politicas públicas de desenvolvimento rural no brasil

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  • Polticas Pblicas de Desenvolvimento rev edit.indb 1 19/03/2015 14:25:57

  • Reitor

    Vice-Reitor e Pr-Reitorde Coordenao Acadmica

    Carlos Alexandre Netto

    Rui Vicente Oppermann

    EDITORA DA UFRGS

    Diretor

    Conselho Editorial

    Carlos Perez Bergmann

    Claudia Lima Marques

    Jane Fraga Tutikian

    Jos Vicente Tavares dos Santos

    Marcelo Antonio Conterato

    Maria Helena Weber

    Maria Stephanou

    Regina Zilberman

    Temstocles Amrico Corra Cezar

    Valquiria Linck Bassani

    , presidente

    Alex Niche Teixeira

    Alex Niche Teixeira

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  • Polticas Pblicas de Desenvolvimento rev edit.indb 3 19/03/2015 14:25:57

  • dos autores1 edio: 2015

    Direitos reservados desta edio:Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Capa: Carla M. LuzzattoReviso: Carlos Batanoli HallbergEditorao eletrnica: Fernando Piccinini Schmitt

    P767 Polticas pblicas de desenvolvimento rural no Brasil / Organizadores Catia Grisa [e] Sergio Schneider. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.624 p. : il. ; 16x23cm

    (Srie Estudos Rurais)

    Inclui figuras, grficos, mapas, quadros e tabelas.

    Inclui referncias.

    1. Agricultura. 2. Desenvolvimento rural. 3. Polticas pblicas Agri-cultura familiar. 4. Polticas agrcolas. 5. Segurana alimentar Polticas. 6. Desenvolvimento territorial Polticas. 7. Polticas ambientais. 8. Polticas agrrias. 9. Polticas sociais. 10. Cincia Tecnologia. 11. Polticas pblicas Grupos sociais Meio rural Brasil. 12. Desenvolvimento rural - Polticas Amrica Latina. I. Grisa, Catia. II. Schneider, Sergio. IV. Srie.

    CDU 631.1:330.34(81)

    CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao.(Jaqueline Trombin Bibliotecria responsvel CRB10/979)

    ISBN 978-85-386-0262-0

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  • Sumrio

    Prefcio / 9Renato S. Maluf

    Apresentao / 13Catia Grisa e Sergio Schneider

    Trs geraes de polticas pblicas para a agricultura familiar e formas de interao entre sociedade e Estado no Brasil / 19

    Catia Grisa e Sergio Schneider

    Parte 1 Polticas agrcolasO Pronaf e o desenvolvimento rural brasileiro: avanos, contradies e desafios para o futuro / 53

    Joacir Rufino de Aquino e Sergio Schneider

    Seguro agrcola e desenvolvimento rural contribuies e desafios do SEAf / 83Jos Carlos Zukowski

    Pnater (20042014): da concepo materializao / 107Vivien Diesel, Marcelo Min Dias e Pedro Selvino Neumann

    Poltica de Comercializao Agrcola no Brasil / 129Jnia Cristina P. R. da Conceio

    Parte 2 Polticas de segurana alimentar e nutricionalDez anos de PAA: As contribuies e os desafios para o desenvolvimento rural / 155

    Catia Grisa e Silvio Isopo Porto

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  • Repensando o mercado da alimentao escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural / 181

    Rozane Marcia Triches

    gua para o desenvolvimento rural: a ASA e os Programas P1MC e P1+2 Desafios da participao sociedade civil governo / 201

    Ghislaine Duque

    Abastecimento no Brasil: o desafio de alimentar as cidades e promover o Desenvolvimento Rural / 217

    Walter Belik e Altivo R. A. de Almeida Cunha

    Parte 3 Polticas de desenvolvimento territorialO Pronat e o PTC: possibilidades, limites e desafios das polticas territoriais para o desenvolvimento rural / 239

    Nelson Giordano Delgado e Sergio Pereira Leite

    Uma dcada de experimentaes e o futuro das polticas de desenvolvimento territorial rural no Brasil / 261

    Arilson Favareto

    Parte 4 Polticas ambientaisPolticas de pagamento por servios ambientais no Brasil: avanos, limites e desafios / 281

    Shigeo Shiki, Simone de Faria Narciso Shiki e Patrcia Lopes Rosado

    Polticas de promoo dos biocombustveis e agricultura familiar: o que sugerem as recentes experincias internacionais? / 311

    Georges Flexor e Karina Kato

    Parte 5 Polticas agrriasLuta por reforma agrria no Brasil contemporneo: entre continuidades e novas questes / 339

    Leonilde Servolo de Medeiros

    Crdito fundirio no Brasil: instrumento de ordenamento fundirio? / 361Carla Morsch Porto Gomes, Ademir Antonio Cazella, Fbio Luiz Brigo e Yannick Sencb

    Polticas pblicas, questo agrria e desenvolvimento territorial rural no Brasil / 381

    Bernardo Manano Fernandes

    A poltica pblica de extenso rural em assentamentos da reforma agrria: a construo de um sistema pluralista descentralizado / 401

    Pedro Selvino Neumann, Vinicius Piccin Dalbianco e Alisson Vicente Zarnott

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  • Parte 6 Polticas sociaisPrevidncia social e desenvolvimento rural / 429

    Guilherme C. Delgado

    Pobreza rural e o Programa Bolsa famlia desafios para o desenvolvimento rural no Brasil / 443

    Carolina Braz de Castilho e Silva e Sergio Schneider

    O Programa Nacional de Habitao Rural como estratgia de incluso e desenvolvimento rural / 465

    Jairo Alfredo Genz Bolter, Sergio Schneider e Jaqueline Mallmann Haas

    Parte 7 Cincia e tecnologiaCincia, tecnologia e inovao no desenvolvimento rural da regio amaznica / 485

    Alfredo Kingo Oyama Homma

    Polticas pblicas e pesquisa para o desenvolvimento rural no Brasil / 511Waldyr Stumpf Junior e Otavio Valentim Balsadi

    Parte 8 Polticas pblicas para grupos sociais do meio rural brasileiroPolticas pblicas e comunidade tradicional: reconhecimento e conquista de direitos? / 533

    Dalva Maria da Mota e Heribert Schmitz

    Polticas pblicas para a juventude rural brasileira / 549Elisa Guaran de Castro e Srgio Botton Barcellos

    Mulheres rurais e polticas pblicas no Brasil: abrindo espaos para o seu reconhecimento como cidads / 571

    Emma Siliprandi e Rosngela Cintro

    As polticas de desenvolvimento rural na Amrica Latina em perspectivaPolticas pblicas para as agriculturas familiares: existe um modelo latinoamericano? / 595

    Eric Sabourin, Mario Samper e Gilles Massardier

    Sobre os autores / 617

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  • Polticas Pblicas de Desenvolvimento rev edit.indb 8 19/03/2015 14:25:57

  • 9Prefcio

    Desenvolvimento rural um desses temas permanentes com farta produo bibliogrfica e presena constante nas agendas de debate da academia, governos e diversas esferas pblicas. Nada de surpreendente neste fato, seja porque a importante participao do meio rural na formao das sociedades requer tratamento especfico, seja porque subjacente ao tema do desenvolvimento rural se encontra a prpria questo do desenvolvimento ou do fazer desenvolvimento. Como alertou Amartya Sen, preciso admitir que o desenvolvimento um conceito incompleto de forma permanente. Exceo feita, claro, aos adeptos de modelos axiomticos e solues fechadas.

    Assim entendido, o desenvolvimento rural constitui tema de reflexo constante que requer uma perspectiva de longo prazo capaz, ademais, de perceber as mudanas e permanncias que coexistem no meio rural brasileiro, como em outros setores da sociedade. No perodo recente, novos atores sociais emergiram e identidades foram construdas, assim como se ampliaram e se diversificaram os instrumentos de ao pblica refletindo a peridica renovao das compreenses sobre o meio rural e dos enfoques sobre os rumos antevistos ou desejados para as populaes que nele vivem e trabalham. Entretanto, h traos que permanecem no tempo com roupagens e significados prprios de cada contexto, sendo os exemplos mais notveis a presena dominante das grandes exploraes agrcolas voltadas para a exportao e o quadro de profunda desigualdade social que, no campo, possui contornos mais acentuados. No por acaso tais caractersticas esto correlacionadas na histria brasileira e contam com antigos e novos dispositivos que do suporte s grandes exploraes ou reproduzem a desigualdade.

    Essas observaes introdutrias pretendem ressaltar a relevncia dos esforos, nada bvios, para desvendar os rumos e possibilidades de um uni

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    verso complexo como o meio rural, suas gentes e a natureza com a qual elas mantm estreita relao. Igualmente necessria e demandante a abordagem das diretrizes orientadoras e da adequao das polticas pblicas que incidem no desenvolvimento rural no Brasil. O livro que tenho a honrosa tarefa de apresentar se prope a enfrentar ambos os desafios e o faz com notvel abrangncia e rigor analtico, num momento bastante oportuno.

    Como bem lembram os organizadores da obra, no faltam motivaes para refletir sobre a trajetria recente do conjunto amplo e variado de polticas pblicas voltadas para o meio rural brasileiro. A inflexo havida nos anos 2000, na ressaca do neoliberalismo prevalecente no perodo anterior, se deu na direo da retomada de um papel mais ativo do Estado por meio de aes e polticas pblicas dirigidas a um grande nmero de setores, entre as quais se destacam justamente aquelas dirigidas agricultura familiar e as que se orientam pela promoo da segurana alimentar e nutricional. Esta inflexo no se fez, e nem seria plenamente compreensvel, sem a decisiva participao das organizaes da sociedade civil fortalecida com os avanos havidos na democracia brasileira, por mais insuficientes que tenham sido. H uma construo social da segurana alimentar e nutricional no Brasil que remonta segunda metade dos anos 1980 e a coloca ao lado de outros frutos da redemocratizao do pas. Assim como h uma construo conceitual e polticoinstitucional da categoria agricultura familiar desde meados dos anos 1990, igualmente alimentada pela participao social.

    Essa perspectiva est presente na introduo ao livro de autoria dos seus organizadores, onde nos apresentado o argumento, fundado na abordagem cognitiva das polticas pblicas, de que estamos sob a vigncia da terceira gerao de polticas para a agricultura familiar no Brasil. Enquanto o referencial de poltica orientador da primeira gerao teve vis agrcola e agrrio, e o segundo esteve direcionado para polticas sociais e assistenciais, a terceira gerao se orientaria pela construo de novos mercados orientados pela segurana alimentar e nutricional e sustentabilidade ambiental. Os autores chamam a ateno para a significativa contribuio da sociedade civil na construo desse referencial, favorecida pela maior permeabilidade da gesto pblica, novidade a ser celebrada, mas que ao mesmo tempo coloca para o debate questes de grande importncia sobre a participao e controle social das polticas pblicas.

    A notoriedade internacional adquirida pelo Brasil no que se refere s polticas de apoio agricultura familiar e de promoo da segurana alimentar e nutricional, por sua vez, aumenta a relevncia de reflexes como as propostas pelos autores que participam desta coletnea. Afinal, ao lado dos bons resultados sociais alcanados pelo pas nos ltimos anos tornados possveis por

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  • 11

    estas polticas, no so poucas as tenses, conflitos e contradies presentes no desenvolvimento brasileiro, em especial nos campos agrcola, agrrio, alimentar e ambiental.

    Mudanas e permanncias, avanos e contradies, estas so caractersticas dos processos de desenvolvimento rural, mas no s, melhor apreendidas com um olhar de conjunto das dinmicas socioeconmicas em curso e das trajetrias promovidas pelas aes pblicas nem sempre coerentes entre si. Assim foi pensada a presente coletnea de textos cuja abrangncia temtica denota a inteno dos organizadores de dar conta das polticas que repercutem sobre o desenvolvimento rural desde uma tica que classificam como multifacetada, multiator, multinvel, multidimensional e intersetorial. O contexto, como mencionado, caracterizase pela colocao da segurana alimentar e nutricional e da sustentabilidade ambiental como referncias organizadoras de programas especificamente dirigidos agricultura familiar, por sua vez, categoria que abrange uma diversidade social e identitria geradora de demandas especficas.

    Uma mirada no sumrio do livro confirmar a j referida amplitude de questes abordadas em seus captulos. Autores renomados nos respectivos temas proporcionam aos leitores anlises rigorosas e instigantes sobre os vrios instrumentos de poltica pblica nas reas agrcola, de segurana alimentar e nutricional, ambiental, social e de cincia e tecnologia. So tambm destrinchadas antigas e novas facetas da questo agrria brasileira, assim como so identificados os desafios para a adoo do enfoque territorial em polticas pblicas. A nova e mais complexa conformao social do meio rural aparece na anlise de programas voltados para grupos sociais especficos. Ateno dada ao contexto latinoamericano em que se inserem as polticas de promoo da agricultura familiar e de desenvolvimento rural.

    A agricultura familiar e as polticas e programas a ela dirigidos constituem a principal porta de entrada para as questes de desenvolvimento rural abordadas no livro. Nada mais oportuno, pois estamos frente necessidade de avaliar os rumos deste tipo de agricultura no Brasil, mais especificamente, que modelos de agricultura familiar vm sendo promovidos pelos programas pblicos. O reconhecido papel ainda desempenhado pela agricultura familiar como categoria sociopoltica no implica desconhecer, como j dito, sua diversidade. Alm disso, sua participao na produo de alimentos est exigindo ir alm dessa denominao genrica quando se trata de estabelecer as conexes entre formas familiares de produo agroalimentar e uma alimentao adequada e saudvel que valorize a sociobiodiversidade e as culturas alimentares. Em simultneo e na mesma direo, a ampliao do foco com vistas a abarcar os mltiplos papis desempenhados pelas vrias expresses de agricultura fami

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    liar nos permite olhar os agricultores como famlias rurais em interao com os respectivos territrios, tanto em termos da preservao de tecidos sociais, quanto no que se refere relao com a natureza e sustentabilidade ambiental.

    fiz meno a questes suscitadas pelas duas referncias destacadas na introduo segurana alimentar e nutricional e sustentabilidade ambiental que junto com vrias outras abordadas pelos autores dos captulos implicam uma conjuno de enfoques com repercusses no plano analtico e tambm nos dispositivos e instrumentos de poltica agrcola e no agrcola, gerais e diferenciados. Os captulos esto repletos de elementos que contribuem para tanto, compondo um amplo e variado cardpio de consulta obrigatria para os que se dedicam ao desenvolvimento rural. Ajudamnos a compreender a realidade rural brasileira, seus dilemas e possibilidades, elemento indispensvel na desejada construo de uma sociedade mais justa, capaz de erradicar mazelas e promover condies dignas de vida.

    Uma boa leitura a todas(os).

    RENATO S. MALUf

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    Apresentao

    So poucos os pases no mundo que alcanaram reduzir as desigualdades sociais e econmicas e gerar processos de incluso social e melhoria nas condies de vida. Nos anos recentes, o Brasil tem sido indicado como um dos pases em que h polticas e aes a serem seguidas e mesmo recomendadas como exemplos. H consenso entre estudiosos e especialistas que o caminho trilhado pelo Brasil sui generis e os resultados que tm sido alcanados devemse a uma combinao de fatores e processos, relacionados ao modo como a ao do Estado e das polticas pblicas influenciou e foi retroalimentada pelos atores e agentes da sociedade civil. O meio rural brasileiro talvez seja um dos espaos em que os efeitos desta construo social tenham sido mais intensos e gerado mudanas mais notveis.

    O livro Polticas Pblicas de Desenvolvimento Rural no Brasil tem como objetivo proporcionar um panorama do conjunto das polticas pblicas que atualmente incidem sobre o meio rural brasileiro, e repercutem na dinmica econmica e social do pas e nas diversas e complexas realidades regionais. Os diversos captulos abordam a trajetria, as contribuies, os limites e os desafios recentes de polticas agrcolas, agrrias, sociais, ambientais, de segurana alimentar e nutricional, de desenvolvimento territorial, de cincia e tecnologia, e de polticas direcionadas para grupos ou segmentos sociais especficos do meio rural brasileiro. de conhecimento geral a existncia de um amplo conjunto de estudos, relatrios e artigos sobre cada uma das aes e programas pblicos analisados neste livro. No entanto, procuramos oferecer uma obra que reunisse estas reflexes e anlises, proporcionando uma leitura mais integrada da interveno do Estado no meio rural nas dcadas recentes assim como de suas repercusses sobre as dinmicas e os processos sociais.

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    Mas h outras trs motivaes que tambm contriburam para a elaborao deste livro. A primeira est relacionada oportunidade de contribuir e de aprofundar o tema do desenvolvimento rural no Brasil, enfatizando as polticas pblicas. Como bem j documentado pela literatura brasileira, as dcadas de 1960 e 1970 so marcos da interveno do Estado na agricultura e no meio rural. As polticas pblicas deste perodo procuraram alterar o padro tecnolgico dos agricultores (incrementando a produo e a produtividade) e construir novas dinmicas produtivas e econmicas relacionadas com as indstrias e com os mercados. As polticas de modernizao da agricultura e os projetos de desenvolvimento rural integrado, seguindo os receiturios de agncias multilaterais, foram balizadores deste processo. Nas dcadas de 1980 e 90, com o ajuste estrutural e o neoliberalismo, a atuao do Estado e das polticas pblicas so modificadas e minimizadas, ganhando maior proeminncia a atuao do mercado e da sociedade civil no desenvolvimento. Nos anos 2000, o cenrio mais complexo e multifacetado. Convivemos ainda com dilemas e desafios que marcaram a formao econmica e social do Brasil e, particularmente, o processo de modernizao da agricultura; vivemos um perodo de pujana da economia do agronegcio; narrativas liberalizantes interagem com uma retomada da interveno dos Estados Nacionais; a diversidade social, cultural e econmica do meio rural brasileiro vem tona, exigindo o reconhecimento poltico e institucional da agricultura familiar, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, extrativistas, etc.; florescem grupos sociais reclamando direitos e a atuao do Estado; crescem os espaos de participao social, expressando o amadurecimento democrtico da sociedade brasileira, mas lanando constantemente novos desafios gesto pblica no sentido de contemplar diferentes atores, ideias e interesses; e exigemse, cada vez mais, processos que coadunem a dimenso ambiental, social, econmica e cultural.

    Neste contexto, h necessidade de realizar anlises que possibilitem uma compreenso destes processos em conjunto, considerando que o desenvolvimento rural multifacetado, multiator, multinvel, multidimensional e intersetorial. As anlises das diversas polticas abarcadas neste livro, com seus distintos focos de atuao e configuraes institucionais, as suas diferentes formas de relacionamento e de interao entre Estado e sociedade civil, e as diversas formas como chegam e aterrisam e so apropriadas nos espaos locais contribuem neste sentido.

    A segunda motivao relacionase com o crescimento da rea de polticas pblicas no Brasil. Uma rpida anlise de Grupos de Trabalhos em eventos cientficos e da criao de cursos de graduao e de psgraduao indica que uma nova rea de conhecimento e formao de recursos humanos est sendo criada no

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    Brasil. Para ilustrar, basta verificar a criao dos cursos de graduao em Polticas Pblicas na Universidade de So Paulo (USP 2005), na Universidade federal do ABC (2010) e na Universidade federal do Rio Grande do Sul (UfRGS 2010) e a criao dos cursos de PsGraduao em Polticas Pblicas na Universidade federal do Rio de Janeiro (PPED/UfRJ 2007), na Universidade federal Rural do Rio de Janeiro (PPGDT/UfRRJ 2011), na Universidade federal do Paran (PPPP/UfPR 2011), na Universidade federal do ABC (2014) e na Universidade federal do Rio Grande do Sul (2015). Na relao de cursos recomendados e reconhecidos pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) podemos observar que esta lista mais longa. Com o intuito de contribuir neste contexto, este livro busca dialogar e aprofundar o debate sobre as polticas pblicas de desenvolvimento rural no Brasil e disponibilizar um conjunto de referncias sobre as principais aes que tem sido desenvolvidas neste campo, alm de colocar a comunidade acadmica em contato com os principais autores e estudiosos destes temas.

    A terceira motivao emerge do reconhecimento internacional que o Brasil vem recebendo no perodo recente em decorrncia da criao de um amplo aparato institucional que reconhece a agricultura familiar, procura atender suas demandas especficas e promover as formas familiares de produo. A existncia de polticas como o Programa Nacional de fortalecimento da Agricultura familiar (Pronaf ), o Programa Garantia Safra, o Programa de Aquisio de Alimentos da Agricultura familiar (PAA), o Programa Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (Pronater), o Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Rurais (Pronat), o Seguro da Agricultura familiar (SEAf), o Programa de Garantia de Preo da Agricultura familiar (PGPAf), o Programa Nacional de Habitao Rural, o Selo da Agricultura familiar e a aquisio de alimentos da agricultura familiar para o Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE) so exemplos que diferenciam o Brasil no contexto internacional, despertando a ateno de vrios pases que buscam conhecer as polticas pblicas brasileiras e adequlas aos seus contextos de origem. Esta particularidade brasileira reflete no desenvolvimento rural do pas e precisa ser melhor investigada. O livro Polticas de Desenvolvimento Rural no Brasil vem a somar neste sentido, analisando, avaliando e divulgando a experincia brasileira de polticas pblicas para a agricultura familiar, em um momento particular quando em 2014 foi declarado pela Organizao das Naes Unidas (ONU) o Ano Internacional da Agricultura familiar.

    Para atender as motivaes que conduziram proposta deste livro, procuramos incorporar anlises e estudos realizadas pelos principais especialistas

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    brasileiros em cada tema ou poltica pblica. Contamos com as contribuies de autores com aprofundado conhecimento sobre o meio rural brasileiro, sua diferenciao regional e as polticas pblicas em anlise. importante destacar que os autores so oriundos de diferentes instituies de ensino ou de pesquisa do Brasil, atuantes em variados contextos sociais, econmicos, culturais e polticos, o que permite vir lume a diversidade dos processos de desenvolvimento rural.

    O livro inicia com um captulo que procura analisar o conjunto das polticas para a agricultura familiar no Brasil, destacando geraes ou referenciais de poltica pblica que marcaram a trajetria de reconhecimento poltico e institucional da categoria social. Este captulo procura introduzir questes, contextos, aes e instrumentos que sero aprofundados nos captulos seguintes, agrupados em temticas similares e organizados em nove partes.

    Na Parte 1 so discutidas algumas polticas agrcolas, suas trajetrias, contribuies e desafios ao desenvolvimento rural. Nesta parte so analisados o Programa Nacional de fortalecimento da Agricultura (Pronaf ), o Seguro da Agricultura familiar (SEAf), a Poltica Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (PNATER) e as polticas de comercializao agrcola, com foco principalmente na Poltica de Garantia de Preo Mnimo (PGPM). Estes programas atuam principalmente no mbito da produo agropecuria dos estabelecimentos rurais, procurando adaptar para a agricultura familiar muitos instrumentos de polticas agrcolas j existentes desde a dcada de 1960, sendo que alguns de seus desafios atuais esto relacionados justamente com as dificuldades em romper com certas normas e prticas de dcadas anteriores.

    Na Parte 2 so discutidas as polticas de segurana alimentar e nutricional, notadamente o Programa de Aquisio de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentao Escolar, o Programa Um Milho de Cisternas, e as polticas de abastecimento alimentar. Em sua maioria, estas so polticas recentes (ou passaram por mudanas importantes nos ltimos anos) e que contam com uma ampla articulao entre Estado e sociedade civil, seja na construo de seus instrumentos, seja na execuo das polticas pblicas. Esta configurao ilustra o avano democrtico da sociedade brasileira, mas tambm coloca novos desafios gesto pblica e s prprias organizaes da sociedade civil.

    A Parte 3 aborda as polticas de desenvolvimento territorial no Brasil, nomeadamente o Programa de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Rurais (Pronat) e o Programa Territrios da Cidadania (PTC), discutindo suas trajetrias, algumas de suas mudanas recentes, e os desafios que envolvem a execuo de programas que procuram incorporar a intersetorialidade e

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    multidimensionalidade em suas aes. Nesta parte tambm so abordados os dilemas que envolvem a abordagem do desenvolvimento territorial e a construo de uma estratgia de desenvolvimento rural para o Brasil. Os artigos apontam para importantes mudanas polticas ao longo de cerca de 10 anos de experincias de polticas de desenvolvimento territorial, mas igualmente ressaltam certas resistncias institucionais e polticas que limitam a expresso desta abordagem de desenvolvimento.

    A Parte 4 procura abordar algumas aes do Estado na esfera do meio ambiente e sua relao com o desenvolvimento rural. So enfatizados os programas de pagamento por servios ambientais e as aes direcionadas para a produo e uso de bicombustveis. Embora a problemtica ambiental venha exigindo maior espao na agenda pblica desde a dcada de 1970, esta uma questo que, no raro, envolve polmicas e difcil concertao social. No caso das aes citadas, estas ganharam maior relevncia poltica e institucional no perodo recente no pas e so controversas quando aos seus objetivos e seus resultados. Os artigos apresentados nesta parte procuram analisar estas polticas e debater sobre estas questes.

    As polticas agrrias so abordadas na Parte 5 do livro. Trs artigos discutem a luta pela terra no Brasil, seja por meio da criao de projetos de assentamentos de reforma agrria, seja por meio de programas pelo crdito fundirios, ou ainda pelas disputas estabelecidas entre diferentes classes sociais. As anlises dos autores apontam que, passados alguns sculos, a questo agrria ainda um tema a ser resolvido no Brasil, incorporando novas configuraes, conflitos e sentidos no perodo recente. Na Parte 5 tambm contamos com um artigo que aborda as polticas pblicas em assentamentos rurais j estabelecidos. O objeto aqui a poltica de assistncia tcnica e extenso rural em assentamentos de reforma agrria. Este trabalho analisa o histrico desta poltica pblica, suas mudanas institucionais, e aponta que as disputas polticas entre distintos projetos de desenvolvimento no se encerra com o estabelecimento dos projetos de assentamentos de reforma agrria.

    Na Parte 6 so analisadas as polticas sociais e suas interfaces com o desenvolvimento rural. Estas polticas ganharam maior projeo com a promulgao da Constituio de 1988 e, principalmente, a partir do final dos anos 1990 e do incio dos anos 2000. A previdncia social, o Programa Bolsa famlia e o Programa Nacional de Habitao Rural so referncias importantes neste sentido. Mais do que polticas de transferncias de renda, estas aes contribuem para o reconhecimento do meio rural como um espao de vida e de trabalho, ao possibilitarem aos atores sociais melhorarem sua qualidade de vida e bem estar nestas reas. As polticas de habitao rural, de modo particular, ilustram

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    que o meio rural no sinnimo de atraso e que os seus habitantes podem viver e conviver com maior dignidade.

    A produo de cincia e de tecnologia tambm importante para o desenvolvimento rural, sendo as polticas nesta esfera abordadas na Parte 7 do livro. Os artigos procuram problematizar as contribuies contemporneas da cincia e da tecnologia para o meio rural, para a agricultura familiar e para biomas especficos, como o da Amaznia. Os autores apontam que, embora importantes mudanas ocorridas no perodo recente, o acesso pesquisa e inovao e a adequao destas diversidade do meio rural brasileiro (seja de atores sociais, biomas, seja de sistemas produtivos) ainda permanecem como desafios importantes.

    Afastandose de questes temticas, a Parte 8 analisa as polticas pblicas orientadas para grupos ou segmentos sociais especficos, como as comunidades tradicionais, a juventude e as mulheres rurais. Os captulos abordam a trajetria de reconhecimento poltico e institucional do Estado brasileiro a estes grupos sociais e as aes e instrumentos de polticas pblicas criados para atender as suas especificidades. Observase nos trs captulos que este reconhecimento recente, e que o mesmo demandou ressignificaes e (re)interpretaes da parte do Estado, mas igualmente da parte dos prprios atores sociais.

    Por fim, a Parte 9 apresenta um artigo que procura analisar as polticas de desenvolvimento rural brasileiras no contexto da Amrica Latina e Caribe. So elencados elementos comuns e desafios nas polticas para a agricultura familiar em pases selecionados.

    Almejamos que este livro possa contribuir com a formao de estudantes de graduao e de psgraduao do Brasil e estimular a agenda de estudos, pesquisas e anlises do amplo conjunto de professores e pesquisadores que trabalham constantemente para produzir conhecimento e referncias sobre a atuao do Estado brasileiro no desenvolvimento rural. No menos importante, o livro busca dialogar e fornecer subsdios para a atuao de governantes e policy makers presentes nas diferentes escalas de governana, extensionistas rurais e agentes de desenvolvimento rural, organizaes no governamentais que executam vrias polticas pblicas, e toda a sociedade civil que atua nos temas rurais, agrrios, ambientais, segurana alimentar e nutricional, etc.

    finalmente, cabe ressaltar que a publicao do livro conta com o apoio da fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (fapergs) e da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes), por meio do Edital fapergs/Capes n 06/2013 Programa Editorao e Publicao de Obras Cientficas.

    CATIA GRISA SERGIO SCHNEIDER

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    Trs geraes de polticas pblicas para a agricultura familiar

    e formas de interao entre sociedade e Estado no Brasil1

    Catia Grisa Sergio Schneider

    Introduo

    Mudanas importantes ocorreram no cenrio poltico institucional e nas dinmicas sociais nos ltimos vinte anos no Brasil. O marco inicial destas transformaes pode ser fixado a partir da promulgao da nova Constituio que rege o tecido jurdico e societrio brasileiro na atualidade. Todavia, fixar uma marca temporal sempre complicado quando se trata de entender os processos sociais e suas mudanas, especialmente quando sabemos das interfaces entre passado e presente.

    1 Publicado originalmente como artigo na Revista da Sober, que cedeu os direitos autorais para publicao neste livro.

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    Neste perodo recente que compreende as trs ltimas dcadas, novas relaes entre Estado e sociedade civil foram estabelecidas, espaos de participao social foram criados, novos atores polticos emergiram e foram reconhecidos como sujeitos de direito, criaramse regras e instrumentos de poltica pblica que foram institucionalizados, e novos referenciais globais e setoriais orientaram as aes do Estado e permitiram redefinir regras e compreenses que afetaram mais ou menos as condies socioeconmicas da populao, especialmente a do meio rural. Estes so alguns exemplos das mudanas iniciadas nas ltimas trs dcadas e, em grande medida, ainda em curso. Como protagonista e objeto de muitas destas mudanas destacase a agricultura familiar, uma categoria social e poltica que passou a ser reconhecida pelo Estado brasileiro em meados de 1990.

    O reconhecimento conferido agricultura familiar e a construo de polticas diferenciadas para um vasto grupo social que at ento no havia sido contemplado com aes especficas no foram mudanas triviais, e por isto que ganharam repercusses no cenrio nacional e internacional. Vale notar, como destacado por Abramovay e Morello (2010), que este processo ocorreu porque o fortalecimento da democracia est na raiz das mais importantes mudanas pelas quais passa o meio rural brasileiro nos ltimos vinte anos [...] que permitiram reduzir a pobreza de sua populao, melhorar a distribuio de renda e dar incio a mudanas de comportamento empresarial no sentido de fazer do bemestar das pessoas e da resilincia dos ecossistemas a base da prpria vida econmica.

    Historicamente a agricultura familiar ou os os pequenos agricultores como eram denominados at cerca de duas dcadas atrs sempre estiveram s margens das aes do Estado brasileiro, no raro incrementando sua fragilidade diante das opes de desenvolvimento perseguidas no pas. Iniciando uma nova trajetria para a categoria social, a constituio de 1988 incitou novos espaos de participao social e reconheceu direitos; a criao do Programa Nacional de fortalecimento da Agricultura (Pronaf) em 1995 desencadeou a emergncia de outras polticas diferenciadas de desenvolvimento rural; a criao do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) em 1999, e da Secretaria da Agricultura familiar (SAf) no interior deste em 2001, institucionalizaram a dualidade da estrutura agrria e fundiria no pas; e, em 2006, foi regulamentada a Lei da Agricultura familiar que reconheceu a categoria social, definiu sua estrutura conceitual e passou a balizar as polticas pblicas para este grupo social. No raro, o Brasil destacado por organizaes internacionais multilaterais pela estrutura poltica e institucional que construiu ao longo dos anos para a agricultura familiar, cujos formatos, objetivos e polticas tem sido exportados para outros pases.

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    O objetivo deste artigo consiste em analisar esta trajetria de reconhecimento da agricultura familiar, procurando enfatizar as geraes ou referenciais de polticas pblicas fortalecidos em alguns momentos chaves, o modo como estes referenciais foram construdos, e as relaes entre Estado e sociedade civil. Este exerccio analtico dialoga com diferentes abordagens tericas, destacandose as contribuies da abordagem cognitiva de anlise de poltica pblica, nomeadamente as elaboraes de Pierre Muller, Bruno Jobert e ve fouilleux. Estes autores enfatizam o papel das ideias na construo das polticas pblicas, sendo estas elaboradas a partir das crenas comuns e de representaes de mundo de um conjunto de atores (pblicos e privados), as quais definem a maneira como estes percebem os problemas pblicos e concebem respostas aos mesmos (Grisa, 2012; fouilleux, 2011; 2003; Muller, 2008; Surel, 2000; Jobert e Muller, 1987). As polticas pblicas refletem, portanto, o entendimento dos grupos sociais sobre sua prpria condio e sobre a sociedade em geral, bem como sobre os instrumentos necessrios para aperfeioar esta condio.2

    Trs conceitos so particularmente importantes nesta anlise: referencial global, referencial setorial e referencial de poltica pblica. O referencial global referese a um quadro geral de interpretao do mundo, superando os limites de um setor, de um domnio ou de uma poltica (Muller, 2005). Tratase da [...] representao que uma sociedade faz da sua relao com o mundo em um momento dado (Muller, 2008, p. 65), e em torno desta representao geral que sero hierarquizadas as diferentes representaes setoriais, sendo que o referencial global no constitui uma estrutura cognitiva e normativa unificada que se impe de maneira mecnica ao conjunto dos domnios da vida social (econmico, poltico, social, etc.). O referencial setorial diz respeito s representaes de um setor, entendido como um conjunto de questes ou problemas associados de maneira mais ou menos institucionalizada a certas populaes ou temas. Em decorrncia das vrias concepes sobre a natureza e a extenso dos limites de um setor, a construo do referencial setorial um processo em permanente conflito. Como o referencial global, o referencial de um setor uma construo social cuja coerncia nunca perfeita (Muller, 2008, p. 69). Contudo, h uma representao hegemnica, amide coerente com o referencial global, e esta representao que se impe como referncia elaborao de polticas pblicas.

    2 O que no implica em deconsiderar que outros elementos tambm interferem na conformao das polticas pblicas, a exemplo das instituies e dos interesses (Palier e Surel, 2005; Pierson, 2003; Mahoney, 2001; Hall, 1997). Tratase aqui de dar nfase a alguns elementos explicativos, no caso, o papel das ideias.

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    Desta relao entre referencial global e setorial constrise uma representao da realidade sobre a qual se intervm e atravs desta imagem, denominada referencial de uma poltica pblica, que os atores interpretam o problema, confrontam possveis solues e definem suas aes. H, na realidade, um duplo mecanismo permanente na construo de um referencial: primeiro, uma operao de decodificao do real com o objetivo de limitar sua complexidade e, em seguida, uma operao de recodificao para definir um programa de ao pblica (Muller, 2008). fouillex (2011; 2003) define referencial de poltica pblica como a materializao das ideias em instrumentos e na organizao geral da poltica pblica. Tratase dos instrumentos que tornam efetiva a ao do Estado a partir das diferentes representaes de mundo e dos problemas pblicos construdos pelo conjunto de atores envolvidos na elaborao das polticas pblicas. Este referencial objeto de negociao permanente entre os protagonistas das trocas polticas, sendo suscetvel de incluses, recortes e transformaes em funo das relaes de fora e dos objetivos polticos dos diferentes atores envolvidos na construo da poltica pblica.

    importante referir que a definio destas geraes de polticas e seus referencias tambm possui um sentido heurstico, que utilizamos com o objetivo de identificar os distintos momentos crticos em que apareceram ou foram criadas novas formas de ao governamental. No entanto, isto no quer dizer que estas geraes de polticas possuem uma linearidade longitudinal e nem que uma gerao precede a outra, como se houvesse uma ampliao de escala ou redirecionamento de enfoque. As trs geraes de polticas identificadas no encerraram seu ciclo, continuam em funcionamento e seguidamente sofrem ajustes e/ou alteraes em sua formulao ou escopo.

    A primeira seo do artigo debate a emergncia das polticas para a agricultura familiar e a conformao de um referencial de poltica pblica agrcola e agrrio. A seo seguinte apresenta os elementos que caracterizam a segunda gerao de polticas para a agricultura familiar pautada em um referencial social e assistencial e como este referencial se expressa em programas e aes pblicas. A terceira seo evidencia a construo e a incidncia de uma nova gerao de polticas pblicas para a agricultura familiar sustentada na construo de novos mercados com foco na segurana alimentar e na sustentabilidade. Ao longo destas sees tambm so salientadas mudanas nas formas de relao e interao entre Estado e sociedade civil. O artigo finalizado com algumas consideraes sobre a vigncia destes referenciais e as relaes entre Estado e sociedade civil na atualidade.

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    Primeira gerao de polticas para a agricultura familiar: a construo de um referencial agrcola e agrrio

    Desde a segunda metade da dcada de 1950, o governo brasileiro adotou de forma mais acentuada a estratgia de industrializao por substituio de importaes (referencial global), como uma tentativa de superar a defasagem que separava o Brasil das economias capitalistas industrializadas (Bielschowsky, 2006; 2000). Nesta estratgia nacionaldesenvolvimentista, o Estado atuou como agente produtivo por meio da criao de infraestruturas estatais; agente financeiro, promovendo a transformao da estrutura industrial; articulador de capitais privados nacionais e internacionais; e formulador e executor de polticas macroeconmicas e setoriais, privilegiando a constituio de uma economia industrial (Delgado, 2010). Todavia, no incio da dcada de 1960, essa estratgia apresentou sintomas de crise em razo das dificuldades no abastecimento alimentar interno, do aumento da inflao (saldo da rigidez da oferta do setor agrrio frente ao crescimento da demanda por produtos primrios pela industrializao e urbanizao), do esgotamento da capacidade de importar bens necessrios industrializao do pas (que, por sua vez, demandava investimentos em exportaes para criar divisas) e da emergncia de crticas ao padro dependente e excludente seguido pela industrializao (Delgado, 2010, 1988; Coelho, 2001; Castro, 1984).

    Desta crise, duas opes e referenciais setoriais aparecem na agenda pblica. Reivindicada por acadmicos (Caio Prado, Alberto Passos Guimares, Igncio Rangel e notadamente a vertente cepalina estruturalista representada por Celso furtado), por polticos (nomeadamente o governo de Joo Goulart) e por movimentos sociais (Ligas Camponesas, Unio dos Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Brasil, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Contag), uma destas opes clamava por um conjunto de reformas de base, dentre elas a reforma agrria, visando dinamizar o mercado interno. Contrapondose a esta opo e sustentada pelas elites agrrias, por acadmicos vinculados a economistas da Universidade de So Paulo (principalmente Antonio Delfim Neto) e por militares que tomaram o governo federal, outro referencial setorial foi institucionalizado no Brasil, orientado pela modernizao tecnolgica da agricultura (Grisa, 2012; Delgado, 2005). Argumentase que a agricultura precisava modernizarse para cumprir suas funes no desenvolvimento econmico do pas. O ajuste entre o setor da agricultura (referencial setorial)

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    e a industrializao da economia do pas (referencial global) passou a ser realizado por um conjunto de aes e polticas pblicas, como crdito rural, garantia de preos mnimos, seguro agrcola, pesquisa agropecuria, assistncia tcnica e extenso rural, incentivos fiscais s exportaes, minidesvalorizaes cambiais, subsdios aquisio de insumos, expanso da fronteira agrcola, e o desenvolvimento de infraestruturas. Por cerca de 20 anos, este foi o referencial setorial predominante que orientou as aes do Estado no setor agrcola e pecurio configurando o que Delgado (2001) denominou de poltica agrcola ativa , o qual, como j apontado por vrios estudos (Delgado, 2010; Graziano da Silva, 1999; Gonalves Neto, 1997; Kageyama et al., 1990; Guedes Pinto, 1978), apresentou um carter triplamente seletivo, beneficiando principalmente os mdios e os grandes agricultores, localizados nas regies sul e sudeste, produtores de produtos direcionados exportao ou de interesses de grupos agroindustriais (caf, soja, trigo, canadeacar, laranja, algodo).

    Durante os vinte anos de ditadura militar, os representantes da sociedade civil vinculados agricultura familiar no encontraram espao na arena pblica para discutir e construir em conjunto com os gestores pblicos polticas para a categoria social. O contexto poltico e institucional exclua a participao destes atores e limitava uma atuao mais crtica e propositiva da Contag, principal representao dos pequenos agricultores na poca. Conforme evidenciado por Grisa (2012), a construo das polticas pblicas para a agricultura resultava basicamente das representaes de mundo e do setor (referencial global e setorial) oriundas de gestores pblicos, acadmicos e representantes de grupos de interesse, conformando um referencial setorial direcionado para a modernizao da agricultura.

    No final dos anos 1970 este cenrio comeou a ser alterado, sendo emblemtica a mudana de posicionamento poltico da Contag entre o II Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (1973) e o III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (1979). No II Congresso perodo de maior represso da Ditadura Militar , ainda que pautando a reforma agrria, o tom da Contag era conciliador em relao ao governo, ressaltando as conquistas j adquiridas em termos de previdncia social e proteo ao trabalhador rural (Contag, 1973). No III Congresso, a Contag apresentouse mais combativa e reivindicatria, cobrando insistentemente a reforma agrria e uma poltica agrcola adequada s particularidades dos pequenos agricultores (Contag, 1979a; 1979b). Conforme expresso no Boletim Peridico da Confederao, hoje falamos menos em encaminhar e mais em reivindicar; no se fala mais em pedir e sim, em exigir (Contag, 1979b, p. 26, grifos no

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    original). As disputas no interior do sindicalismo, a emergncia do novo sindicalismo rural e de novos movimentos sociais incrementaram esta postura reivindicativa, de protesto e crtica ao governo federal (Picolotto, 2011; Schneider, 2010; favareto, 2006; Schmitt, 1996). A defesa da reforma agrria, a demanda por polticas diferenciadas e por legislao trabalhista, e crticas ao regime ditatorial tornaramse constantes nas reivindicaes dos representantes da agricultura familiar.

    Estas mudanas incrementaramse com a redemocratizao a partir de meados da dcada de 1980 e com o debate da constituinte em 1988. O processo de democratizao permitiu um intenso movimento de rearticulao e florescimento de novas organizaes na sociedade civil (Santos, 2011, p. 79). No mbito da agricultura familiar destacaramse as mudanas na forma de atuao da CONTAG; a criao da Central nica dos Trabalhadores (CUT) em 1983 e, nesta, a conformao do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais (DNTR) em 1988; a constituio do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em 1984; a institucionalizao do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em 1991, os quais vinham atuando desde o final da dcada de 1970; e a criao do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) em 1985. Ainda que com objetivos ou nfases distintas, as aes destes atores sociais tornaram visveis as precrias condies de reproduo social dos pequenos produtores e, cada vez mais, reclamaram a interveno do Estado na construo de polticas pblicas adequadas as suas particularidades, destacandose a reforma agrria e o crdito rural.

    Neste contexto, com a abertura democrtica e mudanas polticoinstitucionais em curso, os representantes da agricultura familiar alteraram sua postura diante do Estado. As possibilidades abertas com o debate da constituinte, as negociaes para a definio das Leis Agrcola e Agrria, e a emergncia dos Conselhos alteraram a forma de interao entre a sociedade civil representativa dos agricultores familiares e o Estado. Os representantes da agricultura passaram a adotar estratgias propositivas e adentraram nas arenas pblicas, propondo e disputando a construo das polticas pblicas. Tanto a Contag quanto o DNTR/CUT elaboraram textos para a discusso com suas respectivas bases sociais sobre a reforma constituinte (Contag, 1988; CUT, 1989), construram propostas de normatizao para a Lei Agrcola (Contag, 1989; CUT, 1991) e disputaram a institucionalizao das regras com outros segmentos, nomeadamente com o setor da agricultura patronal.

    Algumas das demandas dos representantes da agricultura familiar foram incorporadas e institucionalizadas no momento de construo da Lei

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    Agrcola, a qual reconheceu a diversidade dos agricultores brasileiros e previu a construo de uma poltica agrcola diferenciada para os pequenos produtores (Mielitz Netto, 2010; Delgado, 1994). Todavia, estas conquistas ficaram aqum das reivindicaes destes atores, prevalecendo as ideias, os interesses e o poder da agricultura patronal na construo das polticas pblicas. No por acaso, a Lei Agrcola institucionalizou, em grande medida, os interesses dos grandes produtores (Picolotto, 2011; Santos, 2011; Schmitt, 1996; Delgado, 1994). Como lembra Delgado (1994, p. 14), contriburam para este resultado certo vcuo institucional de parte do Estado para tratar das demandas dos pequenos agricultores e a cultura institucional de instituies de crdito, pesquisa, extenso e comercializao, no habituadas em incorporar em suas metodologias de atendimento as demandas deste segmento.

    Tambm importante destacar que, no final dos anos 1980, o Estado brasileiro vivenciava um perodo de intensas mudanas polticoeconmicas. O processo de liberalizao econmica construdo a partir das ideias de um novo referencial global (o neoliberalismo) para enfrentar a crise poltica e financeira das dcadas de 1980 e 1990 imps novas estratgias e instrumentos para a ao governamental: reduo da interveno do Estado, desregulamentao das atividades econmicas, privatizao de companhias estatais, liberalizao dos mercados, etc. (Santos, 2011; Sallum Jr., 2003; Dias e Amaral, 2000). No caso da agricultura, destacamse particularmente: (a) a liberalizao comercial e o desmonte do modelo de interveno do Estado prevalente at a dcada anterior, implicando em reduo do volume de recursos aplicados nas polticas agrcolas, liquidao da poltica de formao de estoques reguladores e queda nas tarifas de importao de produtos alimentares e algodo; (b) a criao do Mercosul em 1991, que afetou negativamente sobretudo a produo agropecuria dos estados do sul, notadamente o setor lcteo, tritcola, vitivincola e a fruticultura, atividades tpicas de pequenas propriedades, que sentiram dificuldades de competir com a produo dos pases vizinhos; (c) a adoo do Plano Real em 1994, o qual provocou uma queda da renda real do setor agrcola de cerca de 20% a 30% no primeiro semestre de 1995; (d) a valorizao da taxa de cmbio, associada ao grande volume de recursos disponveis no sistema financeiro internacional e as elevadas taxas de juros domsticas, as quais favoreceram o aumento das importaes de produtos agrcolas e o decrscimo das exportaes (Mattei, 2014; Picolotto, 2011; Delgado, 2010). Estas medidas ameaaram as condies de reproduo social e econmica da agricultura familiar, a qual j havia sido afetada pelas consequncias da modernizao da agricultura.

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    Diante destas medidas econmicas que incrementaram a fragilidade social da categoria social, e aproveitando as possibilidades abertas com a redemocratizao, os representantes da agricultura familiar recrudesceram sua postura propositiva e por meio de mobilizaes sociais expressivas (como os Gritos da Terra Brasil, cujo primeiro foi realizado em 1994) passaram a exigir polticas especficas para a categoria, bem como a participao na construo destas. Um momento emblemtico neste sentido foi a construo do documento Propostas e recomendaes de poltica agrcola diferenciada para o pequeno produtor rural (Brasil, Maara/Contag, 1994), elaborado por uma Comisso Tcnica do Pequeno Produtor (Portarias Maara n. 692 de 30/11/1993 e n. 42 de 24/1/1994), no Ministrio da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrria (Maara), com a participao da Contag.3 Cabe salientar como inovaes deste documento, dentre outros elementos, as propostas de criao de um Programa Especial de Crdito para os Pequenos Produtores Rurais, com encargos financeiros, prazos, carncias e formas de pagamentos especficos; a implantao de um seguro agrcola destinado exclusivamente cobertura das exploraes agropecurias dos pequenos produtores rurais; a conformao de alguns programas para fazer frente ao Mercosul; a proposio de uma definio de pequeno produtor, que balizaria a construo de polticas pblicas para a categoria social; a institucionalizao dessa definio via substitutivo a Projeto de Lei ou minuta de Medida Provisria; a incluso deste conjunto de propostas j no Plano Safra 1994/95, em especial aquelas relacionadas definio de pequeno produtor e s polticas de crdito rural e seguro agrcola; e a criao no Maara de uma secretaria especfica que estabelecesse e coordenasse as polticas agrcolas diferenciadas (Brasil, Maara/Contag, 1994).

    fruto das mobilizaes sociais realizadas por movimentos sociais vinculados agricultura familiar, de uma mudana paradigmtica nos estudos rurais (que passaram a destacar a permanncia e a importncia da agricultura familiar nos pases desenvolvidos) (Schneider, 2003; Lamarche, 1999; 1993; Abramovay, 1992; Veiga, 1991), e dos prprios interesses do governo federal em manter a ordem social no campo e certa influncia no sindicalismo dos trabalhadores rurais (Grisa, 2012), criouse a primeira

    3 Desde a criao do DNTR/CUT em 1988, o sindicalismo cutista viveu uma situao ambgua entre construir uma estrutura autnoma e, portanto, negar a estrutura oficial (Contag) ou aceitar em sua base os sindicatos oficiais e disputar a estrutura contaguiana (Picolotto, 2011; favareto, 2006). Em 1991, a CUT decidiu por compor a diretoria da Contag e, em 1995, esta filiouse quela. Esta unificao contribuiu para dar maior visibilidade e poder de reivindicao ao sindicalismo dos trabalhadores rurais.

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    poltica agrcola nacional direcionada especificamente para os agricultores familiares. Tratase da institucionalizao do Pronaf, em 1995, que marcou o reconhecimento poltico e institucional do Estado brasileiro categoria social, configurandose um momento crtico (Mahoney, 2001)4 que abriu possibilidades institucionais para a criao de novas polticas para a agricultura familiar. O Pronaf delineavase como uma poltica de crdito rural que contribuiria para a capitalizao e o acesso dos agricultores familiares em transio aos mercados, tornandoos consolidados (fAOIncra, 1994). Iniciavase com o Pronaf a construo de um conjunto de medidas orientadas para fortalecer e garantir a produo agrcola dos agricultores familiares. A criao do Seguro da Agricultura familiar (SEAf2004) e do Programa de Garantia de Preo da Agricultura familiar (PGPAf2006) e a retomada da Assistncia Tcnica e Extenso Rural (ATER) pblica em anos posteriores corroborariam neste sentido.

    importante destacar que em meados da dcada de 1990 as lutas do MST tambm estavam em um momento de ascenso e os conflitos agrrios se acirravam. Dois fatos marcaram este perodo. O primeiro deles referese ao conflito conhecido como Massacre de Corumbiara, ocorrido em Rondnia em meados de 1995, onde agricultores sem terra e a polcia entraram em confronto, resultando na morte de 10 pessoas. Similar a este, o segundo fato diz respeito ao Massacre de Eldorado do Carajs, ocorrido no Par em 1996, no qual dezessete agricultores sem terra foram assassinados. Estes fatos tiveram grande repercusso nacional e internacional e, concomitante continuidade das mobilizaes sociais, desencadearam o incremento na poltica de assentamentos de reforma agrria, que havia ganho um novo mpeto com a redemocratizao e a proposta de um I Plano Nacional de Reforma Agrria (I PNRA), no incio do governo Sarney (1985), mas logo em seguida arrefecida pelas presses de atores e organizaes contrrios a este referencial setorial. Com efeito, a criao do Pronaf e o incremento da poltica de assentamentos de reforma agrria surgem, em certa medida, como resposta s presses oriundas de vrias mobilizaes sociais (eventos regionais, Gritos da Terra Brasil, ocupaes de terra e acampamentos de reforma agrria).5

    4 Este termo foi cunhado por Mahoney (2001), referindose ao modo como as escolhas institucionais dos atores, em momentos crticos, criam instituies que tendem a persistir e no so facilmente alteradas, orientando e condicionando o comportamento e as decises subsequentes dos diferentes agentes envolvidos em processos concretos de produo da ruralidade.5 A criao do Pronaf tambm resultou de uma espcie de troca poltica entre governantes e representantes sindicais da agricultura familiar. Como observaram Grisa (2012) e Medeiros (2001),

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    Seguindo Schneider, Shiki e Belik (2010), este o contexto que permitira a emergncia de uma primeira gerao de polticas pblicas para a agricultura familiar no Brasil, as quais apresentaram um referencial setorial basicamente agrcola (crdito rural, seguro de produo e de preo) e agrrio (poltica de assentamentos de reforma agrria).6 Estas polticas exigiram do governo e da sociedade brasileira um olhar mais atento para a importncia da agricultura familiar no desenvolvimento do pas e para as suas condies de reproduo social com base na terra e na produo agrcola. Como ilustra a figura 1 (abaixo), estas polticas emergiram em meados da dcada de 1990 e continuam vigentes atualmente, sendo reivindicadas e estando em permanente construo/aperfeioamento, principalmente pela retroalimentao das ideias de organizaes sociais e sindicais da agricultura familiar, gestores pblicos e estudiosos do mundo rural.

    O Pronaf se constituiu na principal poltica agrcola para a agricultura familiar (tanto em nmero de beneficirios, capilaridade nacional e recursos aplicados) e, historicamente, tem contado com um montante crescente de recursos disponibilizados, atingindo, no Plano Safra da Agricultura familiar 2014/2015, o valor de R$ 24,1 bilhes de reais. Ilustrando seu vis de fortalecimento da produo agrcola, diversos estudos apontam que o programa tem beneficiado principalmente as unidades familiares de produo em melhores condies socioeconmicas, localizadas nas regies sul e sudeste, e promovido o cultivo de produtos competitivos no mercado internacional, os quais so controlados por poucas empresas do sistema agroindustrial e cuja forma de produo est assentada no uso generalizado de insumos modernos. O milho e a soja respondem, desde 2001, por mais de 50% dos recursos aplicados pelo

    conceder polticas distributivas tornavase estratgico ao governo, o qual visava amenizar e conter a contestao social e, ao mesmo, manter certa influncia sobre o sindicalismo rural e garantir o seu apoio eleitoral. A no adoo de medidas pelo governo federal poderia incrementar o poder de mobilizao do MST, que vinha angariando crescente reconhecimento e legitimidade social, inclusive no meio urbano.6 Cabe destacar que o referencial de poltica pblica do Pronaf apresentava, em sua proposio inicial, coerncia com o referencial global do neoliberalismo, seguido pelos governos federais (Collor, Itamar franco e fernando Henrique Cardoso) desde o incio da dcada de 1990. Seguindo orientaes acadmicas, compreendiase o programa como um mecanismo para impulsionar para os mercados os agricultores familiares que apresentassem um mnimo de condies produtivas (Guanziroli, 2007; Brasil, Ministrio da Agricultura e do Abastecimento, 1998; fAO/Incra, 1994; Banco Mundial, 1994). O Estado deveria intervir nas falhas de mercado e promover a insero econmica destes grupos sociais. J a poltica de criao de assentamentos de reforma, diferentemente da coerncia prevista por Muller (2008), apresentava um referencial de poltica pblica distinto do referencial global seguido pelo Governo fernando Henrique Cardoso. Contudo, no tardou para o governo federal tentar adequar aquele a este com a Reforma Agrria de Mercado, como definiram diversos autores (Sauer e Pereira, 2005; Pereira, 2004; Medeiros, 2003).

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    Pronaf no custeio de lavouras (em 2002 e 2003, os dois produtos alcanaram mais de 60%). Se somarmos os recursos aplicados no caf (cultivo que apresentou importante crescimento em nmero de contratos e recursos no perodo em anlise), este valor atinge cerca de 70% dos recursos aplicados no custeio de lavouras (Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014).

    A poltica de assentamentos de reforma agrria tambm continuou sendo realizada em anos seguintes, ainda que com importantes oscilaes. Segundo dados do DataLuta (2013), a poltica de criao de assentamentos de reforma agrria incrementouse de 19951997, atingindo o nmero de 92.984 mil famlias assentadas neste ltimo ano, sendo que a partir de ento os nmeros foram reduzindose at 2003, quando, no incio do governo Lula, h novamente uma reao e alcana o nmero mximo de 104.197 famlias assentadas em 2005. Aps este perodo, os nmeros decrescem novamente. No segundo mandato do governo Lula e no mandato da presidente Dilma, de modo geral, os nmeros permanecem abaixo da trajetria gerada a partir de 1995. Desde o governo Lula e (sobretudo) Dilma, o enfoque central parece ser a qualificao dos assentamentos j constitudos, melhorando as condies de infraestrutura e de produo, enquanto a criao de novos foi posta em um segundo plano, realizada fundamentalmente com a incorporao de terras pblicas nas regies norte e nordeste (fernandes, 2013; Ipea, 2012; Mattei, 2012).

    Em sntese, podemos sinalizar que a adoo de estratgias propositivas do sindicalismo dos trabalhadores rurais, em contraposio a uma postura crtica, de protestos e reivindicaes, at ento prevalecente, assim como a presso social dos movimentos sociais, foram elementos importantes que contriburam de forma decisiva para a emergncia da primeira gerao de polticas para a agricultura familiar, baseada em um referencial agrcola e agrrio (Picolotto, 2011; Schneider, 2010; favareto, 2006). A participao proeminente dos representantes dos agricultores familiares e de gestores vinculados ao Mapa (e, a partir de 1999, ao MDA) na construo destas polticas pblicas explica, em grande medida, o referencial que orientou a elaborao das mesmas. A esta demanda social e poltica se somaram os estudos e resultados de pesquisas que destacavam de forma eloquente a importncia econmica dos agricultores familiares nos pases desenvolvidos (Lamarche, 1993; Abramovay, 1992; Veiga, 1991).

    Esta confluncia de esforos e evidncias criou as condies para que, tambm no Brasil, a agricultura familiar passasse a ser vista de forma positiva e relevante para a produo de alimentos e gerao de empregos. A construo do Pronaf resultou do dilogo e da negociao de ideias entre

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    trs fruns de produo de ideias,7 conformados pelos representantes dos agricultores familiares, dos estudiosos do mundo rural e de polticos e gestores pblicos (Grisa, 2012). As polticas agrcolas para a agricultura familiar desencadeadas pelo Pronaf, e a ele estritamente vinculadas (SEAf e PGPAf), resultam fundamentalmente das proposies e negociaes entre gestores pblicos e os representantes da agricultura familiar, que a partir de 2003 asseguraram mais um canal de dilogo com o governo federal por meio das discusses anuais para definio dos Planos Safra da Agricultura familiar.

    Segunda gerao de polticas para a agricultura familiar: a construo de um referencial social e assistencial

    Conforme anunciado acima, na dcada de 1990 vigorou o referencial global do neoliberalismo, que ganhou repercusso principalmente nos governos Collor de Mello e fernando Henrique Cardoso. Para alm da desestruturao de instrumentos de polticas pblicas importantes, como a extino da Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (Embrater) em 1990, da liberalizao dos mercados e da retirada do Estado na economia (com importantes repercusses na taxa de cmbio e na relao importao/exportao), este referencial global repercutiu nas polticas para a agricultura familiar. Compreendiase que o Estado deveria corrigir as falhas de mercado, notadamente atuando no combate pobreza rural (Banco Mundial, 1994). Neste contexto, a partir de 199798, as polticas para a agricultura familiar aportaram para um novo referencial setorial focado em aes sociais e assistenciais, configurando, nos termos de Schneider, Shiki e Belik (2010), o incio de uma segunda gerao de polticas para a agricultura familiar.

    7 fruns de produo de ideias um conceito originalmente utilizado por Jobert (1994) e discutido tambm por fouilleux (2003). Referemse aos espaos mais ou menos institucionalizados e especializados, regidos por regras e dinmicas especficas, nos quais grupos de atores debatem vises de mundo. Coerentes com a abordagem cognitiva, compreendese como espaos onde as ideias so produzidas. Cada frum produtor de diferentes representaes, ideias sobre as polticas, as quais variam segundo interesses, identidades, relaes de poder e instituies

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    Fonte: Elaborado pelos autores.

    Esta mudana tem seu incio no governo FHC, com o Programa Comunidade Solidria, e se consolida no governo Lula atravs do Programa Fome Zero, no qual o Programa Bolsa Famlia um dos destaques. O Programa Comunidade Solidria propunha avanar na parceria Estado-sociedade e contemplar aes relacionadas com a questo alimentar, a misria, pobreza e inequidade. A proposta do Programa era conferir selo de prioridade a 16 programas governamentais em seis reas de atuao: reduo da mortalidade na infncia, alimentao, apoio ao ensino fundamental e pr-escolar, habitao e saneamento, gerao de ocupao e renda e qualificao profissional, e fortalecimento da agricultura familiar (Brasil, Comunidade Solidria, 1998). Buscava-se construir a integrao e convergncia dessas aes em reas geogrficas (municpios) com maior concentrao de pobreza (Maluf, 2007; Takagi, 2006; Peliano, 2001). Com base neste referencial, delineado fundamentalmente a partir das ideias de polticos, gestores pblicos e estudiosos vinculados ao iderio liberal, as polticas para a agricultura familiar se aproximaram das polticas sociais (Marques, 2004; Vilela, 1997; Banco Mundial, 1994).

    Em relao agricultura familiar, o primeiro passo nessa direo foi a criao da linha Infraestrutura e Servios Municipais do Pronaf, que visava dar apoio a infraestruturas para os municpios com a distribuio fundiria mais pulverizada, a menor taxa de urbanizao e a mais baixa produtividade agrcola, ou seja, municpios mais perifricos e mais pobres, distanciando-se, segundo Abramovay e Veiga (1999), da

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    figura 1 Principais grupos de atores atuantes na construo dos referenciais de poltica pblica para a agricultura familiar ao longo dos anos.fonte: Elaborado pelos autores.

    Esta mudana tem seu incio no governo fHC, com o Programa Comunidade Solidria, e se consolida no governo Lula atravs do Programa fome Zero, no qual o Programa Bolsa famlia um dos destaques. O Programa Comunidade Solidria propunha avanar na parceria Estadosociedade e contemplar aes relacionadas com a questo alimentar, a misria, pobreza e inequidade. A proposta do Programa era conferir selo de prioridade a 16 programas governamentais em seis reas de atuao: reduo da mortalidade na infncia, alimentao, apoio ao ensino fundamental e prescolar, habitao e saneamento, gerao de ocupao e renda e qualificao profissional, e fortalecimento da agricultura familiar (Brasil, Comunidade Solidria, 1998). Buscavase construir a integrao e convergncia dessas aes em reas geogrficas (municpios) com maior concentrao de pobreza (Maluf, 2007; Takagi, 2006; Peliano, 2001). Com base neste referencial, delineado fundamentalmente a partir das ideias de polticos, gestores pblicos e estudiosos vinculados ao iderio liberal, as polticas para a agricultura familiar se aproximaram das polticas sociais (Marques, 2004; Vilela, 1997; Banco Mundial, 1994).

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    Em relao agricultura familiar, o primeiro passo nessa direo foi a criao da linha Infraestrutura e Servios Municipais do Pronaf, que visava dar apoio a infraestruturas para os municpios com a distribuio fundiria mais pulverizada, a menor taxa de urbanizao e a mais baixa produtividade agrcola, ou seja, municpios mais perifricos e mais pobres, distanciandose, segundo Abramovay e Veiga (1999), da proposta originalmente construda para este Programa.8 As organizaes da agricultura familiar temeram que a aproximao do Pronaf com o Programa Comunidade Solidria alterasse o programa como um todo, tornandoo um programa de assistncia social. No III Grito da Terra Brasil (1996, p. 13), as organizaes da agricultura familiar assim se manifestaram a respeito: O Pronaf no pode ser confundido com programas de assistncia social, mas deve ser uma prioridade do governo federal pelo desenvolvimento da agricultura familiar, definida como a mais eficiente nos aspectos econmico e social. Conforme Marques (2004, p. 12), neste contexto, a Contag e a Secretaria de Desenvolvimento Rural do Maara, que gestaram o Pronaf, afastaramse progressivamente do Programa Comunidade Solidria. O distanciamento foi acompanhado pela recusa, por parte destas ltimas, da associao de suas iniciativas com os propsitos que privilegiam, antes de tudo, os objetivos visando o combate misria em torno do apoio agricultura familiar.

    Todavia, logo aps a institucionalizao do Pronaf, as prprias organizaes da agricultura familiar comearam a pautar a necessidade do Pronaf atender a diversidade socioeconmica da agricultura familiar, culminando na criao de grupos e linhas direcionadas aos agricultores mais descapitalizados ou em situao de vulnerabilidade social, a exemplo da criao do pronafinho em 1997 e do Grupo B9 em 1999. Havia a preocupao de que a continuidade das regras e normas inicialmente estabelecidas no Pronaf poderiam reproduzir desigualdades expressivas no interior da agricultura familiar (Grisa, 2012).

    No perodo de 1998 at meados dos anos 2000 emergiu um conjunto de aes de transferncia de renda que contemplaram a agricultura familiar (ainda que no exclusivamente), como o Bolsa Escola, Bolsa Alimentao

    8 Cabe destacar que, no mbito das polticas sociais para a agricultura familiar, uma ao pioneira foi a incluso dos trabalhadores em regime de economia familiar no sistema de seguridade social pela Constituio federal de 1988 (Delgado, 2014). Esta medida antece o prprio reconhecimento poltico da categoria agricultura familiar que iria ocorrer em meados da dcada de 1990, como visto na seo anterior.9 Visando ampliar a participao da diversidade da agricultura familiar no Pronaf, em 1999 teve inico a criao de grupos no interior do Programa de acordo com o grau de capitalizao dos agricultores familiares e se beneficirios de programas de reforma agrria. O grupo B referese aos agricultores em maior vulnerabilidade social e corresponde ao microcrdito produtivo rural.

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    e Auxlio Gs, que a partir de 2003 foram integradas no Programa Bolsa famlia. O Programa fome Zero, criado no incio do governo Lula, daria um novo impulso a estas aes, s polticas sociais e ao combate pobreza rural (e urbana). Posteriormente, j no governo Dilma Roussef, estas aes foram retomadas e potencializadas com a criao do Plano Brasil Sem Misria, seja com o incremento do Programa Bolsa famlia, da criao do Brasil Carinhoso e do Programa Bolsa Verde, seja com aes que visam incluso socioprodutiva da populao rural em pobreza extrema por meio da disponibilizao crdito de fomento a fundo perdido (R$ 2.400,00/famlia) para a aquisio de insumos e equipamentos, assistncia tcnica diferenciadas para este pblico, e doao de sementes e tecnologias da Embrapa para iniciar os processos produtivos.

    Dando sequncia criao de polticas diferenciadas para a agricultura familiar, agora orientadas pelo referencial setorial focado em polticas sociais e assistenciais, em 2002 foi estabelecido o Programa Garantia Safra, voltado ao segmento mais vulnervel desta categoria social, visando garantir renda aos agricultores localizados na regio nordeste do pas, norte do estado de Minas Gerais, Vale do Mucuri, Vale do Jequitinhonha e norte do estado do Esprito Santo que sofrerem com a perda de safra por motivos de seca ou excesso de chuvas.

    Em 2003, j no governo Lula, foi criado o Programa de Habitao Rural (PNHR) com o fito de garantir subsdios financeiros para a aquisio de materiais para a construo ou concluso/reforma/ampliao de unidades habitacionais de agricultores familiares e trabalhadores que atendam aos critrios estabelecidos pelo PRONAf. Atualmente o Programa Nacional de Habitao Rural faz parte do Programa Minha Casa, Minha Vida, criado em 2009, contribuindo para a melhoria de infraestruturas e para o bem estar das famlias rurais.

    Ainda no mesmo ano de 2003 foi extinto o Pronaf Infraestrutura e Servios Municipais que deu lugar ao Programa Desenvolvimento Sustentvel de Territrios Rurais (Pronat), que buscava promover o desenvolvimento, infraestruturas e a gesto de territrios rurais. Os Territrios despertavam como um espao intermedirio entre os municpios e os estados, possibilitando a participao da sociedade civil vinculada agricultura familiar nas decises de desenvolvimento. Ainda que o Pronat no tenha emergido explicitamente com um vis para combater a pobreza rural, na delimitao dos territrios foram priorizados, dentre outros critrios, contextos com maior concentrao do pblico prioritrio do MDA (agricultores familiares, assentados da reforma agrria e agricultores beneficirios do reordenamento agrrio) portanto, com maior intensidade de demanda social e com ndices de Desenvolvimento

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    Humano reduzido, de modo a priorizar os municpios com menores condies de desenvolvimento (Delgado e Leite, 2011; Echeverri, 2009).

    Em 2008, esta perspectiva de atuao via territrios ganhou um novo impulso com a criao do Programa Territrios da Cidadania (PTC) que visava articular e potencializar as aes de um conjunto de polticas pblicas em alguns territrios economicamente mais fragilizados. A prioridade era atender territrios que apresentavam baixo acesso a servios bsicos, ndices de estagnao na gerao de renda e carncia de polticas integradas e sustentveis para autonomia econmica de mdio prazo. A relao entre polticas territoriais e pobreza ganhava contornos mais evidentes no PTC. Ainda que no exclusivos agricultura familiar, o Pronat e o PTC beneficiaram sobremaneira a categoria social.

    No decorrer dos anos, este referencial de poltica pblica orientado pelo social e socioassistencial passou a apresentar certas ambiguidades referentes sua origem e aos seus propsitos. Por um lado, representantes da agricultura familiar, gestores pblicos e estudiosos do mundo rural passam a reivindicar um olhar mais atento do Estado aos grupos vulnerveis da categoria social e do mundo rural e reivindicam polticas sociais para estes, seja no sentido de contribuir e garantir a sua reproduo social, seja com vistas a dar condies para que estes atores conseguissem minimamente alterar suas condies sociais e econmicas e passassem a interagir nos mercados agrcolas e de trabalho (Bianchini, 2010; Mattei, 2006; Brasil, Ministrio da Agricultura e do Abastecimento, 1998; Grito da Terra Brasil, 1998). A criao do Pronaf B, do Programa Garantia Safra, do PNHR, das polticas territoriais e do Programa de fomento s Atividades Produtivas Rurais includo no Plano Brasil Sem Misria so exemplos neste sentido.

    Por outro lado, este mesmo referencial passou a ser reivindicado por representantes do setor denominado politicamente como agronegcio, promovido por estudiosos do mundo rural e incorporado por segmentos da gesto pblica (Navarro e Campos, 2013; Buainain e Garcia, 2013; CNA, 2010; Alves e Rocha, 2010). Elucidando esta perspectiva, citamse as interpretaes de Alves e Rocha (2010). Segundo estes autores, a produo agropecuria nacional est concentrada em 8,19% dos estabelecimentos (423.689) que atingiram um valor equivalente a 84,89% da produo dos 5.175.489 de estabelecimentos. Alm destes, h quase um milho de estabelecimentos que tm condies de melhorar sua renda na agricultura, mas carece de ajuda no que diz respeito extenso rural, crdito de custeio e investimentos, compra da produo quando os preos despencam, etc.. Restam 3.775.826 de estabelecimentos, cujo valor da produo de R$ 128,13 por ms. Na agricultura,

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    simplesmente no h soluo para o problema de pobreza destes. forte dose de poltica social, de carter assistencialista se faz necessria para manter as famlias a eles vinculadas nos campos (Alves e Rocha, 2010, p. 288). Nesta perspectiva agrcolacentrada, grande parte da agricultura familiar ou da pequena produo como mencionam deve ser objeto de polticas sociais e de outras polticas que incrementem as possibilidades de renda no agrcola, direcionando as polticas agrcolas apenas para os segmentos economicamente mais estruturados do agronegcio.

    A gerao de polticas com enfoque em aes de cunho social e assistencial tem sido indicada por analistas e mesmo por gestores pblicos como as responsveis pela reduo da pobreza e da desigualdade no meio rural. H inmeras evidncias estatsticas que do suporte a estes resultados. Mas o que nos interessa salientar que estas polticas passaram a ser especialmente importantes nas regies rurais do pas, como a regio do semirido nordestino. Neste sentido, nem sempre de forma planejada e deliberadamente intencional, as polticas sociais e assistenciais acabaram tendo repercusses sobre o desenvolvimento rural sob um vis que no da incluso produtiva ou pela ativao do mercado de trabalho. Nas ltimas duas dcadas, as reas rurais mais empobrecidas do Brasil conheceram melhorias inegveis em seus indicadores convencionais de desenvolvimento (incremento de renda, por exemplo) que, talvez, no teriam sido alcanadas apenas por meio das aes agrcolas e agrrias que analisamos na primeira gerao de polticas.

    Terceira gerao de polticas para a agricultura familiar: a construo de um referencial pautado pela construo de mercados para a segurana alimentar e a sustentabilidade ambiental

    Os anos 2000 iniciam sob o efeito de uma mudana poltica importante, que decorre das eleies presidenciais de 2002 e da assuno de Luiz Incio Lula da Silva presidncia da Repblica. De um governo identificado com os princpios do referencial global do neoliberalismo e lastreado por uma aliana poltica com os setores mais conservadores da poltica nacional, passouse a um governo eleito com o apoio e participao de vrios partidos e movimentos sociais situados mais esquerda do espectro poltico sem, no entanto, deixar de contemplar ideias e interesses de grupos representantes da burguesia bancria, industrial e agrcola nacional (Mielitz, 2011). Neste contexto, segundo Mielitz (2011, p. 239), rupturas radicais com o modelo

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    do passado [...] acabaram por no acontecer e a manuteno da estabilidade econmica com um baixo nvel de inflao tornouse uma meta sagrada que subordinava outras questes. No obstante, importantes alteraes ocorreram nas relaes e no papel do Estado e da sociedade civil, especialmente no que se refere ao direcionamento das polticas pblicas, na relao com os movimentos sociais e com a sociedade civil. Atores at ento marginais nas arenas pblicas tornaramse dominantes (caso de polticos vinculados ao Partido dos Trabalhadores) e abriram oportunidades para a institucionalizao de novas ideias e reivindicaes de polticos, estudiosos, movimentos sociais e de organizaes da sociedade civil, dentre estes principalmente daqueles atuantes no tema da segurana alimentar e nutricional (e tambm, em grande medida, vinculados ao campo agroecolgico).

    Estes atores vinham propondo e disputando as polticas pblicas desde o incio dos anos 1990, no entanto apenas com a mudana poltica em 2002 que os mesmos conseguiram pautar a construo e a institucionalizao das polticas pblicas para a agricultura familiar com base em um novo referencial orientado pela construo de mercados para a segurana alimentar e a sustentabilidade. Referimonos especialmente aos atores vinculados ao Governo Paralelo, que props a Poltica Nacional de Segurana Alimentar (PNSA) (no implementada) em 1991; mobilizao Ao da Cidadania Contra a fome, a Misria e pela Vida, liderada pelo socilogo Herbert de Souza (o Betinho), e respectiva Campanha Nacional de Combate fome em 1993; e ao Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Consea) estabelecido em 1993.10 Estes atores foram importantes para colocar o tema da fome em pauta no incio dos anos 1990 e para defender polticas de segurana alimentar e nutricional, em que, atrelada a esta noo, ao mesmo tempo reivindicavase a agricultura familiar como meio de promover o acesso aos alimentos e um sistema agroalimentar mais equitativo. Com o incio do governo fHC e o consequente arrefecimento do tema da segurana alimentar e nutricional (substitudo pelo Programa Comunidade Solidria), estes atores encontraram limitaes polticas e institucionais para atuarem na construo de polticas pblicas,

    10 O Consea foi estabelecido inicialmente em 1993, no governo de Itamar franco, no bojo de iniciativas que buscavam reduzir a fome e construir uma poltica de segurana alimentar e nutricional para o pas. No entanto, este primeiro Consea teve vida curta, sendo extinto no incio da gesto de fernando Henrique Cardoso em 1995. O Consea foi restabelecido em 2003, constituindose um importante espao para representantes da sociedade civil e atores governamentais discutirem, construrem propostas e monitorarem iniciativas de promoo da segurana alimentar e nutricional no pas.

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    Quando o presidente Lula assumiu, os temas da fome e da segurana alimentar e nutricional ganharam um novo mpeto e estes atores encontraram possibilidades para institucionalizarem suas ideias. O Consea foi restabelecido e foi criado o Ministrio Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate fome (Mesa), tornandose Ministro o professor Jos Graziano da Silva, um importante intelectual que teve papel decisivo na formulao e implementao do projeto fome Zero, o que, segundo Menezes (2010, p. 247), representou a culminncia de todo um processo anterior de formulaes e prticas na luta contra a fome e pela segurana alimentar e nutricional no Brasil experimentadas por governos (nos nveis municipal e estadual) e organizaes sociais. O Projeto fome Zero partiu da premissa do direito humano alimentao e do diagnstico de que este no estava sendo efetivado em razo da insuficincia da demanda, da incompatibilidade dos preos dos alimentos com o poder aquisitivo da maioria da populao e da excluso da populao pobre do mercado. Para alterar este cenrio, foi proposto um conjunto de polticas estruturais que visavam melhorias na renda e o aumento da oferta de alimentos bsicos, ou seja, era preciso mudanas na ponta da produo, conferindo prioridade agricultura familiar, e na ponta do consumo, de preferncia articulandoas.

    Resgatando experincias de alguns municpios e estados brasileiros, o Projeto fome Zero ressaltava o potencial do mercado institucional (alimentao escolar, hospitais, presdios, distribuio de cestas bsicas, etc.) no fortalecimento da agricultura familiar (criao de canais de comercializao e gerao de renda), na dinamizao da economia dos municpios e das regies, no atendimento s necessidades alimentares de uma parcela vulnervel e numericamente expressiva da populao (mormente, as crianas em idade escolar) e na introduo de elementos de diversidade regional em cardpios com importncia no desprezvel na formao de hbitos alimentares (Instituto Cidadania, 2001, p. 39). Estimavase que uma parte importante do oramento pblico era destinada compra de alimentos para vrias finalidades e esta demanda institucional deveria ser canalizada para a agricultura familiar. Estas ideias culminaram na criao do Programa de Aquisio de Alimentos (PAA) e desencadearam uma efervescncia em torno dos mercados institucionais, seja do ponto de vista da segurana alimentar e nutricional sendo a alimentao escolar um elemento central seja com um vis para as preocupaes ambientais, com a produo de bicombustveis (neste caso, de forma controversa). De acordo com Schneider, Shiki e Belik (2010), neste processo estaria emergindo uma terceira gerao de polticas pblicas para a agricultura familiar. A criao do Programa de Aquisio de Alimentos, PAA, foi elemento fundamental neste

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    processo, abrindo uma janela de oportunidades e gerando aprendizados para a construo de novas aes.

    O PAA foi criado em 2003 visando articular a compra de produtos da agricultura familiar com aes de segurana alimentar (distribuio de alimentos) para a populao em vulnerabilidade social. Embora concebido como uma ao estruturante no Programa fome Zero, o PAA apresentou certa timidez em seus anos iniciais, dadas certas mudanas polticas (extino do Mesa) e o fato de ser compreendido a partir da lgica de projetos pilotos pelas organizaes da agricultura familiar (Grisa, 2012; Muller, 2007). Com a expanso do Programa, a exposio de seus resultados para as dinmicas locais e para o fortalecimento das organizaes da agricultura familiar, e o crescente debate no Brasil neste perodo sobre construo social dos mercados (Niederle, 2011; Abramovay, 2009; Wilkinson, 2008; Maluf, 2004), o Programa ganhou importante projeo nacional e internacional, servindo de exemplo a ser replicado ou exportado para outros pases.

    Aps romper com importantes barreiras institucionais (como a Lei de Licitaes), o PAA desencadeou uma nova trajetria para os mercados institucionais para a agricultura familiar, fortalecida em 2009 com a mudana no Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE) e a criao da Lei n 11.947, que determinou que, no mnimo, 30% dos recursos federais para a alimentao escolar sejam destinados para a aquisio de alimentos da categoria social. Mais recentemente, em 2012, foi estabelecida mais uma modalidade ao PAA que amplia as possibilidades de mercados. Tratase da Compra Institucional que permite aos estados, municpios e rgos federais da administrao direta e indireta adquirir alimentos da agricultura familiar por meio de chamadas pblicas, com seus prprios recursos financeiros, com dispensa de licitao. Em termos prticos, isto significa o acesso a mercados alimentares demandados por hospitais, quartis, presdios, restaurantes universitrios, refeitrios de creches e escolas filantrpicas, entre outros.

    Estas iniciativas tm estimulado governos estaduais a criar seus prprios mecanismos de compras pblicas e tm estimulado as organizaes da agricultura familiar a demandarem e construrem novos mercados pblicos e privados. Cabe ressaltar que estas aes (PAA e PNAE) tm contribudo para a valorizao da produo local/regional, ecolgica/orgnica e tm ressignificado os produtos da agricultura familiar, promovendo novos atributos de qualidade aos mesmos, associados, por exemplo, justia social, equidade, artesanalidade, cultura, tradio, etc.

    Em 2004, emergiu tambm o Programa Nacional de Produo e Uso do Biodiesel (PNPB) visando estimular a produo e compra de oleaginosas da

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    agricultura familiar. Alm de promover a produo de oleaginosas geradoras de biodiesel via poltica agrcola (crdito rural, ATER, seguro agrcola), o Programa instituiu o selo combustvel social concedido pelo MDA ao produtor de biodiesel que adquirir matria prima e assegurar assistncia tcnica aos agricultores familiares, beneficiandose, em contrapartida, de financiamentos e incentivos comerciais e fiscais. Ainda que muitas vezes controversa do ponto vista da segurana alimentar e da questo ambiental (sobretudo pelo fato de concentrarse no uso da soja como matria prima), a produo de biodiesel incrementou os mercados para a agricultura familiar e suas organizaes (flexor e