pontes de macarrão: uma alternativa para o ensino da estática

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27 Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Pontes de macarrão e o ensino de estática O artigo aborda a construção de pontes de macarrão realizada por estudantes do segundo ano do Ensino Médio, durante o ensino de estática, procurando aproximar o ensino de física de situações vivenciais, que fazem parte da vida do estudante. Além disso, identifica os conceitos físicos e matemáticos utilizados na atividade e realiza alguns apontamentos para que outros docentes utilizem esta proposta. A prática tradicional de ensino de física prioriza problemas e situações muitas vezes desconec- tadas do cotidiano do estudante. Desse modo, o estudante, muitas vezes, após concluir o ensino básico, não consegue estabelecer relações entre os conteúdos abordados em sala de aula com situações vivenciais. Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais [1] apontam que “o ensino de física tem-se realizado fre- quentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma de- sarticulada, distanciado do mundo vivido pelos estudantes e professores, não só, mas também por isso, vazios de signi- ficado” (p. 2). No ensino da mecânica, mais especifi- camente na estática, prioriza-se a resolu- ção de dezenas (ou até centenas) de exercícios considerando-se ge- ralmente os objetos como sendo pontuais, de dimensões despre- zíveis. Situações en- volvendo aplicações práticas da estática, em particular a estática dos corpos rígidos, de dimensões não-desprezíveis, raramente são utilizadas. Alguns autores como Souza [2] e An- gotti e cols. [3] apontam para a necessi- dade de se investigar estratégias didático- metodológicas inovadoras que, além de motivar o estudante, contribuam para uma aprendizagem mais eficiente da física. Nesse sentido, uma alternativa para auxiliar na compreensão da estática dos corpos rígidos e possibilitar um ensino de física que estabeleça relações com o coti- diano em que os estudantes estão inseri- dos, é o desenvolvimento de pontes de ma- carrão. A atividade de construção de pon- tes de macarrão é utilizada, geralmente, Anaximandro Dalri Merizio Mestrando em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Tijucas, SC, Brasil E-mail: [email protected] e Carlos Alberto Souza Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Campus Itajaí, SC, Brasil sob forma de campeonatos, 1 nos cursos de engenharia civil. Entretanto, é possível perceber a possibilidade de inserção dessa atividade, com especificidades diferencia- das, no Ensino Médio. Neste artigo, apresenta-se a descrição de uma atividade didática que objetivou a criação e o desenvolvimento, com duas turmas de estudantes do segundo ano do Ensino Médio de uma escola da rede par- ticular de ensino, de pontes de macarrão. As pontes de macarrão possibilitam a discussão sobre conceitos onde, muitas vezes, os estudantes apresentam dificul- dades para aprendizagem como, por exemplo, as forças resultantes da intera- ção entre dois planos e as condições de equilíbrio. Além disso, as pontes de macar- rão podem fazer com que o estudante possa compreender as vali- dades de alguns mo- delos ensinados ao longo do Ensino Mé- dio. Um limite de va- lidade pode ser deba- tido com os estudan- tes quando se repre- senta o peso da ponte (como na Fig. 1). Considera-se, na maioria das situações, que o centro de gravidade coincide com o centro geométrico. Nas pontes de macarrão, a hipótese de que a massa do macarrão é uniforme- mente distribuída, resultando em uma densidade de massa constante ao longo do objeto, foi considerada pelos estudantes na elaboração e construção da ponte. Entretanto, é oportuno debater com os es- tudantes algumas situações envolvendo objetos que não possuem uma distribui- ção de massa homogênea. Condições de equilíbrio de um corpo rígido Em um corpo rígido, existem duas A prática tradicional de ensino de física prioriza problemas e situações muitas vezes desconectadas do cotidiano do estudante que, após concluir o ensino básico, não consegue estabelecer relações entre os conteúdos abordados em sala de aula com situações vivenciais

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Page 1: Pontes de macarrão: uma alternativa para o ensino da estática

27Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Pontes de macarrão e o ensino de estática

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O artigo aborda a construção de pontes demacarrão realizada por estudantes do segundoano do Ensino Médio, durante o ensino deestática, procurando aproximar o ensino defísica de situações vivenciais, que fazem parteda vida do estudante. Além disso, identifica osconceitos físicos e matemáticos utilizados naatividade e realiza alguns apontamentos paraque outros docentes utilizem esta proposta.

Aprática tradicional de ensino defísica prioriza problemas esituações muitas vezes desconec-

tadas do cotidiano do estudante. Dessemodo, o estudante, muitas vezes, apósconcluir o ensino básico, não consegueestabelecer relações entre os conteúdosabordados em sala de aula com situaçõesvivenciais. Nesse sentido, os ParâmetrosCurriculares Nacionais [1] apontam que“o ensino de física tem-se realizado fre-quentemente mediante a apresentação deconceitos, leis e fórmulas, de forma de-sarticulada, distanciado do mundo vividopelos estudantes e professores, não só,mas também por isso, vazios de signi-ficado” (p. 2).

No ensino da mecânica, mais especifi-camente na estática,prioriza-se a resolu-ção de dezenas (ou atécentenas) de exercíciosconsiderando-se ge-ralmente os objetoscomo sendo pontuais,de dimensões despre-zíveis. Situações en-volvendo aplicaçõespráticas da estática,em particular a estática dos corpos rígidos,de dimensões não-desprezíveis, raramentesão utilizadas.

Alguns autores como Souza [2] e An-gotti e cols. [3] apontam para a necessi-dade de se investigar estratégias didático-metodológicas inovadoras que, além demotivar o estudante, contribuam parauma aprendizagem mais eficiente dafísica.

Nesse sentido, uma alternativa paraauxiliar na compreensão da estática doscorpos rígidos e possibilitar um ensino defísica que estabeleça relações com o coti-diano em que os estudantes estão inseri-dos, é o desenvolvimento de pontes de ma-carrão. A atividade de construção de pon-tes de macarrão é utilizada, geralmente,

Anaximandro Dalri MerizioMestrando em Educação Científica eTecnológica, Universidade Federal deSanta Catarina, Florianópolis, SC,Brasil e Serviço Nacional deAprendizagem Industrial, Tijucas, SC,BrasilE-mail: [email protected] Alberto SouzaInstituto Federal de Educação, Ciênciae Tecnologia de Santa Catarina,Campus Itajaí, SC, Brasil

sob forma de campeonatos,1 nos cursosde engenharia civil. Entretanto, é possívelperceber a possibilidade de inserção dessaatividade, com especificidades diferencia-das, no Ensino Médio.

Neste artigo, apresenta-se a descriçãode uma atividade didática que objetivou acriação e o desenvolvimento, com duasturmas de estudantes do segundo ano doEnsino Médio de uma escola da rede par-ticular de ensino, de pontes de macarrão.

As pontes de macarrão possibilitama discussão sobre conceitos onde, muitasvezes, os estudantes apresentam dificul-dades para aprendizagem como, porexemplo, as forças resultantes da intera-ção entre dois planos e as condições deequilíbrio. Além disso, as pontes de macar-

rão podem fazer comque o estudante possacompreender as vali-dades de alguns mo-delos ensinados aolongo do Ensino Mé-dio.

Um limite de va-lidade pode ser deba-tido com os estudan-tes quando se repre-

senta o peso da ponte (como na Fig. 1).Considera-se, na maioria das situações,que o centro de gravidade coincide com ocentro geométrico.

Nas pontes de macarrão, a hipótesede que a massa do macarrão é uniforme-mente distribuída, resultando em umadensidade de massa constante ao longodo objeto, foi considerada pelos estudantesna elaboração e construção da ponte.Entretanto, é oportuno debater com os es-tudantes algumas situações envolvendoobjetos que não possuem uma distribui-ção de massa homogênea.

Condições de equilíbrio de umcorpo rígido

Em um corpo rígido, existem duas

A prática tradicional de ensinode física prioriza problemas e

situações muitas vezesdesconectadas do cotidiano doestudante que, após concluir oensino básico, não consegueestabelecer relações entre osconteúdos abordados em sala

de aula com situações vivenciais

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condições para que o corpo esteja em equi-líbrio: 1 - A força resultante sobre o corpodeve ser nula, e 2 - o torque (ou momentoda força resultante) resultante em relaçãoa qualquer ponto deve ser igual a zero [4].A primeira condição relaciona-se com omovimento de translação e o segundorelaciona-se com o movimento de rotação.Na construção das pontes objetiva-se aexistência de um equilíbrio estático, semrotações nem translações.

Descrição da atividade

A atividade de construção de pontesde macarrão foi realizada durante as aulasda disciplina de física, com carga horáriade três aulas semanais, concomitante-mente com o estudo do assunto condiçõesde equilíbrio de um corpo rígido.

As pontes de macarrão, projetadas econstruídas, possuíam algumas dimen-sões previamente definidas durante a ela-boração do projeto. O comprimento daponte ficou estabelecido entre 60 a 80 cm,com uma largura entre 5 e 15 cm. Já aaltura da ponte não foi previamenteestabelecida, pois esta grandeza foi deba-tida pelos estudantes na fase de elaboraçãodo projeto, tendo em vista a quantidadede material disponível. Além disso, apre-sentamos os materiais disponibilizadospara cada equipe: no mínimo 1 kg e nomáximo 2 kg de macarrão do tipo espa-guete número 7, colas do tipo epóxi, cola

quente ou cola branca. Não foi permitidaa utilização de outros materiais.

Etapas realizadas para odesenvolvimento do projeto

Cada turma foi dividida em equipesentre 4 e 6 estudantes, resultando em umtotal de 13 equipes. Realizou-se a constru-ção da ponte em três etapas: elaboração,execução e apresentação do projeto. Naelaboração do projeto, os estudantes, jádivididos em equipes, realizaram algumaspesquisas na internet e em livros e, apóseste momento, procuraram elaborar umprojeto da ponte, também levando em

consideração os conhecimentos da físicaobtidos na sala de aula. Foram utilizadasduas aulas para a elaboração de um pro-jeto - um desenho, esquema, diagramas deforças - da futura ponte. Ao final das duasaulas, os estudantes entregaram o projetode construção da ponte em cartolina oupapel A4 (com a escala devidamente ela-borada). O professor teve o papel de instigaro grupo, questionar sobre as suas opções,auxiliando nos caminhos a serem seguidos.Neste momento, observou-se a utilizaçãode muitos conceitos abordados em sala deaula, ao longo do primeiro e do segundoano do Ensino Médio. Tal discussãoenvolveu conceitos físicos importantescomo força, peso, centro de gravidade econdições de equilíbrio, além da necessidadeda utilização de alguns conhecimentos dageometria e trigonometria.

Ressalta-se que antes da execução doprojeto, os estudantes determinaram asdimensões da ponte, altura, largura,vigas de sustentação, de modo a estaremdentro das orientações fornecidas peloprofessor. A execução do projeto (Fig. 3),

Figura 1 - Forças que atuam sobre a base de uma ponte.

Figura 2 - Um dos projetos desenvolvidos pelos estudantes.

Figura 3 - Construção da ponte por parte dos estudantes.

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Referências

[1] Brasil, Parâmetros Curriculares Nacionais:Ensino Médio (Ministério da Educação,Brasília, 1999).

[2] C.A. Souza, Investigação-Ação Escolar eResolução de Problemas de Física: OPotencial dos Meios TecnológicosComunicativos. Tese de Doutorado,PPGE/UFSC, Florianópolis, 2004.

[3] J.A. Angotti, C.A. Souza e F.P. Bastos,Caderno Catarinense de Ensino de Fí-sica 25, 310 (2008).

[4] P. Tipler, Física para Cientistas e Engenhei-ros, v. 1 (Livros Técnicos e CientíficosEditora S.A., Rio de Janeiro, 2000),4ª ed.

outra importante etapa, foi realizada aolongo de quatro aulas. Os estudantesconstruíram toda a ponte no período emque estavam na escola, objetivando umaparticipação ativa do estudante naatividade.

Neste sentido, todos os estudantesdebateram algumas questões cruciais co-mo, por exemplo, qual o tamanho das “vi-gas de sustentação” para evitar que a pon-te se quebrasse. Para a apresentação daponte (Fig. 4) destinou-se uma aula, ondeos estudantes apresentaram, para osdemais estudantes, as pontes construídas.Na apresentação, determinou-se qual aforça máxima suportada pelas pontes(Fig. 5).

Tomemos como exemplo a ponte daesquerda na Fig. 5, que possuía massaigual a 2 kg. Verificou-se que a ponte su-portou sobre a sua estrutura, até se per-ceber sua deformação, um total de 24 kg.Podemos concluir então que a ponteconseguiu suportar, nestas condições, 12

vezes o seu peso. Este resultado propiciouum debate em sala sobre quais seriam asalternativas para melhorar os resultadosobtidos.

Conclusão

A utilização de pontes de macarrãopode representar uma alternativa parainovar a prática pedagógica, auxiliandona motivação do estudante no processoeducacional e melhorando a aprendiza-gem. Além disso, possibilita a utilizaçãode conceitos da física em uma situaçãoreal, o que não acontece na maioria dassituações propostas no atual ensino de fí-sica. Se o professor, entretanto, não dis-puser de muito tempo para a atividadeem virtude da carga horária da disciplina,em algumas etapas pode-se solicitar aoestudante para que as realize em umhorário externo ao horário escolar.

Essa atividade possibilita também autilização de conhecimentos de outras dis-ciplinas como de matemática, pois o estu-

Figura 5 - Testes da resistência da ponte.

Figura 4 - Apresentação das pontes.

dante deve utilizar elementos da geometriae trigonometria no projeto. Essa articu-lação é corroborada pelos PCNs [1, p. 9],quando afirma que é oportuna “a articu-lação o conhecimento físico com conhe-cimentos de outras áreas do saber cientí-fico”.

A inserção dos estudantes em ativi-dades em grupo, onde eles elaboramhipóteses, debatem com os colegas as suasidéias sobre os problemas apresentados éoutro resultado desse tipo de atividade.Observamos que os estudantes utilizaramdiferentes estratégias para a construçãodas pontes. Alguns elaboraram todas aspeças separadamente para posteriormenteconstruírem a ponte, como em umaespécie de quebra-cabeça. Outrosconstruíram primeiramente a base daponte para posteriormente realizarem ascorreções necessárias e desenvolverem orestante das estruturas. Este é um dadointeressante que auxilia no planejamentode atividades posteriores.

Nota1O Departamento de Engenharia Civil daUniversidade Federal do Rio Grande do Sulrealiza, desde 2004, a Competição de Pon-tes de Espaguete. Para maiores informa-ções recomenda-se acessar www.ppgec.ufrgs.br/segovia/espaguete.