politica trabalhista e fundiaria emprego agricula estrutura

40
TEXTO PARA DISCUSSÃO N° 1108 * POLÍTICAS TRABALHISTA E FUNDIÁRIA E SEUS EFEITOS ADVERSOS SOBRE O EMPREGO AGRÍCOLA, A ESTRUTURA AGRÁRIA E O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL RURAL NO BRASIL Gervásio Castro de Rezende Rio de Janeiro, agosto de 2005

Upload: sergioaugustoz

Post on 16-Nov-2015

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • TEXTO PARA DISCUSSO N 1108

    *

    POLTICAS TRABALHISTA E FUNDIRIAE SEUS EFEITOS ADVERSOS SOBRE OEMPREGO AGRCOLA, A ESTRUTURAAGRRIA E O DESENVOLVIMENTOTERRITORIAL RURAL NO BRASIL

    Gervsio Castro de Rezende

    Rio de Janeiro, agosto de 2005

  • TEXTO PARA DISCUSSO N 1108

    * Esta uma verso ligeiramente modificada de trabalho de mesmo ttulo preparado para apresentao no painel sobremercado de trabalho agrcola no XLIII Congresso da Sober, realizado em Ribeiro Preto (SP), de 24 a 27 de julho de 2005.Agradeo os comentrios de Arcio dos Santos Cunha, Marcelo Nonnenberg, Paulo Srgio Tafner e Steven Helfand averses anteriores deste trabalho, o qual parte integrante de bolsa de pesquisa do CNPq e do projeto BASIS/CRSP/University of Wisconsin, apoiado pela USAID e coordenado por Steven Helfand.

    **Da Diretoria de Estudos Macroeconmicos do IPEA e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

    [email protected]

    POLTICAS TRABALHISTA E FUNDIRIAE SEUS EFEITOS ADVERSOS SOBRE OEMPREGO AGRCOLA, A ESTRUTURAAGRRIA E O DESENVOLVIMENTOTERRITORIAL RURAL NO BRASIL*

    Gervsio Castro de Rezende**

    Rio de Janeiro, agosto de 2005

  • Governo Federal

    Ministrio do Planejamento,Oramento e Gesto

    Ministro Paulo Bernardo Silva

    Secretrio-Executivo Joo Bernardo de Azevedo Bringel

    Fundao pblica vinculada ao Ministrio do

    Planejamento, Oramento e Gesto, o IPEA

    fornece suporte tcnico e institucional s aes

    governamentais, possibilitando a formulao

    de inmeras polticas pblicas e programas de

    desenvolvimento brasileiro, e disponibiliza,

    para a sociedade, pesquisas e estudos

    realizados por seus tcnicos.

    Presidente

    Glauco Arbix

    Diretora de Estudos Sociais

    Anna Maria T. Medeiros Peliano

    Diretor de Administrao e Finanas

    Celso dos Santos Fonseca

    Diretor de Cooperao e Desenvolvimento

    Luiz Henrique Proena Soares

    Diretor de Estudos Regionais e Urbanos

    Marcelo Piancastelli de Siqueira

    Diretor de Estudos Setoriais

    Joo Alberto De Negri

    Diretor de Estudos Macroeconmicos

    Paulo Mansur Levy

    Chefe de Gabinete

    Persio Marco Antonio Davison

    Assessor-Chefe de Comunicao

    Murilo Lbo

    URL: http:/www.ipea.gov.br

    Ouvidoria: http:/www.ipea.gov.br/ouvidoria

    ISSN 1415-4765

    JEL Q15, J43, J58

    TEXTO PARA DISCUSSO

    Uma publicao que tem o objetivo de

    divulgar resultados de estudos

    desenvolvidos, direta ou indiretamente,

    pelo IPEA e trabalhos que, por sua

    relevncia, levam informaes para

    profissionais especializados e estabelecem

    um espao para sugestes.

    As opinies emitidas nesta publicao so de

    exclusiva e inteira responsabilidade dos autores,

    no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista

    do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou do

    Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados

    contidos, desde que citada a fonte. Reprodues

    para fins comerciais so proibidas.

  • SUMRIO

    SINOPSE

    ABSTRACT

    1 INTRODUO 1

    2 SAZONALIDADE AGRCOLA E MERCADO DE TRABALHO NO CAF APS A ABOLIO 4

    3 MUDANAS INSTITUCIONAIS INTRODUZIDAS A PARTIR DO BINIO 1963-1964:A EXTENSO DA CLT AO CAMPO 7

    4 UMA DISCUSSO CRTICA DAS PROPOSTAS DE REFORMA DA POLTICA TRABALHISTAAGRCOLA NO BRASIL 11

    5 MUDANAS INSTITUCIONAIS INTRODUZIDAS A PARTIR DO BINIO 1963-1964:A POLTICA FUNDIRIA 14

    6 MERCADOS FINANCEIRO E DE ALUGUEL DE TERRA NO BRASIL E POLTICA FUNDIRIA 19

    7 A MECANIZAO AGRCOLA COMO REAO DO SETOR AGRCOLA AO CONTEXTOINSTITUCIONAL ADVERSO 20

    8 SUMRIO E CONCLUSES 23

    BIBLIOGRAFIA 27

  • SINOPSEEste trabalho procura discutir a questo do padro concentrador do desenvolvimentoagrcola brasileiro recente, expresso no predomnio da produo em grande escala,elevado ndice de mecanizao e baixa absoro de mo-de-obra no-qualificada. Prope-se, inicialmente, a existncia de duas posies antagnicas que procuram explicar essefato: uma, que culpa a herana latifundiria de nossa agricultura, com a implicao deque a soluo requereria uma reforma agrria radical, e a outra, que v nisso umdeterminismo tecnolgico, no havendo, assim, possibilidade de atuar sobre esseproblema sem incorrer em uma perda em termos de eficincia econmica. Discordandoradicalmente dessas duas posies, este trabalho atribui s polticas trabalhista agrcola efundiria, que foram institudas na dcada de 1960, e poltica de crdito agrcola,instituda na mesma poca, a responsabilidade maior por esse problema. Conforme aanlise apresentada, essas polticas inviabilizaram o mercado de trabalho agrcolatemporrio e a agricultura familiar, ao mesmo tempo em que fomentaram a mecanizaoagrcola e o predomnio da produo em grande escala. O trabalho aponta, ainda, queum subproduto adicional desse processo concentrador de crescimento agrcola foi umaumento do xodo rural e um menor desenvolvimento territorial rural, um temaatualmente to valorizado no Brasil. O trabalho termina propondo, de modo consistentecom a anlise apresentada, que a nica maneira de iniciar a desconcentrao de nossocrescimento agrcola e criar condies para o desenvolvimento territorial rural atravs deuma desregulamentao radical dos mercados de trabalho e de aluguel de terra,instituindo, no Brasil, enfim, a livre contratao, a caracterstica maior do capitalismo eque ainda no foi instituda no Brasil.

    ABSTRACTThis paper discusses the question of the concentrated pattern of agricultural developmentin Brazil, as expressed in the predominance of large-scale production, high level ofmechanization and low absorption of non-qualified labor. It is proposed, initially, theexistence of two conflicting explanations for this fact: the first, that blames our historicalheritage, characterized by the predominance of the latifndio, with the implication thatthe solution requires a radical agrarian reform; and the second, that sees in theseconcentrated pattern of agricultural growth in Brazil a technological determinism, with theimplication that lesser concentration in agriculture would imply a loss in economicefficiency. Diverging radically from these two lines of arguments, this paper attributes tothe agricultural labor and to the land policies that were instituted in the decade of 1960,and to the agricultural credit policy, instituted by the same time, the major responsibilityfor this problem. As argued in the paper, these policies turned unviable in Brazil not onlythe agricultural temporary labor market, but also family farm, at the same time thatstimulated agricultural mechanization and the predominance of large-scale production.The paper points out, also, that an additional by-product of this concentrated pattern ofagricultural growth was an increase in rural exodus and a lower level of territorial ruraldevelopment, a theme so stressed nowadays. The paper ends up proposing, in a mannerconsistent with the analysis presented, that the only way to initiate the de-concentrationof our agricultural growth and to create the pre-conditions for territorial ruraldevelopment would be through a radical de-regulation both of agricultural labor andland markets, instituting in Brazil, at last, free contracting, the most basic capitalisticinstitution.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 1

    O papagaio come o milho e o periquito que leva a fama.

    1 INTRODUOO setor agrcola tem assumido um papel estratgico na atual fase da economiabrasileira, em funo de sua capacidade de contribuir para uma adequada ofertainterna de alimentos e matrias-primas agrcolas e para o aumento das exportaes.

    Entretanto, o crescimento agrcola tem sido marcado pela adoo de umatecnologia intensiva em capital e em mo-de-obra qualificada, o que tem limitado asua contribuio para a reduo da pobreza e da desigualdade no Brasil.

    A adoo do atual padro tecnolgico agrcola foi acompanhada, ao longo dotempo, pela reduo do nmero de pequenos produtores e de trabalhadoresassalariados agrcolas, que tiveram de migrar para o meio urbano. Uma vez que essespequenos agricultores e trabalhadores no tinham as qualificaes requeridas pelasatividades econmicas urbanas, j que eram dotados de uma qualificao especficaagrcola, o resultado foi um aumento da pobreza e da desigualdade no Brasil.

    A anlise dessa questo deu origem a uma intensa controvrsia, envolvendo duasposies antagnicas. A primeira atribui a culpa nossa formao histrica, e emparticular concentrao da propriedade da terra, cujo papel determinante teria sidoreforado, no perodo recente, pela poltica de crdito agrcola subsidiado, criada nofinal da dcada de 1960.

    A segunda v esse padro de desenvolvimento agrcola como decorrncia de umimperativo tecnolgico, j que seria invivel, do ponto de vista econmico, aproduo em pequena escala na agricultura, e nem existiria tecnologia absorvedora demo-de-obra. Assim, esse padro tecnolgico e o predomnio da produo em grandeescala na agricultura seriam um subproduto do livre funcionamento das foras domercado, e qualquer tentativa de interferir nisso implicaria um custo de eficinciapara a economia.

    Este trabalho pretende no s criticar essas duas posies, como tambmapresentar uma explicao alternativa. Ao contrrio dos autores que vo buscar nopassado remoto a explicao das nossas mazelas atuais, este artigo vai argumentar quea situao atual foi fruto de um processo de transformao que se iniciou na dcadade 1960, e que foi muito condicionado pelas polticas trabalhista agrcola, fundiria ede crdito agrcola. Procurar-se- argumentar que essas polticas pblicas, e emparticular as polticas trabalhista e fundiria, embora tendo sido adotadas com oobjetivo explcito de beneficiar os mais pobres, na realidade acabaram por atingirresultados opostos, contribuindo, ento, para o aumento da pobreza e dadesigualdade no Brasil.

    Assim, este artigo pretende propor que o padro concentrador dodesenvolvimento agrcola brasileiro foi um produto de condies contemporneas, eno de estruturas herdadas do nosso passado colonial, embora, como se ver, nossaanlise tambm atribui estrutura agrria concentrada, herdada historicamente, umpapel relevante na determinao desse padro concentrador, hoje prevalecente nanossa agricultura.

  • 2 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    Por sua vez, a crtica aos autores que postulam um determinismo tecnolgico vaise basear na teoria econmica mainstream. Argumentar-se- que o padro tecnolgicohoje prevalecente na agricultura brasileira foi resultado de escolhas que tiveram porbase os preos relativos dos fatores, que resultaram das polticas pblicas mencionadasanteriormente. Essas polticas fizeram com que os preos relativos dos fatores especialmente da mo-de-obra e do capital ficassem distorcidos, o custo privadoda mo-de-obra tendo ficado superior ao seu custo social e o custo privado do capitaltendo ficado inferior ao seu custo social. A escolha da tecnologia atual foi, portanto,condicionada para no dizer determinada por esses preos relativos distorcidosdos fatores de produo. Alm disso, nova tecnologia pode tambm ter sido criada,ou induzida, Hicks e, como desenvolvido no modelo de Hayami e Ruttan, poressa elevao do preo relativo da fora de trabalho vis--vis o capital.

    Ora, ao se aceitar que esse padro tecnolgico atual resulta de uma escolhatcnica, condicionada pelos preos relativos dos fatores, ento infere-se que umaeventual mudana desses preos relativos dos fatores poder dar lugar a um novopadro de desenvolvimento agrcola, com o uso de tecnologia menos intensiva emcapital e mais intensiva em mo-de-obra no-qualificada.

    Voltando agora questo da poltica trabalhista agrcola, a anlise a serapresentada neste trabalho enfatiza a grande diferena existente entre essa atividade eos demais setores da economia, devido existncia de sazonalidade na agricultura, oque torna o mercado assalariado temporrio muito mais importante nesse setor doque nos demais setores da economia.

    Uma vez que a poltica trabalhista adotada no Brasil nunca levou em conta essascaractersticas peculiares do setor agrcola, a conseqncia que sua inadequao mais dramtica no meio rural do que no meio urbano. Devido, tambm, a essacaracterstica peculiar da agricultura, as anlises de mercado de trabalho que tm sidofeitas para o meio urbano no so adequadas para a anlise dos problemas de mercadode trabalho agrcola.

    Quanto poltica fundiria que teve como marco inicial o famoso Estatutoda Terra, de 1964 , este trabalho pretende argumentar que ela tem inviabilizadotanto a parceria como o pequeno arrendamento de terra no Brasil.

    Em relao aos efeitos adversos que essas polticas tm causado sobre a pequenaagricultura no Brasil, o trabalho prope as seguintes hipteses. Em primeiro lugar, odesestmulo ao mercado de trabalho agrcola temporrio tem fomentado o xodorural de regies onde se concentra um nmero muito grande de pequenos agricultorespobres, que poderiam valer-se, em grau maior do que acontece hoje, do trabalhoassalariado sazonal para fins de complementao de renda.

    Em segundo, agricultores familiares tm perdido a oportunidade de aumentarsuas escalas de produo, por no poderem contar com um mercado adequado defora de trabalho assalariada e nem terem acesso s tecnologias poupadoras de mo-de-obra (como o uso de tratores e colheitadeiras). Essas limitaes acabam tambmgerando subemprego da mo-de-obra familiar nos tempos mortos da atividadeagrcola.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 3

    Em terceiro, a poltica fundiria, ao suprimir os mercados de aluguel de terra,tambm limita as possibilidades de crescimento da pequena agricultura no Brasil.

    Como reflexo desse contexto institucional adverso ao florescimento dosmercados de trabalho agrcola e de aluguel de terras, e como decorrncia, tambm, dapoltica de crdito subsidiado que foi instituda quase que simultaneamente a essasduas polticas , o setor agrcola no Brasil acabou adotando a mecanizao em largaescala, contornando, assim, sua maneira, as barreiras que foram criadas ao seudesenvolvimento pelas polticas trabalhista e fundiria.

    Essa mecanizao agrcola provocou uma concentrao maior na agricultura, jque a mecanizao, pelas razes a serem expostas neste trabalho, no acessvel aopequeno agricultor. Ou seja, ela tornou-se um fator adicional na inviabilizao dapequena agricultura.

    Finalmente, esse desestmulo ao mercado de trabalho agrcola e pequenaagricultura contribuiu, sem dvida, para a excessiva urbanizao no Brasil, j queteria havido maior reteno de mo-de-obra no campo se os mercados de trabalhoassalariado agrcola e a prpria pequena agricultura no tivessem sido todesestimulados pelas polticas trabalhista e fundiria.

    As regies onde a mecanizao permitiu que o setor agrcola superasse asrestries impostas pelas polticas trabalhista e fundiria ainda puderam sedesenvolver, embora ostentando um padro distributivo concentrador.

    Entretanto, nas regies onde menor a aptido agrcola, inclusive pelainviabilidade da mecanizao como no caso das agriculturas de montanha, aZona da Mata de Minas Gerais sendo um exemplo tpico , a conseqncia dessaspolticas pblicas foi uma decadncia total do setor agrcola, com impactos negativossobre toda a economia dessas regies.

    Sem essas polticas trabalhista e fundiria, o desenvolvimento territorial rural,um objetivo hoje to importante, certamente teria sido muito mais vivel no Brasil.Mantidas essas polticas na forma atual, duvidoso que se possa reverter esse padrohistrico de desenvolvimento regional concentrador e dotado de vis urbano eantiterritorial rural.

    Alm desta introduo, o trabalho inclui outras seis sees. Com o objetivo demostrar como funcionava o mercado de trabalho agrcola no perodo anterior adoo, na dcada de 1960, das atuais polticas, a Seo 2 apresenta uma anlise domercado de trabalho na produo de caf, como se formou em substituio aotrabalho escravo e se manteve at a dcada de 1960. Mostra que o ento problema dasazonalidade agrcola foi resolvido atravs da cesso ao trabalhador e sua famlia demoradia (na colnia) e um lote de terra dentro da fazenda, utilizvel para produoprpria. Atravs dessa frmula, o trabalhador obtinha uma renda parte em espcie,parte em dinheiro , o que explica a grande aceitao que esse esquema teve naatrao dos imigrantes italianos a So Paulo.

    A Seo 3 discute a mudana que ocorreu na dcada de 1960, em seguida aprovao, pelo Congresso, em 1963, do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), queestendeu a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT) ao campo. Como se sabe, esseETR levou destruio das antigas relaes de trabalho na agricultura, com os ex-

  • 4 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    colonos e ex-moradores tendo de passar a morar fora das fazendas e a trabalhar apenasparte do ano, tornando-se, assim, volantes ou bias-frias.

    Essa seo discute tambm as mazelas que esse mercado de trabalho enfrenta, emparte devido s suas prprias caractersticas, mas em parte tambm devido ao dapoltica trabalhista. Ao mesmo tempo, aponta o papel estratgico que esse mercado detrabalho poderia estar cumprindo no Brasil, no sentido de reduo da pobreza e dadesigualdade. Tendo em vista esse argumento, discutem-se, na Seo 4, as propostasde mudana na atual poltica trabalhista, inclusive aquelas que j foram apresentadasantes, mas que, por vrios motivos, no foram adotadas at agora.

    A Seo 5, por sua vez, mostra que, logo aps essa extenso da CLT ao campo,deu-se incio, atravs do Estatuto da Terra, institucionalizao de uma nova polticafundiria no Brasil, que se completou com a Constituio de 1988. Essa seodefende o argumento de que essa poltica fundiria tem causado o aumento dapobreza e da desigualdade no Brasil, contrariando seus prprios objetivos. A Seo 6discute a relao entre mercado financeiro e mercado de aluguel de terra no Brasil, esugere que a nossa poltica fundiria impediu que a especulao com terras pudesseacabar beneficiando a pequena agricultura no pas.

    A Seo 7, baseando-se na teoria microeconmica convencional e tambm nomodelo de inovaes induzidas de Hayami e Ruttan, prope que essas polticastrabalhista e fundiria foram responsveis pela mecanizao exagerada da agriculturabrasileira, ao elevarem o custo da mo-de-obra. Contudo, essa seo aponta que amecanizao agrcola foi tambm estimulada pelas polticas industrial e agrcola, estaltima atravs da poltica de crdito rural, que tornou mais barato o custo do capitalpara a agricultura. Essa seo prope, tambm, a hiptese de que essa mecanizaoagrcola vem contribuindo para tornar mais concentrada a estrutura agrria brasileira,uma vez que uma tecnologia menos acessvel ao pequeno agricultor.

    Finalmente, a Seo 8 apresenta um sumrio e as principais concluses do artigo.

    2 SAZONALIDADE AGRCOLA E MERCADO DE TRABALHO NO CAF APS A ABOLIOO mercado de trabalho agrcola formado no final do sculo XIX, como tipificadopelo colonato no caf, tinha por caracterstica principal o fato de que a mo-de-obra era residente nas fazendas e no se limitava a trabalhar na atividade econmicaprincipal, pois dedicava-se, nos tempos mortos do caf, a uma atividade agrcolapor conta prpria, em terra cedida pelo fazendeiro.

    Atravs dessa cesso de terra ao colono para produzir parte de sua subsistncia, ofazendeiro conseguia reduzir o custo monetrio da mo-de-obra, que se limitava,ento, ao pagamento pela carpa do cafezal e pela colheita do caf. Note-se que essacesso de terra para a atividade de subsistncia do colono no rivalizava com anecessidade de trabalho no caf, j que o perodo em que o colono e sua famliadedicavam-se produo prpria coincidia com os tempos mortos do calendrioagrcola do caf. claro, contudo, que, ao ceder essa terra ao colono, o fazendeiroincorria no custo de oportunidade dado pela renda alternativa que essa terra geraria seela fosse alocada ao caf.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 5

    interessante notar que, em anlise anterior do autor [Rezende (1980)],admitiu-se, implicitamente, que os calendrios agrcolas da produo de milho, porexemplo, e de caf rivalizavam entre si, razo pela qual havia um conflito entrealocao de trabalho na lavoura de milho e na de caf. Em face disso, essa anlise deRezende (1980) concluiu que o tamanho e a qualidade do lote de terra cedido aocolono tinham de ser de certa maneira comprimidos, de forma a se evitar que ocolono dedicasse a maior parte de seu tempo de trabalho atividade de subsistncia,em detrimento do trabalho no caf.

    Por outro lado, uma vez que os calendrios agrcolas das atividades desubsistncia e do caf sejam complementares entre si, fica claro que deveria ser muitoatraente empregar-se como colono na fazenda de caf, j que o trabalhador podiaobter, assim, uma renda de subsistncia e uma renda monetria, cujos montantesdependiam inteiramente da capacidade e da disposio de trabalho do colono e suafamlia. Sobretudo, a possibilidade de obteno de renda monetria devia exercergrande atrao sobre os imigrantes estrangeiros, recm-chegados ao pas. Fica fcil,tambm, explicar por que a mo-de-obra do imigrante era mais atraente para ofazendeiro do que para os ex-escravos, j que o trabalho intensivo na fazenda de cafno devia ser atraente para esses ex-escravos, especialmente considerando as amplaspossibilidades da agricultura de subsistncia e o baixo padro de vida dessa categoriade trabalhadores, herana da escravido. Nem ao fazendeiro interessava a mo-de-obra desses ex-escravos, j que era vital para a economia da fazenda que a terra cedidaao colono fosse utilizada intensivamente, sem detrimento do trabalho intensivotambm na atividade cafeeira. De fato, quanto maior fosse a renda gerada no lote,menor poderia ser o salrio monetrio pago pelo trabalho no caf.

    Note-se, tambm, que nada devia impedir que pequenos produtoresindependentes, moradores prximos das zonas cafeeiras ou at mesmo em locaisdistantes, participassem da colheita de caf, com o objetivo de obter uma rendamonetria.

    Por outro lado, essa produo, no seio da prpria fazenda, de lavouras como omilho e arroz, deveria certamente reduzir o mercado para esses produtos, dando lugar dicotomia lavouras de subsistncia/lavouras comerciais, que por tanto tempomarcou a agricultura brasileira.

    interessante notar como esse arranjo produtivo tornou atraente a formao dagrande propriedade no caf. Com efeito, essa alocao de terra da fazenda aoscolonos, assim como a reserva de terra virgem, necessria substituio dos cafezaisvelhos e expanso dos novos, fazia com que a fazenda de caf tpica fosse muitoextensa, mas, em compensao, era assim que a atividade cafeeira conseguia reduzirsua despesa financeira no item mo-de-obra. A fazenda de caf exigia grandesinvestimentos na formao do cafezal, assim como elevadas despesas anuais nasatividades de colheita, beneficiamento, classificao e transporte do produto, e essareduo do custo monetrio com a fora de trabalho em regra, muito numerosa devia afigurar-se muito importante para a economia cafeeira, sobretudoconsiderando-se que o fazendeiro normalmente dependia de financiamento externo,obtido custa de elevadas taxas de juros.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    Essa relao direta entre rea de terra da fazenda e viabilidade econmico-financeira do caf no poderia seno fomentar o predomnio do latifndio no setorcafeeiro. A constituio do latifndio na agricultura brasileira teve por base,inicialmente, a concesso de sesmarias pela Coroa Portuguesa, tendo em vista seusprprios interesses na ocupao do territrio colonial. Aps 1822, passou a iniciar-secom a posse o processo de obteno do ttulo de propriedade da terra no Brasil.Chegou-se a tentar mudar esse sistema atravs da Lei de Terras de 1850, que previaque a obteno de terra s poderia se dar atravs da venda pelo Estado. Entretanto,como apontou Carvalho (1988), essa lei virou letra morta, mantendo-se, para todosos efeitos, a posse como o primeiro passo no processo legal de formao dapropriedade da terra no Brasil. Um sistema como esse, sem qualquer presenaostensiva do Estado em franco contraste, a propsito, com a experinciaamericana, conforme Guedes (2005) bem mostrou no poderia seno fomentar aviolncia no campo e resultar no predomnio da grande propriedade. O que se podenotar melhor agora, com base na anlise da economia cafeeira aqui apresentada, que a grande propriedade decorria da necessidade de a fazenda prover toda anecessidade de subsistncia do trabalhador, no podendo se limitar a pagar apenaspelo trabalho na atividade principal. Note-se que o uso de mo-de-obra assalariadasazonal de pequenos produtores independentes tampouco satisfaria a essasnecessidades da fazenda, uma vez que seria sempre uma dependncia arriscada. Alis,no toa que Furtado (1972), em anlise discutida em Rezende (1975) e quedepois serviu de base para a anlise adicional de Rezende (1976 e 1980), viu que aconcentrao da propriedade da terra no Brasil, ao limitar o acesso terra aps aabolio da escravido, cumpriu um papel decisivo na garantia de uma oferta de mo-de-obra de que o latifndio precisava.

    Foi diante desse imperativo que a economia cafeeira passou a requerer formasfceis e baratas de acesso terra, do que resultou o sistema latifundirio. que, assim,conseguia-se reduzir o custo de oportunidade, para o fazendeiro, da cesso do lote aocolono para este produzir parte da sua subsistncia.

    Note-se que esse sistema do colonato, assim como outros sistemas de empregoda mo-de-obra que se formaram aps a abolio da escravido (como o sistema demorador de condio, na Zona da Mata do Nordeste, em que o trabalhadorganhava um lote de terra para produo prpria, em troca do trabalho gratuito nacana, o que ficou conhecido como cambo) somaram-se s mais variadas formas deparceria e arrendamento para deixar claro no s a predominncia do sistemalatifundirio na agricultura brasileira, mas tambm sua lgica interna: todos essessistemas de emprego da fora de trabalho e de aluguel de terra s se viabilizavameconomicamente graas ao predomnio da grande propriedade territorial.

    interessante notar que, embora divergindo quanto ao grau de integrao aomercado, todos esses sistemas latifundirios tinham em comum o fato de que ostrabalhadores tinham algum tipo de acesso terra. Isso tornou-se um fato queestimulou a mobilizao poltica tipificada pelas ligas camponesas, que rapidamenteencontrou eco em sua bandeira de propriedade da terra para os que j a utilizavampara o seu consumo prprio, o que predominava no Brasil. Essa facilidade que aestrutura agrria preexistente a 1960 colocou para a radicalizao poltica no campofoi, tambm, o que gerou seu corolrio o golpe militar de 1964.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 7

    3 MUDANAS INSTITUCIONAIS INTRODUZIDAS A PARTIR DO BINIO 1963-1964: A EXTENSO DA CLT AO CAMPOEsse sistema do colonato, assim como todas as demais relaes sociais de produoque vigoravam no campo brasileiro no incio da dcada de 1960 fazia parte tambmde um sistema de poder que ficou conhecido como o Pacto Populista, surgido coma Revoluo de 1930 e que durou at a crise desse pacto, a partir da segundametade da dcada de 1950. Nos termos desse pacto, em troca do apoio poltico dosfazendeiros, as relaes de trabalho no setor agrcola ficavam imunes interfernciaestatal, que paulatinamente aumentou com a subida de Getlio ao poder, em 1930,atravs da regulamentao trabalhista, at redundar na CLT.

    Essa legislao trabalhista envolvia, tambm, o controle sindical por parte doMinistrio do Trabalho, o que, alis, pode ter sido um dos principais objetivos dogoverno na poca em que isso foi institudo, j que significava uma blindagem domeio sindical influncia comunista, que se revelou um problema srio em 1935,com a Intentona Comunista, e manteve-se assim ao longo da dcada de 1930.

    Essa autonomia do meio rural em face da CLT refletia, tambm, o fato de queessa necessidade de manter sob controle o meio sindical sempre foi muito menor nocampo do que na cidade. Alm disso, dada a importncia da agricultura para oequilbrio da balana de pagamentos deve-se lembrar que o caf representava maisde 60% das nossas exportaes ainda por volta de 1960 , pode-se ter preferido nocorrer o risco da extenso da CLT ao campo e de, assim, provocar uma criseeconmica de grandes propores.

    Entretanto, como Moraes (1970) argumentou, a partir da segunda metade dadcada de 1950 o meio rural passou a ser alvo de movimentos revolucionrios, oexemplo maior tendo sido as Ligas Camponesas. Em parte, isso se devia exatamenteao fato de a CLT no se estender ao campo, o que significava a impossibilidade deconstituio dos sindicatos rurais nos seus limites e, portanto, sob controlegovernamental. Possivelmente, isso explica a facilidade com que se deu essa extensoda CLT ao campo, com pouca oposio at mesmo da classe proprietria rural.

    necessrio, tambm, ter presente o contexto internacional da poca, incluindoa Revoluo Cubana de 1959 e o acirramento da Guerra Fria, como tipificado pelacrise dos msseis. Foi nesse contexto que surgiu a Aliana para o Progresso, quepassou a apoiar polticas de reforma agrria e de melhoria das condies sociais nocampo, j que se acreditava que os movimentos de esquerda radical iriam se basearexatamente na explorao dos conflitos que ocorriam no campo. Entende-se, assim,porque essa extenso da CLT ao campo, atravs do ETR (Lei 4.214, de 2/3/1963), eda legislao que se lhe seguiu (Lei 5.889, de 8/6/73, e Decreto 73.626), foi mantidaintacta pelo governo militar que tomou o poder em 1964. Na realidade, toda a CLT com a exceo de alguns bvios exageros, como a estabilidade no emprego aps 10anos de trabalho foi mantida intocada no s pelos militares no poder, mastambm, como aponta Gomes (2004), pela Constituio de 1988, que manteve,assim, o monoplio da representao, presente na unicidade sindical e no direito decobrar contribuies a toda a categoria profissional.

  • 8 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    Assim, de uma hora para outra, devido ao do Estado estabelecendo direitosaos trabalhadores e criando sindicatos semi-oficiais, tornaram-se inviveis econmicae socialmente as relaes de trabalho que existiam at ento, em que os trabalhadoresresidiam nas fazendas e obtinham sua renda em parte por meio de produo prpria,tudo isso num contexto de relaes paternalsticas entre empregadores e empregados,como bem conhecido e foi assinalado por Cunha (1975). Como conseqncia,ocorreu uma sada em massa dessa mo-de-obra antes residente nas fazendas, tendode ir parar na periferia das cidades e passando a contar, agora, apenas com o trabalhosazonal na atividade principal, a exemplo do caf e da cana-de-acar.

    Do ponto de vista do empregador, esse mercado de trabalho agrcola temporrio,que passou a existir desde ento, padece dos seguintes problemas: a) baixaqualificao da mo-de-obra, j que no h incentivo nem para o empregador, nempara o empregado, em investir na qualificao da fora de trabalho, devido altarotatividade;1 e b) incerteza quanto oferta de mo-de-obra, por um problema deinformao, j que os trabalhadores, muitas vezes, moram em regies distantes.2

    Note-se que o mercado de trabalho assalariado temporrio agrcola, em todo omundo, apresenta esses mesmos problemas. Da surgiu uma literatura internacionalque procurou atribuir a superioridade competitiva da agricultura familiar, nos pasesdesenvolvidos, ao fato de que esta consegue ser menos dependente desse mercado detrabalho agrcola, j que conta com mo-de-obra prpria.3 Alm disso, a limitadadotao de mo-de-obra prpria no impede que essa forma de produo agrcolaatinja a escala tima de produo, dado seu acesso facilitado ao crdito, nesses pases.A agricultura familiar tambm, em geral, mais capaz de diversificar suas atividades diminuindo, assim, os picos sazonais de necessidade de mo-de-obra , sem falarno fato de ostentar um menor custo de superviso, um problema reconhecidamentemais importante na agricultura do que na indstria.

    Note-se que uma forma adicional de a agricultura familiar ter-se beneficiadodesse problema do mercado de trabalho agrcola decorrente da sazonalidade daatividade agrcola teria sido os proprietrios de terra no a administraremdiretamente, mas ced-la em parceria ou arrendamento para produtores familiares.Dessa maneira, o aluguel da terra tornar-se-ia uma forma alternativa ao seu usodireto, com contratao de empregados assalariados, por parte desses proprietrios.Entretanto, como se ver na Seo 5, esse caminho no foi trilhado pelosproprietrios de terra, j que, devido poltica fundiria, o mercado de aluguel deterras no Brasil envolvendo pequenos agricultores foi virtualmente suprimido.

    Ao contrrio do que ocorreu nos pases capitalistas desenvolvidos, no Brasil foi aagricultura familiar, sobretudo a mais pobre, que acabou sendo a mais afetadaadversamente por esse tipo de mercado de trabalho agrcola. Uma das causas disso

    1. Esse problema, no caso da agroindstria canavieira nordestina, muito bem analisado em Ricci, Alves e Novaes(1994, p. 86-97).2. interessante notar que essa separao geogrfica entre o domiclio e o local de trabalho faz a Pesquisa Nacional porAmostra de Domiclios (PNAD) subestimar a importncia das ocupaes agrcolas nas regies mais desenvolvidas,superestimando, portanto, a importncia relativa das ocupaes rurais no-agrcolas.3. Mann e Dickinson (1978), em particular, focalizam bem essa questo, embora pequem por basear sua anlise nateoria do valor do trabalho marxista, e de forma inadequada, ainda por cima.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 9

    as outras sero discutidas oportunamente deve-se no s ao elevado custo da mo-de-obra contratada por hora trabalhada no Brasil como conseqncia da legislaotrabalhista , mas, principalmente, ao fato de esse custo ser maior para a pequena doque para a mdia e a grande agricultura.

    A esse respeito, Zylberstajn (2003) mostrou que, devido ao prazo menor decontratao da mo-de-obra na agricultura fruto da sazonalidade agrcola , ocusto relativo da demisso acaba sendo maior na agricultura do que nos demaissetores.

    Por outro lado, o cumprimento da legislao trabalhista impe custos fixosrelevantes ao empregador, como os seguintes (s para dar alguns exemplos): a)manter-se informado sobre a legislao, ou ento contratar um contador para isso; b)ter de ir ao banco para abrir contas individuais de Fundo de Garantia do Tempo deServio (FGTS), regularizar a situao de seus empregados junto ao InstitutoNacional de Seguro Social (INSS), e depois voltar outras vezes e fazer os depsitosmensais no s do FGTS como do INSS; c) manter atualizado o registro para cadaempregado, mesmo que cada um tenha trabalhado somente uns poucos dias.

    Alm de despender tempo e dinheiro para o cumprimento dessas obrigaestrabalhistas com nus evidente para sua atividade produtiva , o agricultor temtambm de cumprir um sem-nmero de normas relativas segurana do trabalho,como descrito em detalhe em Teixeira, Barletta e Lemes (1997).

    Tendo por referncia a situao reinante na Zona da Mata de Minas Gerais, eaps descrever, com muita criatividade e bom humor, a via-crcis de um agricultormdio tentando promover a legalizao de seus empregados, Aad Neto (1997, p. 20)conclui que o maior custo advindo da atual Legislao Trabalhista na Agricultura deMontanha o de ordem operacional.

    So esses custos administrativos, em grande parte invariantes com o tamanho dafora de trabalho, sendo assim, fixos, que acabam fazendo com que o custo unitrioda mo-de-obra seja no s muito alto, mas muito maior para o trabalhadortemporrio do que para o trabalhador fixo, e, dentro do grupo dos empregadoresdessa mo-de-obra temporria, para os pequenos empregadores do que para osgrandes. So os pequenos empregadores, tambm, que, no caso de serem multadospor descumprimento da legislao trabalhista, podem chegar ao ponto de ter suaatividade inviabilizada, devido arbitrariedade das multas impostas pela Justia doTrabalho, sem falar no tratamento discriminatrio que o reclamado normalmenterecebe no mbito dessa Justia do Trabalho.4 Esse risco trabalhista, naturalmente,deve tambm ser considerado um custo fixo, cujo montante e cuja probabilidade deocorrncia variam de agricultor para agricultor, sendo certo, porm, que isso deveafetar mais os pequenos do que os grandes agricultores.5

    Por outro lado, em face da dificuldade de comunicao entre os dois lados dessemercado de trabalho temporrio, surgiu o intermedirio, mais conhecido como

    4. Ver Moraes (2004) para a caracterizao desse tratamento discriminatrio que a Justia do Trabalho dispensa aosreclamados (os empregadores) vis--vis os reclamantes (os trabalhadores).5. Cunha (1975) tambm aponta que o impacto negativo da poltica trabalhista agrcola no Brasil foi maior para ospequenos e mdios agricultores do que para os grandes.

  • 10 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    turmeiro, que normalmente detm a informao sobre os dois lados e atuafacilitando o contato entre eles. Entretanto, como a figura jurdica desse turmeirono est definida em lei e a Justia do Trabalho o considera mero preposto doempregador, a conseqncia que a participao do agricultor nesse mercado, comoempregador final, embute um risco trabalhista muito grande.6

    Note-se que esse mercado de trabalho temporrio agrcola tambm muitoinadequado do ponto de vista dos trabalhadores principais da famlia, j que oferecetrabalho apenas em algumas pocas do ano, e assim mesmo de maneira incerta.7

    Contudo, o que uma desvantagem para um tipo de mo-de-obra, torna-se umavantagem para a agricultura familiar de regies pobres no Brasil (como o norte deMinas e o Nordeste), j que esse mercado oferece uma alternativa de trabalhocomplementar produo por conta prpria. Esse mercado tem a vantagem, ainda,de que o ganho derivado do trabalho assalariado no envolve o risco que a produoprpria envolve.

    Esse fenmeno do trabalho fora por parte dos pequenos agricultores de regiespobres foi objeto de anlise de Rezende (1978), que descobriu que 20% da fora detrabalho dos pequenos estabelecimentos labutavam em outros estabelecimentos, naslavouras de cacau. Em outro estudo, Rezende (1979) apresentou evidncia de queesse trabalho fora era um fenmeno muito importante no Nordeste brasileiro comoum todo e, de fato, era muito importante para a viabilidade econmica da atividadeagrcola prpria.

    Estudo recente de Cazella (2003) investigou um grupo de pequenos agricultoresna comunidade de Vargem Bonita, em So Jos do Cerrito, municpio localizado a280 km de Florianpolis, e que, para se manterem agricultores, tm de trabalhar fora,em regies prximas, como a serra de So Joaquim, onde colhem ma. Dessamaneira, a plantao de ma junto com sua forma de produo familiar acabaficando viabilizada, tambm.8 Outros trabalhos recentes que fazem meno a essestrabalhadores agrcolas migrantes so os de Ferreira e Ortega (2004a e b) e Ortega eJesus (2003).

    Uma viabilizao do mercado de trabalho agrcola temporrio e, portanto, acriao de melhores oportunidades de trabalho fora por parte desses agricultoresresidentes em regies agrcolas pobres tambm significaria, obviamente, uma

    6. Na justificativa do Projeto de Lei 2.371, de 1976, que ser discutido depois, consta uma referncia a uma reportagemno jornal O Estado de S. Paulo (1976) a respeito desse risco trabalhista: Sempre que h uma reclamao trabalhista (...)o volante ganha a questo. O gato desaparece e o fazendeiro indeniza os reclamantes. Em caso de acidente, pagatodas as despesas, mesmo que ele tenha ocorrido com o caminho do gato fora da fazenda, na ida ou na volta. O bia-fria sempre tem, perante a justia, um caminho de testemunhas para provar que trabalha numa fazenda.7. Rezende (1985, p. 58-60) notou, com efeito, que essa mo-de-obra volante, j residente no meio urbano, eracomposta, basicamente, de mulheres, crianas e velhos, j que os trabalhadores principais da famlia procuravam evitar oemprego agrcola, devido sua sazonalidade.8. Em relato pessoal do professor Cazella ao presente autor, essa percepo de comunho de interesses entreempregados e empregadores se manifestou da forma mais interessante possvel. Ao visitar uma propriedade onde secolhia ma na serra catarinense, e onde Cazella sabia de antemo estarem trabalhando agricultores da regio deCerrito, esses no foram, inicialmente, encontrados, at o professor revelar sua condio de professor da UniversidadeFederal de Santa Catarina (UFSC). Esclarecido esse fato, o proprietrio gritou para os trabalhadores/agricultoresautorizando sua sada de uma pequena mata adjacente. que o carro usado por Cazella tinha a chapa branca, razo porque ele foi confundido com um Fiscal do Trabalho.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 11

    melhoria econmica dessas regies, viabilizando-se, assim, no s um padro dedesenvolvimento regional menos desequilibrado no Brasil, mas, alm disso, umaviabilizao maior de regies rurais, o que permitiria desafogar o meio urbano. Issoquer dizer: mais desenvolvimento territorial rural.

    interessante notar, ainda, que a dimenso atual desse mercado de trabalhotemporrio agrcola muito inferior dos anos 1970 ou 1980, em face do grandeaumento que ocorreu na mecanizao agrcola. Na realidade, esse mercado detrabalho temporrio j chegou mesmo a ser incompatvel com a prpria manutenode atividades agrcolas importantes, como a cana-de-acar e a laranja em So Paulo.Isso se deveu ecloso sucessiva de greves exatamente na poca da colheita, o quegerou um grande incentivo mecanizao, conforme Ricci, Alves e Novaes (1994, p.108) e Moraes e Pessini (2004, p. 49 e 58) notaram. O risco de inviabilizaoeconmica da atividade, devido a essas greves, fez da mecanizao um imperativo, noimportando os investimentos necessrios em pesquisa para se chegar at ela. Isso setornou verdadeiro especialmente no caso dos usineiros cuja mudana de atividadeimplicaria uma perda muito grande, devido aos elevados investimentos incorporadosnas prprias usinas e ao investimento necessrio reconverso das terras para seu usoem outra atividade.

    Essa grande suscetibilidade do setor agrcola s greves, at que a mecanizaoeliminou o problema, deveu-se ao aumento da sazonalidade da prpria demanda demo-de-obra agrcola, ao longo do tempo. Segundo Graziano da Silva (1982),enquanto as atividades de preparo da terra e plantio cedo puderam ser mecanizadas,j que havia tecnologia disponvel no exterior, as atividades de colheita de atividadescomo cana-de-acar, caf e laranja tiveram de continuar sendo manuais, j que nohavia, no exterior, tecnologia disponvel. Por outro lado, o maior uso de fertilizantesfez aumentar a quantidade a ser colhida por hectare, enquanto os defensivos(inseticidas e herbicidas) reduziam a demanda de fora de trabalho nesse perodointermedirio entre o plantio e a colheita. A conseqncia de tudo isso foi umaumento da demanda de mo-de-obra na poca da colheita e queda fora desseperodo.

    4 UMA DISCUSSO CRTICA DAS PROPOSTAS DE REFORMA DA POLTICA TRABALHISTA AGRCOLA NO BRASILTendo em vista os efeitos positivos sobre a pobreza e a desigualdade no Brasil, que sepodem esperar de uma viabilizao maior do mercado de trabalho temporrioagrcola, cabe discutir as medidas que tm sido propostas nesse sentido, bem comooutras que poderiam ser sugeridas.

    Uma soluo buscada inicialmente foi a formao das cooperativas de mo-de-obra, que tiveram uma grande expanso, conforme Carneiro (2001) aponta, j que,assim, evitava-se a legislao trabalhista. Entretanto, cedo essa frmula deixou de servivel, j que o Ministrio do Trabalho e a Justia do Trabalho passaram a enquadraresses trabalhadores na CLT.

    Um tipo de soluo que tem sido proposto a que consta do Projeto de Lei2.371, de 1976, do deputado Guau Piteri, e que no foi aprovado. Consiste na

  • 12 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    legalizao do turmeiro, que se tornaria uma empresa de trabalho temporrio,que ento alugaria a mo-de-obra para os agricultores, com as obrigaes trabalhistasficando a cargo dessa empresa. A proposta envolve a exigncia de um capital socialsuperior a 500 vezes o valor do maior salrio mnimo vigente, o que basta paratornar essa proposta completamente absurda. Alm disso, a proposta prev que aempresa teria de garantir aos trabalhadores todos os direitos previstos na legislao,supondo-se, implicitamente, que a empresa seria capaz de, aps contratar essestrabalhadores, sempre encontrar demanda para eles por parte dos agricultores,repassando, assim, as suas despesas, supostamente com lucro. Essa proposta, narealidade, apenas estende ao meio rural o modelo da empresa de mo-de-obraexistente no meio urbano, pela qual uma empresa contrata um grupo detrabalhadores, j tendo, previamente, uma firma ou repartio pblica interessada nautilizao dessa fora de trabalho. O objetivo dessa empresa de mo-de-obra , namaior parte das vezes, voltada para atender o setor pblico, que tem de recorrer a essaforma indireta de contratao, j que se quer evitar a alternativa de contrataosegundo as regras do Regime Jurdico nico (RJU).

    Isso nos leva concluso de que a viabilizao do mercado de trabalhotemporrio agrcola requer, antes de mais nada, uma especificao, na lei, de umafigura adequada do trabalho temporrio, de maneira a viabilizar a contratao dessamo-de-obra e, inclusive, viabilizar a atuao do turmeiro. Uma proposta nessesentido foi apresentada pelo deputado Alex Canziani, atravs do Projeto de Lei2.639-A/2000. Essa proposta conta com o apoio do ex-ministro Almir Pazziannoto,para quem a principal caracterstica da atividade rural a sazonalidade, razo porque (...) o registro em carteira torna-se invivel.9 De maneira consistente com essapercepo do problema, a proposta cria a figura jurdica do trabalhador ruralcontratado para execuo de atividade de curta durao; o prazo dessa contrataoseria no superior a 30 dias, prorrogvel at atingir 90. A novidade consiste em retirartoda a carga que hoje pesa, de forma desproporcional, sobre a contratao desse tipode trabalhador, como se essa forma de trabalho fosse em tudo igual ao emprego fixo,com a nica diferena do tempo de contratao.

    No caso de regies com atividade agrcola diversificada, havendo, assim,demanda de fora de trabalho durante a maior parte do ano, embora porempregadores diferentes, surgiu a soluo do condomnio de empregadores, que uma pessoa jurdica que cumpre todas as exigncias da legislao trabalhista e capazde contratar o trabalhador de forma permanente, passando esse, ento, a trabalharpara diferentes empregadores, segundo uma escala predeterminada.10 Consegue-se,assim, matar dois coelhos com uma cajadada s: reduz-se substancialmente no s ocusto da mo-de-obra para o empregador individual, mas tambm a sua rotatividade,beneficiando tanto o empregado (que passa a ter uma renda previsvel, o que tornaesse mercado mais atraente do seu ponto de vista), quanto os empregadores, j que

    9. Ver entrevista de Pazziannoto na revista Dinheiro Rural, 2005, p. 32.10. Sobre isso, ver Zylberstajn (2000 e 2003), Dornelas et alii (2001) e Lemes (2004). Ver tambm Ministrio doTrabalho e Emprego (2000).

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 13

    passam a contar com um empregado mais interessado em manter-se no emprego, oque os estimula a investir na formao da mo-de-obra.11

    Essa soluo dos condomnios de empregadores pressupe, contudo, que aagricultura da regio seja suficientemente diversificada, de modo a garantir umademanda contnua de trabalhadores todo o ano. Nas regies especializadas em poucasatividades, como a demanda de mo-de-obra ser concentrada no tempo, deixa de serpossvel essa forma de contratao.

    Uma outra proposta de poltica tem por objetivo viabilizar esse mercado detrabalho temporrio agrcola atravs da concesso de um lote de terra aotrabalhador, capaz de permitir a ocupao da mo-de-obra familiar durante osperodos mortos da atividade agrcola demandante de mo-de-obra assalariada.Com isso, reconstituir-se-ia, de certa maneira, o sistema que existia antes da extensoda CLT ao campo, com a diferena de que, agora, o lote de terra se localiza fora dafazenda, e propriedade do trabalhador.

    Essa proposta foi colocada em prtica pelo governo do Paran, atravs das vilasrurais, objeto de anlise da Fundao Getulio Vargas (FGV) (1998) e Souza e DelGrossi (2000). Segundo a FGV, de 1995 a 1998 foram criadas 156 vilas em 138municpios, beneficiando 5.934 famlias no Paran. Ao criar essas vilas rurais, ogoverno do Paran visava tornar vivel o mercado de trabalho agrcola, com o que seevitava a inchao das cidades, esse sim o principal problema a ser evitado.

    Ao adotar essa soluo, o governo paranaense nada mais fez do que colocar emprtica uma proposta antiga do saudoso Igncio Rangel (2000, p. 97 e 103-106),para quem dever-se-ia recriar, agora fora do latifndio, a propriedade minifundiriafamiliar, de maneira a se viabilizar o mercado de trabalho agrcola e, assim, evitar-sea inchao das cidades brasileiras, coisa que, infelizmente, ocorreu, para desgosto doprprio Rangel e de todos ns.12

    Essa uma experincia de poltica que deveria merecer mais ateno em pesquisafutura sobre o assunto. Caberia verificar, contudo, em particular, se a inexistncia deum status legal especial para o trabalho temporrio agrcola inviabilizaria tambmcom essa soluo, ao tornar muito cara essa mo-de-obra para o empregador agrcola.

    Finalmente, seria interessante contrastar essa situao do mercado de trabalhoagrcola em outros pases, como o Chile e a Argentina, por exemplo, ou os EstadosUnidos. possvel que o impacto adverso da poltica trabalhista agrcola no Brasilseja mais adverso do que nos demais pases, j que, aqui, no s a CLT muito mais

    11. Conforme disse um trabalhador reporter responsvel pela matria publicada no Globo Rural (2000, p. 68): Com ocondomnio, sabemos que quem fizer o servio direito vai ser chamado de novo a trabalhar. A menor rotatividade damo-de-obra estimula os empregadores a investir na formao da mo-de-obra, conforme apontaram Camargo (2004) eZylberstajn (2000 e 2003).

    12. Marcelo Nonnenberg, do IPEA, relatou ao autor a entrevista que fez, por volta de 1978, quando trabalhava naAssessoria do Ministro do Planejamento, a um usineiro de Pernambuco, que tinha vendido, a prazo, terras da sua usinapara seus trabalhadores, na expectativa de que, assim, ficaria viabilizada uma oferta estvel de mo-de-obra para ocorte da cana. O usineiro queria, ento, que o governo estudasse a experincia dele para formular um programa maisamplo, com o mesmo objetivo. Evidentemente, nada foi feito na poca. Como se sabe, a mecanizao da cana invivelna Zona da Mata de Pernambuco, e possvel que, por isso, a regio tenha entrado na crise profunda em que se debatehoje.

  • 14 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    rgida, mas uma mesma poltica trabalhista adotada nos setores agrcola e no-agrcola. A experincia desses demais pases poder indicar as solues para esseproblema no Brasil.

    5 MUDANAS INSTITUCIONAIS INTRODUZIDAS A PARTIR DO BINIO 1963-1964: A POLTICA FUNDIRIAA poltica fundiria inaugurada com o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30/11/1964),e que se mantm at hoje, se baseia em dois princpios bsicos: a) necessidade deestrita regulamentao do mercado de aluguel de terra, j que, devido ao elevado graude concentrao da terra, necessrio proteger parceiros e arrendatrios daexplorao por parte dos proprietrios de terra; e b) resoluo do problemafundirio atravs da redistribuio da terra, via desapropriao da terra daspropriedades improdutivas e sua distribuio na forma de pequenos lotes, dentro dosassentamentos de reforma agrria.

    A adoo desses princpios visou, na realidade, ao desestmulo dos mercados dealuguel de terra. De fato, como apontado por Romeiro e Reydon (1994, p. 106):

    (...) o arrendamento e a parceria no so considerados formas de acesso terra(ver artigo 17 do Estatuto), sendo a preocupao do legislador apenas regulamentarum tipo de relao de trabalho e produo que se apresentava costumeiramentedistorcida.

    Toda a legislao foi elaborada em um contexto de que tanto o parceiro no-proprietrio como os arrendatrios seriam pequenos produtores, quando no,trabalhadores rurais estigmatizados pelo desemprego sazonal. H, assim, umapreocupao permanente em proteg-los contra possveis exploraes do proprietrio,tambm quase sempre emblematizado pelo latifundirio absentesta.

    Essa estrita regulamentao envolvendo a parceria e o arrendamentoprovavelmente decorria do diagnstico, prevalecente na poca, de que conflitos comoos fomentados pelas ligas camponesas antes de 1964 se deviam, em ltima anlise, concentrao da propriedade da terra, que levava formao de monopsnios ouoligopsnios no mercado de aluguel de terras. Assim, o problema agrrio, que foium dos fatores principais na crise que deflagrou o golpe militar em 1964, s seriaresolvido atravs da reforma agrria redistributivista, nico caminho possvel para ofomento da pequena propriedade agrcola (o homestead).

    Essa viso aparece, com nitidez, no documento que serviu de base ao Estatuto daTerra, e que foi preparado antes ainda de os militares tomarem o poder.13 Assim, napgina 67 desse documento, afirma-se que:

    No pela expanso do salariado ou do arrendamento que se difundem namassa trabalhadora as aptides necessrias a um processo contnuo, estvel edemocrtico de desenvolvimento. pela propriedade da terra que se formam

    13.Trata-se do relatrio produzido no mbito do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ips) (1964), com tiragemlimitada a 3 mil exemplares, todos assinados, e que acabou sendo publicado pela Editora Expresso e Cultura. frentedesse relatrio esteve Paulo de Assis Ribeiro, primeiro presidente do Instituto Brasileiro de Reforma Agrria (IBRA). OIps, como se sabe, foi o think tank dos militares que tomaram o poder em 1964.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 15

    qualidades bsicas de previso e capacidade administrativa, bem como se disseminauma forte motivao de melhoria educacional e de progresso cultural.

    O diagnstico acerca do problema agrrio brasileiro envolvia, tambm, a noode que o direito de propriedade da terra deveria ser condicionado ao cumprimento desua funo social, representada pela sua utilizao adequada, com conseqentegerao de empregos e produo de alimentos. Tendo em vista garantir ocumprimento, pelo proprietrio, dessa funo social da terra, criou-se a tributaoprogressiva Imposto Territorial Rural (ITR) e viabilizou-se financeiramente adesapropriao das terras consideradas improdutivas, o que, conforme Silva (1971, p.143-146) mostrou, s se tornou vivel quando, atravs da Emenda Constitucional10, de 1964, se admitiu o pagamento da indenizao em ttulos da dvida pblica (atento, era exigido o pagamento prvio em dinheiro), e mais ainda, em 1967, quando,atravs do Ato Institucional 9, se retirou da Constituio a palavra prvia antes deindenizao.

    Graas descrio detalhada em Romeiro e Reydon (1994, Cap. 3), da evoluono tempo e do contedo dessa legislao fundiria, possvel limitar, aqui, nossadiscusso, s questes mais bsicas. O ponto principal que queremos ressaltar o fatode que essa legislao de maneira consistente com as premissas j apontadas resulta, basicamente, de uma restrio liberdade contratual nos mercados de aluguelde terra, impondo, de forma ultradetalhada, as formas especficas que os contratos deparceria e arrendamento devem assumir. Em especial, isso inclui a determinao dosvalores de arrendamento e parceria e a maneira como se dariam as indenizaes aosparceiros e arrendatrios pelas benfeitorias feitas no imvel sempre procurando,naturalmente, beneficiar os parceiros e arrendatrios. Alm disso, a lei restringia osdireitos dos proprietrios e, naturalmente, garantia direitos aos parceiros earrendatrios , no caso de venda da terra.

    Um dos pontos mais interessantes dessa legislao e que revela, mais do quequalquer outra coisa, a restrio livre contratao por parte dos agentes econmicos, a proibio, imposta aos parceiros e arrendatrios, de renncia aos seusdireitos ou vantagens previstos na legislao. (Nisso, alis, essa legislao igual CLT.)

    H ainda alguns dispositivos certamente preocupantes do ponto de vista dosproprietrios de terra, como o que admite que os contratos, quaisquer que sejamseus valores e suas formas, possam ser provados por testemunhas.

    No se pode, tampouco, exagerar o efeito adverso sobre o mercado de aluguel deterra do famoso dispositivo do art. 95, n. XIII, do Estatuto da Terra, dandopreferncia, para o acesso terra, a todo aquele que ocupar, sob qualquer forma dearrendamento, por mais de cinco anos, imvel desapropriado em rea prioritria deReforma Agrria. Esse dispositivo contribuiu para minar as bases de confiana quedeveriam marcar as relaes nos mercados de aluguel de terra e contribuiu para apercepo generalizada de que a cesso de terra em arrendamento ou parceria, noBrasil, embute um risco de perda da terra, via desapropriao para fins de reformaagrria.

  • 16 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    Na realidade, outros dispositivos legais vigentes atualmente tambm contribuempara essa percepo de que a cesso de terra em arrendamento ou parceria no Brasilembute um risco ao direito de propriedade da terra. Com efeito, conforme mostraAlvarenga (1997, p. 107), o artigo 9 da Constituio de 1988 inclui entre ascondies para que a terra cumpra sua funo social, a explorao que favorea obem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores, o que acrescenta, em particular,que:

    A observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho implica tantoo respeito s leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como as disposiesque disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.14

    Como bem sintetizou Brando (2002, p. 279), a conseqncia de toda essaregulamentao dos mercados de aluguel de terra foi a prpria supresso dessesmercados, induzida principalmente por leis que impem restries a contratos deparceria, controlam os valores dos aluguis e do garantias excessivas de posse aosarrendatrios. Alm disso, direitos de propriedade inseguros para os proprietrios,freqentemente no contexto de reforma agrria, contribuem para reduzir a oferta deterras nesse mercado.

    No mesmo diapaso, De Janvry e Sadoulet (2002), ao criticarem legislaessimilares no conjunto dos pases da Amrica Latina, propem, conforme bemsintetizado por Olinto (2002, p. 297).

    (...) duas explicaes para a baixa atividade dos mercados de arrendamento naAmrica Latina: (i) Leis que, apesar de serem bem intencionadas, do excesso dedireitos aos arrendatrios e fragilizam os direitos de propriedade, e portanto resultamem uma oferta reduzida de terras no mercado de aluguel, prejudicando ambos,trabalhadores rurais sem terra e proprietrios; (ii) Insegurana de direitos depropriedade causada por leis de reforma agrria que qualificam terras arrendadascomo sendo improdutivas, ou no exercendo sua funo social.

    De Janvry e Sadoulet (2002, p. 263), alis, mostram que a incidncia dearrendamento e parceria no baixa apenas no Brasil, mas se estende a toda aAmrica Latina, e isso contrasta fortemente com o que ocorre no resto do mundo.Com efeito, esses autores notam que a percentagem de rea arrendada em 1997 foi de71% na Blgica, 48% na Holanda, 47% na Frana e na Inglaterra, 40% na Esccia,33% em Luxemburgo, 34% na Itlia e 22% na Alemanha. No caso dos EstadosUnidos, esses autores assinalam (op. cit., p. 264), que tenancy in general andsharecropping in some situations are indeed very important (...). A mesma evidncia mostrada para os demais continentes, a sia inclusive.

    Assim, tudo mostra que as mesmas concepes e as mesmas polticas anti-arrendamento e antiparceria e a favor da reforma agrria redistributivista grassaramem toda a Amrica Latina, e na mesma poca, coincidentemente, quando a Alianapara o Progresso, com sua forte motivao anticomunista, estava em seu auge. O

    14. Note-se que o artigo 9 da Constituio de 1988 que d margem desapropriao da terra no caso de trabalhoescravo, embora essa expresso no seja mencionada. Como se no bastasse, vem-se tentando, recentemente,transformar a desapropriao, nesses casos, em expropriao. Sobre isso, ver Barretto (2004, p. 6-7).

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 17

    problema que o mundo mudou e as polticas daquela poca continuam vigentes noBrasil e na Amrica Latina.

    interessante notar, por outro lado, que as evidncias revelam que esses efeitosdeletrios da atual poltica fundiria so muito regressivos, pois s atingem os maispobres, uma vez que, aparentemente, os contratos de arrendamento envolvendoagricultores mdios e grandes no vm sendo desestimulados, como revelam os casosde arroz no Rio Grande do Sul e de soja no Centro-Oeste.

    A explicao para esse fato pode estar na diferena de atitude dos arrendatrios eparceiros, conforme seu tamanho, e dos demais agentes sociais relevantes, como oJudicirio. possvel que os pequenos agricultores se sintam mais incentivados arecorrerem a essa legislao, ainda mais porque certamente contam, para isso, com opermanente estmulo de sindicatos, escritrios de advocacia etc. Devem contar,tambm, com a simpatia do prprio Judicirio. O mesmo no ocorreria, contudo,com o mercado de aluguel de terras envolvendo agricultores mdios e grandes, j queesses agricultores no devem considerar de seu interesse apelar para o Judicirio,porque isso fecharia esses mercados para eles no futuro e provavelmente no lhesrenderia grande coisa, pois o Judicirio no necessariamente tomaria decises em seufavor, j que no se veria fazendo, nesse caso, justia social.

    A propsito, vale a pena mencionar os resultados de pesquisa baseada ementrevistas realizadas com magistrados, relatada por Pinheiro (2003). SegundoPinheiro (2003, p. 25), entre outras coisas, perguntou-se aos juzes se, levados aoptar entre duas posies extremas, respeitar sempre os contratos,independentemente de suas repercusses sociais (A), ou tomar decises que violem oscontratos na busca de justia social (B), qual dessas opes eles escolheriam, oresultado foi que 73% dos juzes escolheram a opo B.

    Ora, esse tipo de postura, combinada com uma situao em que a prprialegislao praticamente probe a livre contratao, tomando claramente o lado domais fraco, atravs de uma especificao detalhada dos contratos, no difcilprever o comportamento do Judicirio em qualquer disputa envolvendo parceria earrendamento em que um dos lados um pequeno produtor.15

    A esse respeito, vale a pena referir a proposta de Consrcios e Condomniospara Arrendar Terra Viva Terra, de Rocha et alii (2002), em que um grupo depequenos agricultores arrendaria a terra de um dado proprietrio, de forma coletiva,aproveitando, assim, economias de escala. O problema com essa proposta que, nocaso, seria no s um pequeno agricultor contra o proprietrio da terra, mas vrios,sendo certo que lado um juiz favoreceria, em qualquer disputa judicial.

    Essa inviabilizao, pelo Estatuto da Terra e pela ao do Judicirio, da parceriae do pequeno arrendamento de terra no Brasil tem tido uma conseqncia muitodanosa do ponto de vista distributivo na agricultura. Em primeiro lugar, porque,devido ao conhecido problema de custo de superviso do trabalho agrcola (de novo,uma peculiaridade da agricultura vis--vis a indstria), a parceria poderia se tornar,em vrias situaes, mais atraente do que o assalariamento, tanto do ponto de vista do

    15. Para uma discusso mais ampla dessa questo da relao entre o Judicirio e a economia no Brasil, ver Pinheiro(2000).

  • 18 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    empregador quanto do empregado.16 Este ltimo, em particular, ao se empregar comoparceiro, fica mais responsvel pela tomada de decises, com o que poderia ascenderna escala social e econmica, tornando-se, eventualmente, um pequeno proprietrio.J no caso do pequeno arrendatrio, o desestmulo sua atividade tambm muitodanoso, j que, como bem apontaram De Janvry e Sadoulet (2002), o arrendamentode terra pelo agricultor pobre costuma servir de escada para a sua ascensoeconmica e social na agricultura. O desestmulo parceria e ao pequenoarrendamento de terra acaba limitando, assim, no s o emprego da mo-de-obraagrcola, mas as prprias possibilidades de expanso da agricultura familiar no Brasil.

    interessante notar que, ao mesmo tempo em que a poltica fundiria brasileiravem restringindo, via inviabilizao do mercado de aluguel de terra, a formao dapequena propriedade agrcola, ela no tem atingido seu suposto objetivo alternativo,que o de, atravs da desapropriao de terra e sua posterior distribuio, fomentar apequena propriedade independente.

    Na realidade, nem mesmo dentro dos limites da poltica de assentamentos, vemessa poltica fundiria contribuindo para a formao do homestead no Brasil. De fato,os beneficirios da reforma agrria no Brasil no so proprietrios das terras queocupam, j que, conforme reza o artigo 189 da Constituio Federal de 1988:

    Os beneficirios da distribuio de imveis rurais pela reforma agrria receberottulos de domnio ou concesso de uso, inegociveis pelo prazo de dez anos.

    Isso realado por Graziano (2004, p. 126), que destaca, tambm, o fato de que,mesmo aps passados os dez anos requeridos, nem o Instituto Nacional deColonizao e Reforma Agrria (Incra), nem os prprios assentados, se interessampela emancipao dos assentamentos e a titulao definitiva das terras, pois issoimplicaria o pagamento pela terra recebida e tambm pelos crditos obtidos, como ode instalao. Alm disso, o assentado no pode mais ter acesso ao sistema decrdito favorecido da reforma agrria, como no caso do antigo Programa de CrditoEspecial para Reforma Agrria (Procera) e do atual Programa Nacional deFortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

    Barretto (2003, p. 37) tambm notou o fato de os assentados receberem, quandomuito, uma precria concesso de uso. Entretanto, em suas entrevistas, os assentadossempre reclamavam desse fato, pois no se sentiam realmente estimulados a dedicaresforos sem a garantia de se beneficiarem no futuro, especialmente atravs detransmisso da propriedade aos seus filhos.

    Essa ausncia, no programa de reforma agrria brasileiro, de um sistemaadequado de incentivos foi tambm objeto de anlise recente de Abramovay (2004).Rezende (2001) tambm notou isso, ao analisar o antigo Procera, em que todos ossinais transmitidos aos assentados eram no sentido da inadimplncia, com o que apoltica deixava de atender seus objetivos.

    16. Note-se que a inviabilizao da parceria (inclusive pelo risco de se caracterizar vnculo empregatcio) vrias vezeslamentada no Seminrio sobre a Agricultura de Montanha, tratando da Zona da Mata de Minas Gerais, e j citadoneste trabalho.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 19

    interessante notar que o relatrio do Ips (1964, p. 68) previa, para o Brasil,uma evoluo contrastante vis--vis a soluo sovitica de reforma agrria, que deuao agricultor apenas o usufruto da terra, que pertence diretamente ao Estado. Entrens, segundo esse relatrio, essa soluo seria desastrosa, mas foi a que teve lugar.

    Assim, fugiu-se do mercado livre como linha auxiliar para o desenvolvimento dapequena propriedade no Brasil, mas tudo revela que o caminho alternativo trilhado,capitaneado pelo Estado, foi um verdadeiro fiasco.

    6 MERCADOS FINANCEIRO E DE ALUGUEL DE TERRA NO BRASIL E POLTICA FUNDIRIADevido ao elevado risco associado s aplicaes financeiras no Brasil, sempre foimuito forte a demanda por terra como investimento, uma vez que os retornosassociados ao investimento em terra tm mostrado uma forte correlao inversa comos retornos associados ao investimento no mercado financeiro.17 Nessas condies, oinvestimento em terra passou a ser visto como atraente no tanto por seu retorno emsi, mas por minimizar o risco da carteira de investimentos em seu conjunto.

    Note-se que esse investimento em terra como ativo financeiro costuma serexplicado de maneira diferente na literatura. Partindo-se do pressuposto de que aterra tem uma capacidade inerente de se valorizar continuamente, atribui-se a isso oinvestimento em terra (a especulao com terra). Entretanto, conforme Rezende(2003a, p. 236-240) mostrou, tomando com base as trs ltimas dcadas no Brasil,no verdade que o valor da terra sempre se tem valorizado continuamente; narealidade, o preo da terra tem apresentado alta volatilidade, mas sempre emcontraponto aos demais retornos do mercado financeiro.

    Segundo ainda essa literatura, a especulao com terra implicaria a suaociosidade ou subutilizao, um problema supostamente muito presente no Brasil eque conflitaria com a funo social da terra. Na realidade, esse foi o diagnstico doproblema agrrio brasileiro adotado pelo Estatuto da Terra, em 1964, o que,inclusive, levou crena de que, via tributao progressiva (ITR), haveria desestmuloa essa reteno especulativa, o que levaria queda no preo da terra, facilitando-se,assim, a realizao da reforma agrria e o acesso terra por parte dos pequenosagricultores.

    bastante provvel que, naquela poca, fosse de fato muito importante ademanda de terra como ativo real, devido virtual inexistncia de um mercadofinanceiro. Alis, no foi toa que uma das primeiras medidas econmicas tomadaspelo governo militar foi a concesso de uma srie de estmulos formao domercado financeiro, como a instituio da correo monetria.

    Entretanto, como apontou Sayad (1982), a reteno de terra como ativofinanceiro no necessariamente deve implicar sua ociosidade. Com efeito, segundoSayad, no faz sentido o especulador manter a terra ociosa, deixando de apropriar um

    17. Anlise economtrica recente [Bueno (2005)] confirmou a existncia dessa relao inversa entre o preo da terra e omercado de aes.

  • 20 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    retorno extra, dado pela renda da terra. Mesmo o investidor inapto para o exerccioda atividade agrcola poderia auferir esse retorno extra, via aluguel da terra.

    Se supusermos que, entre esses especuladores, tendam a predominar agenteseconmicos sem capacitao para o exerccio da atividade agrcola, ento poderamosconcluir, se adotarmos a perspectiva de anlise de Sayad, que a especulao com terrasdeveria levar a um aumento da oferta de terra nos mercados de aluguel no Brasil,beneficiando, em particular, os pequenos agricultores. Nesse sentido, a especulaono faria a terra deixar de cumprir sua funo social, bem ao contrrio.

    Na realidade, contudo, a concluso de Sayad no leva em conta a polticafundiria existente no Brasil, j que, como foi visto, ela desestimula o aluguel deterras agrcolas. Mesmo na hiptese de se decidir pela utilizao da sua terra, viacesso em arrendamento, o especulador continua a correr o risco de ser atingido pelareforma agrria, devido possibilidade de sua terra ser considerada ociosa em casos dedescontinuidades entre contratos sucessivos.

    7 A MECANIZAO AGRCOLA COMO REAO DO SETOR AGRCOLA AO CONTEXTO INSTITUCIONAL ADVERSOUma forma de sintetizar a discusso apresentada at aqui, empregando a linguagemda teoria econmica, dizer que, como decorrncia dessas polticas trabalhista efundiria, ocorreu uma distoro no mercado de trabalho agrcola, com a mo-de-obra tendo-se tornado, repentinamente, muito cara do ponto de vista do empregador,embora, na viso do trabalhador, o salrio tivesse continuado muito baixo, ou possaat ter-se reduzido. Como se viu, essa elevao do preo da fora de trabalho, doponto de vista privado, deveu-se no s ao da poltica trabalhista, mas tambm dapoltica fundiria, pois, como se notou, a supresso do mercado de aluguel de terrafoi uma maneira adicional de se elevar o preo da mo-de-obra, sempre considerandoo ponto de vista do empregador/proprietrio de terra. Passou a ocorrer, assim, umadivergncia entre os custos sociais (o salrio recebido pelo empregado) e os custosprivados da fora de trabalho (o salrio pago pelos empregadores).

    Cabe acrescentar, agora, que, quase ao mesmo tempo em que adotava essaspolticas, o governo instituiu a poltica de crdito agrcola, cuja conseqnciaprincipal foi baratear o custo do capital para o setor agrcola. Assim, a combinaodesses dois conjuntos de polticas pblicas acabaram produzindo uma divergnciaentre os custos sociais da mo-de-obra no-qualificada e do capital e os respectivoscustos privados. Em outras palavras, embora o Brasil fosse uma economia comabundncia de mo-de-obra no-qualificada e escassez de capital, o que significa que,em termos sociais, a mo-de-obra no qualificada barata e o capital caro, emtermos privados, devido atuao das polticas trabalhista e fundiria, de um lado, eda poltica de crdito agrcola, de outro, os custos privados desses fatores foramdistorcidos, tornando a mo-de-obra cara e o capital barato na agricultura, issotudo do ponto de vista do empregador.

    Ora, como so os custos privados que governam a tomada de deciso privada, aconseqncia de tal distoro nos preos dos fatores foi uma rpida mudana na

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 21

    tecnologia agrcola no sentido da mecanizao, tendo em vista poupar a mo-de-obrae usar intensivamente o capital.

    Alm disso, pode-se supor que essa mudana de preos relativos dos fatorestenha tambm induzido gerao de novas tecnologias com as mesmascaractersticas, ou seja, poupadoras de mo-de-obra no-qualificada e intensivas emcapital. Esse teria sido o caso, principalmente, das colheitadeiras de cana-de-acar ecaf, por exemplo, que foram fruto da pesquisa e dos investimentos feitos no Brasil, jque essa tecnologia no existia no exterior.

    Essa ltima hiptese, de as mudanas dos preos relativos dos fatores induzirem gerao de novas tecnologias, faz parte de uma literatura que teve seu incio com omodelo de Hayami e Ruttan, que propuseram um modelo de inovaes induzidasna agricultura, partindo da teoria das inovaes induzidas de Hicks.18 Note-se que,atravs de seu modelo, Hayami e Ruttan visavam no s mostrar de que maneira sed essa conexo entre mudanas de preos relativos dos fatores e inovao tecnolgicana agricultura, mas apontar a racionalidade desse processo, na medida em que ospreos relativos dos fatores refletiriam as dotaes relativas dos fatores. bemconhecida a comparao que esses autores fizeram entre o desenvolvimento agrcolaamericano e o japons, no caso americano viabilizado por tecnologias poupadoras demo-de-obra e intensivas em terra, e, no caso japons, viabilizado por tecnologiasintensivas em mo-de-obra e poupadoras de terra.

    No caso brasileiro, entretanto, embora se admita, neste trabalho, que tenhafuncionado o mecanismo de inovaes induzidas proposto por Hayami e Ruttan,no possvel atribuir a esse mecanismo a mesma racionalidade econmicaidentificada pelos autores nos casos americano e japons, uma vez que, no Brasil, ospreos relativos dos fatores, nesse perodo que se seguiu dcada de 1960, passaram ano refletir a real dotao de fatores da economia, tornando-se distorcidos. interessante notar que Rezende (1980) fez a mesma crtica aplicao do modelo deHayami e Ruttan para a anlise histrica brasileira, assinalando que a escravido e,posteriormente, a concentrao da propriedade da terra fizeram com que os preosrelativos dos fatores fossem distorcidos no pas, ou seja, no refletiam a dotaorelativa dos fatores, dada pela relao homem/terra, similar dos Estados Unidos.

    Essas consideraes tericas permitem explicar porque passou a ser adotada, naagricultura brasileira, uma tecnologia baseada na mecanizao, que poupadora demo-de-obra no-qualificada e intensiva em capital e em mo-de-obra qualificada.Com efeito, a mecanizao elimina ou reduz muito a demanda de mo-de-obra no-qualificada, em favor da mo-de-obra qualificada, a exemplo do tratorista, alm deusar mais intensivamente o fator relativamente mais barato o capital. A adoodessa tecnologia foi facilitada, inicialmente, pela sua disponibilidade no planointernacional (colheitadeiras de gros, por exemplo) e, posteriormente, pela criao demquinas especificamente desenhadas para a agricultura brasileira, como ascolheitadeiras de cana-de-acar, caf e laranja, entre outras. Tratou-se, ento, tantoda adoo de tecnologias j existentes, com base na microeconomia convencional,como da induo de novas tcnicas, Hayami e Ruttan.

    18. Para a apresentao desse modelo, ver Hayami e Ruttan (1971).

  • 22 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    interessante notar que Sanders e Ruttan (1978) atriburam o elevado ritmo demecanizao agrcola no Brasil ao subsdio taxa de juros do crdito agrcola. Essesautores tambm chegaram a propor [Sanders e Ruttan (1978, p. 281)] que: there isalso evidence that labor services were biased upward by minimum-wage policies,mas aqui eles subestimam grosseiramente o papel das polticas trabalhista agrcola efundiria como indutoras da mecanizao agrcola.

    Note-se que a atratividade da mecanizao, em certas situaes, tornou-semesmo imperativa, em funo das greves dos trabalhadores, que, como j se viu,passaram a eclodir especialmente na poca da colheita.

    O processo de ajustamento do setor agrcola a esse quadro institucional adversose expressou tambm atravs de mudanas no crop mix que ocorreram nesse perodo,o caso tpico tendo sido o da soja substituindo o caf no Paran. Isso certamente teveque ver com a facilidade de mecanizao da soja, graas disponibilidade datecnologia externa, ao financiamento subsidiado e aos incentivos do governo para aindstria de mquinas agrcolas se instalar no Brasil.

    Observe-se, tambm, que a aptido dos solos de cerrado mecanizao agrcola,graas ao seu relevo caracterstico, permitiu s regies do cerrado escapar do problemade mercado de trabalho causado pelas polticas trabalhista e fundiria, podendo-se atmesmo admitir que a prpria pesquisa agronmica tenha sido estimulada pelascondies naturais to favorveis a uma agricultura mecanizada. A esse respeito, adisponibilidade de tecnologia mecnica no exterior e as polticas de incentivo mecanizao por parte do governo foram fundamentais.19

    Note-se, ainda, que, segundo Rezende (2003b, p. 182), o fato de a ocupaohistrica do cerrado ter-se dado base da grande propriedade territorial nicacompatvel com a pecuria extensiva associada agricultura itinerante, de baixaprodutividade facilitou a rpida adoo, pela agricultura regional, do novo padrotecnolgico, caracterizado pela produo em grande escala. Alis, esse papelfacilitador da mecanizao, exercido pela estrutura agrria concentrada,preexistente, foi geral, no se limitou ao cerrado, mas estendeu-se ao conjunto daagricultura brasileira.

    Foi no prprio Governo Castelo Branco que, paralelamente edio do Estatutoda Terra e preservao da poltica trabalhista originria da era Vargas, com umaspoucas alteraes, que se instituiu a poltica de crdito agrcola, com a criao doSistema Nacional de Crdito Rural. Como bem sabido, essa poltica contribuiu parao aumento da concentrao na agricultura e elevou o preo da terra, indo contra,assim, os objetivos da poltica fundiria, instituda praticamente na mesma poca.

    Na realidade, essa poltica de crdito agrcola, ao viabilizar a mecanizao,impediu que as polticas trabalhista e fundiria levassem desarticulao do sistemaprodutivo agrcola, ameaando at mesmo as metas da poltica econmica geral. Apoltica de crdito agrcola viabilizou tambm, atravs do crdito de custeio, a

    19. Sanders e Ruttan (1978) apresentam uma anlise bem interessante do processo de mecanizao do cerrado,embora, novamente, subestimem a importncia de se ter conseguido, no cerrado, fugir ao problema de mo-de-obraagrcola, criado pela poltica trabalhista.

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 23

    monetizao do mercado de trabalho, uma conseqncia necessria das mudanasque ocorreram nas relaes sociais de produo que vigiam at a dcada de 1960.

    Note-se que um eventual retorno a uma situao em que se verifique um vismenor ao emprego de mo-de-obra na agricultura brasileira vai requerer a adoo detecnologias mais absorvedoras de mo-de-obra do que as atuais. Isso pode tomartempo, at que, sob o estmulo de uma mudana nos preos relativos dos fatores(agora fazendo cair o custo de mo-de-obra na agricultura e aumentando o custo docapital), novas tecnologias sejam adotadas, seja com base na tecnologia existente, sejapela criao de novas tecnologias, Hayami e Ruttan. Afinal, tomou tempo tambmpara que muitas das tecnologias atuais fossem criadas, em resposta s mudanas nospreos relativos dos fatores que ocorreram a partir da dcada de 1960.

    Cabe notar, tambm, que no foi a adoo de tecnologia intensiva em capital,em si mesma, que levou ao predomnio de produo em grande escala no Brasil. Issoocorreu devido ao fato de a mecanizao no se estender aos pequenos agricultores,pelos seguintes motivos: a) falta de acesso ao crdito e, portanto, impossibilidade dedemandar mquinas adaptadas a esses produtores; e b) conseqente inviabilizao daoferta de mquinas adaptadas agricultura em pequena escala (como os microtratoresjaponeses). Nesse contexto, a indstria passou a se limitar a fabricar mquinasapropriadas produo em grande escala, de onde surgiu o fenmeno deindivisibilidade das mquinas, ou seja, ausncia de mquinas adequadas ao pequenoprodutor. Isso, junto com as dificuldades de operao do mercado de aluguel demquinas, levou ao predomnio da produo em grande escala na agriculturabrasileira, sem que seja prova de existncia de economias de escala na agricultura,como se costuma pensar.20

    Ora, na medida em que a pequena agricultura no podia adotar a mecanizao,nem valer-se da contratao de mo-de-obra assalariada nos picos da demanda demo-de-obra, o resultado que sua escala de produo acabou ficando limitada, nosperodos de picos, ao tamanho da famlia, com a gerao de subemprego nosperodos de vales da atividade agrcola.

    8 SUMRIO E CONCLUSESEste trabalho procurou mostrar de que maneira a poltica trabalhista agrcola, afundiria e a de crdito agrcola tm sido responsveis pelo atual predomnio, no setoragrcola brasileiro, de um padro tecnolgico concentrador, caracterizado pelaproduo em grande escala e pela mecanizao.

    Ao fazer isso, este trabalho pretendeu oferecer uma crtica s duas explicaescorrentes desse fenmeno: a primeira, que atribui todas as nossas mazelas aolatifndio, herdado de nosso passado, e cuja desarticulao, atravs da reformaagrria, seria indispensvel para a soluo do problema; e a segunda, que postula umdeterminismo tecnolgico, excluindo, assim, qualquer possibilidade de mudana dasituao atual, do que resulta que a agricultura no teria como contribuir para amelhoria de nosso problema atual de pobreza e desigualdade.

    20. Rezende (2003b, p. 180) apresentou os argumentos mostrados anteriormente para explicar o predomnio daproduo em grande escala no cerrado.

  • 24 texto para discusso | 1108 | ago 2005

    Discordando frontalmente dessas duas linhas de anlise, este trabalho propsque no esto no passado, mas no presente, as causas de nossos atuais problemas, eque so exatamente as polticas pblicas supostamente desenhadas para proteger opobre e fazer justia social que criaram esse padro concentrador de crescimentoagrcola. Por sua vez, a tese do determinismo tecnolgico desconsidera a mudanadrstica de preos relativos dos fatores, que ocorreu a partir da dcada de 1960. Foiessa mudana nos preos relativos dos fatores que estimulou a adoo de tcnicasintensivas em capital e poupadoras de mo-de-obra, o que se deu tanto atravs daseleo de tcnicas j existentes, como tambm atravs de induo, Hayami eRuttan, criao de novas tecnologias com essas caractersticas.

    Quanto ao latifndio, procurou-se mostrar que, de fato, ocorreu o predomnioda grande propriedade da terra, aps a abolio da escravido, e isso cumpria o papel,indispensvel ento, do ponto de vista das classes dominantes, de se limitarem asalternativas de emprego e renda dos trabalhadores agrcolas. Entretanto, as mudanasque ocorreram na dcada de 1960 extenso da CLT ao campo e instituio denova poltica fundiria, atravs do Estatuto da Terra atingiram em cheio a raisondtre e a viabilidade econmica desse sistema latifundirio. Esse latifndio foiatingido em cheio, tambm, pelo rpido processo de industrializao e urbanizaoque se seguiu dcada de 1960, j que a mo-de-obra, antes cativa, passou, ento, ater a alternativa de migrar para o meio urbano. Contudo, se hoje ainda se constata apresena da grande propriedade na nossa agricultura, isso no uma herana donosso passado, mas produto de nosso presente. A grande propriedade, hoje, no suma grande extenso territorial, mas tambm uma produo agrcola centralizada, emgrande escala, base do trabalho assalariado e com alto grau de mecanizao, o que continuamente fomentado pelas polticas trabalhista e fundiria institudas na dcadade 1960. S marginalmente, como foi explicado ou seja, s em funo do papelque a grande propriedade cumpre na proviso de colateral no acesso ao crdito e naviabilizao da mecanizao, devido presena de indivisibilidades das mquinas ,ela tem que ver com o velho latifndio. Como se mostrou, foram as polticastrabalhista e fundiria que, pensando estar agindo ainda sobre o velho sistemalatifundirio, acabaram fomentando um processo de concentrao ainda maior doque o que ocorria no nosso passado.21

    Poder-se-ia argumentar que a extenso da CLT ao campo e a instituio dapoltica fundiria, atravs do Estatuto da Terra, teriam sido necessrias para acabarcom as relaes atrasadas preexistentes, onde o Estado no penetrava, e que tinhaminclusive um desdobramento poltico que restringia o alcance da democracia entrens.

    luz das conseqncias adversas dessas medidas, entretanto, melhor teria sidoadotar outro tipo, visando criar alternativas para essa mo-de-obra e, assim,estrangular o latifndio. Uma estratgia com essas caractersticas poderia ter sido aadoo de polticas de crdito fundirio que facilitassem a aquisio de terra pelos

    21. Nesse ponto, estamos totalmente de acordo com a crtica que Xico Graziano fez, no congresso da SociedadeBrasileira de Economia e Sociologia Rural (Sober) de Juiz de Fora, em julho de 2003, ao hbito arraigado, ainda muitofreqente no Brasil, de se analisar a agricultura brasileira de hoje como se nela ainda prevalecesse esse velho latifndio.Sobre isso, ver Graziano (2004, p. 21-24).

  • 6 texto para discusso | 1108 | ago 2005 25

    trabalhadores agrcolas, lado a lado com polticas de assistncia tcnica, decomercializao e de pesquisa direcionadas para a pequena agricultura. Acoplado aisso, o governo deveria acabar de vez com a posse, um instituto que acaba redundandono fomento violncia no campo e formao da grande propriedade.

    Em suma, este trabalho props que o latifndio morreu com a extenso da CLTao campo e com o Estatuto da Terra, mas junto com ele morreram tambm aschances do homestead, to querido do Estatuto da Terra (e to defensvel, como seargumentou neste trabalho), e do emprego da mo-de-obra na agricultura, tudo emfavor de um novo latifndio, completamente diferente do anterior e que s aliberalizao dos mercados de mo-de-obra, de terra e de crdito agrcola poder combater, em favor, agora, exatamente do homestead e de nova injeo denimo no mercado de trabalho agrcola, tudo isso em proveito da reduo da pobrezae da desigualdade no Brasil.

    Essa atuao sobre o nosso presente, como se ainda estivssemos em nossopassado, marca, tambm, a justificativa bsica de nossa poltica fundiria, ou seja, aalegao de que a terra precisa cumprir sua funo social, representada pelo usoprodutivo da terra e a conseqente gerao de empregos.

    O problema com nossa poltica fundiria no est, evidentemente, no seuobjetivo de buscar que a terra cumpra sua funo social, mas no fato de que ela, aopretender atingir esse nobre objetivo, acaba desestimulando o prprio uso produtivoda terra, como faz ao desestimular os mercados de aluguel de terra, especialmenteenvolvendo pequenos agricultores.

    Na realidade, como na questo do latifndio, tudo se passa como se aindaestivssemos em nosso passado. Nesse passado anterior dcada de 1960 nohavia, virtualmente, um mercado financeiro no Brasil, o que explica que apropriedade da terra, alm de servir para obteno de renda corrente, tambm serviade peclio para a velhice. De qualquer maneira, como se viu neste trabalho, essaconexo entre propriedade da terra e mercado financeiro no deveria implicarociosidade da terra, a no ser por causa da prpria poltica fundiria. Assim, essapoltica fundiria que a um s tempo desestimula o uso da terra ao limitar a cessoda terra em arrendamento e parceria, especialmente quando pequenos agricultoresesto envolvidos e depois pretende punir por esse no-uso! O correto deveria ser:primeiro, estimular, ao mximo, o uso da terra, no importa de que forma, e sdepois punir pelo seu eventual no-uso.

    Em especial, este trabalho prope que no se justifica a crena de que aespeculao com terra implica necessariamente ociosidade da terra. Na realidade,essa especulao com terra, se no fosse