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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO A VEZ DO MESTRE POLÍTICA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: Contribuições da Psicogênese da língua escrita ROBERTA FERNANDES COUTINHO Orientador: Nilson Guedes de Freitas RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL JANEIRO DE 2003

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO A VEZ DO MESTRE

POLÍTICA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: Contribuições da Psicogênese da língua escrita

ROBERTA FERNANDES COUTINHO

Orientador: Nilson Guedes de Freitas

RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL JANEIRO DE 2003

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO A VEZ DO MESTRE

POLÍTICA SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: Contribuições da Psicogênese da língua escrita

ROBERTA FERNANDES COUTINHO

Trabalho Monográfico apresentado como requisito parcial do Grau de Especialista em Orientação Educacional na Universidade Cândido Mendes.

RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL JANEIRO DE 2003

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO A VEZ DO MESTRE

ROBERTA FERNANDES COUTINHO

POLÍTICA , SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: Contribuições da Psicogênese da língua escrita

TRABALHO MONOGRÁFICO APRESENTADO COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE ESPECIALISTA EM ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL.

Roberta Fernandes Coutinho

AUTOR

APROVADO POR: _______________________________________________ NILSON GUEDES DE FREITAS

RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL JANEIRO DE 2003

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Essa criança, se coloca problemas, constrói, sistemas interpretativos, pensa,

raciocina e inventa, buscando compreender esse objeto social particularmente

complexo que é a escrita tal como ela existem em sociedade…

( Emília Ferreiro )

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Dedico este trabalho monográfico, a minha querida mãe,

Marilene, por sua garra, força e coragem

que tanto admiro…

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AGRADECIMENTOS

À professora Carmem Lúcia Quintanna, ao professor Flávio Morgado, a Antônio

Fernando da Rocha Júnior, a Deborah Melissa Groetaers e ao meu querido Almir

Augusto Fiorio Júnior.

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RESUMO

Esta pesquisa tem o objetivo de questionar o fracasso na alfabetização dando ênfase nas condições sociais, políticas e metodológicas e na positiva contribuição da psicogênese da língua escrita. Uma problematização sobre as realidades sociais e metodológicas educacionais com o intuito de rever o papel do aluno no processo de alfabetização e a sociedade que o cerca. Através de experiências realizadas podemos perceber o grande potencial de cada criança – como relata a psicogênese – e questionar certas práticas educacionais que vêm contribuindo para a manutenção de uma sociedade desigual.

Palavras-chave: Autonomia. Alfabetização. Cidadania

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

2. EFICÁCIA EM QUESTÃO: UMA VISÃO POLÍTICA E EDUCACIONAL....... 13

3. OS MÉTODOS DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA.................................................... 16

3.1 A LÍNGUA ESCRITA EM FUNCIONAMENTO...................................................... 16

3.2. PERSPECTIVA HISTÓRICA.................................................................................... 18

3.3. AS CARTILHAS........................................................................................................ 19

4. CONSTRUTIVISMO e SOCIOCONSTRUTIVISMO ......................................... 26

5. A ALFABETIZAÇÃO................................................................................................. 31

6. TRADIÇÃO E RUPTURA: UMA NOVA PERCEPÇÃO PEDAGÓGICA........... 34

6.1. UM PULO NO PASSADO......................................................................................... 34

6.2. UMA REVOLUÇÃO RENITENTE.......................................................................... . 35

6.3. A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA E SUA SIGNIFICAÇÃO.................. . 37

6.3.1. Sons e grafias......................................................................................................... . 40

6.3.2. Construindo a língua escrita................................................................................ . 41

6.4. EMÍLIA FERREIRO E A REVOLUÇÃO................................................................ . 43

6.4.1. Coletando dados................................................................................................... 46

6.4.2. Critérios de legibilidade........................................................................................ 51

6.4.3 Diferenciação de elementos gráficos.................................................................... 54

6.4.4 Relação entre letras e números............................................................................. 54

6.4.5 O conhecimento das letras.................................................................................... 56

6.4.6 Letras e sinais de pontuação............................................................................... 57

6.4.7 Orientação espacial para a leitura....................................................................... 58

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6.5. SITUAÇÕES EXPERIMENTAIS.............................................................................59

6.5.1. Construções originais das crianças...................... ...............................................63

6.6 OS NÍVEIS DE CONSTRUÇÃO NATURAL DA CRIANÇA................................66

6.6.1 As Garatujas..........................................................................................................67

6.6.2 Nível 1 – Pré-silábico............................................................................................ 68

6.6.3 Nível 2 – Pré-silábico 2..........................................................................................69

6.6.4 Nível 3 – Silábico...................................................................................................70

6.6.5 Nível 4 – Silábico-Alfabético................................................................................ 73

6.6.6 Nível 5 – Alfabético...............................................................................................74

7. ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS......................................................75

7.1. PALAVRAS FINAIS.................................................................................................76

8. CONCLUSÃO............................................................................................................ 79

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................82

ANEXOS ........................................................................................................................ 83

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1.INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa veremos que a criança é um sujeito ativo que interage dinamicamente com o meio,

construindo passo a passo o conhecimento, a língua escrita.

Muitas metodologias, técnicas, práticas, teorias mal estudadas ou profissionais mal informados,

delimitam esse e natural processo de construção, gerando alunos manipulados, passivos e não sujeitos do

conhecimento, alienados e não críticos, mecanizados e não autônomos, inconscientes da realidade que os

cercam. Que futuros cidadãos serão estes?

Entender o que realmente ocorre com a criança nos seus primeiros contatos com o mundo, com a

escrita e a leitura, para agir de maneira mais eficaz, levando a uma nova visão sobre como se ensina e

como se aprende proporcionando um resultado mais qualitativo, para que os caminhos a romper com o

ciclo vicioso do analfabetismo sejam descobertos e praticados. Esse conhecimento, essa consciência, é

um passo importante e significativo para a educação e a sociedade.

As educadoras, Emília Ferreiro e Ana Teberosky, são importantes pesquisadoras, que abriram

portas para o conhecimento desse processo natural da construção da língua escrita realizado pelas

crianças. Também autoras do livro A Psicogênese da língua escrita, que nos revela claramente este

processo, enriquecendo e esclarecendo a questão, causando uma verdadeira revolução nos processos de

alfabetização até então inexplorados de maneira tão profunda, crítica e conflitante.

Com tudo, esta pesquisa vem debater e comprovar uma construção natural e contínua da criança,

com objetivos educacionais, sociais e políticos de esclarecer, criticar e analisar o passado e o presente

para termos consciência ao caminharmos para o futuro…

Para tanto, no capítulo dois analisaremos uma visão política e educacional do processo de

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alfabetização na sociedade, revelando a importância da autonomia no caminho para a democracia. No

capítulo três questionaremos os métodos e metodologias, a língua escrita em funcionamento e as cartilhas

dando ênfase na importância de termos conhecimento sobre tais pontos que podem contribuir tanto para

construção de um cidadão autônomo ou apenas mais um membro de uma sociedade desigual.

No capítulo quatro abordaremos as características das linhas pedagógicas construtivistas e

socioconstrutivistas assim como suas semelhanças, diferenças e contribuições no desenvolvimento das

práticas educacionais. Já no capítulo cinco a veremos os conceitos que giram em torno da alfabetização

reforçando a relevância desta na sociedade.

O capítulo seis começará a apresentar uma nova percepção pedagógica em relação a educação, a

aprendizagem e principalmente no desenvolvimento do processo de alfabetização, analisando pontos do

passado, as revoluções, rupturas e o surgimento e significação da Psicogênese da língua escrita que

estabeleceu novos parâmetros para as questões da intervenção da pedagogia na aprendizagem do sistema

alfabético a partir das investigações de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Em seqüência, o capítulo sete

irá girar em torno de algumas implicações pedagógicas citando alertas para os profissionais com o

objetivo de repensarem suas práticas reformulando os processos educacionais.

Finalizando, o capítulo oito irá concluir esta pesquisa reforçando a importância de uma

alfabetização consciente e a maneira como este processo deve ser desenvolvido para formarmos

indivíduos autônomos para uma sociedade mais igualitária.

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2. EFICÁCIA EM QUESTÃO: UMA VISÃO POLÍTICA E EDUCACIONAL

Uma das questões permanentes nas discussões dos projetos e programas educacionais, para a

erradicação do analfabetismo, diz respeito aos problemas característicos e decorrentes do processo de

alfabetização.

Com a explosão da comunicação escrita e o surgimento de uma sociedade grafocêntrica, a

utilização da escrita como habilidade de sobrevivência com base em estratégias alfabéticas, tornou-se

anacrônica. A escrita, gradativamente, se transformou em um obstáculo (ou meio de acesso) para o

homem Ter uma participação efetiva no mundo social: se o analfabeto é, na verdade, marginalizado pela

pobreza, o alfabetizado passa ao largo da diversidade de situação social (ou mesmo escolar) que exige a

utilização eficaz da escrita: o único dispositivo de acesso ao texto escrito que lhe foi ensinado é ineficaz e

maçante. A escrita, neste caso não revela seu verdadeiro objetivo, nem um recurso eficiente para a busca

de respostas às questões que o mundo propõe.

A alfabetização é a etapa mais importante do desfecho educacional, pois, como diz Garcia (1990,

p.33): “Discutir alfabetização é discutir o projeto político que se pretende para este país, não apenas pelas

conseqüências sociais do analfabetismo, mas também porque o modo como se direciona a prática

pedagógica traz uma determinada concepção de mundo e de homem imbricado”. O analfabetismo é

funcional à manutenção do status quo internacional e nacional da sociedade. Na escola há um choque de

interesses: manutenção × transformação da sociedade. A alfabetização tem papel de destaque nesta

situação, pois uma sociedade analfabeta é uma sociedade dominada.

Dando ênfase a esta questão perante os países subdesenvolvidos, vemos um grande fracasso

escolar e uma alta taxa de analfabetismo. Neste aspecto vale salientar que na maioria das escolas são

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utilizados métodos tradicionais e conservadores, onde não há espaço para inovações e principalmente não

há espaço para o aluno, que tem a função de um simples espectador passivo e futuramente um cidadão

manipulado.

A eficácia da educação e dos métodos vem sendo muito criticada ultimamente, perante sua função

política e social. Ora, a quem interessa, em um país subdesenvolvido e dominado por uma certa ideologia

burguesa, educar de maneira consciente e eficaz, onde o sujeito é um ser pensante e ativo, onde seu

conhecimento é respeitado, onde tem consciência do que o rodeia, onde estuda a realidade, para que

este sujeito torne-se um cidadão? A quem interessa essa eficácia da educação na contribuição da crítica e

na construção de uma sociedade igualitária? Aos dominantes? Com certeza não. Com a êxito da educação

os dominantes perderiam o poder e o controle e os dominados conquistariam o direito de saber, sua

cidadania, sua consciência e sua liberdade. Liberdade esta que é de grande importância salientar, pois,

hoje fala-se muito em liberdade, principalmente nas teorias com

base na psicologia, que embora emancipatórias, autonomistas, críticas e revolucionárias, estas teorias

adaptam-se facilmente a sistemas educacionais governados por regimes políticos diversos. A

subjetividade das teorias baseadas na psicologia, acabam gerando uma liberdade que é manipulada,

regulada... pois, o sujeito não existe: ele é aquilo que fazemos dele.Sendo assim, a questão educacional

vai muito além dos livros, métodos, professores e da escola, também é uma questão de história, de

sociedade e de política.

O objetivo da educação em busca da democracia é ter o aluno como sujeito do seu próprio

desenvolvimento, sendo um pesquisador em busca do conhecimento através da interação com os

indivíduos e o meio e uma educação qualitativa em busca da autonomia e como meio de mudança social,

rumo à nova sociedade. Isso exige na prática do dia-a-dia um grupo (sujeitos em interação) na dinâmica

da ação-reflexão, buscando a verdade, humana e transformadora, e tendendo à pluralidade.

A pesquisa é a capacidade de elaboração própria fundada nas relações autônomas e críticas com a

realidade e as pessoas, ou seja, com o meio que nos cerca, buscando a transformação, o conhecimento e a

realização... Sendo assim, a pesquisa é um processo que deve aparecer em todo processo educativo: onde

conhecimentos devem ser somados, a criatividade e a curiosidades sempre motivadas para que surjam

novos mestres e jamais novos discípulos.

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O caminho emancipatório não deve vir de fora, imposto ou doado, mas sim conquistado de dentro

para fora, sendo uma construção e uma conquista própria. Uma educação qualitativa busca esta conquista,

essa relação com o real, procurando a autonomia a capacidade de construir livrando-se da reprodução, da

conservação do segmento de regras impostas e pré formuladas, da subalternidade mantida pela

ignorância... Uma educação qualitativa é contrária à exclusão e à seleção, valoriza seus profissionais e

alunos em busca da democracia.

3. OS MÉTODOS E METODOLOGIAS

3.1. A LÍNGUA ESCRITA EM FUNCIONAMENTO

Podemos analisar a escrita, procurando entender o funcionamento do sistema alfabético e tendo em vista

descobrir o princípio fundamental que rege esse sistema: diferenças gráficas que indicam diferenças

sonoras.

Nesse sentido, a tentativa humana nos seus

primórdios foi reproduzir um sistema gráfico que

espelhasse a fala. Com base nesse aspecto específico dos

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sistemas alfabéticos, originaram-se todas as metodologias

de alfabetização em uso até os dias atuais pois, durante

muitos séculos, a escrita foi utilizada pela maioria da

população, usufruindo essa característica desse sistema.

O alfabetizado é aquele que foi ensinado e convencido pelo processe escolar de alfabetização que,

para ler, basta seguir com os olhos, linha por linha, o texto escrito, tentando transformar cada letra, sílaba

e palavra numa oralidade que, o mais das vezes, lhe soa estranho.

Tendo em vista o precário dispositivo que lhe foi ensinado, quando o alfabetizado passa em frente

a uma grande livraria ou entra numa biblioteca pública, ou mesmo repara numa banca de jornais das

grandes cidades, ele deve perguntar como? Por quê? A chegada do séc. XX inaugura uma fase de

explosão da informação redimensionando o papel da escrita nas sociedades modernas.

Contudo, imobilizada pela concepção de leitura propagada pelas metodologias tradicionais, a

escola não se deu conta:

- Da importância da leitura na vida cotidiana do trabalho e do lazer;

- Da variedade de situações de uso da escrita instituída pelo mundo contemporâneo;

- Do que fazemos quando lemos;

- Do papel da intencionalidade do leitor nos usos que faz do impresso.

Com base nesses novos referenciais, bem diferente é entender como funciona o sistema alfabético

na dinâmica do seu uso ( a leitura). Um traço distintivo, visto como pertinente na análise da língua escrita

enquanto sistema elaborado de acordo com certo princípio, pode não ser o traço distintivo utilizado por

leitores competentes o ato de ler.

Essa questão é também sugerida pelas descrições realizadas sobre a natureza humana da escrita no

ato de ler, que demostra que o leitor utiliza os sinais gráficos como ideogramas. Isto parece indicar que

aquele dispositivo desenvolvido pelo processo de alfabetização, fundada no princípio fundamental do

sistema alfabético enquanto tal colocado à disposição dos indivíduos, não é uma estratégia eficaz para a

leitura eficiente.

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3.2. PERSPECTIVA HISTÓRICA

Uma nova proposta pedagógica para desenvolver a aprendizagem da leitura e produção da escrita

não nasce de um dia para o outro. Ela é sempre resultado de uma tentativa de ruptura com o já

estabelecido e, ao mesmo tempo, a procura de uma continuidade, de uma ligação com o passado.

Estamos em meio a um processo de democratização efetiva das oportunidades educacionais. Hoje

o país se propõe não só oferecer o acesso à escola a todas as crianças em idade escolar, mas também

acessa para a possibilidade de uma educação prolongada para todos. Este fato implica repesar as práticas

de alfabetização tradicional (que promovem uma seleção dramática da clientela escolar já nas primeiras

séries do primeiro grau) visando a instauração de novas práticas, concebidas a partir de novos

referenciais; estes estão se tornando variáveis devido ao avanço dos estudos sobre os processos da leitura

e escrita.

As metodologias de alfabetização evoluíram o tempo, de acordo com novas necessidades sociais

que a cada nova configuração exigem um novo tipo de pessoa letrada e, ao mesmo tempo, em função do

avanço do conhecimento acumulado na área da leitura e produção escrita e de sues processos de

aquisição.

Na dinâmica de ruptura e continuidade a pedagogia da alfabetização tem disponíveis até hoje dois

caminhos: o método SINTÉTICO e o método ANALÍTICO. Ambos visam levar a criança à compreensão

da existência de uma correspondência entre os signos da língua escrita e os sons da língua oral.

O caminho sintético tem seu ponto de partida no estudo dos elementos da língua (letra, fonema,

sílaba). E considera o processo de leitura como um esquema somatório: pela soma dos elementos

mínimos, fonema ou sílaba, o aprendiz aprende a palavra, pela somatória destas, as frases e o texto. Já o

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caminho analítico parte dos elementos de significação da língua (palavra, frase, conto). E por uma

operação de análise, a palavra é segmentada em seus elementos mínimos: o fonema ou a sílaba, ou seja,

este método parte do global para o mínimo, fazendo inverso do método sintético.

Sendo assim as duas abordagens se opõe quanto às operações básicas que envolvem: síntese e

análise. Mas têm um acordo em comum: para aprender a ler, a criança tem de estabelecer uma

correspondência entre som e grafia. Tanto para uma , como para a outra, esta correspondência é a chave

da leitura; ou seja, a criança aprende a ler oralizando a escrita.

3.3. AS CARTILHAS

“Vovô viu a uva”. ‘’A fita é de Fifi.” ‘’A macaca comia, comida.” Por esse caminho suave,

criança ia percebendo pouco a pouco que a escrita que ela vê podia ser transformada na fala que ela ouve.

Herança dos silábicos do séc. XIX, as cartilhas foram se multiplicando no tempo, concretizando e

difundindo o modelo de leitura idealizado pelas metodologias tradicionais. Coerentes com os seus

propósitos, os textos das cartilhas não têm sentido algum e, nesse caso, o aprendiz não tem outra escolha

senão identificar sílabas, identificado palavras. Desse como, as cartilhas qualificam o aprendiz como

leitor de letras.

A cartilha é uma instrumento de ensino, de orientação da metodologia adotada pelo professor. E

não um suporte de aprendizagem do aluno. Limita, dessa forma, tanto o ensino como a aprendizagem. As

cartilhas trazem congelados os procedimentos metodológicos que o professor deve adotar em sala de aula;

concretizam o modelo idealizado pelas metodologias tradicionais, tornando o ensino da leitura uniforme,

cumulativo e homogêneo. Apesar de duramente criticados por pesquisas e análises realizadas por

estudiosos de alfabetização, as cartilhas continuam a ser utilizadas por quase todos os professores nas

escolas brasileira. Vale perguntarmo-nos: Mas a quem interessa mudar este processo mecânico,

manipulador e obscuro da alfabetização, que esconde seu verdadeiro e eficaz desenvolvimento e o

verdadeiro poder da escrita e da leitura (conscientes) numa sociedade?

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Outro ponto importante: é comum ouvirmos afirmações do tipo: “O método não importa, qualquer

um serve. O que importa é um bom professor!” E o que é um bom professor? Seria aquele que supre com

sua intuição, competência e dedicação as deficiências dos métodos e cartilhas? E se na mão deste mesmo

bom professor estivesse uma proposta de trabalho mais coerente com determinados princípios

lingüísticos, mais adequada à realidade sociocultural do grupo, os resultados sejam os mesmos?

Devemos acreditar que, na escolha de métodos e técnicas, a questão deva ser considerada em uma

outra perspectiva.

Podemos percorrer diferentes caminhos, escolher diferentes pontos de partida, mas interessa-nos

sobretudo perguntar: O ensino tal qual vem sendo praticado é o ensino que queremos? Está favorecendo o

próprio modo de aprender do educando? Está levando em conta sua competência, seu saber lingüístico,

possibilitando que ele seja agente criativo em seu processo de aprendizagem? E o professor, como ele

entra ou como ele pode entrar nessa história? A resposta a estas perguntas é condição de possibilidade

para fazermos nossas opções metodológicas.

É falando e ouvindo, interagindo com quem está em sua volta, formulando livremente hipóteses

sobre suas formas, que a criança aprende a língua materna. Por que, no ensino da leitura e escrita, a escola

oferece situações e toma caminhos tão diversos? O que encontramos com freqüência nas cartilhas são

exercícios onde o aluno só tem que cobrir, copiar, seguir o modelo, repetir o já dado. Copia e faz ditado,

copia e acumula. Se com dois, três anos de idade, a criança soube extrair regularidades e usá-las, por que

não pode agora com sete, nos e pelos atos de linguagem, reconhecê-las, tomando consciência de sua

capacidade lingüística?

Na alfabetização, ao contrário do que deveria ser, a ênfase é dada à forma, à aprendizagem

estritamente perceptual, à formação de automatismos. Exige-se da criança a realização de fonemas soltos,

tanto os vocálicos que podem ocorrer sozinhos nas sílabas e, como tal, serem pronunciados, mas até os

consonantais, elementos marginais da sílaba, acompanhados obrigatoriamente por uma vogal.

Quase sempre as palavras que o aluno lê e escreve são aquelas que o professor e/ou a cartilha

querem que ele leia e escreva. As palavras analisadas não geram novas palavras. Estão todas lá na

cartilha, se oferecendo para serem exclusivamente visualizadas. Que interesse e prazer tais práticas

podem despertar na criança? Por que freqüentemente afirmamos que tantas crianças NÁO PODEM

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aprender a ler e , raramente, acreditamos como válida a hipótese da criança NÁO QUERER , ou, então,

acabar de fato NÁO PODENDO, pela simples razão de não haver desejo de aprender desta forma.

Nesta concepção de ensino, o bom professor é aquele que explica bem a matéria, cabendo ao

aluno fazer exercícios em cujos enunciados está presente apenas a ordem, o imperativo : “numere,

complete, siga o modelo, ligue, leia e continue”. Nesta prática da ordem, não há lugar para a pergunta, a

dúvida, o problema, a pluralidade de respostas, o risco. A ação de perguntar, de deixar espaço para o

discurso do outro e de saber se colocar como ouvinte, de fato, não é fácil, mergulhados como estamos em

autoritárias relações sociais, mas acaba se tornando mais difícil ainda, pois o professor, freqüentemente

também, não tem autonomia. Ele mesmo é dependente das cartilhas e seus manuais. Todavia perguntar é

uma de nossas principais tarefas. Perguntas cujas respostas apontem para novas perguntas, que não

aprisionem o aluno no espaço do instituído, do já dado.

Para que o aluno domine habilidades de uso, nas modalidades falada e escrita da língua, é

condição necessária que ele possa operar concretamente com ela, observar suas semelhanças e diferenças,

comparar e relacionar seus elementos, em diferentes contextos e situações. Tomar posse da para,

descobrir, dentro dos limites impostos pela própria língua, novas formas de expressão, sendo sujeito

ativo, como foi no processo de aquisição da linguagem. A consciência de que sabe e de que tal saber foi

construído ativamente, por um percurso de descobertas, taz consigo um imenso prazer para o aluno: o de

saber que pode aprender e , por conseguinte, o aumento de sua potência de agir.

Um outro aspecto fundamental para a prática de ensino da leitura e escrita refere-se à

multiplicidade de contextos possíveis de uso de cada forma lingüística particular. No mundo da

linguagem, os elementos não valem em si mesmos, isto é, não possuem valores único, sempre idênticos.

O que os caracteriza é sua variabilidade e sua flexibilidade, dependendo do contexto em que se

encontram, das relações que estabelecem com os demais.

O que acontece, no entanto, com freqüência, na escola? Introduz-se a criança no mundo da escrita,

ensinando-lhe a, e, i, o, u. Ignorando-se , inclusive, a pluralidade das relações fonema/grafema.

Não é por acaso que as unidades mínimas da língua, quando apresentadas isoladamente,

costumam ser associadas nas cartilhas às formas e sons de certos objetos do mundo ao redor. Trata-se

provavelmente de uma tentativa de se atribuir significado a algo que não o tem, o fonema é uma unidade

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não significativa da língua, embora distintiva, isto é, em um contexto dado, a substituição de um p por um

b, por exemplo, faz distinções entre as palavras, sem terem eles mesmos significados intrínsecos. Busca-

se então significado em um universo estranho às regras do jogo que está sendo jogado, quando a

linguagem está repleta de significações.

Tais práticas pressupõem a aceitação do princípio de que o todo equivale à soma de suas partes e

de que ler consiste no domínio de unidades sucessivamente maiores, implicando estágios seqüências no

processamento da informação, lineares e unidirecionais.

Se queremos leitura fluente e significativa, é preciso que o aluno conviva com as partículas, como

elementos integrais de uma frase, inseridas em seu contexto natural, caso contrário, retardará sua leitura e

se transformará em um leitor de palavras.

Além disso, quando apresentamos a palavra isolada, a linguagem está sendo reduzida à pura

convenção, destituída dos valores sociais dos quais está impregnada. A palavra isolada de seu contexto,

inscrita um caderno e aprendida por associação a uma coisa, a uma imagem, torna-se sinal, uma coisa

única. O signo é, por sua natureza, vivo, móvel, plurivalente. A mobilidade do signo é uma das principais

características da linguagem humana.

No entanto, nossas paredes de sala de aula estão repletas de palavras, atreladas a uma imagem,

como significados únicos, idênticos a si mesmos. A palavra sempre associada a uma figura, reduzida à

ordem da designação, para ser visualizada e fixada. Depois retira-se a figura. E fica a palavra, petrificada,

destituída de suas infinitas possibilidades de significação, com uma fixidez que não lhe pertence. Não

estamos subestimando a competência da criança? E o que estamos chamando de alfabetização?

A palavra só ganha valor social quando está inserida em frases e frases inseridas em situações

sociais concretas.

O ato de ler requer atitude ativa por parte do leitor, implica interação verbal, produção de

significação. Se o projeto de leitura não a concebe como tal, nas várias fases que envolvem a

aprendizagem, dificilmente a criança o fará. Por que de um momento para o outro deverá prestar atenção

e procurar sentido naquilo que lê, se, durante uma boa parte do processo, só precisou mostrar para o

professor que reconhecia as palavras e as escrevia sem erro de ortografia?

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Sabemos, no entanto, pela compreensão da natureza do signo lingüístico, que a “significação não é

uma coisa e que não pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente”. Esta

separação não pode ser feita, sob pena de se alterar a natureza deste mesmo signo lingüístico. Significado

não pode ser algo que vem depois. Importa considerá-lo desde o início e durante todo o processo,

estimulando o alfabetizando a uma permanente predisposição à busca de significações.

Contudo, ficou claro aqui, uma orientação no sentido da mobilidade, da valorização da diferença.

Uma pedagogia que desrealize o significado imutável, os valores absolutos, a VERDADE que transcede o

aqui e o agora, em favor da fala viva, produto da interação social, lugar de múltiplas significações.

A compreensão de determinados princípios da Lingüística teórica e aplicada poderá ajudar o

professor a organizar seu conteúdo, formular com autonomia sua atividades, encaminhar o aluno à

reflexão. Estas tarefas pressupõem o conhecimento das várias etapas que o aprendiz deverá percorrer,

para superar suas dificuldades e atingir o domínio cada vez mais amplo dos recursos que a língua lhe

oferece. De posse de maiores recursos, a criança poderá lidar mais criativa e afirmativamente com a

PALAVRA, instrumento de AÇÃO e INTERAÇÃO social. O estabelecimento das etapas a serem

percorridas pelos alunos fornece, por sua vez, subsídios necessários à escolha de critérios para a gradação

dos conteúdos e avaliação da produção da criança.

O objetivo principal é o de garantir à criança e ao professor a tomada de consciência de sua

potência de conhecer e agir, reside o cerne de uma pedagogia fecunda e facilitadora da inter-relação

escola-vida.

É relevante Ter a consciência da importância dos métodos e metodologias de aprendizagem, assim

como sua aplicação, no dia a dia de um a sala de aula, podendo elas, ajudarem na construção de um

cidação politizado e autônomo, ou, na construção de mais um membro de uma sociedade desigual.

É importante ressaltar que os métodos e metodologias, têm grande participação na formulação de

consciência de um indivíduo, porém, não são os únicos responsáveis... a problematização é bem mais

ampla... Daí a importância de que todos os envolvidos nesta questão educacional, serem pesquisadores,

ousados e críticos, para que possam contribuir na superação do fracasso escolar e na construção de uma

sociedade mais justa e consciente.

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4. CONSTRUTIVISMO e SOCIOCONSTRUTIVISMO

Construtivismo não é apenas o termo pelo qual é conhecida a linha pedagógica que mais vem

ganhando adeptos entre os professores do 1º grau (Ensino fundamental). Possui outro significado, mais

antigo e mais amplo, que ultrapassa as fronteiras do universo escolar. É sobretudo, o nome de uma das

três grandes correntes teóricas empenhadas em explicar como a inteligência humana se desenvolve. As

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outras duas são o EMPIRISMO e o RACIONALISMO. Por ser o nome ao qual se filia Piaget, a palavra

Construtivismo passou a designar também a linha pedagógica inspirada em sua obra.

Essas três teorias divergem quanto a relação entre o meio ambiente e a inteligência; as

teorias empiristas e racionalistas são chamadas de reducionistas porque reduzem o desenvolvimento

intelectual só à ação do indivíduo ou só a força do meio sobre o indivíduo; já o construtivismo atribui um

papel ativo ao indivíduo, sob a influência do meio: É a pessoa que constrói o seu próprio conhecimento;

construtivismo é uma concepção teórica que parte do princípio de que o desenvolvimento da inteligência

é determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio. A idéia é que o homem não nasce

inteligente, mas também não é passivo sob a influência do meio. Ao contrário, responde aos estímulos

externos agindo sobre eles para construir e organizar o seu próprio conhecimento, de forma cada vez mais

elaborado.

O construtivismo é a aplicação pedagógica dos estudos de Jean Piaget. (l896 – l980),

educador, psicólogo, biólogo e filósofo suíço que reformou em bases funcionais as questões sobre

pensamentos e linguagem. Ao mesmo tempo pensador e cientista experimental, a Piaget interessava uma

visão transformadora da Epistemologia.

Segundo suas pesquisas, o conhecimento é construído através da interação do sujeito como

objeto. O desenvolvimento cognitivo se dá pela assimilação do objeto de conhecimento a estruturas

anteriores presentes no sujeito e pela acomodação dessas estruturas em função do que vai ser assimilado.

Para Piaget, a criança se apodera de um conhecimento se “agir” sobre ele, pois aprender é modificar,

descobrir, inventar. Nesse enfoque, a função do professor é propiciar situações para que a criança

construa seu sistema de significação, o qual, uma vez organizado na mente, será estruturado no papel ou

oralmente.

Com base em seus estudos, Piaget demonstrou que a criança raciocina segundo estruturas

lógicas próprias, que evoluem conforme faixas etárias definidas, e são deferentes da lógica madura do

adulto. O construtivismo procura desenvolver práticas pedagógicas sob medida para cada degrau de

amadurecimento intelectual da criança.

Em complemento, o socioconstrutivismo é uma teoria que vem sendo desenvolvida a partir

de Vygotsky e seus seguidores. Vygotsky (l896 – 1934) licenciou-se em literatura e Psicologia e criou um

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laboratório de Psicologia no Instituto de Treinamento de professores. No período de 1925 a 1934 reuniu

um grupo (do qual participavam Luria e Leontiev) e iniciou estudos sobre a crise da psicologia, buscando

uma alternativa para o conflito entre as concepções idealistas e mecanicista.

Os estudos de Vigotsky sobre a aquisição da linguagem como fator histórico e social

enfatizam a importância da interação e da informação lingüística para a construção do conhecimento. O

centro do trabalho passa a ser, então, o uso e a funcionalidade da linguagem, o discurso e as condições de

produção. O papel do professor é o de mediador, facilitador que interage com os alunos através da

linguagem num processo dialógico.

O socioconstrutivismo, hoje, traz em si uma convergência das idéias piagetianas e

vigostskyanas, enfatizando a construção do conhecimento numa visão social, histórica e cultural. Piaget

trabalha com os níveis maturacionais, Vigotsky, com a relação aprendizagem-desenvolvimento. O

socioconstrutivismo apresenta um conceito de ZONA DE DESEMVOLVIMETO PROXIMAL, como a

distância entre o nível de desenvolvimento potencial. Esta zona é um domínio psicológico em constante

transformação: aquilo que uma criança é capaz de fazer hoje com a ajuda de alguém, conseguirá fazer

sozinha amanhã.

Aqui acrescenta-se com relevância, a atuação da aluna e colaboradora de Piaget, a

psicóloga Emília Ferreiro, nascida na Argentina em 1936 e que atualmente mora no México, que adotou e

tornou conhecida a expressão “construtivismo”. Parindo da teoria do mestre, Piaget, ela pesquisou a

fundo, e especificamente, o processo intelectual pelo qual as crianças aprendem a ler e a escrever,

batizando de construtivismo sua própria teoria.

Os estudos sobre a Psicogênese da língua escrita desenvolvidos por Ferreiro e Teberosky,

possibilitam desviar o centro do trabalho do professor para o ser que aprende e sua relação com o objeto

de aprendizagem. Emília Ferreiro é doutora e colaboradora de Jean Piaget. Realizou investigações

científicas que deixam transparente a idéia de que a criança reconstrói o código lingüístico e reflete sobre

a escrita. Ela vem desenvolvendo trabalhos sobre as hipóteses de pensamento que a criança pode

apresentar a respeito da linguagem escrita. Ela não propõe uma “nova pedagogia” ou um “novo método”,

mas sua pesquisas deixam claro que o que leva o aprendiz a reconstrução do código lingüístico não é o

cumprimento de uma série de tarefas ou no conhecimento das letras e das sílabas, mas umas compreensão

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do funcionamento do código. Embora não proponha uma prática pedagógica, sua contribuição é essencial

para que o educador repense todo o processo de ensino-aprendizagem da língua e o funcionamento do

código. Conhecendo os diversos níveis conceituais lingüísticos da criança, é possível criar as atividades

para que ela possa desestruturar sua concepção e construir o conhecimento da base alfabética da escrita.

E, são estes estudos sobre a Psicogênese da língua escrita que serão trabalhados mais detalhadamente

adiante, como principal objetivo destra pesquisa.

É interessante indagar como o construtivismo se espalhou. Respondendo a esta instigação,

as bases teóricas foram estruturadas na primeira metade deste século, com Piaget e os psicólogos

soviéticos entre os quais Lev Vygotsky é o mais divulgado no Brasil. As pontes para a prática pedagógica

se consolidaram com Emília Ferreiro, já mencionada acima, e seus colaboradores no final da década de

1970. Na década seguinte, o construtivismo se disseminou na América Latina, principalmente na

Argentina e no Brasil. As experiências brasileiras mais expressivas foram registradas nas redes

municipais de Porto Alegre e São Paulo, assim como no ciclo básico (as duas primeiras séries) da rede

estadual paulista).

É preciso destacar que o sucesso das teorias construtivistas, também têm um lado preocupante : a

indiferança política, pois, embora se pretenda, em geral a liberdade e a autonomia, essa teoria se adapta

facilmente a sistemas educacionais e regimes políticos diversos, ou seja, é uma teoria que pode ser usada

a favor ou contra a verdadeira autonomia dos cidadãos. O segredo está em aplicá-la... daí a importância de

ver as teorias na sua essência, entendê-las e não encará-las como modismos ou deixar-se moldar de

acordo com os interesses tradicionais que, ideologicamente aceitam mudanças, mas, sempre adaptando-as

aos antigos moldes e conservando a educação discriminatória e seletiva, formando uma sociedade

também desigual.

Em relação a essa constante adaptação ressaltemos que as teorias construtivistas podem fazer parte

de uma tendência que tem como quadro político mais amplo precisamente o esforço de extensão da esfera

de autonomização da sociedade que caracteriza o atual neoliberalismo.

Ao produzir esse indivíduo racionante, “normal”, essa criatura cognitiva, o construtivismo efetua

processos vitais de exclusão e inclusão e acaba se tornando um dispositivo de normalização e regulação

com o objetivo de acalmar a inquietação do povo insatisfeito com as desigualdades, porém, esse povo

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acaba sendo enganado por “modas” formas de educação e política que atuam como fachada de uma

conservação da tradição reformulada. Aqui, é necessária a ação pesquisadora do profissional que irá

assumir certas teorias e questionar não somente seus frutos pedagógicos mas também os políticos. Sendo

assim, nas pedagogias construtivistas, o eu e a subjetividade não existe, como essências, mas são

produtos de práticas sociais e discursivas regidas por relações de poder. O sujeito pedagógico é, assim,

uma produção histórica e social da qual participa de forma importante as pedagogias construtivistas.

Contudo, é importante que professores e profisssionais da educação tenham consciência dos

pontos positivos mas também negativos das teorias construtivistas. Em questão a Psicogênese da língua

escrita que tem suas bases construtivistas é necessário frizar seus nobres pontos como o respeito ao

indivíduo, às diferenças, à relação com o mundo, e à heterogeneidade deste.

O objetivo principal da educação e de uma alfabetização comprometida com a cidadania, somente

será alcançado se percebermos entendermos e aceitarmos que o modo e a maneira de efetuar o processo

podem ser adaptados a uma certa realidade já existente ou transformá-la, podem ser respeitadores ou

apenas incentivadores de liberdades reguladas, podem ser realmente as construção do conhecimento

coletivo em relação com o real ou, simplesmente, uma aprendizagem solta e liberta, porém muito bem

manipulada.

5. A ALFABETIZAÇÃO

A alfabetização, se considerada do ponto de vista de sua gênese, é um dos principais objetos da

pré-escola. Porque a leitura começa a se fazer quando a criança está manipulando e explorando os

objetos, descobrindo seus atributos, quando imita alguém ou expressa seus sentimentos, quando nomeia

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as coisas, quando explora o seu meio, quando lê, ouve, conta e reconta histórias, dramatiza, faz mímicas –

oportunidades que permitem à criança construir as operações mentais necessárias e preliminares ao ato de

ler, ou seja:

A criança interage ativamente com seu meio, construindo suas

próprias ‘categorias de pensamento’ ao mesmo tempo que organiza o

mundo (...) O processo de alfabetização tem que ser visto do ponto de

vista de quem aprende (criança) e não daquele que ensina (professor).

(Ferreiro, E. 1989, p. 24)

O conceito atual de alfabetização enfatiza que a criança aprende a ler e escrever pensando.

É ela que reinventa o processo e é, por isso, capaz de descobrir como se lêem ou se escrevem palavras

que ainda não foram “treinadas” nem praticadas em sala de aula. A criança que aprende decorando,

simplesmente estoca informações a curto prazo.

Não é raro professores comentarem: “saiu de férias e esqueceu tudo!” Aquele que aprende

pensando, adquire um instrumental importante que lhe servirá pela vida toda.

A partir dos trabalhos realizados por Emília Ferreiro (1978), pôde se observar que a criança não

começa a ler e escrever quando chega à escola. Ao iniciar o processo de escolarização, as crianças já têm

hipóteses sobre a leitura e a escrita, uma vez que seu universo conceitual já está inundada de livros,

jornais, revistas, mensagens que vão estruturando as dimensões fundamentais desse objeto do

conhecimento.

Podemos observar que algumas crianças já chegam à escola “prontas” ou “quase prontas”, para

atuar a um nível analítico e sintético da relação entre oralidade e escrita, isto é, para enfrentar a escrita

alfabética, enquanto outras crianças chegam não diferenciando o que é ler e falar, ler e escrever; o que

pode ser lido e escrito (geralmente estas crianças vêm de camadas populares onde não existe contato com

leitura e escrita).

A criança chega à compreensão brincando, colocando fatos reais contecidos no cotidiano da

família e da escola e é capaz de na brincadeira tomar sérias decisões; A criança revive situações,

representa, libera emoções, aprende conceitos, tudo através da brincadeira.

Ela adere ao mundo social, compartilhando com seus colegas, dividindo o seu mundo e

conhecendo os outros; Aprendem uns com os outros e são corrigidos uns pelos outros.

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Melhor seria trocar os as palavras “materiais para brincadeira” por “materiais de trabalho”, pois

esses são os instrumentos de aprendizagem que ajudam a criança emocional, física, intelectual e

socialmente. Eles dão a “chave” para a aprendizagem.

É grande a variedade de brinquedos e bibliografias de atividades lúdicas no mercado. A professora

deve conhecer os interesses, habilidades e condições cognitivas dos alunos, para escolher atividades e

recursos de acordo com eles e com os objetivos que quer alcançar no processo ensino-aprendizagem.

A criança demonstra interesse, pois a brincadeira ;e um prazer e tudo que é feito com prazer e

gosto gera interesse e resultados satisfatórios.

Aqui vale ressaltar porque a alfabetização numa perspectiva construtivista, rejeita o uso da

cartilha. Primeiro, porque a cartilha prevê etapas rígidas de aprendizagem, coisa que o construtivismo

descarta. Segundo, porque os construtivistas acham que a linguagem geralmente usada nas cartilhas (“bá

– bá – bi…, “Ivo viu a uva”, etc.) é padronizada, artificial, distante do mundo conhecido pela criança,

ficam limitados no uso das cartilhas mecânicas e memorizastes.

Será este tipo de cidadão que queremos formar? Mecânico, alienado, adestrado, sem autonomia?

A alfabetização e os processos educacionais devem se discutidos e compreendidos. A novas

propostas educacionais, como o construtivismo, em contraste com as tradicionais, deixam perceber o

domínio que a educação tem de manipular ou de orientar o ser humano a crescer, conhecer e viver…

O conceito atual de alfabetização enfatiza que a criança que aprende a ler e escrever pensando, é

alguém que reinventa o processo e é, por isso, capaz de descobrir como se lêem e se escrevem as palavras

que ainda não foram “treinadas” nem praticadas em sala de aula. É o caso das que , após um curto período

de instrução em leitura, são capazes de ler palavras, com letras ou sílabas ainda não ensinadas pela

professora.

A criança interage ativamente com seu meio, construindo suas

próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza o

mundo. É um sujeito ativo na construção do conhecimento (..) A

alfabetização começa muito mais cedo do que a escola imagina, uma

vez que ler não é simplesmente decifrar sons. (Ferreiro, E. 1989, p.19)

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6. TRADIÇÃO E RUPTURA: UMA NOVA PERCEPÇÃO PEDAGÓGICA

6.1. UM PULO NO PASSADO

Patrimônio das antigas sociedades tradicionais e autoritária, a Pedagogia parece carregar ainda

hoje, o signo da imposição, pois vem sempre associada a sistemas fechados, conceitos rígidos, modelos

prontos e fórmulas acabadas. Como reflexo dessa concepção, os problemas da alfabetização se resumiam

à busca do método de ensino infalível a fórmula mágica que, através de passos formais rígidos – como

uma receita – permitisse ao mestre transmitir aos alunos os segredos da língua escrita.

Além desse modelo pedagógico, inserido em uma sociedade fechada e autoritária, outro fator pode

explicar a centralização do ensino e a ausência do aprendiz nas elaborações teóricas: não existia

aprendizagem porque não existia esse ator singular do processo ensino- aprendizagem, a criança. O

conceito de criança como domínio do saber, se esboça no séc. XIX e se firmas no início do séc. XX com a

instituição de um novo campo do conhecimento humano, a psicologia, e especificamente, com a

Psicologia Educacional.

Somando-se a essa mudança de perspectiva proporcionada pelo avanço do conhecimento

científico, que permite – e impõe – a reformulação dos princípios que regem a intervenção pedagógica,

outros fatores presentes no começo do século provocam uma reavaliação dos propósitos da educação: a

emergência ou afirmação das sociedades democráticas e as transformações da vida social e econômica.

Novas necessidades de economia, devido ao avanço de industrialização, ao mesmo tempo que

permitem gradativamente o maior acesso às oportunidades educacionais, questionam a escola dos

rudimentos do ler, escrever e contar. As funções sociais do uso da escrita se ampliam estabelecendo

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novos parâmetros para a formação do leitor, que passa a conviver com situações de leitura cada vez mais

complexas e diversificadas.

Esses fatores levaram a reavaliação dos pressupostos da pedagogia tradicional e formulação de

novas propostas. Diversas contribuições de vários autores vieram enriquecer o patrimônio de

conhecimentos da pedagogia, sempre focalizando propostas metodológicas, na busca do método infalível.

Uma corrente histórica de alfabetização escolar, ocorrida entre os séculos XVI e XIX, que acabou por

definir os princípios metodológicos básicos da aprendizagem da leitura e da escrita, tal com foi concebida

pela escola.

No plano das técnicas, as concepções que permeiam essas formulações foram se cristalizando no

tempo e, com isso, as inovações se caracterizaram por uma evolução na continuidade, resultando – ora

sim, ora não – num aperfeiçoamento da técnica de alfabetizar.

As tentativas de ruptura, se não passaram de incidentes de percurso, forma assimiladas de tal

modo que garantiram a continuidade do estabelecido. Diante dos impasses, sempre se corre o risco de

negar o passado sem mover o que se encontra inerte; ele permanece intacto, fincando suas raízes no

presente.

6.2. UMA REVOLUÇÃO RENITENTE

A concepção de alfabetização que professávamos repousa no centro de um labirinto intacta e

imóvel. Seu segredo era não ter segredo. Pesos na inércia do tempo, acreditávamos que, para aprender a

ler, o único caminho era aquele concebido há séculos: ensina-se a família do b de “batata”, a família do f

de ”farofa”, a família do g de “gato”…

Mas, no séc. XX a partir da década de 50, uma nova investida – dessa vez uma nova área que se

firmava, a Psicolingüística – veio abalar aquela fortaleza conceitual.

A realidade social já demonstrava com evidência a desarticulação entre os fins da Pedagogia da

alfabetização e a diversidade de situações sociais impostas pelo mundo letrado; cada vez mais o texto

escrito se interpunha entre o cidadão e sua atuação social. No interior da escola, a oportunidade de galgar

as séries mais avançadas encontrava o mesmo obstáculo para se concretizar: a leitura.

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Quase sem perceber, passamos a viver num universo grafocêntrico. Questionou-se o conceito de

alfabetização, concluindo-se que o alfabetizado era o indivíduo que conseguia ler as letras do alfabeto!

Surgiu o conceito de analfabeto funcional, designando o indivíduo que, tendo sido alfabetizado, não

consegue se inscrever no circuito da comunicação escrita.

As descrições do comportamento do leitor no ato da leitura, fornecidas pela Psicolingüística,

vieram demonstrar para a Pedagogia, a distinção entre leitor e alfabetizado.

Por outro lado, a Psicologia Cognitiva veio revelar a inabilidade da Pedagogia no trato das

questões do processo de aprendizagem da língua escrita pelo aprendiz: a PSICOGÊNESE DA LÍNGUA

ESCRITA estabeleceu novos parâmetros para as questões da intervenção da Pedagogia no processo de

aprendizagem do sistema alfabético.

Tendo como parâmetro as investigações de Emília Ferreiro a Ana Teberosky sobre a Psicogênese

da língua escrita, a escola ensaia uma nova didática para a prática alfabetizadora.

No Brasil, as repercussões desses estudos também já ultrapassaram as reflexões teóricas e

avançaram, em direção às salas de aula através de experiências pioneiras.

Uma característica marcante dessas novas idéias é que, tal como ocorre na aprendizagem d fala, a

leitura também parece ser uma apropriação pessoal decorrente da vivência de situações diversificadas de

uso da escrita: é nos encontros funcionais promovidos pelo meio ambiente em que vive, que a criança

inicia progressivamente a construção da sua maneira de ser leitor, processo que teve seu início bem antes

de sua chegada à escola.

Herdeira de um p assado secular, progressivamente a escola desvenda o profundo abismo que

existe entre a decifração e a leitura. E, diante do novo saber ler, em que os olhos vão adivinhando,

explorando e reorganizando o sentido intuito, busca reinventar sua atuação a partir da reflexão coletiva

sobre o ato da leitura e sobre os labirintos da formação do leitor. É um equilíbrio precário, onde a

Pedagogia da leitura procura se estabelecer no presente, revolvendo seu acervo de conhecimento

acumulado no passado para, com base nas descobertas recentes, vislumbrar um futuro mais promissor.

6.3 A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA E SUA SIGNIFICAÇÃO

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As investigações sobre alfabetização evoluíram do enfoque estritamente mecanicista, onde ler é

sonorizar a escrita e, para tanto, o leitor deve mobilizar um dispositivo desenvolvido no processo de

alfabetização que permite a transformação de sinais gráficos em sinais sonoros; de posse dessa estratégia,

o alfabetizado consegue identificar cada palavra escrita, mesmo aquelas cujos significados ele não

conheça, baseado nas contribuições da Psicologia Associacionista, para enfoque cognitivista mais recente,

fundado nas contribuições da Psicologia Genética de Piaget. Enquanto o esquema interpretativo da

Psicologia Associacionista identifica métodos de ensino com processos de aprendizagem orientando suas

investigações para a questão da maturidade/prontidão, enfatizando os domínios perceptivos da

aprendizagem, os testes psicológicos , o marco piagetiano estabelece uma distinção clara entre método de

ensino e processo de aprendizagem. Os estudos cognitivistas centram suas investigações no processo de

aquisição do conhecimento, na construção dos esquemas de assimilação pelo sujeito da aprendizagem.

O fato de fazer distinção entre aprendizagem e ensino implica que nem sempre um novo estímulo

apresentado pelo adulto-professor através do ensino é idêntico ao estímulo percebido pela criança-

aprendiz, no seu processo de aprendizagem.

Toda criança tem um repertório de conhecimentos acumulados e organizados no decorrer de sua

experiência de vida. E esse acervo de conhecimentos funciona como um esquema de assimilação, como

uma teoria explicativa do mundo. É sua estrutura cognitiva. Diante de um novo objeto, a criança se

mobiliza, estabelecendo uma relação entre o seu acervo de conhecimentos – a estrutura cognitiva – e o

novo estímulo a ser aprendido.

Se o seu esquema de assimilação – o repertório de conhecimentos disponível – permite a

compreensão do novo objeto de conhecimento ela aprende, reorganizando o seu acervo (a sua estrutura

cognitiva). Se o acervo disponível não permite compreender o novo estímulo, ela aprende “deformando”

o objeto.

Que conseqüências traz esse fato para o ensino? Com isto, a pedagogia deve reformular seus

pressupostos, pois o método de ensino passa a ter como referencial de base o processo de aprendizagem.

O aprendiz é sujeito da aprendizagem, não mais objeto de ensino, pis é da interação entre processos

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internos (do sujeito) e processos externos ( do ensino) que ocorre a aprendizagem( e não pelo acréscimo

mecânico de uma nova informação fornecida pelo ensino).

No caso da aprendizagem da leitura e da escrita, a teoria cognitivista permite recolocar o problema

do método, pois a aprendizagem é vista não mais como uma aquisição mecânica de capacidades

perceptivas, mas como uma atividade cognitiva, centrada na construção de um conhecimento. Enquanto

nas teorias associacionistas o sujeito da aprendizagem é um sujeito passivo, que recebe o ensino e

aprende, nas abordagens cognitivas é um sujeito ativo que age sobre o conhecimento, apropriando-se do

objeto a ser aprendido.

É nesse contexto que emergem investigações centralizadas na questão da leitura e da escrita no

mundo contemporâneo. Uma dessas contribuições mais intrigantes reúne conceitos de uma Psicogênese

da língua escrita.

Partindo do pressuposto de que a teoria do desenvolvimento de Piaget fornece os parâmetros

básicos para a compreensão do processo de apropriação do conhecimento envolvido na aprendizagem da

leitura e escrita, e adotando o princípio da Psicologia Genética que prescreve a importância da gênese das

funções psicológicas mais complexas, Emília Ferreiro e Ana Teberosky concebem a escrita como objeto

de conhecimento da criança e analisam a evolução das concepções infantis sobre a língua escrita.

Investigando as noções que a criança tem sobre a escrita, antes da aprendizagem escolar; buscando

compreender a natureza das hipóteses infantis identificado processos cognitivos subjacentes à aquisição

do sistema para analisar os problemas conceituais que a criança deve superar para entender as complexas

regras de relação entre um sistema de representação – a escrita – e o objeto representado – a linguagem --

, a Psicogênese desvela a distância que existe entre as propostas metodológicas de alfabetização

tradicionais e as hipóteses que as crianças elaboram sobre o sistema de escrita. E aponta outros

referenciais para a alfabetização.

Ao entrar para a 1a série ( período de início da alfabetização escolar), as crianças se encontram em

níveis de conceituação diversificados em relação à escrita, desde que interagiram com esse objeto cultural

existente em seu entorno.

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O processo de alfabetização, tal como foi concebido, exige certas condições prévias que

possibilitam à criança identificar elementos não significantes da escrita, estabelecer correspondência

termo a termo, considerar uma ordem prefixada etc.

Tal como foi concebida, alfabetização torna necessário um certo estágio de desenvolvimento das

operações intelectuais. Todas as tentativas de ensino de alfabetização, sem que estas condições estejam

realizadas na criança, redundam em fracasso (que sejam condições perceptivas, que sejam condições

conceituais).

Nesse sentido, o processo de alfabetização escolar coloca um número significativo de crianças em

desvantagem em relação a outras, que já desenvolveram concepções mais elaboradas sobre a escrita.

No horizonte apontado pela Psicogênese, o processo de aprendizagem da leitura e escrita continua

ainda vinculado ao aprendizado da língua escrita; a distância entre a concepção clássica e a Psicogênese é

estabelecida pela forma como esse objeto – a língua escrita – é concebido ( e apreendido).

6.3.1 Sons e grafias

A concepção de língua escrita que permeia as metodologias tradicionais é a de um código de

transcrição de sinais sonoros (a fala) em sinais gráficos (a escrita ). Desse modo, o processo de

alfabetização é a aquisição de uma técnica de codificação do oral (para escrever) e da decodificação da

escrita ( para ler ) . Como se trata de um saber especializado (escolar), a ênfase recai no ensino; a

aprendizagem é então concebida como a resposta da criança a um determinado estímulo proporcionado

pelo ensino, e a criança, concebida como uma espécie de caixa de ressonância passiva, acionada quando

estimulada por um agente externo: a criança repete e memoriza.

Como se trata da aquisição de um código, a questão se limita aos domínios da percepção; é preciso

distinguir diferenças sutis entre sons e grafias muito semelhantes: a alfabetização se transforma em um

processo delicado, com vários riscos de transtornos de aprendizagem ( as trocas de letras, as inversões, os

agrupamentos irregulares de palavras ).

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Uma vez que os aspectos perceptivos é que estão em evidência, foi preciso estabelecer uma

progressão entre letras e sons tão parecidos, avançando do simples para o complexo, do fácil para o

difícil. A progressão evolui do bê-á-bá para, numa somatória de elementos não significativos da língua,

formar palavras, frases e textos.

O método se orienta de acordo com certas normas: é progressivo, hierarquizado, cumulativo.

Exige, consequentemente, a homogeneidade do nível de conhecimento das crianças; como se trata da

aquisição de um conhecimento especializado, escolar ( e não social ) sobre a escrita, o método pressupõe

a ignorância das crianças: faz de todas “tabula rasa” diante de um objeto estranho. Para ter acesso a ele, é

preciso sofrer uma iniciação. A essa concepção, a Psicogênese contrapõe outra, deslocando tanto a

natureza do conhecimento ( a Epistemologia ) como a concepção do objeto de conhecimento.

6.3.2 Construindo a língua escrita

A Psicogênese pressupõe a criança como um sujeito congnoscente, um sujeito que constrói

ativamente o saber. Segue--e então que, para serem incorporadas à estrutura cognitiva, as informações

percebidas no mundo exterior devem ser transformadas pelo esquema de assimilação do sujeito, através

de um processo de reestruturação das hipóteses já elaboradas pelo sujeito da aprendizagem. Um estímulo

externo não é, portanto, necessariamente percebido como tal pela criança, desde que sua incorporação

depende dos conhecimentos previamente estruturados, que compõe seus esquemas de assimilação. Como

conseqüência, fica estabelecida a distinção clara entre método de ensino da alfabetização e a

aprendizagem da criança.

Por outro lado, a língua escrita deixa de ser percebida como um código, cujos elementos e relações

são dados previamente, e passa a ser concebida como um sistema de representação da linguagem, cuja

função primordial e original é – no caso das escritas alfabéticas – representar diferenças entre

significantes.

Dessa perspectiva a escrita é vista como um objeto conceitual e a questão da aprendizagem se

desloca para a compreensão da natureza dessa representação.

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A tarefa da criança, na alfabetização é, através de um processo de construção, superar hipóteses

precárias e, num refinamento de hipóteses já produzidas, chegar a compreender como a linguagem está

representada na escrita.

Algumas conseqüências podem ser estabelecidas a partir dessas investigações, no sentido de

melhorar a alfabetização proporcionada pela escola primária:

Fica superada a visão da alfabetização como domínio de uma técnica; o processo passa a ser visto

como uma aprendizagem conceitual;

Estabelece-se a distinção entre a intervenção do ensino e o processo de aprendizagem; a

possibilidade de assimilação da informação veiculada depende do nível de conceituação da criança;

O objetivo do processo é proporcionar oportunidades de uso da escrita, a fim de levar a criança à

compreensão da estrutura da língua, entendida como um sistema de representação da linguagem;

Enfatizam-se as produções espontâneas da criança, pois essas revelam como ela está utilizando a

escrita; essa utilização passa por etapas reconhecíveis, antes mesmo de a criança atingir o nível

denominado alfabético;

Os erros de escrita se transformam em índices que evidenciam etapas constitutivas do processo;

O domínio ortográfico é adiado para uma fase posterior ao domínio alfabético;

A sala de aula se transforma em um ambiente alfabetizador, proporcionando a interação constante

da criança com o objeto a ser conhecido;

Determina-se um uso social ( e não escolar ) da escrita.

6.4 EMÍLIA FERREIRO E A REVOLUÇÃO

Os anos 80 assistiram, no Brasil e na América Latina, a um crescente interesse pelo tema das

alfabetização inicial. Houveram muitos seminários, mesas-redondas, artigos e textos publicados durante o

período. A difusão rápida das idéias de Emília Ferreiro dirigiu grande parte da reflexão teórica da

discussão sobre a alfabetização.

Emília Ferreiro é argentina de nascimento e psicopedagoga de formação. Doutorou-se pela

Universidade de Genebra, orientada por Jean Piaget, de quem posteriormente tornou-se colaboradora,.

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Iniciou suas pesquisas empíricas na Argentina, em trabalho conjunto com Ana Teberosky, e os resultados

foram publicados na obra Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño, em 1979. Posteriormente

transferiu-se para a Cidade do México, passando a dar aulas no Instituto Politécnico Nacional. O seu

primeiro livro traduzido no Brasil, Psicogênese da língua escrita, representou uma g5rande revolução

conceitual nas referências teóricas com que se tratava a alfabetização até então, iniciando a instauração de

um novo paradigma para a interpretação da forma pela qual a criança aprende a ler e a escrever.

Nas pesquisas que coordenou existe uma clara integração de objetivos científicos a um

compromisso com a realidade social e educacional da América Latina. Analisando essa realidade

educacional, Ferreiro demonstra que o fracasso nas séries iniciais da vida escolar atinge de modo

perverso apenas os setores marginalizados da população, constituindo-se num verdadeiro problema social.

Se fosse a única, essa já seria justificativa suficiente para dar relevância a novas investigações que

ajudassem a descrever e explicar os processos pelos quais as crianças chegam a aprender a ler e escrever.

Também do ponto de vista teórico, as pesquisas de Ferreiro & Teberosky trazem uma contribuição

original, tomando como objeto de estudo um conteúdo ao qual Piaget não se dedicava – resgatam os

pressupostos epistemológicos centrais de sua teoria, para aplicá-los à análise do aprendizado da língua

escrita.

Na contramão de outros estudos teóricos, o objetivo de suas investigações não é a prescrição de

novos métodos para o ensino da leitura e da escrita ou novas formas de classificar dificuldades do

aprendizado. Ferreiro desvenda a “caixa – preta” desta aprendizagem, demonstrando como são os

processos existentes nos sujeitos desta aquisição. Isso porque, até que uma proposta empírica desta

natureza fosse feita, o tema da aprendizagem da escrita era considerado apenas uma técnica dependente

dos métodos de ensino.

Ferreiro demonstra que a abordagem da alfabetização como questão meramente metodológica fora

sustentada por teorias psicológicas vinculadas ao associacionismo ou empirismo. Avaliar que a melhor ou

pior aprendizagem como decorrente da apropriação de elementos externos feitos por um sujeito passivo.

Ao contrário desta tendência, as investigações de Ferreiro articulam-se para demonstrar a

existência de mecanismos do sujeito do conhecimento (sujeito epistêmico), que, na interação com a

linguagem escrita (objeto de conhecimento), explicam a emergência de formas idiossincráticas de

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compreender o objeto. Em outras palavras, as crianças interpretam o ensino que recebem, transformando

a escrita convencional dos adultos, produzindo escritas diferentes e estranhas. Essas transformações

descritas por Ferreiro são brilhantes exemplos dos esquemas de assimilação piagetianos. O professor

ensina, por exemplo, a palavra GATO e alguns de seus alunos escrevem GO ou AO ou GT. O que

Ferreiro desvenda é a razão destas transformações e a lógica empregada pela criança, ou os processos

psicológicos que produzem tais condutas. A escrita produzida é fruto da aplicação de esquemas de

assimilação ao objeto de aprendizagem (a escrita), formas utilizadas pelo sujeito para interpretar e

compreender o objeto.

Também Ferreiro & Teberosky interpretam os erros cometidos pela criança em fases precoces de

aquisição. Isso constitui um forma nova de olhar para a escrita infantil, muito diferente daquela que longa

tradição escolar nos ensinou.

As crianças adquiram o conhecimento da linguagem escrita porque, em interação com este objeto,

aplicam a ele esquemas sucessivamente mais complexos, decorrentes do seu desenvolvimento cognitivo.

O desdobramento que se segue é o estabelecimento de diferentes momentos de aquisição, adquiridos

sistematicamente, constituindo um modelo de aquisição em níveis, fases ou períodos. Estes sucedem-se

em graus crescentes de complexidade e aproximação da escrita convencional.

A interpretação do acesso ao conhecimento da escrita acentua a existência de um processo

evolutivo ao longo do desenvolvimento infantil, cuja gênese é preciso descrever e explicar.

Num trecho extraído do livro Psicogênese da língua escrita, a perspectiva sob a qual a

investigação se realizará é declarada por Ferreiro e Teberosky (1985, p. 42):

Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura,

entendida como questionamento a respeito da natureza, função e valor

desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a

escola imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. Que, além

dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito

que busca a aquisição de conhecimento, que se propõe problemas e

trata de solucioná-los, segundo sua própria metodologia... Insistiremos

sobre o que se segue: trata-se de um sujeito que procura adquirir

conhecimento e, não simplesmente de um sujeito disposto ou mal

disposto a adquirir uma técnica particular. Um sujeito que a psicologia

da lecto-escrita esqueceu...

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6.4.1 Coletando dados

Algo só se torna observável, pois, em função de informações prévias. Sobretudo na pesquisa

psicológica, as evidências são fragmentárias, nem sempre contínuas, e a observação está restrita às

condutas que apenas indicam processos mentais não observáveis diretamente. Fazer a conexão entre esses

fatos, e dar coerência e articulação a eles, exige uma construção de caráter teórico por parte do

pesquisador.

A pesquisadora procura deixar claro o conjunto de postulados que informa o seu olhar sobre os

dados. Tendo claro que o edifício teórico piagetiano acumulava poucas pesquisas sobre a linguagem,

reservando a esta um papel marginal na constituição das competências cognitivas, Ferreiro busca na

Psicolingüística as ferramentas disponíveis para enfrentar seus objetivos.

A partir da década de 60, a contribuição desta ciência passa a incorporar mudanças importantes na

forma de compreender a aquisição da língua oral.

Enfatizando a contribuição de Noam Chiomsky, Ferreiro indica que a ênfase do trabalho deste

pesquisador no estudo da aquisição das regras sintáticas da linguagem demonstrou a existência de uma

distinção entre a competência e o desempenho exibidos pelos sujeitos. Tal distinção acentua que a

existência de um conjunto de conhecimentos sobre um domínio particular, inconsciente para o próprio

sujeito, não pode ser confundida com o que este mesmo sujeito é capaz de fazer numa situação particular.

O fato de uma criança não ser capaz de repetir oralmente palavras conhecidas da língua oral não

pode ser interpretado como uma incapacidade para compreender e produzir distinções no uso da língua

materna. Ao ingressar na série onde começa a ocorrer o ensino sistemático das letras, a criança já detém

uma grande competência lingüística que não é considerada, pois a escola trata a aquisição da escrita como

se esta fosse idêntica à apropriação da fala e que o modelo de aprendizagem da língua oral que a maioria

dos métodos de alfabetização reproduz sustenta-se num conhecimento já ultrapassado.

Na verdade, Ferreiro apoia-se na concepção de que a linguagem atua como uma representação, ao

invés de ser apenas a transcrição gráfica dos sons falados. O mundo verbal, incluindo fala e escrita, é ao

mesmo tempo um sistema com relações internas entre ambos os códigos (fala e escrita), onde não há

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estrita correspondência entre ambos. Além disso, a escrita é também um sistema que se relaciona com o

real.

Um dos primeiros problemas enfrentados pela criança, para desvendar a escrita, é compreender o

que as marcas sobre o papel representam e como se realiza esta representação. Partindo desses princípios

teóricos, uma concepção de linguagem escrita como um sistema de representação e uma concepção de

sujeito da aprendizagem (sujeito epistêmico) baseado na teoria piagetiana, Ferreiro faz uma síntese

geradora de suas hipóteses.

Para observar e coletar os dados as crianças, seria necessário fazer uma distinção primordial: entre

a técnica de ensino e os processos de aprendizagem. As condutas escritas de um aprendiz não são o mero

resultado daquilo que o professor ensina. Existe um processo de construção desde conhecimento que nem

sempre coincide como o que está sendo ensinado. Como flagrar esses processos de construção?

Os testes e formas tradicionais de medir o conhecimento das crianças, os chamados ‘’testes de

prontidão’’, não poderiam ser utilizados. Seus objetivos são muito diferentes, já que pretendem avaliar as

capacidades relacionadas ã percepção e à motricidade.

Reproduzir letras sobre uma folha em branco é também parte da tarefa de escrever, relaciona-se

com os aspectos figurativos, externos da escrita, por fazer parte de seu resultado material e indica a maior

ou menor habilidade da criança para desenhar letras. Essa habilidade é considerada um indício de que a

criança estaria pronta para iniciar a aprendizagem da escrita. É a famosa maturação ou prontidão para a

alfabetização. Mas o desenho das letras não abrange todos os problemas cognitivos a serem enfrentados.

Resta questão fundamental: compreender a natureza da escrita e sua organização.

Ora, o resultado da aplicação destes testes não traz indicações do grau de compreensão da criança

quanto ao aspecto interior da escrita, isto é, quanto ao seu caráter simbólico. Se a escrita representa parte

da linguagem falada, ela o faz através de uma convenção que é arbitrada socialmente. Esse é um

obstáculo importante a ser superado e não é tarefa simples, do ponto de vista intelectual. Nenhuma

característica da escrita tem semelhança com o objeto representado. As letras, que para um iniciante são

apenas traços no papel, simbolizam sons da fala e compreender este conteúdo implica ser capaz de

estabelecer relações simbólicas com as coisas, isto é, relações que são mediadas por um objeto que as

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substitui ou representa. Há um outro obstáculo a superar: compreender de que forma se dá a organização

da escrita.

São exatamente estes os aspectos conceituais ou construtivos, domínio que a psicogênese da

escrita pretendia desvendar. Sendo assim, criou-se uma situação experimental nova, que não implicasse

apenas tarefas de cópia. Para flagrar as eventuais hipóteses da criança,-- elaboradas para compreender as

funções e a organização do sistema--, seria necessário observar a conduta espontânea no registro gráfico.

Uma outra hipótese auxiliar da pesquisa, é a de que a exposição da criança a atos de leitura e

escrita, existentes no ambiente social em que vive, cria oportunidades para que ela reflita sobre esse

objeto. Antes do ensino sistemático e escolar, as crianças já possuem algum conhecimento sobre este

objeto. Crianças estas, que desfrutam de oportunidades de interação com a escrita em situações informais,

próprias dos ambientes com alto grau de letramento.

Assim, num contexto onde a escrita e a leitura fazem parte das práticas cotidianas, a criança tem a

oportunidade de observar adultos utilizando a leitura de jornais, bulas, instruções; o uso da escrita para

confecção de listas, preenchimento de cheques e documentos, pequenas comunicações e atos de leitura

dirigidos a ela (ouvir histórias lidas). A participação nessas atividades ou a observação de como os

adultos interagem com a escrita e a leitura gera oportunidades para que a criança reflita sobre o seu

significado para os adultos.

Com isto, podemos prever a existência de diferenças entre as crianças, relacionadas ao grau de

exposição à escrita, presentes nos ambientes em que vivem. Sabemos que existem fortes diferenças entre

o grupos sociais de uma determinada população, e a menor presença e valorização da escrita e de outros

alfabetizados costuma ser uma das vertentes presente em grupos sociais marginalizados. Seria necessário,

então, comparar o desempenho de crianças de níveis sociais diferentes.

Voltando a situação experimental, as tarefas eram realizadas em entrevistas individuais, em vários

momentos ao longo de um ano. Uma das tarefas de leitura implicava a classificação de cartões,

separando-os em dois grupos: os que se podem e os que não podem ler. Alguns continham números

isolados, mais de um número, números e letras num mesmo conjunto, letras isoladas ou várias letras

juntas. Quanto ao tipo de letras, foram utilizados cartões escritos com letra cursiva, assim como letra

escript ou de imprensa. O objetivo era pesquisar a existência de critério particulares da criança, utilizados

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para aceitar ou rejeitar algo como adequado para ler. Uma outra situação de leitura consistia na

apresentação de pranchas com figuras acompanhadas de textos a serem interpretados.

Nas situações de escrita, a tarefa da criança era escrever palavras ditadas pelo experimentador. O

conteúdo deveria fazer parte do repertório de palavras conhecidas pela criança às quais, portanto, ela

fosse capaz de atribuir significado. Escrever palavras ainda não ensinadas representava um problema a ser

resolvido pela criança. Também foram introduzidas situações de conflito, e a interação entre o sujeito e o

experimentador pretendia aclarar o raciocínio usado pela criança para chegar à solução gráfica.

A série de palavras propostas para a escrita mantinha entre si uma relação semântica, fazendo

parte de um mesmo conjunto de significados ou temas. Após cada palavra a criança deveria ler a própria

produção.

Durante a primeira investigação realizada na Argentina foram acompanhadas 30 crianças de classe

social baixa, por estar concentrado neste setor socio-econômico o maior índice de fracasso nas séries

iniciais. Filhos de pais moradores das regiões periféricas da cidade, com ocupações não qualificadas ou

vivendo de trabalho temporário, metade das crianças freqüentava a escola pela primeira vez, não sendo

egressas da pré-escola.

Os resultados iniciais revelaram que mesmo crianças de classe social baixa não iniciam a

escolaridade com nível zero de conhecimento da escrita.

Foi utilizado um estudo do tipo transversal para buscar essas observações com crianças entre 4 e 6

anos, escolarizadas, de classe social baixa e média; num total de 108 sujeitos, e tanto no estudo

longitudinal como no transversal, foram aplicados o mesmo método e as mesmas tarefas.

6.4.2 Critérios de legibilidade

As observações que resumiremos na seqüência são o resultado da aplicação da tarefa de

classificação de cartões com informações escritas. A interpretação dos resultados levou a concluir que,

mesmo antes de ler, as crianças têm idéias precisas sobre critérios que distinguem textos que servem para

ler dos outros que não permitem a leitura. Estes critérios são muito diferentes dos utilizados pelo adulto.

Hipótese da quantidade mínima de letras:

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O critério mais freqüentemente apresentado na solução das crianças foi a distinção entre cartões

com poucos caracteres (sejam estes caracteres letras ou números) sob a justificativa der que “com poucas

letras não se pode ler”. Na maioria das vezes, este critério quantitativo utilizado tinha como limite

mínimo a presença de três letras. A respeito de grafismos menores: “são muitos curtinhas”, “tem uma ou

duas”, ou ainda “onde há umas pouquinhas não é para ler; aqui tem mais pouquinhas letras, tem duas

(cartões AS e SO)”. Para os cartões legíveis, dizem que “tem muitas, como quatro”, tem que ter “muitas

coisas, um montão”.

A maneira como as crianças contam os caracteres também é importante. Em geral, quando a letra

é a de imprensa maiúscula, não há ambigüidade na distinção entre uma letra e outra e a contagem é

precisa. O mesmo não ocorre com a letra manuscrita. Neste caso, fica difícil, para a criança que não

conhece os traços distintivos entre uma letra e outra, efetuar a contagem precisa das unidades que

compõem um conjunto. A esse critério infantil Ferreiro dá o nome de hipótese da quantidade mínima de

caracteres. O que surpreende é que, para lidar com um objeto obscuro e resistente à compreensão, a

criança construa uma hipótese deste tipo, exemplar de como se constitui um esquema de assimilação. Isto

prevê a recusa da criança em atribuir significado aos artigos, definidos ou indefinidos, preposições e

outras palavras com um número menor de letras. Isso é um conteúdo importante a ser considerado na

prática pedagógica, principalmente se considerarmos a natureza da organização das cartilhas que apoiam

as práticas de iniciação da leitura e da escrita, oferecendo lições iniciais destinadas à aprendizagem das

vogais isoladas, seguida da combinação dessas letras em conjunto de duas letras.

A natureza do traçado que se oferece à criança nos primeiros materiais de leitura também deve ser

considerada. A leitura de textos em letra cursiva será potencialmente um obstáculo à interpretação, pela

ambigüidade para a distinção do número de caracteres constituintes dos textos.

b) Hipótese da variedade de caracteres:

Mais freqüentemente em crianças de classe média, há a evidência da construção de critérios

qualitativos para definir a legibilidade. Isso não significa que tais critérios não apareçam em crianças de

classe social baixa, mas que o predomínio é maior nas outras. Esse critério qualitativo também não se

refere à compreensão do valor simbólico das letras. Raras vezes apareceram condutas que aceitavam

cartões para ler porque continham letras e nomes cuja forma escrita era conhecida, e, quando isto ocorreu,

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aqui sim, foi exclusivo de criança de classe média, o que indica como as práticas letradas do ambiente

social podem fazer avançar a reflexão da criança sobre a escrita entes do início da escolarização.

O critério qualitativo a que se refere a pesquisa é a análise feita pelas crianças das semelhanças

entre as letras que constituem um conjunto. Se as letras são iguais, mesmo atendendo a um mínimo de

três, elas também não servem para ler.

Os cartões MMMMMM, AAAAAA e MANTEIGA, por exemplo, tiveram recusa, com as

justificativas de que essas são para ler, com as outras letras”, “porque tem tudo a mesma coisa”. Já o

cartão MANTEIGA é aceito “porque não tem tantas letras iguais” ou , “não sei o que diz, mas é de ler”.

As respostas das crianças indicam claramente a necessidade de que as letras constantes de um

texto devam exigir variedade. A esse critério, Ferreiro categorizou como hipótese de variedade de

caracteres. É difícil deixar de fazer observações sobre o conteúdo que se segue às primeiras lições com as

vogais e suas combinações. Nas cartilhas mais utilizadas pela rede pública, por exemplo, as lições que se

seguem às que já nos referimos apresentam um grande número de palavras compostas por sílabas

repetidas. Isso se justifica quando a escrita é analisada do ponto de vista do adulto. Como deixar de

pensar que a aprendizagem pode ser facilitada com palavras simples, onde uma sílaba já dominada

aparece mais de uma vez?

Do ponto de vista da criança, em vez de facilitar, esse recurso gera um obstáculo. Palavras como

papa, bala babá, coco, tão freqüentes nas cartilhas brasileiras, podem dificultar a interpretação destes

textos como legíveis, exatamente porque têm numa baixa variedade de letras.

Superar ou ampliar este esquema de assimilação exigiria a presença de outros conteúdos para a

leitura, o que é impedido pela prática, de longa tradição, de que primeiro é necessário dominar certas

palavras para depois seguir em frente. Voltando a pesquisa, ao adulto, a escrita parece homogênea porque

temos critérios apurados para enxergar o que é relevante à leitura. Para uma criança iniciante, ao

contrário, tudo parece igualmente importante, até que haja uma construção de diferenciações entre os

traços gráficos. Definiu-se alguns estágios específicos da emergência destas distinções.

6.4.3 Diferenciação de elementos gráficos

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Analisando cartões anteriormente comentados e de interação do experimentador com a criança,

folheando um livro de histórias, perguntou-se sobre os desenhos e os textos, a pergunta “O que é isto?”,

aplicada a ambos, dotava o experimentador do nome atribuído pela criança ao segmento apontado. Este

passava, então, a ser utilizado para se referir aos diferentes contextos gráficos (icônico ou escrito). O

reconhecimento do seu próprio nome impresso e a escrita deste conteúdo com letras móveis ou com lápis

e papel também foram situações utilizadas para a coleta de dados.

6.4.4 Relação entre letras e números

Existem três momentos distintos na construção da diferenciação entre letras e números. No

primeiro momento, haveria uma aparente confusão entre ambos. Aparente, porque letras e números são

colocados juntos por oposição ao desenho. Compartilham, portanto, o atributo de não serem grafismos

figurativos, e podem, deste ponto de vista, estar juntos.

A existência deste estágio indica que as crianças estão resolvendo outro problema conceitual

prévio onde não é possível ainda a coordenação de diferenciações apenas destes caracteres gráficos, uma

vez que se consolida a distinção entre o icônico e a notação alfabética. Não existem evidências de que a

criança utilize apenas a imagem para a leitura, ainda que indique a ambos como necessários para ler.

Neste caso, criança sabe que se lê nas letras, mas não abre mão da imagem para inferir o significado do

texto, utilizando amb9s como universos complementares.

Saber que se lê nas letras, no entanto, não implica que escrita colocada a distinção entre letras e

números. Quanto a este aspecto, as crianças de classe baixa estão em forte inferioridade em relação às de

classe média. A escrita de números não se baseia no sistema alfabético usado para o registro de palavras;

a leitura destes é muito mais ideográfica. O fato de que o universo de possibilidades para a escrita dos

números é muito mais reduzido do que o das letras. Consequentemente, pode ser mais rápida a

apropriação das distinções próprias dos números.

Num segundo momento, a diferenciação letras/números seira a construção da distinção entre as

funções de ambos: letras servem para ler e números para contar.

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O terceiro momento pode ocorrer quando a criança, tendo já superado a indistinção inicial, volta a

Ter conflitos na diferenciação, por lidar com adultos que “lêem palavras” e “lêem números”, assim como

“contam” elementos de um conjunto e “contam” também histórias.

Vale salientar que crianças da classe social baixa, ou pelo menos, a sua menor freqüência, traz

fortes contrastes na capacidade de diferenciar números e letras, quando são comparados este grupo social

e o de classe média, refletindo a influencia do meio e de práticas culturais que cercam a criança na

interpretação e construção do conhecimento.

O mesmo se pode dizer do grau de conhecimento das letras uma a uma e da capacidade para

nomeá-las. É preciso enfatizar que este é um conhecimento típico da transmissão cultural. Não é um

conteúdo que possa ser elaborado através de níveis de conceitualização próprios da criança, já que as

letras e seus nomes são fruto de um conhecimento que é arbitrado socialmente quanto ao reconhecimento

de letras e à capacidade de nomeá-las, constatou-se a existência de níveis gradativos de aproximação com

o conhecimento socialmente válido.

6.4.5 O conhecimento das letras

O nível mais elementar desta aproximação é composto por condutas que demostram o

conhecimento de uma ou duas letras, principalmente as iniciais do seu próprio nome, sem atribuir nomes

às letras. Dessa forma, uma letra é reconhecida pelo seu possuidor, isto é, pela pertinência ao nome de

alguém conhecido. As crianças costumam referir-se a elas como índices destes nomes: o CA da

Carolina”, P é de “papai”, M é de “mamãe”, etc.

O próximo nível na evolução deste conhecimento refere-se às crianças que reconhecem e

nomeiam de maneira estável as vogais, identificando as consoantes. Por exemplo, Carlos (6 anos) diz que

o G é do “gu” de Gustavo: há um sutil aumento da complexidade do conhecimento: além de

reconhecerem as letras pelo seu possuidor, não as nomeiam, mas atribuem a elas o valor sonoro da sílaba

inicial da palavra. Convém enfatizar, ainda, que todas as crianças com estas condutas pertenciam à classe

média.

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O próximo passo é constituído pelo domínio dos nomes corretos de todas as vogais e de algumas

consoantes.

O último nível de aquisição é o representado pelas crianças que nomeiam todas as letras do

alfabeto e são capazes, em algumas delas, de indicar o valor sonoro além do nome. Na progressão

genética os nomes das letras precedem o conhecimento do valor sonoro. Outra observação é a ativa

exploração infantil feita sobre as letras do alfabeto.

A aparente confusão inicial entre letras e números, demonstrada pelas crianças em momentos

precoces da gênese, não deveria ser encarada como tão estranha. Certas diferenciações, hoje bem

definidas na escrita alfabéticas que utilizamos, são na verdade aquisições tardias na história do sistema.

6.4.6 Letras e sinais de pontuação

Para concluir a forma como se originam essas primeiras diferenciações feitas pela criança entre os

muitos elementos gráficos que fazem parte da escrita, faremos breves comentários sobre a distinção entre

as letras e os sinais de pontuação e a aprendizagem da orientação para a leitura. Para o adulto, parecem

ser conteúdos da aprendizagem óbvia e simples. Na verdade, o que temos pouca possibilidade de

compreender ou recuperar, porque vemos a escrita com o olhar do alfabetizado, é a impossibilidade

inicial da criança, estrangeira ao sistema, definir, como o adulto o faz, essas distinções sutis. Para um

estrangeiro da notação alfabética tudo parece ser igualmente relevante.

Tanto os sinais de pontuação como a orientação da leitura são conteúdos específicos do aspecto

arbitrário da convenção escrita, que, portanto, não podem ser deduzidos pelo raciocínio infantil. Pode-se

inferir que o ensino escolar não será o mesmo para as crianças de classe média e de classe baixa,

considerando-se as diferenças nas práticas prévias à escolarização, no que se refere à escrita e à leitura.

Em relação aos sinais de pontuação, passa-se de uma inicial indiferenciação destes para a

distinção do ponto, dois-pontos, hífen e reticências. O estágio seguinte consolida esta distinção, sem que a

criança nomeie os sinais diferenciados.

O próximo passo leva à distinção de todos, com exceção do (;) que continua assimilado ao i.

Quanto aos demais, embora as crianças não os nomeiem, sabem que não são letras nem números.

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No estágio final, há diferenciação nítida dos sinais de pontuação não mais assimilados às letras ou

números, nomeados agora pela criança como “sinais” ou “marcas”.

6.4.7 Orientação espacial para a leitura

A respeito da orientação espacial para a leitura, é preciso ressaltar que este é um dos aspectos mais

estritamente arbitrários do sistema. Assistir a atos de leitura, dirigidos ou não a ela, acompanhados de

gestos indicadores de onde a leitura está sendo processada, é ocasião e fonte para assimilar essa

informação.

Sintetizando, as crianças, muito antes de serem capazes de ler, são capazes de aplicar ao texto

escrito critérios formais específicos, muitos dos quais não poderiam decorrer do ensino do adulto. São

dependentes deste apenas aqueles ligados à parte mais arbitrária da convenção escrita.

Sobretudo a exigência de um mínimo de letras para se efetuar o ato de leitura, a variedade de

caracteres dentro deste mínimo e a conversão da letra isolada em número são conteúdos que não

poderiam Ter sido ensinados por um alfabetizado, constituindo-se em evidências de uma elaboração

própria das crianças, por aplicação de seus esquemas interpretativos a um objeto que oferece resistência à

compreensão.

Encarar tais fatos como “confusão” é deixar de ver que existe uma sistematização infantil que

ocorre em bases muito diferentes daquela feita pelo adulto.

6.5 SITUAÇÕES EXPERIMENTAIS

Para fazer as explorações sobre a escrita infantil, coloquei em prática algumas situações de

produção na sala de aula na qual sou professora, que incluíam a escrita do próprio nome da criança, do

nome de algum amigo ou membro da família, a escrita de palavras muito freqüentes o início da

alfabetização, o contraste de situações de desenhar e escrever e a escrita de outras palavras ainda

desconhecidas para a criança, incluindo também uma frase. Em geral, a inclusão deste último item

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costuma chamar muito a atenção, causando estranheza, sobretudo aos professores. Por que pedir às

crianças para escreverem algo que ainda não aprenderam?

Emília Ferreiro justifica a proposta pela razão de que a escrita espontânea, produzida antes do

ensino sistemático, traz os mais claros indicadores das explorações infantis para compreender a natureza

do processo.

Quando uma criança escreve tal como acredita que poderia ou

deveria escrever certo conjunto de palavras, está nos oferecendo um

valiosíssimo documento que necessita ser interpretado para poder ser

avaliado (...) Aprender a lê-las – isto é, a interpretá-las – é um longo

aprendizado que requerer uma atitude teórica definida. (Ferreiro, E.

1989, p. 24)

Uma criança, mesmo antes de entrar para a escola, costuma rabiscar utilizando lápis e papel, se

tiver oportunidade para isso. Essas primeiras escritas nunca foram adequadamente consideradas, sendo

vistas apenas como rabiscos ou garatujas sem importância. Mas, se permitirmos da teoria piagetiana,

sabemos que as crianças fazem explorações ativas sobre os objetos de conhecimento. Ao escreverem uma

palavra ainda não aprendida, colocarão em jogo as concepções que fazem sobre a escrita, em busca de

uma resposta para a solução do problema de registrar uma palavra de significado conhecido, mas de

forma gráfica ainda obscura.

Há uma aceitação tranqüila das explorações de um pré-escolar ao tentar decifrar escritas que lhe

chamem a atenção. No entanto, o adulto costuma agir de forma diferente quando a criança tenta escrever.

Há freqüentes tentativas de controle sobre a produção infantil. A idéia de que a aprendizagem da escrita

só se inicia a partir da autorização do adulto, e o controle explícito do que deve ser escrito, é

suficientemente forte para que a criança tenha a recepção de que para escrever deve fazê-lo corretamente,

a partir do ensino escolar. Daí a criança se recusar a escrever antes de ter sido ensinada, reação tanto mais

intensa quanto maior for seu grau de conhecimento ou interação com as práticas escolares.

Tradicionalmente, a escrita infantil fora olhada apenas nos seus aspectos figurativos, isto é, no seu

aspecto gráfico, que tem a ver com a qualidade do traço gráfico, com a distribuição das formas, com a

orientação da escrita ou a orientação do traçado das letras (inversões ou rotações).

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O conteúdo importante é aquele referente ao que a criança quis representar e às estratégias

utilizadas para fazer diferenciações e representações. Estas constituem os aspectos construtivos da escrita,

que sofrem uma evolução regular, já constatados como semelhantes em crianças de diferentes línguas,

ambientes culturais e situações de produção. Aí, podem ser distinguidos três grandes períodos no interior

dos quis cabem múltiplas subdivisões:

Distinção entre o modo de representação icônico e o não-icônico;

-A construção de formas de diferenciação (controle progressivo das variações sobre os eixos

qualitativo e quantitativo);

- A fonetização da escrita (que se inicia com um período silábico e culmina no período alfabético).

- A distinção entre “desenhar” e “escrever” é de fundamental importância.

Ao desenhar se está no domínio do icônico; as formas dos grafismos importam porque

reproduzem a forma dos objetos. Ao escrever se está fora do icônico: as formas dos grafismos não

reproduzem a forma dos objetos, nem sua ordenação espacial reproduz o contorno dos mesmos. As

crianças não empregam seus esforços intelectuais para inventar letras novas: recebem a forma das letras

da sociedade e as adotam tal e qual.

Por outro lado as crianças dedicam um grande esforço intelectual na construção de formas de

diferenciação entre as escritas e é isso que caracteriza o período seguinte. Esses critérios de diferenciação

são, inicialmente, intrafigurais e consistem no estabelecimento das propriedades que um texto escrito

deve possuir para poder ser interpretável. Esses critérios o eixo qualitativo, como a variação interna

necessária para que uma série de grafias possa ser interpretada (se o escrito tem “o tempo todo a mesma

letra”, não se pode ler, ou seja, não é interpretável).

O passo seguinte se caracteriza pela busca de diferenciações entre as escritas produzidas,

precisamente para “dizer coisas diferentes”. Começa então uma busca difícil e muito elaborada de modos

de diferenciação, que resultam sem interfigurais;

Nestes primeiros períodos, o escrito não está regulado por diferenças ou semelhanças entre os

significantes sonoros. É a atenção às propriedades sonoras do significante que marca o ingresso no

terceiro grande período desta evolução. A criança começa por descobrir que as partes da escrita (suas

letras) podem corresponder a outras tantas partes da palavras escrita ( suas sílabas). Sobre o eixo

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quantitativo, isto se exprime na descoberta de que a quantidade de letras com que se vai escrever uma

palavra pode ter correspondência com a quantidade de partes que se reconhece na emissão oral. Essas

“partes” da palavra são inicialmente as suas sílabas. Inicia-se assim o período silábico, que evolui até

chegar a uma exigência rigorosa: uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras. Essa

hipótese silábica é da maior importância, por duas razões: permite obter um critério geral para regular as

variações na quantidade de letras que devem ser escritas, e centra a atenção da criança nas variações

sonoras entre as palavras. No entanto, a hipótese silábica tira suas próprias condições de contradição:

contradição entre o controle silábico e a quantidade mínima de letras que uma escrita deve possuir para

ser “interpretável “(por exemplo, o monossílabo deveria se escrever com uma única letra, mas se se

coloca uma letra só, o escrito “não se pode ler” , ou seja, não é interpretável); além disso, contradição

entre a interpretação silábica e as escritas produzidas pelos adultos ( que sempre terão mais letras do que

as que a hipótese silábica permite antecipar).

No mesmo período as letras podem começar a adquirir valores sonoros (silábicos) relativamente

estáveis, o que leva a se estabelecer correspondência com o eixo qualitativo: as partes sonoras

semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por letras semelhantes. E esto também gera suas

formas particulares de conflito.

Os conflitos antes mencionados, vão desestabilizando progressivamente a hipótese silábica, até

que a criança tem coragem suficiente para se comprometer em um novo processo der construção. O

período silábico-alfabético marca a transição entre os esquemas prévios em via de serem abandonados e

os esquemas futuros em vias de serem construídos. Quando a criança descobre que a sílaba não pode ser

considerada como um unidade, mas que é, por sua vez, realizável em elementos menores, ingressa no

último passo da compreensão do sistema socialmente estabelecido. E, a partir daí, descobre novos

problemas: pelo lado quantitativo que se por lado não basta uma letra por sílaba, também não se pode

estabelecer nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por sílaba (já que há sílabas que se

escrevem com uma, duas, três ou mais letras); pelo lado qualitativo, enfrentará os problemas ortográficos

(a identidade de som não garante identidade de letras, nem a identidade de letras a de sons).

6.5.1 Construções originais das crianças

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Entre os resultados mais surpreendentes das experiências que obtive (através de diferentes

situações experimentais) se situam aqueles que demonstram que as crianças elaboram idéias próprias a

respeito dos sinais escritos, idéias estas que não podem ser atribuídas à influência do meio ambiente.

Uma vez realizada a distinção entre “o que é uma figura e “o que não é uma figura”, começa um

trabalho cognitivo em relação a este segundo conjunto, e surge o critério, que temos chamado de

“quantidade mínima de caracteres”, critério este que perdura por muito tempo e que tem uma influência

decisiva em toda a evolução. Não basta quer haja letras é preciso uma certa quantidade mínima para que

se possa ler, já que “com poucas não se pode ler”.

O critério seguinte refere-se à “variedade interna de caracteres”. Para que se possa ler é necessário

que estas grafias variem, que não se repitam sempre as mesmas.

Estas exigências aparecem diante de escritas descontextuadas, mas também surgem nas escritas

feitas pelas crianças (em oposição à cópia de escritas de terceiros). De onde vem a idéia infantil de que

não se pode ler com poucas letras? Ambas as hipóteses, a da quantidade e a da variedade, são construções

próprias das crianças, no sentido de elaborações internas que não dependem do ensino do adulto e nem da

presença de amostras de escrita onde podem aparecer anotações de uma ou duas letras, com reduzida

variedade interna. São exigências puramente formais, sistematizações feitas pelas crianças ao operarem

com base no próprio raciocínio.

Quando o adulto fornece informações específicas sobre um texto, elas também são processadas de

acordo com o sistema de concepções infantis. A criança faz uma distinção entre ”o que está escrito” e “o

que se pode ler”. Por volta dos quatro ou cinco anos as crianças pensam se pode escrever apenas os

substantivos. Consideremos um exemplo concreto para esclarecer isto. Apresentamos e lemos para a

criança a oração: “O garoto comeu um doce.” A criança a repete corretamente. Se lhe perguntarmos onde

está escrito “garoto” ou “doce” não terá dificuldades em assinalar alguma das palavras escritas, mas não

lhe ocorrerá que o verbo, e muito menos os artigos estejam, escritos. De acordo com a análise realizada

pelas crianças deste nível, existem partes escritas em demasia, e bastaria apenas duas palavras: “garoto” e

“doce” para se poder ler uma oração completa. O que falta não é memória imediata (já que a criança

consegue repetir a oração quando lhe perguntamos: “o que dizia o texto todo?”). É um problema contraste

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de concepções. Para poder utilizar informação fornecida pelo adulto, a criança deveria partir das

suposições básicas de nosso sistema escrito: que todas as palavras ditas estão escritas, e que a ordem da

escrita corresponde à ordem da enunciação. Com estas duas suposições ( e sem conseguirem ainda

decifrar o texto) as crianças de outros níveis conseguem focalizar corretamente todas as palavras da

oração nas partes do texto. Mas estas suposições (que são as primeiras para um adulto alfabetizando) não

são as primeiras, do ponto de vista genético. São o produto de uma ampla evolução.

Vejamos um exemplo de tipos extremos de conduta de diferentes crianças frente a uma mesma

oração escrita. Leonardo, 6 anos, ainda não sabe decifrar o texto, mas já trabalha com as suposições

básicas que acabamos de mencionar. Para encontrar a posição de cada uma das palavras do texto, repete a

oração para si, desde o começo, enquanto vai mostrando uma palavra escrita para cada palavra dita. Este é

um procedimento muito eficaz, utilizado por várias crianças, quando já supõe que todas as palavras ditas

estejam escritas na mesma ordem em que foram emitidas.

Já Renata, não tem problemas para reter a oração na memória imediata. Simplesmente não

encontra razões válidas para pensar que possa estar escrito “a”; então, como muitas outras crianças, que

tentam compreender o que pode estar representado neste “negócio” escrito como apenas uma letra, chega

à seguinte conclusão: a uma escrita incompleta (já que tem menos letras do que as necessárias) só pode

corresponder uma parte incompleta de um nome (isto é, uma parte silábica: “pá” de “panela”). No caso

específico da oração que tomamos como exemplo, as crianças que não pensam que o verbo possa estar

escrito encontram uma solução imediata: transformar “martelou” no substantivo correspondente,

“martelo”.

Vale ressaltar que os níveis de conceitualização expressam uma seqüência psicogeneticamente

ordenada e não uma série cronológica.

Estas respostas, sustentadas pela suposição de que somente os substantivos estão escritos, são

complementa alheias ao pensamento de um adulto alfabetizado. Entretanto, por mais estranho que nos

pareça, não são as respostas mais primitivas, já que supõem que as letras possam “dizer” algo, fora de

qualquer contexto significativo. A dificuldade de se interpretar essas letras em outro apoio simbólico ou

material está claramente indicada no seguinte exemplo: dizemos a Hiago (de 5 anos) que acabamos de

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escrever: “Um peixe nada”, e Hiago diz: Pois faça o peixe. Perguntamos-lhe se assim não se pode dizer a

oração e ele responde: “não, porque não tem nenhum peixe nadando. Faça um peixe e um rio”.

Hiago está nos indicando que não bastam as condições do diálogo: se quisermos que ele aceito o

que dissemos, devemos oferecer-lhe algo mais do que simples letras sobre um papel: pelo menos o

desenho de um pássaro, para que ele “possa dizer” o que acabamos de ler. Héctor, como outras crianças

do mesmo nível, já sabe que se lê nas letras, mas para que se possa ler nas letras é necessário algo mais,

precisamente aquilo que não é para se ler, mas que possibilita interpretar o que é para ler.

Pode-se ler somente nas letras (as figuras são somente “para se ver”, e não podem ser lidas porque

“não têm letras”); mas não se pode ler um texto sem imagens porque não tem o que deveria ter para se

poder interpretar as letras.

Até agora vimos como aparecem idéias propriamente infantis, construções originais e não meras

cópias das informações adultas. Tais construções aparecem antes e depois que as letras se vinculem à

representação de aspectos parciais e formais da fala. Antes, porque em determinado momento as crianças

procuram estabelecer a correspondência entre a quantidade de letras da palavra escrita e certas

propriedades quantificáveis do objeto. Depois, porque a primeira vinculação clara entre a escrita e os

aspectos formais da fala leva a criança a elaborar o que chamamos de “hipótese silábica”, segundo a qual

cada letra representa uma sílaba da palavra.

O sistema alfabético é o produto do esforço coletivo para representar o que se que simbolizar: a

linguagem. Como toda representação, baseia-se em uma construção mental que cria sua próprias regras.

Sabemos que desenhar não é reproduzir o que se lê, mas sem o que se sabe. Escrever não é transformar o

que se ouve em formas gráficas, assem como ler também não equivale a reproduzir com a boca o que o

olho reconhece visualmente.

6.6 ASPÉCTOS FUNDAMENTAIS DA EVOLUCÃO PSICOGENÉTICA

A partir dessas pesquisas realizadas , demonstrou-se que a leitura e escrita, como objetos culturais

do conhecimento, são adquiridos por um processo de auto-construção, no confronto e interação da criança

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como o seu meio. Nessas pesquisas, comprovou-se que os vários métodos e estratégias com vistas a

favorecer a compreensão e o domínio da leitura e escrita pela criança, assim como os testes de

maturidade, listas de habilidades motoras e perceptivas-temporais, não são suficientes para atingir o êxito

no processo da leitura e escrita. Por isso, essa educadora buscou na teoria de Piaget a explicação sobre o

desenvolvimento da criança no ato de ler e escrever, do ponto de vista cognitivo.

Com tudo, apresentaremos a seguir, as primeiras fases e os níveis da evolução da construção da

escrita e da leitura.

6.6.1 As garatujas

A partir de 2 anos (assim que a criança consegue pegar no lápis ou caneta), ela começa a

“rabiscar” (deixar marcas no papel). É a época das garatujas. Vide anexo 1.

A princípio, é a imitação mecânica do ato do adulto ao escrever. Mas, a nível conceitual, a criança

já dá nome aos seus rabiscos. Ela pode se referir a eles como: “é o papai”, ö caminhão dele”, “minha

casa”.

À medida que a criança vai crescendo nos seus estágios cognitivos e à medida que lhe é dada

oportunidade com materiais impressos e de desenho, ela vai avançando cada vez mais. É importante nesta

fase estimular a criança a folhear revistas, jornais, fotos, levando-a a interpretar gravuras e colocar à sua

disposição lápis cera, pincel atômico e folhas brancas, para representação gráfica do seu pensamento.

Após a fase das garatujas, a criança entra na fase icônica – a representação da escrita pela criança

através do desenho; Nesta fase, a criança vivência a hipótese de que escrever é desenhar, e ela então tenta

representar o objeto desenhando. A princípio, a sua representação é bem distante do objeto real, são

tentativas de desenhar o objeto, mas com uma forma ainda indefinida. A cada dia, sua representação do

objeto vai se aperfeiçoando até então chegar à representação bem definida do mesmo.

Não existe uma idade certa para a criança entrar nessa fase. Tudo vai depender da estimulação da

família e da escola e das oportunidades que são dadas à criança (de escrever e desenhar).

Num dado momento, a criança passa a perceber que escrever não é “desenhar”, chega a diferenciar

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desenho de escrita e portanto passa para a fase Pré-silábica ou Nível 1.

6.6.2 Nível 1 – Pré-silábico

Características:

As crianças desse nível produzem riscos e/ou rabiscos típicos da escrita que a criança tem como

forma básica (modelo de letra cursiva ou de imprensa). Dessa forma, se a criança trabalha na escola

com letra de imprensa, fará rabiscos separados, com linhas retas e curvas. Por outro lado, se na escola é

enfatizada a letra cursiva, a criança fará grafismos ondulados.

Nessa fase, a criança usa sempre os mesmos sinais gráficos (que podem ser letras convencionais

ou outros símbolos quaisquer).

As crianças pré-silábicas acham que os nomes das pessoas e das coisas têm relação com o seu

tamanho ou idade – Realismo nominal (coisas grandes, escreve grande; coisas pequenas, escreve

pequeno).

Exemplo: ao escrever boi, a criança pensa no tamanho do animal, por isso escreve a palavra boi

com muitas letras. Se for escrever formiguinha colocará poucas letras na sua escrita.

As crianças não separam os elementos das palavras, fazem sempre uma leitura global do que está

escrito. (Cada letra ou sinal vale pelo todo). Vide anexo 2, figura 1.

6.6.3 Nível 2 – Pré-silábico 2

Características:

É uma sub-fase do nível 1, porém mais evoluída. A criança, à vista de materiais gráficos descobre

que coisas diferentes têm nomes diferentes. Assim, ela imprime diferenças nas grafias das palavras, às

vezes mudando apenas a ordem das letras. Diferenciação qualitativa interrelacional.

Se o escrito tem o tempo todo as mesmas letras, não pode ser lido ou interpretado.

Exemplo :

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As crianças dedicam um grande esforço intelectual na construção de formas de diferenciação entre

as escritas.

Palavras formadas por menos de três sinais ou letras não servem para ler; por isso não escrevem

com menos de três letras ou sinais – Hipótese Quantitativa → toda escrita tem que ter no mínimo três

letras para que “diga algo”.

As crianças exploram então critérios que lhes permitem variações sobre o eixo qualitativo →

variar o repertório das letras que se utilizam de uma escrita para outra; variar a posição das mesmas sem

modificar a quantidade. Vide anexo 2, figura 2.

Observação: Para a criança chegar ao Pré-silábico 2, é muito importante o contato com as letras

concencionais a partir do próprio nome e do alfabeto móvel, senão ela ficará por muito tempo nos níveis

anteriores.

Nessa fase também trabalha-se com textos orais e escritos, frases e palavras; escrita espontânea

dentre outras atividades.

6.6.4 Nível 3 – Silábico

Características:

É a atenção da criança às atividades sonoras do significante que marca neste período a fonetização

da escrita (descoberta dos sons da fala), que se inicia com um período silábico e culmina no período

alfabético). A criança chega à hipótese de que a escrita representa a fala. É o momento em que a criança

faz a correspondência da escrito com a fla, sendo a fase mais importante da alfabetização.

A criança começa por descobrir que as partes da escrita (suas letras) podem corresponder a outras

tantas partes da palavra escrita (suas sílabas).

A criança formula a hipótese de que cada letra ou sinal vale por uma sílaba. Num primeiro

momento, as grafias são diferenciadas sem que as letras tenham seu valor sonoro convencional.

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Num grau de evolução maior, as crianças empregam nas suas grafias vogais e até consoantes

tendo já o seu valor convencional. (Empregam vogais ou consoantes das sílabas das palavras que querem

escrever).Vide anexo 2, figura 3.

Essa hipótese silábica é importante por duas razões:

1) Permite obter um critério geral para regular as variações na quantidade das letras que devem ser

escritas.

2) Centra a atenção da criança nas variações sonoras entre as palavras.

CONTRADIÇÕES

- Monossílabo deveria ser escrito com uma única letra, mas assim o escrito não poderá ser lido.

Como escrever pé, mar, sol?

- As escritas dos adultos possuem mais letras do que a hipótese silábica permite.

Observações: Nível silábico não significa capacidade da criança para compreender e assimilar

sílabas. Ela percebe sílabas (pedacinhos da palavra) oral e não na escrita.

Cabe ressaltar aqui que o trabalho com famílias silábicas (cartilha) nessa fase é inóculo e

improdutivo. A criança mesmo treinando as famílias incansavelmente, não as emprega na sua escrita

silábica. Veja aqui como ilustração o caso de Débora, 6 anos, sendo alfabetizada na pré-escola através do

método silábico. Apesar do treino diário de famílias silábicas, no final do ano, ela ainda não é capaz de

utilizar na sua escrita nenhuma sílaba, pois considera dentro do seu nível silábico que uma letra é uma

sílaba. Sílaba para ela na escrita ainda não é uma observável.

A criança só percebe a sílaba, formada por consoante + vogal no nível 4 - silábico alfabético.

Devido ao método silábico, esta criança terminou a pré-escola ainda no nível 3 - silábico, quando poderia

ter alcançado o nível 5 - alfabético, caso a escola mudasse a sua forma de alfabetizar.

No ensino tradicional, é comum a criança demorar muito tempo nesse nível e às vezes nem evoluir

no processo-aprendizagem. Essas crianças que demoram a avançar são muitas vezes consideradas

deficientes, incapazes, com dificuldades de aprendizagem, pela escola. Acontece que as crianças que

avançam com o método silábico possivelmente já alcançaram o nível 4 - silábico-alfabético, por isso

chegam rapidamente ao nível alfabético.

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As crianças no nível silábico não avançam trabalhando com a cartilha (famílias silábicas). Elas só

evoluem através de jogos com o alfabeto e sílabas móveis, que lhes permitam construir e comparar

palavras, sílabas, separar (cortando sílabas) palavras e outras atividades específicas para este nível. É

comum nessa fase as crianças reconhecerem e serem todas as sílabas simples, mas não as utilizam na

escrita. (A leitura é visual, por isso é mais fácil que escrever).

Compete ao professor trabalhar, ao mesmo tempo, leitura e escrita, senão a criança ficará então

defasada numa ou noutra aprendizagem.

É importante também descobrir o processo de construção do aluno (que é subjacente a qualquer

método de alfabetização). O aluno tem o seu método próprio de aprender e muitas vezes não aprende com

o método que lhe é proposto pela escola.

Cada aluno tem uma forma própria de aprender, e isto tem que ser conhecido e respeitado pelo

professor.

Nesse nível o aluno pode utilizar-se (na leitura) da soletração (m + a = ma; p + a = pa). Isso é

normal e muitas vezes necessário para alguns alunos. Se o professor respeitar essa necessidade do aluno,

logo, ele chegará ao Nível 4, sem precisar mais desse recurso.

Para a criança passar do nível silábico para o nível silábico-alfabético, é imprescindível que ela

descubra a construção da sílaba. Isto lhe será possibilitado nos jogos com o alfabeto móvel. A criança ao

colocar uma consoante e ao seu lado as vogais, descobrirá a família silábica e transporá este

conhecimento para as demais consoantes:

Ex:

M + E = ME M + A = MA etc.

6.6.5 Nível 4 – Silábico-Alfabético

Características:

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O período Silábico-Alfabético marca a transição entre os esquemas prévios em via de ser

abandonados (hipótese silábica) e os esquemas futuros em vias de ser construídos. A criança descobre que

a sílaba não pode ser considerada como uma unidade, mas que ela é, por sua vez, composta de elementos

menores.

A criança enfrentará então novos problemas:

- não basta uma letra por sílaba, mas também não se pode estabelecer nenhuma regularidade,

duplicando a quantidade de letras por sílabas, já que há sílabas com uma, duas, três ou mais letras.

- enfrentará os problemas ortográficos: a identidade do som não garante a identidade das letras,

nem a identidade de letras, a de som.

(mesmo som --- várias letras) Exemplos: xícara - chinelo - selo - cedo.

QUANTITATIVO - Ao descobrir que o esquema de uma letra por sílaba não funciona, a criança

procura acrescentar letras à escrita da fase anterior.

QUALITATIVO - Começa então a grafar algumas sílabas completas são a primeira ou a última da

palavra. (Mescla de duas concepções-silábicas e silábica-alfabética. Essa fase pode caracterizar a omissão

de letras pela criança, mas na verdade a criança está acrescentando letras à sua escrita da fase anterior

(silábica).

Trata-se de uma progressão e não de retrocesso. Nessa fase, é muito importante o trabalho com

letras e sílabas móveis nos jogos e atividades. Vide anexo 2, figura 4.

6.6.6 Nível 5 – Alfabético

Características:

Ao chegar nesse nível, pode-se considerar que o aluno atingiu a compreensão do sistema de

representação da linguagem escrita. Ele percebe que a palavra escrita é constituída de subconjunto de

letras que são as sílabas. O aluno já é capaz de fazer a análise sonora dos fonemas das palavras, porque

descobre que cada letra corresponde a valores menores que a sílaba. Isso porém não significa que todas as

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dificuldades estejam vencidas. A partir daí, surgirão os problemas relativos à ortografia que serão

trabalhados e tratados no período pós-alfabetização, quando será enfatizada a construção da base

ortográfica. Vide anexo 2, figura 5.

Observação:

A passagem por esses níveis é feita pelas crianças de forma natural. Entretanto, a evolução na

escrita dependerá dos estímulos e oportunidades que lhe serão oferecidos. Por isso não existe

correspondência prefixada.

IDADE → NÍVEL DE ESCRITA → SÉRIE ESCOLAR

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7. ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Emília Ferreiro e Ana Teberosky, pioneiras das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita

que apresentei, criticam não a escola, apenas chamam a atenção para que a alfabetização ocorra de modo

que a criança descubra por si mesma, sendo respeitada, estimulada e orientada pelo professor que

estabelecerá os conflitos e os incentivos.

Muitas vezes, o professor, entra entra em sala apenenas como transmissor de conhecimentos para

as crianças. Os alunos com pais analfabetos, ficam sem Ter estimulação necessária para uma eficaz

aprendizagem. Ambos fatos prejudicam a construção do conhecimento e a escola deve suprir esta

carência de autonomia e de visão de mundo do aluno, reformulando seus processos educacionais e

repensando suas práticas.

Com tudo, é relevante citar alguns alertas para os profissionais:

• A escrita acontece de maneira natural à linguagem, e estaremos supervalorizando as capacidades da

criança, que pode estar longe de ter descoberto a natureza fonética;

• Se trabalharmos simplesmente com base na escrita cópia e sonorização dos grafemas, estaremos

menosprezando seus conhecimentos. O adulto esconde atrás do traçado de formas gráficas ou

repetição de fonemas isolados, sem sentido. A criança ‘’sabe’’ que a escrita é significativa.

• Como as mães que agem com bebês que balbuciam sons e elas acham que estão falando, o professor

teria que aceitar as primeiras escritas infantis como anos atrás de escritas e não puros rabiscos.

• Interpretar em termos de certo ou errado é não querer ver o processo e intenção que possibilitam a

avaliação dos resultados em relação ao adulto.

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• A ênfase na reprodução de traçados reduz a escrita a um objeto ”em si”. Como toso sistema simbólico

impõe regras de representação que tem sentido para o sistema (esquerda para a direita, maiúscula e

minúscula...)

• Os problemas que a criança enfrenta em sua evolução, são coerentes e não estão sujeitos a termos de

‘’simples’’ ou ‘’ complexos’’, ou seja, não estão sujeitos a qualificativos.

• Temos que nos dirigir a todas as crianças, até àquelas que estÃo em níveis anteriores a esta evolução,

porque se nos dirigirmos apenas às que compartilham alguns de nossos conhecimentos, estaremos

condenando (mesmo que involuntariamente) as outras ao fracasso.

7.1. PALAVRAS FINAIS...

A criança não se transforma em um leitor de um dia para o outro, com a ajuda de um método: ela

percorre um trajeto cujas bases são as concepções iniciais sobre o que é ler. E esse trajeto tem início a

partir do momento em que as condições do meio lhe sejam favoráveis. Por isso, um certo número de

crianças chega à escola em uma etapa avançada dessa aprendizagem. É que elas tiveram oportunidades de

viverem num meio letrado, onde as atividades de ler e escrever estavam inscritas no cotidiano familiar.

Para outras crianças, o meio social não proporcionou esse suporte de base, essencial para a intervenção

escolar do processo de aprendizagem da leitura. Conseqüentemente, iniciam sua escolaridade com uma

visão diferente em relação aos usos da escrita.

É esse fato que a escola não tem levado em conta: o uso familiar determina o valor social que a

criança confere à escrita.

Mesmo antes de ler com o adulto, as crianças lêem, desenvolvem concepções sucessivas sobre o

que é ler essas concepções evoluem em direção a uma prática de leitura fluente num movimento gradativo

de reajuste dos elementos constitutivos do ato de ler, que já devem estar presentes no comportamento

inicial do aprendiz. Mas para que isso ocorra é preciso que a escola coloque a aprendizagem da leitura sob

outra perspectiva.

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A escola deve se organizar em função de um novo conceito de leitura, que supõe um novo

processo de aprendizagem.

Sabemos que as teorias da aprendizagem da leitura não serão as responsáveis pelas mudanças no mundo. A pesar das pesquisas, dos inúmeros trabalhos publicados na área da leitura, diversas crianças continuam com muita dificuldade de aprender a ler e muitos professores acreditam que isso é inevitável, e que nada é possível fazer. A escola, como instituição inserida num sistema complexo, é premida por uma série de exigências e limites. Assim, não é uma teoria de leitura que vai alterar toda uma realidade estrutural - escolar e social.

A mudança do sistema escolar, da prática pedagógica não vem apenas de melhores teorias, de

materiais mais adequados, ou de informações mais acessíveis aos professores. melhorar a pedagogia da

leitura e da escrita é, a longo prazo, uma questão política, vinculada a um desejo de mudança. Mesmo que

o professor não possa mudar o mundo poderá realizar o trabalho melhor se compreender o que é a leitura

e a escrita, e como as crianças aprendem a ler e a escrever. Poderá, mesmo desenvolvendo uma série de

atividades sem real utilidade, ir introduzindo algumas outras que de fato favoreçam a aproximação da

criança com a leitura.

A maioria das crianças, felizmente, consegue agüentar uma boa dose de ansiedade e até de falta de

sentido quanto está aprendendo a ler e a escrever. Os professores podem, talvez, tirar grande proveito

desta solidez intelectual das crianças, que compreendem o ritual de algumas atividades escolares sem

muito sentido.

O que realmente importa é que a criança progrida na leitura e na escrita e que encontre prazer - e

sentido - nos múltiplos contatos com a língua escrita. Professores e crianças, nesse sentido, podem ser

verdadeiros parceiros para compreender o que é o ato de escrever e ler.

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8. CONCLUSÃO

Ao finalizar esta pesquisa, pude concluir que, a criança é o sujeito do seu próprio conhecimento,

possuindo uma leitura anterior e outra posterior à alfabetização. Além disso, a escrita não acontece na

vida do sujeito como um estalo fantástico, mas pela construção de estruturas cognitivas, ou seja, pela

construção de níveis de conceitualização que possuem regras próprias para o seu “funcionamento”. O

professor tem a função de orientar o aluno e não de sensurá-lo, ou impor o conteúdo a ele de maneira

autoritária e alienadora. Infelizmente, muitos professores e profissionais da educação não tem ciência

dessas importantes realidades descobertas, devido a sua precária formação ,ou por medo, talvez, de

chocar-se com o novo, ou ainda, com o “poder dominante”, ou até, não exercer um processo educacional

eficaz por não compreender a essência de certas teorias...

O processo de alfabetização está totalmente ligado como o contexto histórico e à realidade

histórico-social de cada alfabetizando. A escola precisa levar em consideração esse contexto que envolve

o alfabetizando, ao invés de preocupar-se com um modelo imutável de leitura, como se continuasse-mos

vivendo com a escrita encerrada nos mosteiros e não presente nas ruas, nas lojas, nos cartazes… Se

excluirmos a escrita social da aprendizagem da leitura, como vamos reencontrá-la mais tarde? Ou seja, se

formarmos crianças alienadas da realidade, através de métodos tradicionais e descontextualizados, como

os da cartilha por exemplo, como estas crianças se posicionarão futuramente como cidadãos conscientes

da realidade que os cercam? Ou ainda, de que vale uma moderna teoria, cheia de inovações, mas que

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acaba conservando e regulando a educação e a sociedade do mesmo jeito das teorias tradicionais, apesar

da “roupa nova”?

Vale ressaltar, que muitas crianças das classes populares são consideradas crianças portadoras de

deficiências, o que não é verdade! O que ocorre, é a ausência de interação com a língua escrita,

determinada pelo analfabetismo imposto às classes populares, ou seja, as escolas não levam em conta a

realidade e o contexto dessas crianças da classe popular, logo a alfabetização, que é condicionada pelo

meio em que o sujeito interage, é prejudicada. A escola precisa tornar-se um espaço de experiências

significativas, relevantes para o aluno, um espaço de pesquisa tanto para professores quanto para os

alunos.

Tradicionalmente, as discussões sobre a prática alfabetizadora tem se centrado na polêmica dos

métodos, não levando em conta as concepções das crianças sobre o sistema de escrita. É útil então,

perguntar através de que tipo de práticas a criança é introduzida na língua escrita? Há práticas que levam

o aluno a ficar “fora” do conhecimento, como espectador passivo ou receptor mecânico, sem nunca

encontrar respostas aos “porquês” e aos “para quês”.

Nenhuma prática pedagógica é neutra! Discutir alfabetização hoje é discutir o projeto político que

se pretende para este país, não apenas pelas conseqüências sociais do analfabetismo, mas também porque

o modo como se direciona a prática pedagógica trás uma determinada concepção de homem e de mundo

imbricada.

A escola é um conjunto de interesses que visa à manutenção ou à transformação da sociedade. A

alfabetização é responsabilidade de todos, quando tem por objetivo principal, formar cidadãos alienados,

mecanizados, inconscientes da realidade, domesticáveis, passivos e manipulados, que se encaixarão

perfeitamente na sociedade ideal para a classe dominante. Ou formar cidadão conscientes,

contextualizados, críticos, ativos, sujeitos do conhecimento, ativos e autônomos para constituírem uma

sociedade ideal, dentro do real – uma sociedade consciente e democrática, sem ideologias dominantes ou

utopias populares…

Será que o projeto político do nosso país exige a participação de cidadãos alfabetizados ou

cidadãos leitores? Enquanto não houver vontade política coletiva continuaremos com os milhões de

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cidadãos analfabetos neste país. Por vontade política coletiva, quero dizer vontade da sociedade global,

em pressionar o Estado para que a educação seja prioridade.

Contudo, esta pesquisa discutiu os processos que envolvem a alfabetização, aqui explicitados, e

em destaque a psicogênese da língua escrita com seus resultados de experiências muito positivos em

relação à heterogeneidade e capacidade dos indivíduos, firmando a autonomia, a contextualização, o

trabalho coletivo, a pesquisa e a qualidade do processo educacional como bases fundamentais para

formação de leitores e não apenas alfabetizados mecanizados ou manipulados, de forma que possam atuar

de maneira consciente e eficaz na sociedade e na realidade, além de renovar a importância do profissional

da educação e do poder deste na sociedade, a tanto tempo discriminado, recuperando sua auto-estima e

reconhecendo sua real importância, para que a educação encontre e cumpra o seu verdadeiro objetivo:

formar cidadãos conscientes e autônomos para uma sociedade igualitária e mais democrática.

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BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e Leitura. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 1994.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. 14ª.ed. São Paulo: Cortez, 1989.

_______________, TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto

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GARCIA, Leite Regina. Alfabetização: Responsabilidade de todos. Revista Ande. São Paulo: Cortez, n.º 15, p. 25 – 36, l990.

RASPIEL, Maria. Alfabetização sem segredos: atividades para o 2º período. V.1. Belo Horizonte, MG: IEMAR, l996. P. 2 – 8.

RIBEIRO, Lourdes E., PINTO, Gerusa R. A Teoria Construtivista e o Processo

Ensino Aprendizagem na Pré-escola de Ensino Fundamental. 4ª. Ed. V.1. Belo Horizonte, MG: FAPI,1996.

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TEBEROSKY, Ana, TOLCHINSKY, Liliana. Além da Alfabetização.

TIRATEIMA do Construtivismo. Nova Escola São Paulo, n.º162, p. 8 - 13, março, 1995.

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ANEXOS

Anexo 1

Fonte: RASPIEL,

Maria.

Alfabetização sem segredos: atividades para o 2º período. V.1. Belo Horizonte, MG: IEMAR, l996. P. 2 – 8.

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Anexo 2

Figura 1 Figura 2

Figura 3 Figura 4

Figura 5

Fonte: Escola Municipal Manoel Alves Moreira. Alfabetização. Teresópolis/RJ. 2002.