de sua morte, contrariando a vontade do procurador. Pois a reivindi-cao da dignidade messinica no era considerada, nem an-tes nem depois de Jesus, um crime digno de pena capital.41

    A definio de Jean Delumeau acerca dos milenarismos europeus tem uma afinidade eletiva com o pensamento de Ernst Bloch. H em geral - escreve Delumeau - uma ligao entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Os atores dos movi-mentos escatolgicos so freqentemente marginalizados, desen-raizados ou colonizados que aspiram um mundo de igualdade de comunidade. Eles anunciam uma mudana radical, uma salvao coletiva, iminente, total. Afirmam o sentido da histria. Apelam ao agir humano.42 Os milenarismos, assim como as utopias sociais, esperam um reino neste mundo, reino que seria uma espcie de paraso terrestre reencontrado.

    Todavia, a filosofia da religio de Bloch, ou dito de outra forma, sua teologia da esperana, apesar de embasadas no Antigo e Novo Testamentos, no tem relao com a hermenutica da teolo-gia oficial, com a ortodoxia catlica. Com efeito, Bloch procura jus-tificar a existncia de uma tendncia crtica ou subversiva das sei-tas herticas. H, na sua interpretao, um eixo no teocrtico ou uma bblia subterrnea (Biblia pauperorum) o que justificaria um

    40 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.2, pp. 55-56-57.41 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana v.3, pp. 346-347.42 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade, pp. 17-18.

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    paraso no transcendente que se identifica com o reino escatolgi-co. Em contrapartida, os movimentos herticos so contestadores da ordem social e, muitas vezes, revolucionrios, desde a tradio de Joaquim de Fiore, albigenses, hussitas, Thomas Munzer e os anabatistas. Ou, nas palavras do prprio Marx:

    Os princpios sociais do cristianismo tiveram agora dezoito scu-los para se desenvolver [...]. Os princpios sociais do cristianismo justificaram o antigo escravismo, enalteceram a servido feudal na Idade Mdia e igualmente se prestam para, em caso de ne-cessidade, ainda que com um semblante um pouco deplorvel, defender a opresso do proletariado [...]. Os princpios sociais do cristianismo so servis, e o proletariado revolucionrio (...).43

    Em Atesmo no Cristianismo44, Bloch reafirma que a B-blia s tem futuro se for transcendente e, ao mesmo tempo, sem transcendncia, ou seja, sem um Deus apresentado como um ser que est acima de ns, sentado num trono acima do cu, como o Zeus da Antiguidade. Na mesma obra, o Autor insiste, de forma peculiarmente cida, que a Bblia deveria ser lida com os olhos do Manifesto Comunista sem deixar que o sal do atesmo se torne insosso.

    Concluses

    Obviamente a ousadia do pensamento de Ernst Bloch no agradou a todos. Sua viso de mundo, seu sincretismo entre judasmo e cristianismo e sua tentativa de estabelecer uma ponte hermenutica entre marxismo e religio, messianismo e poltica,

    43 Obras pstumas, citado por BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana, v.2, p. 67 e 68.

    44 Atesmo no Cristianismo, de 1968, ainda no h verso em portugus, apud MUNSTER, Arno. Ernst Bloch..., p. 109 e 110.

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    provocaram a irritao das mais variadas ortodoxias. O marxismo oficial stalinista rapidamente acusou Bloch de revisionismo; de-sagradou tambm os representantes da igreja catlica oficial, pela defesa das correntes errticas e protestantes; igualmente o tradi-cionalismo judaico, por causa dos desvios de Bloch cristologia e na questo da imagem tradicional de Deus.

    Contra estas contradies o pensador dialtico certa-mente responderia da seguinte maneira: O que caracteriza o po-der e a verdade do marxismo justamente o fato de ele ter dissipa-do a nuvem que envolvia os sonhos para frente sem ter apagado as colunas de fogo que neles ardiam, dando-lhes, ao contrrio, fora e concretude.45 Num sentido semelhante, Arno Munster cita uma conferncia em 1968, intitulada Karl Marx, o andar ereto e a utopia concreta, onde o filsofo da esperana salientava, acerca dos des-vios da social-democracia e do stalinismo, que o marxismo corre menos riscos por parte de seus inimigos declarados do que por parte as aes de seus amigos.46

    O esprito utpico de Bloch, cujas categorias centrais so possibilidade e esperana, rompem com o estado de reifica-o do mundo burgus e seu aparato ideolgico. Quando Bloch escreve que o no um ainda-no que pode vir-a-ser, ele desmistifica a realidade social estratificada, coisificada e abre uma fronteira no campo da filosofia da prxis rumo ao novo, ao devir, ao futuro, enfim... esperana. O mpeto e o desejo irrompem atravs dos sonhos diurnos e da conscincia antecipadora e tem como re-ferncia o horizonte mais amplo e mais claro, rumo nova aurora, num sentido semelhante frase de Marx e Engels, escrita em 1848, no Manifesto Comunista: tudo que slido desmancha no ar.

    45 BLOCH, Ernst. O Princpio Esperana, v.1, p. 145.46 MUNSTER, Arno. Ernst Bloch..., p. 91.

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    Embora haja juno, aproximao e, at mesmo, fuso de conceitos aparentemente distantes e contraditrios como os temas materialistas e apocalpticos, transcendentes e imanentes, messi-nicos e utpicos, razo e f, Ernst Bloch, com sua erudio enciclo-pdica e olhar otimista voltado para o futuro, consegue integr-los de forma coerente e original. A influncia e os desdobramentos do pensamento blochiano ainda esto longe de serem compreendidos na prtica. No entanto, a Teologia da Libertao47 na Amrica La-tina tem demonstrado a pertinncia e eficcia da hermenutica de Bloch, na qual a histria humana e terrena no paralelamente distante ao projeto salvfico de Deus, mas sim a estrutura concreta onde ocorre a histria da salvao. Nesse sentido, a teologia da Li-bertao seria uma libertao da teologia ortodoxa dogmatizada.

    Ernst Bloch mais que um filsofo ou telogo, antes de tudo um artista com penetrao psicolgica de um escritor maior, um poli-historiador48 que entende a origem do processo no em sua gnese, mas no mega. Incipt vita nova!

    Referncias

    ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperana: Ernst Bloch e as margens da histria do esprito. Petrpolis: Vozes, 1998.

    BLOCH, Ernst. Thomas Munzer, o telogo da revoluo. Traduo Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

    ______. O Princpio Esperana. 3 volumes. Traduo Nlio Sch-neuder. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, 2006.

    47 So inmeros autores, mas os trabalhos mais conhecidos so de Gustavo Gu-tirrez, Leonardo e Clodovis Boff, Enrique Dussel e Hugo Assmann. Ernst Bloch e Walter Benjamin so os tericos mais influentes na Teologia da Liber-tao, aproximado marxismo e teologia, utopia e poltica.

    48 HOBSBAWM, Eric. Revolucionrios, p. 143.

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    DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do para-so. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    FURTER, Pierre. Dialtica da esperana: uma interpretao do pensamento utpico de Ernst Bloch. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

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    ______. Ideologias e cincia social: elementos para uma anlise marxista. So Paulo: Cortez, 2010.

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