politica criminal 1

25
1 LEI-QUADRO DA POLÍTICA CRIMINAL Breve Reflexão 1 MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE Director do Centro de Investigação e Docente do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e da Universidade Autónoma de Lisboa I Introdução §1.º Falar de política criminal implica fazer uma viagem ao conceito e aos princípios que a regem desde a sua concepção como ciência por FRANZ von LISZT, de modo a não desenraizarmos a ciência da sua nascença e a resumirmos a um dos instrumentos de manifestação da política criminal: a prevenção e repressão criminal, como se retira do art. 1.º da Lei-Quadro, que se refracciona quase em pleno no processo penal como instrumento de política criminal 2 especial e principalmente no quadro da celeridade processual 3 –, desde os procedimentos às finalidades do processo. A Lei-Quadro reflecte o momento que vivemos. Momento de busca de soluções para uma justiça 1 O texto que ora publicamos corresponde, em parte, à conferência proferida sobre o mesmo tema no dia 2 de Maio de 2007, no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Lisboa, no âmbito do Projecto Escola «Conferências» desenvolvido pelos Cadetes- alunos. Neste sentido, optamos por manter a estrutura da conferência proferida – que se debruçou fundamentalmente sobre a Lei Quadro da Política Criminal –, não obstante neste momento já existir a primeira Lei que define os Objectivos, Prioridades e Orientações de Política Criminal para o Biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei Quadro, aprovada pela Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, cuja referências serão muito ténues e breves. 2 FERNANDO FERNANDES, O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal, Almedina, 2001. 3 MANUEL DA COSTA ANDARDE, “Lei-Quadro da Política Criminal (Leitura crítica da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio)”, in Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 135.º, n.º 3938, pp. 267 e ss..

Upload: nicegranger8276

Post on 08-Nov-2015

226 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Esquema Fases Processuais

TRANSCRIPT

  • 1

    LEI-QUADRO DA POLTICA CRIMINAL Breve Reflexo1

    MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE Director do Centro de Investigao e Docente do Instituto Superior

    de Cincias Policiais e Segurana Interna e da Universidade Autnoma de Lisboa

    I

    Introduo

    1. Falar de poltica criminal implica fazer uma viagem ao

    conceito e aos princpios que a regem desde a sua concepo como

    cincia por FRANZ von LISZT, de modo a no desenraizarmos a

    cincia da sua nascena e a resumirmos a um dos instrumentos de

    manifestao da poltica criminal: a preveno e represso criminal,

    como se retira do art. 1. da Lei-Quadro, que se refracciona quase em

    pleno no processo penal como instrumento de poltica criminal2

    especial e principalmente no quadro da celeridade processual3 , desde os

    procedimentos s finalidades do processo. A Lei-Quadro reflecte o

    momento que vivemos. Momento de busca de solues para uma justia

    1 O texto que ora publicamos corresponde, em parte, conferncia proferida sobre o mesmo

    tema no dia 2 de Maio de 2007, no Instituto Superior de Cincias Policiais e Segurana

    Interna, Lisboa, no mbito do Projecto Escola Conferncias desenvolvido pelos Cadetes-

    alunos. Neste sentido, optamos por manter a estrutura da conferncia proferida que se

    debruou fundamentalmente sobre a Lei Quadro da Poltica Criminal , no obstante neste

    momento j existir a primeira Lei que define os Objectivos, Prioridades e Orientaes de

    Poltica Criminal para o Binio de 2007-2009, em cumprimento da Lei Quadro, aprovada

    pela Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto, cuja referncias sero muito tnues e breves.

    2 FERNANDO FERNANDES, O Processo Penal como Instrumento de Poltica Criminal, Almedina,

    2001. 3 MANUEL DA COSTA ANDARDE, Lei-Quadro da Poltica Criminal (Leitura crtica da Lei

    n. 17/2006, de 23 de Maio), in Revista de Legislao e Jurisprudncia (RLJ), Ano 135., n. 3938,

    pp. 267 e ss..

  • 2

    penal mais clere e, simultaneamente, mais justa sem ofensa

    desnecessria dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos

    cidados4, mas no pode ela e s por ela ser o antdoto da enfermidade

    de que padece a to badalada justia penal. H pontos positivos, mas h

    pontos de realce preocupante face ao Estado que h muito se vem

    construindo, em que a Constituio se centra como a pedra base e

    central da aco do Estado: seja poltica, seja executiva, seja judicial. No

    se pode decretar as mutaes de personalidade dos que esto obrigado

    jus constitucionalmente a garantir o efectivo exerccio dos direitos dos

    cidados: quer proactivamente quer reactivamente.

    4 Vivemos e devemos viver em busca de um equilbrio entre o securitarismo e o garantismo

    entre a tutela de bens jurdicos agredidos e defesa do delinquente face ao ius puniendi. Quanto

    aos modelos de interveno do direito penal do modelo garantista, passando pelo modelo

    ressocializador, ao novo modelo securitrio originrio no medo panenico instalado

    colectivamente e na politizao do medo colectivo face evoluo do fenmeno criminal

    JOS LUIS DEZ RIPOLLS, La Poltica criminal en la Encrucijada, Editorial Montevideo,

    Buenos Aires, 2007, pp. 61-100. Claro est que o modelo adoptado pela LQPC se refugia

    fortemente no novo modelo de interveno do direito penal de segurana. Modelo este

    expresso no comboio da Europa de que nos fala HASSEMER, em que a eficcia e a

    segurana prevalecem de tal modo que o direito penal se instrumentaliza em poltica de

    segurana. Cfr. WINFRIED HASSEMER apud AUGUSTO SILVA DIAS, De que Direito

    Penal Precisamos ns Europeus?, in Revista Portuguesa de Cincias Criminais (RPCC), Ano 14,

    n. 3, pp. 306, 317-318.

  • 3

    2. A Poltica Criminal5/6 a cincia que se debrua sobre o

    conjunto dos princpios tico-individuais e tico sociais que devem

    promover, orientar e controlar a luta contra a criminalidade7, ou, na

    linha de LISZT, o conjunto sistemtico dos princpios fundados na

    investigao cientfica das causas do crime e dos efeitos das penas,

    segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por

    5 No obstante existirem teses que consideram que existe uma separao entre o Direito Penal

    e a Poltica Criminal, desde logo pelo objecto que a cada uma das cincias cabe ao Direito

    penal o estudo da dogmtica jurdico-criminal do direito vigente e Poltica Criminal o

    estudo da configurao desejvel desse direito nenhuma das cincias se pode apartar da

    ideia central de que o Direito Penal , lisztianamente falando, a Magna Carta do delinquente

    e baluarte do cidado contra o Leviatan do Estado, e os postulados da poltica criminal, a

    par dos postulados teleolgicos, devem estar presentes sempre que o intrprete da norma

    penal a aplicar ao caso concreto. Acresce referir com CLAUS ROXIN que as finalidades

    reitoras que constituem o sistema do Direito penal s podem ser de tipo poltico criminal, j

    que naturalmente os pressupostos da punibilidade ho-de orientar-se de acordo com os fins

    do Direito penal. Cfr. CLAUS ROXIN, Derecho Penal Parte General Tomo I, Civitas,

    Madrid, 1999, pp. 217, 223-225. Traduo do espanhol nossa.

    6 Quanto evoluo do posicionamento (positivista) da poltica criminal que circunscrevia o

    mbito da poltica criminal lei penal incriminadora, apartada do saber e da preocupao do

    antes, do para alm ou do que est por detrs da lei penal, ou seja, que se circunscrevia a um

    pensamento rarefeito no seu objecto problemtico circunscrito escolha das reaces

    criminais e da sua forma de aplicao e curto no horizonte, porque imanente lei penal (e

    dogmtica penal) at poltica criminal, cujos problemas se desdobram e se multiplicam

    numa pluralidade de direces e de destinatrios, que espreita o antes e se projecta para alm

    da reaco penal indo ao encontro da reaco social, econmica e de solidariedade social, que

    procura substituir o direito penal por coisa melhor que o direito penal, MANUEL DA

    COSTA ANDARDE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in RLJ, Ano 135., n. 3938, pp.

    263-266.

    7 AMRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal Parte Geral Questes Fundamentais I,

    Publicaes da Universidade Catlica, Porto, 2003, p. 22.

  • 4

    meio da pena e das instituies com esta relacionadas8. Podemos, com

    JESCHECK, afirmar que a poltica criminal, que deve debruar-se sobre

    as causas do crime, sobre a correcta redaco dos tipos legais de crime

    para que correspondam realidade delitual, sobre os efeitos das sanes

    penais, sobre o limite de extenso da aplicao do Direito penal de que

    dispe o legislador penal face liberdade do cidado e, ainda, sobre a

    adequao do direito penal material ao direito processual, tem como

    desafio responder pergunta acerca de como dirigir o Direito penal

    para poder cumprir da melhor forma possvel a sua misso de proteger a

    sociedade9. A poltica criminal, como nos ensina TAIPA DE

    CARVALHO, visa a preveno do crime e a confiana da comunidade

    social na ordem jurdico penal10, afirmando e fazendo vigorar de modo

    efectivo os valores sociais exigveis para que cada pessoa se realize

    livremente integrada na comunidade. Mas, a preveno criminal no

    pode ser alcanada a qualquer custo, devendo, sempre, promover-se e

    8 FRAN von LISZT apud FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia, Coimbra

    Editora, 1997, p. 93. Quanto ao estudo da poltica criminal, JORGE DE FIGUEIREDO

    DIAS, A Cincia Conjunta do Direito Penal, in Temas Bsicos da Doutrina Penal, Coimbra

    Editora, 2001, pp. 3 e ss.. ENRICO FERRI considera que o conceito de LISZT de Poltica

    Criminal inexacto, porquanto a poltica no uma cincia, mas uma arte: arte do

    legislador em utilizar, adaptando-as s condies do prprio pas, as concluses e as

    propostas que a cincia dos crimes e das penas lhe apresenta, ou, na linha de uma

    construo doutrinal da sociologia criminal como cincia da criminalidade e da respectiva defesa

    social, a arte (do legislador) de adaptar s exigncias de cada povo as propostas da

    sociologia criminal para defesa preventiva e repressiva. Cfr. ENRICO FERRI, Princpios de

    Direito Criminal: o Criminoso e o Crime, (Traduo Luiz de Lemos d Oliveira), Russell,

    Campinas/SP, 2003, pp. 68-69 e 99 (nota 142).

    9 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de Derecho Penal Parte

    General, 5. Ed., Comares Editorial, Granada, 2002, p. 24. Traduo do Espanhol nossa.

    10 Ibidem. Negrito nosso.

  • 5

    efectivar-se no respeito, na defesa e prossecuo dos valores e princpios

    que ela prpria objectiva, ou seja, como afirma JESCHEK, nem tudo o

    que parece adequado ao fim tambm justo11.

    3. A poltica criminal rege-se por dois vectores: por um lado, -

    lhe exigida eficcia relativamente aos fins; por outro, -lhe, tambm,

    imposta legitimidade tica e jurdica12 no que concerne aos meios para

    atingir aquela. Estes vectores encontram-se subordinados aos princpios

    da poltica criminal tpicos de um Estado de direito democrtico13:

    - Princpio da legalidade que se apresenta como garantia contra o

    livre arbtrio quer no plano judicial (administrativo e/ou penal)

    quer no plano jurdico substantivo e processual do direito

    punitivo. A legalidade no se esgota na previso legal do tipo

    legal de crime ou do meio de obteno de prova. Pois, engloba

    a verificao e o respeito integral dos pressupostos exigidos

    para a aplicao dos meios de obteno de prova. Para

    11 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de Derecho, p. 24.

    12 Pensamos que podemos afirmar que a legitimidade jurdica deve ser a expresso da

    legitimidade sociolgica que fundamenta e justifica a norma penal como uma construo

    abstracta, como reflexo na realidade criminal, necessria tutela mais drstica de bens

    jurdicos individuais e supraindividuais. Como afirma C. BECCARIA, se a norma penal no

    for aceite pela comunidade, porque inadequada ou intil ao escopo do direito punitivo e

    contrria ideia da utilidade comum, que base da justia humana, desnecessria, logo

    arbitrria e opressora da liberdade dos cidados que cederam parte da liberdade o quantum

    necessrio para a eficiente tutela jurdico-criminal de bens jurdicos. Quanto legitimidade

    sociolgica, REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, (Traduo de KARIN

    PRAEFKE-AIRES COUTINHO), 3. Edio, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa,

    1997, pp. 71 e 154-156 e CESARE BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, (Traduo JOS DE

    FARIA COSTA), 2. Edio, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998, pp. 64-65 e 76.

    13 Quanto a este assunto, A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal... I, pp. 22 e 23.

  • 6

    JESCHEK14 o princpio da legalidade encontra-se dentro do

    princpio do Estado de direito em sentido formal, que garante a

    segurana jurdica, por a punibilidade de condutas lesivas de

    bens jurdicas depender da primazia e reserva de lei expressa

    nullum crimen sine lege15 previa, scprita et praeclara e por estar

    sujeita reserva de jurisdicionalizao do respectivo processo.

    Para o mesmo autor, o Estado de direito em sentido material

    implica que a criminalizao de um modelo de comportamento

    se baseie numa vinculao objectiva i. e., no pode ser reflexo de

    consideraes sentimentais, religiosas, mas de consideraes

    que sejam dignas de tutela penal por afectarem bens ou

    interesses essenciais convivncia da sociedade16 , no princpio

    da proporcionalidade ou da proibio do excesso quer quanto

    necessidade da interveno do direito penal quer quanto pena

    14 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de Derecho, pp. 28-

    29.

    15 O princpio nullum crimen sine lege um postulado da poltica criminal e preconiza outro seu

    postulado que o limite do ius puniendi. Claro est que estes postulados no afastam da

    poltica criminal o postulado da exigncia de preveno e represso dos crimes. Acresce

    referir que no obstante o Direito como e como devia ser no se contraporem, i. e., o

    direito criado pelo legislador e o direito defendido pelos cientficos e juizes ou dogmtica

    poltico criminal e a dogmtica legislativa no serem opostas, no se podem confundir, sob

    pena de violao do princpio da separao de poderes. Todavia, a hermenutica de

    determinadas normas penais em especial da parte geral que regulam certas matrias de

    forma vaga ou no as regulam implica a interveno da dogmtica da poltica criminal, mas

    no pode esta adulterar a dogmtica legislativa, como alterar e criar novos limites das penas,

    mas aplicar a norma penal e a pena conforme aos princpios da interpretao restritiva, da

    proporcionalidade e da adequao da pena concreta culpabilidade do agente. Cfr. CLAUS

    ROXIN, Derecho Penal... Tomo I, pp. 224-226.

    16 Afectao que se pode reflectir na agresso efectiva ou no perigo de leso do bem jurdico a

    tutelar.

  • 7

    aplicada e executada e gravidade da aco e do resultado

    produzido, quer quanto ao meio empregue para obter a prova

    para o processo jurisdicionalizado e no princpio da igualdade

    sendo a maior manifestao do princpio da legalidade, ou seja,

    a tutela dos bens jurdicos est no mesmo patamar

    independentemente da origem social da vtima ou do agente do

    crime que deve beneficiar das penas alternativas, desde que

    preenchidos os respectivos pressupostos e requisitos (p. e., a

    pena de prestao de trabalho a favor da comunidade deve ser

    aplicada a todos quantos preencham os pressupostos previstos

    no art. 58. do CP e no s a alguns agentes da prtica de

    crime)17.

    17 A poltica criminal no pode derrogar ou afastar-se dos pressupostos do princpio da

    legalidade que as luzes foraram implementar como modo de promover uma igualdade entre

    os cidados firmada no princpio da segurana jurdica que d ao cidado as linhas de

    vivncia individual e comunitariamente e lhe d a garantia de que no ser submetido a uma

    aco penal por facto que a lei no preveja com certeza e clareza (sem dvidas e ignorncia)

    como crime.

    Acresce que, ao se estipularem prioridades de investigao e de preveno criminal (como se

    retira da LQPC e se materializa na Lei do Binio), nos parece que o princpio da igualdade

    (fundamentalmente material) como manifestao iluminista do princpio da legalidade se

    encontra diminudo, ou seja, parece-nos que a LQPC e a Lei do Binio podem estar feridas

    de inconstitucionalidade material por violao do princpio da igualdade consagrado no art.

    13. da CRP. Desde logo e conhecendo o tecido social portugus, um crime de furto simples

    preterido por um crime de furto qualificado, pois a investigao (e a prpria preveno)

    deste prioritria. Todavia, esta prioridade pode afectar a igualdade na vertente negativa

    sempre que o crime de furto simples cometido em um espao fsico de escassez de bens

    patrimoniais ou de aquisio desses bens ou de populao v. g., uma aldeia do interior

    recndito do pas , em que o sentimento de insegurana e de descrdito na justia penal

    cresce elevadamente. E, na nossa opinio, este crime no pode ser preterido em prol de um

    crime de furto qualificado quando no existem arguidos presos preventivamente, porque no

  • 8

    - Princpio da culpabilidade18, que afasta qualquer possibilidade de

    responsabilidade objectiva e de que a pena no se pode apartar

    da culpabilidade, onde reside o seu fundamento, conforme se

    retira do art. 40. do CP19. No que concerne investigao

    criminal, que se destina descoberta da verdade e da

    prossecuo ou realizao da justia, assim como defesa e

    garantia de direitos fundamentais (do arguido, da vtima e da

    sociedade em geral) e ao alcance da paz pblica, no pode partir

    do pressuposto ou fundamento objectivo de culpa, mas que

    aquela est inerente ao sujeito X e no a um sujeito qualquer.

    Esta viso vincula os operadores judicirios a interpretar o facto

    delituoso na globalidade identificao e determinao dos

    elementos objectivos e subjectivos do tipo e a recorrer aos

    se pode medir o alarme social pelo tipo legal de crime, mas pelo efeito que um determinado

    tipo legal de crime gera em um determinado tempo e espao. A LQPC no pode olvidar que

    o direito penal deve ser visto dentro destes dois vectores essenciais: tempo e espao de

    interveno.

    18 O princpio da culpabilidade implica que a medida da culpa limite a medida da pena

    independentemente de existirem razes de tratamento, de segurana ou de intimidao

    que justificassem um prolongamento da pena, porque o interesse da liberdade do condenado

    limita a interveno coerciva do Estado, que no deve ser arbitrria e se impe por razes de

    justia jurdico penal e social que ningum seja punido mais do que merece, sendo que

    merecida s uma pena de acordo com a culpabilidade. No podemos olvidar que o

    princpio da culpabilidade o meio mais liberal e psicolgico-social mais propcio para a

    restrio da coero penal estatal que at agora se encontrou. Cfr. CLAUS ROXIN, Derecho

    Penal... Tomo I, pp. 99-100.

    19 Quanto ao princpio da culpabilidade como princpio da poltica criminal e como juzo de

    desvalor tico-social, HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de

    Derecho, pp. 24-27. Quanto culpabilidade como elemento subjectivo de integrao e

    materializao da dogmtica da poltica criminal, CLAUS ROXIN, Derecho Penal... Tomo I,

    pp. 225-226.

  • 9

    meios de obteno de prova para descobrir quem e se o

    suspeito foi, na verdade, o autor (material ou moral) da conduta

    lesiva ou que colocou em perigo de leso determinado bem

    jurdico.

    - Princpio da humanidade o fundamento da poltica criminal, pois

    a imposio e execuo das penas deve ter em conta a

    personalidade do acusado e, em sendo o caso, do condenado20.

    Do mesmo modo que se exige que o princpio da humanidade

    se deva verificar na tipificao legal das penas [proibindo a pena

    de morte e as degradantes dignidade humana da pessoa

    recluso], se exige na aplicao e execuo daquelas [recusando a

    priso perptua e as consequncias jurdicas de tempo

    indeterminado]. Este princpio, que deve reger o legislador

    penal substantivo e processual, deve verificar-se a montante do

    julgamento, da condenao e da execuo das penas, i. e., deve

    ser materializado no decurso do processo crime desde o incio

    da aco penal, incluindo a investigao criminal, desde a

    aquisio isenta e objectiva da notcia do crime, o carreamento

    20 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de Derecho, p. 29 (e

    30). O princpio da humanidade o reflexo do princpio da dignidade da pessoa humana, cuja

    afectao se verifica, desde logo, na estatuio da pena a aplicar a cada tipo de crime. O

    princpio da humanidade implica que a pena a aplicar tem de derivar da absoluta

    necessidade, caso contrrio tirnica e desumana e violadora da dignidade da pessoa

    humana. Como ensina BECCARIA a atrocidade das penas se no imediatamente oposta

    ao bem pblico e ao prprio fim de impedir os delitos intil no s quelas virtudes

    benficas que so o efeito de uma razo iluminada que prefere dirigir homens felizes a um

    rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tmida crueldade mas tambm justia e

    natureza do prprio contrato social. Quanto tirania e atrocidade das penas, CESARE

    BECCARRIA, Dos Delitos..., p. 64-67.

  • 10

    de prova atravs dos meios de obteno de prova tipificados na

    lei processual penal e dentro dos limites impostos pelos

    princpios constitucionais de garantia do arguido da lealdade,

    da democraticidade, da justia, da celeridade, da presuno de

    inocncia, da liberdade, do respeito da dignidade da pessoa

    humana21 , independentemente do resultado final ser ou no a

    confirmao da existncia de elementos probatrios

    indiciadores da ou comprovativos de que o arguido cometeu o

    facto tipificado como crime22. O princpio da humanidade

    impe que o legislador produza os adequados instrumentos

    jurdico-criminais para que os operadores judicirios actuem

    materializando a dignidade da pessoa humana23 e que aqueles

    optem por uma conduta jurdico-operativa que respeite a

    pessoa como ser humano portador de defeitos e de virtudes.

    - Princpio da recuperao ou ressocializao do delinquente, que uma

    consequncia do princpio da humanidade que, na linha de

    JESCHEK, preconiza tambm a execuo da sano penal de

    humanismo e de responsabilidade individual de modo a

    21 Quanto aos princpios regedores do processo penal numa perspectiva humanista, MANUEL

    MONTEIRO GUEDES VALENTE, Processo Penal Tomo I, Almedina, Coimbra, 2004, pp.

    147-183 e 237-255.

    22 Neste sentido, MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE, Do Objecto do Processo:

    Da Importncia dos rgos de Polcia Criminal na sua Identificao e Determinao, in

    POLITEIA ISCPSI, Ano III, n. 2, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 115-139.

    23 A preocupao com as vtimas como concretizao da humanizao do direito penal est

    patente nos artigos 5. e 6. da Lei n. 51/2007, de 31 Agosto.

  • 11

    devolver o delinquente curado sua vida em sociedade24/25.

    Os estabelecimentos penitencirios devem ser idneos e a

    execuo das penas devem direccionar-se para a ressocializao

    e no dessocializao do delinquente. Acresce referir que a

    poltica criminal que se prende com os objectivos expostos na

    Lei-Quadro em discusso, no obstante de no art. 1.

    considerar como sua componente a definio de objectivos em

    matria de execuo de penas e medidas de segurana26, no

    devia olvidar que de nada vale prevenir e reprimir a

    criminalidade e reparar os danos individuais e sociais resultantes

    24 No sentido da ressocializao como um dos topos da poltica criminal, MANUEL DA

    COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in RLJ, n. Ano 135, n. 3938,

    pp. 265-266.

    25 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de Derecho, p. 29.

    26 A Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto, vem solidificar esta ideia quadro vagamente expressa na

    LQPC, como se pode retirar da parte final do art. 1., da al. c) do art. 2. conjugados com os

    artigos 11., 12., 13. e 14. da Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto, ao prescrever que a

    aplicao das sanes penais devem ter em conta circunstncias factuais (subjectivas sade,

    condio fsica, idade e materiais e objectivas o facto e a gravidade ou o dano do facto

    criminoso), apontando para uma opo de materializao do princpio da oportunidade,

    tendo em conta uma melhor e mais adequada reinsero do agente do crime na sociedade.

    de referir que o legislador prescreveu a preveno especial ao prever que o Procurador Geral

    da Repblica, por requerimento do Ministrio Pblico, pode ordenar aos servios de

    reinsero social a elaborao de planos de reinsero social dos agentes condenados pela

    prtica de crimes previstos no artigo 4., sempre que eles sejam necessrios para promover a

    respectiva reintegrao na sociedade, conforme n. 1 do art. 10. da Lei n. 51/2007. Do

    mesmo modo e com o intuito de preveno especial, os servios prisionais esto obrigados a

    desenvolver e promover o acesso ao ensino, formao profissional e ao trabalho aos

    condenados por crimes de ndole grave conforme catlogo do art. 4. da Lei n. 51/2007,

    que prev os crimes que so de investigao prioritria segundo um plano de reinsero

    social para a sua reintegrao na sociedade, conforme n. 2 do art. 10. da Lei n. 51/2007, de

    31 de Agosto.

  • 12

    daquela, como consagra como objectivos no art. 4., caso a

    preveno e represso no tenham como mote principal a

    preveno especial, caso contrrio toda e qualquer poltica

    criminal ser um fracasso pois, no imediato produzir frutos

    de segurana cognitiva e real, mas com o decurso do tempo a

    reincidncia e a m execuo penitenciria gerar novos fluxos

    de criminalidade que no se prevenir com leis de poltica

    criminal, mas como ensina F. von LISZT com uma verdadeira

    poltica social.

    4. A preveno criminal o grande e principal mote da poltica

    criminal.27 J o direito penal configura-se decididamente (...) como

    um direito penal de proteco de bens jurdicos28. Neste sentido,

    ANABELA M. RODRIGUES defende a poltica criminal como uma cincia

    aplicada, i. e., as decises normativas que, de uma banda, lhe conferem

    a sua dimenso poltica, pressupem, de outra, o conhecimento cientfico

    dos fenmenos que a deciso poltica tem por objecto e dos possveis

    instrumentos a mobilizar e resultados pretendidos29, ou seja, a cincia

    27 neste sentido que podemos ler o art. 1., a al. a) do art. 2., o art. 3., o art. 8. e o art. 10.

    da Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto.

    28 Cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinao da Medida da Pena Privativa da

    Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 237 e 238. Como nos ensina, a poltica criminal, por

    definio, orienta-se em direco preventiva. O sentido especificamente poltico-criminal

    das leis ne peccetur o de evitar ofensas convivncia social, numa palavra, a leso ou o

    perigo de leso de bens dignos e carecidos de tutela penal. neste contexto que a

    fundamentao poltica do direito penal significa procura de um fundamento e de uma

    finalidade racionais, controlveis e disponveis pelo homem, de quem o direito objecto ou

    instrumento (Cfr. p. 237, nota 219).

    29 Idem, p. 245.

  • 13

    dogmtica exprime uma coordenao dialctica entre norma jurdica e

    realidade social, cuja interpenetrao vai ter realizao jurdica da

    dogmtica ao facto concreto a que se refere30. Assiste-se, desta feita,

    revitalizao que pe a descoberto os interesses (...) que, por detrs

    da reformalizao jurdica, determinam quer a forma quer o contedo

    das normas31. A poltica criminal32, como cincia integrante da cincia

    global (total, universal, integral ou conjunta) do direito penal33, releva

    sobremaneira no plano do processo penal no seu todo e,

    indubitavelmente, no plano dos meios de obteno de prova onde a

    coliso entre Estado (ius puniendi) e o cidado (infractor) se reflecte com

    maior acuidade e tenso, cujo sentimento do agente do crime se propaga

    por todo iter processual. Como nos ensinam FIGUEIREDO DIAS e COSTA

    ANDRADE, no Estado de direito formal, o direito penal, como ordem de

    proteco do indivduo em particular dos seus direitos subjectivos

    perante o poder estatal, e como consequente ordem de limitao desse

    poder34, ocupava o primeiro lugar face poltica criminal e, tambm,

    criminologia que eram vistas como cincias auxiliares.

    5. A evoluo para o Estado de direito material, social e

    democrtico vinculado ao direito e a um esquema rgido de

    30 Ibidem.

    31 Ibidem.

    32 Cujo nascimento se deve erupo da mentalidade cientfico-positivista, produto do

    prodigioso auge que, durante o sculo XIX, experimentaram as cincias positivistas.

    ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 239.

    33 FRAN von LISZT apud FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, (Lies coligidas por

    M. J. ANTUNES), p. 3. Quanto a este assunto, FIGUEIREDO DIAS e COSTA

    ANDRADE, Criminologia O Homem Delinquente e a Sociedade Crimingena, Reimpresso,

    Coimbra Editora, 1997, pp. 93 e ss..

    34 FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia..., p. 94.

  • 14

    legalidade35, que respeita e garante os direitos fundamentais, em que a

    justia se promove e realiza nas vertentes social, cultural e econmica

    permite-nos olhar o direito penal segundo um novo prisma: a funo da

    dogmtica vira-se do sistema para o problema, isto , passa a visar

    prioritariamente a justa resoluo do problema posto por cada caso

    jurdico-penal e a posterior integrao daquela no sistema, que assim se

    torna em sistema aberto36. No Estado de Direito material a poltica

    criminal ocupa um lugar de transcendncia face s restantes cincias

    criminais37, i. e., torna-se trans-sistemtica relativamente a elas e, desta

    maneira, competente para definir em ltimo turno os limites da

    punibilidade38. Neste sentido, ANABELA M. RODRIGUES elucida-nos de

    que a poltica criminal ganha foros de primazia, consolidando a

    autonomia e a transcendncia em relao ao direito penal39, e como

    afirma FIGUEIREDO DIAS, o primeiro e indisputvel lugar deve ser

    cedido poltica criminal. Por duas razes principais: porque poltica

    criminal que pertence hoje definir o se e o como da punibilidade, isto ,

    nesta acepo, os seus limites; e porque (de algum modo,

    consequentemente) os conceitos bsicos das doutrinas do facto punvel,

    muito para alm de serem penetrados ou influenciados por

    consideraes poltico-criminais, devem pura e simplesmente ser

    35 Idem, p. 95.

    36 Ibidem.

    37 Cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Parte Geral Tomo I, Coimbra

    Editora, 2004, pp. 32-35.

    38 FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia..., p. 94 (cfr. nota 9). Para

    FIGUEIREDO DIAS, a poltica criminal intra-sistemtica relativamente concepo de

    Estado, ou seja, imanente ao sistema jurdico-constitucional.

    39 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 237. Negrito nosso.

  • 15

    determinados e cunhados a partir de proposies poltico-criminais e da

    funo que estas lhes assinalada no sistema40.

    6. No se pretendendo retomar o literal sentido de LISZT, a

    concepo de uma cincia global do direito penal, hoje mais do que

    algum tempo, deve ser encarada como caminho para o fenmeno crime,

    tendo presente que o tempo presente , por excelncia, o tempo da

    poltica criminal41. O direito penal substantivo e adjectivo , parte

    integrante da cincia global, no pode apartar-se da poltica criminal,

    cincia que vaza as suas proposies no processo penal, que, por sua vez

    e como ensina CLAUS ROXIN, a forma atravs da qual as proposies

    de fins poltico-criminais se vazam no modus da validade jurdica42, ou,

    na formulao de FIGUEIREDO DIAS, a forma atravs da qual as

    proposies de fins poltico criminais se vazam no modus da vigncia

    jurdica43. A determinao das consequncias jurdicas do crime, no

    processo penal, detm um relevo especfico e formal, imposto pela

    preveno geral de integrao realizando-se, desta feita, o cumprimento

    das intenes e do programa poltico-criminal no caso concreto44; ou,

    nas palavras de ANABELA M. RODRIGUES45, na luta contra o crime,

    significa indicar uma finalidade ao direito penal, designadamente pena,

    que lhe justifica a existncia, tendo como certeza que a integral

    40 FIGUEIREDO DIAS, O Direito Penal na Sociedade de Risco, in Temas Bsicos da

    Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 156 e 157.

    41 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, (Lies coligidas por M. J. ANTUNES), p. 17.

    42 CLAUS ROXIN apud FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual..., p. 19.

    43 Ibidem.

    44 Idem, p. 18.

    45 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida., p. 241.

  • 16

    justificao exige a avaliao das finalidades apontadas em face dos

    resultados obtidos.

    7. Se impera a necessidade de um direito penal direccionado para

    as suas consequncias46, a cincia penal global valorativa e crtica com

    responsabilidade poltica encontra, de lege ferenda, eco numa poltica

    criminal autenticamente poltica e no apenas tecnocrtica que fixe os

    objectivos que o direito penal deve perseguir, com a consequente

    abertura da sua possibilidade de crtica; e, de lege lata, uma dogmtica

    criadora, essencialmente orientada no sentido das finalidades poltico-

    criminais da lei, que no s constitua a superao de uma dogmtica

    cega, de costas para a realidade, mas antes evite uma dogmtica

    acrtica e puramente tcnica47. Contrariamente a este princpio de

    orientao e no quadro processual penal se pode apontar a realizao das

    escutas telefnicas de forma desmedida, que reflectem directamente o

    direito penal moderno, que, como nos aponta W. HASSEMER48, visa a

    proteco de bens jurdicos, no no molde negativo, mas no de

    positividade criminalizadora (conduzindo demanda da

    criminalizao), para uma preveno baseada na criminalizao, na

    reaco ao crime e no na aco proactiva ao crime, e orientado para as

    consequncias imediatas econmicas, sociais, culturais e,

    fundamentalmente, polticas afastando-se da preveno do perigo do

    46 WINFRIED HASSEMER, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, Casa Editorial, S.A.,

    Barcelona, 1984, pp. 34 e ss..

    47 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 245, nota 234.

    48 WINFRIED HASSEMER, Rasgos y crisis del Derecho Penal moderno, in Anuario de

    Derecho Penal y Ciencias Penales, do Ministerio de Justicia, Tomo XLV, Fascculo I, Enero-Abril,

    MCMXCII, pp. 235 e ss..

  • 17

    crime inerente s instncias formais de controlo: autoridades judicirias

    (AJ) e rgos de polcia criminal (OPC). A determinao das

    consequncias jurdicas do crime como expresso mxima da

    preveno criminal e, consequentemente, da poltica criminal depende

    da prova obtida e produzida em sede de julgamento. A obteno de

    provas permitir eficcia quanto aos fins do direito penal (preveno

    geral e especial) e, consequentemente, prosseguir o programa poltico-

    criminal a imposio de pena s pode ter por justificao a tutela das

    expectativas criadas pela norma ou a reafirmao da validade da norma

    violada49. Mas, essa eficcia dever, sempre, depender da legitimidade

    quanto aos meios empregues na prossecuo da poltica criminal. A

    produo de prova que se afere em sede de julgamento face ao

    manancial carreado para o processo pelos OPC e AJ (MP e JIC) no

    pode nem deve, num Estado de direito democrtico, sobrepor-se a

    valores fundamentais ao desenvolvimento integral do homem na

    comunidade. Ditame este imposto pelos princpios da legalidade e da

    humanidade da poltica criminal, cuja Lei-Quadro (LQPC) abordaremos

    com maior acuidade de seguida.

    II

    Os princpios da poltica criminal e a Lei-Quadro

    8. O legislador da LQPC teve em conta os princpios reitores da

    poltica criminal e percorre o iderio dos vectores da eficcia e da

    legitimidade. Questiona-se se esta anuncia foi ou no na totalidade ou se

    pelo contrrio foi mais fecunda em um ou outro princpio ou em um ou

    49 Idem, p. 17.

  • 18

    outro vector. Quanto a legitimidade tico jurdica no se nos afigura

    fazer qualquer referncia a no ser que a mesma emerge da legitimidade

    normativa prescrita na prpria LQPC e na inteno de se apresentarem e

    aprovarem novas leis de poltica criminal no sentido de se estipularem,

    de dois em dois anos, os objectivos, as prioridades e as orientaes de

    poltica criminal, conforme estipula o art. 7.da LQPC50. Este perodo

    temporal de dois em dois anos reflecte o mnimo de tempo para uma

    avaliao dos objectivos, das prioridades e das orientaes criadas e

    postas em prtica e parece-nos ajustado ao evoluir da sociedade e da

    criminalidade. Esta LQPC reflecte, tambm, a sujeio da legitimidade

    normativa legitimidade sociolgica, por duas ordens de razo: a

    primeira prende-se com a audio de vrios intervenientes que so

    responsveis pela materializao da poltica criminal e pela adequao

    futura, sendo que so operadores que lidam diariamente com o

    fenmeno crime e dessa relao forada retiram ensinamentos que

    sejam necessrios e exigveis ao melhoramento das novas leis de poltica

    criminal; a segunda retira-se do ciclo eleitoral normal de quatro anos para

    a governao, pois ao Governo que compete fazer as propostas de lei

    sobre poltica criminal Assembleia da Repblica e os prazos de dois

    anos permitem, assim, ajustar os objectivos, prioridades e orientaes s

    necessidades mais prementes da comunidade. Neste ponto, a

    legitimidade sociolgica i. e., a aceitao e a aprovao das polticas

    seguidas por parte da comunidade pode transformar-se perversamente

    em ofensa ao princpio da legalidade ou do Estado de direito na vertente

    do respeito do princpio da igualdade, porque as necessidades colectivas

    50 Cfr. Lei n. 51/2007, de 30 de Agosto, que aprova a primeira lei de poltica criminal para o

    binio de 2007-2009.

  • 19

    no podem ser espartilhadas de modo a criarem clivagens de proteco

    de bens jurdicos.

    9. Poder-se- afirmar que esta LQPC, na linha europeia e das

    orientaes e recomendaes das instituies da Unio, se fundou mais

    na eficcia relativamente aos fins a prosseguir51: preveno e represso

    da criminalidade e reparao dos danos, conforme art. 4. da LQPC. Estas

    finalidades ou estes objectivos esto sujeitos s prioridades que se aferem

    ou do bem jurdico tutelado ou da norma legal que preveja um crime

    especfico como prioridade por ser um fenmeno criador de alarme

    social e de insegurana ou do modus operandi ou do resultado fsico e

    psquico ou do dano individual ou colectivo ou, ainda, da pena

    abstractamente aplicvel, conforme art. 5. da LQPC. Nem podemos

    respirar de alvio quanto a um dos fundamentos da poltica criminal

    preveno da criminalidade no sentido do delinquente no poder

    novamente delinquir, i. e., ne peccetur quando lemos o art. 7. da LQPC

    sobre as orientaes, porque estas incidem somente no plano da pequena

    criminalidade e porque razes de princpio da oportunidade, que mitiga e

    adorna o princpio da legalidade, j o legislador tinha amalgamado estas

    orientaes nos art. 280., 281., 16, n. 3 e 392. a 398. do CPP52. A

    51 Como afirma COSTA ANDRADE, a LQPC no se preocupou com as questes de fundo

    da poltica criminal, mas nica e exclusivamente com o problema de celeridade processual

    eficcia que implica a opo das prioridades de preveno e de investigao, apresentando a

    ausncia do aprofundamento das questes da criminalizao/descriminalizao e da

    ressocializao. Cfr. M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in

    RLJ, n. Ano 135, n. 3938, p. 267.

    52 A finalidade ne peccetur pode-se, actualmente, retirar da Lei n. 51/2007 que prescreve,

    tambm, manifestaes do princpio da oportunidade artigos 11., 12., 13. e na ideia de

    que h situaes subjectivas e objectivas do agente do crime que, no obstante ter sido

  • 20

    batuta da eficcia, que um vector da poltica criminal, prevalece face

    prpria legitimidade e, at mesmo, face ao teor essencial dos princpios

    reitores da poltica criminal.

    10. O princpio da culpa ou da culpabilidade no se afere

    directamente dos preceitos legais, mas poder-se- resquiciamente aferir

    da interpretao do art. 3. da LQPC quando prescreve que a poltica

    criminal deve ser congruente com os valores da Constituio e da lei

    sobre os bens jurdicos. O princpio da culpabilidade um princpio

    constitucional, cuja limitao da liberdade do delinquente est subjugada

    desde logo aos limites constitucionais e, neste caso, da culpa como limite

    e fundamento da pena. Este princpio um valor jurdico, tico e

    socialmente aceite e defendido pela comunidade e, por isso, um valor

    constitucional que fundamenta a restrio do bem jurdico liberdade, que

    s admissvel dentro das linhas do art. 27. da CRP. Acresce referir que

    a aco penal tem limites e um desses limites se afere da culpa do agente

    da prtica de crimes. Quanto ao princpio da legalidade ou do Estado de direito

    de JESCHEK poder-se- afirmar que se encontra plasmado no s no art.

    2. como no art. 3. da LQPC. As leis sobre poltica criminal no podem

    deturpar o princpio da legalidade, sob pena de se destruir o princpio da

    segurana jurdica, nem to pouco prejudicar a independncia da

    jurisdio e a autonomia do Ministrio Pblico53. A esta limitao formal

    condenado, por crime punvel com pena inferior a 5 anos, devem induzir no execuo

    concreta da pena privativa de liberdade art. 14. .

    53 Cfr. al. a) do art. 2. da LQPC. Quanto independncia dos tribunais e a autonomia do MP,

    como manifestaes do princpio da separao de funes e/ou do acusatrio, MANUEL

    MONTEIRO GUEDES VALENTE, Processo Penal Tomo I, Almedina, Coimbra, 2004, pp.

    85-112.

  • 21

    acrescenta o legislador a inadmissibilidade de directivas, instrues ou

    ordens sobre processos determinados e a no possibilidade de por lei de

    poltica criminal se isentar modelos de comportamento tpicos, ilcitos e

    culposos de procedimento54.

    Afere-se neste ponto o princpio da igualdade de tratamento face ao

    comportamento crimingeno e expectativa jurdica e social da vtima

    ou das vtimas e da comunidade. Todavia, ao se criarem leis sobre

    poltica criminal, propostas pelo Governo Assembleia da Repblica,

    que estipulem prioridades que no a da entrada do processo ou a do

    agente do crime estar em priso preventiva, i. e., que no seja de acordo

    com a medida de coaco aplicada ao arguido, independentemente do n.

    3 do art. 5. da LQPC prescrever que o regime das prioridades no

    prejudica o reconhecimento de carcter urgente a processos, no se

    pode afigurar de todo o respeito pela independncia das jurisdies e

    muito menos da autonomia do Ministrio Pblico, consagrada no n. 2

    do art. 219. da CRP. Esta perde de autonomia do Ministrio Pblico vai

    certamente afectar a aplicao da justia em nome do povo pelos

    tribunais, porque sero e faro chegar ao fim o que o MP lhes der, que

    ter de respeitar as prioridades prescritas em lei da Assembleia da

    Repblica.

    Acresce que o MP e os rgos de Polcia Criminal (OPC)55 esto

    vinculados a assumir os objectivos e a adoptar as prioridades e

    orientaes que a lei sobre poltica criminal prescrever, nos termos do

    art. 11. da LQPC. Acresce a esta vinculao legal a possibilidade do

    54 Cfr. als. b) e c) do art. 2. da LQPC.

    55 Cfr. o ponto 1 dos fundamentos das prioridades e orientaes da poltica criminal constantes

    em anexo Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto.

  • 22

    Governo emitir directivas, ordens e instrues destinadas a fazer

    cumprir a lei sobre a poltica criminal, conforme art. 12. da LQPC. Se

    estas directivas, ordens e instrues se destinarem aos operadores

    judicirios que tm por obrigao materializar a lei sobre poltica criminal

    MP, OPC e, ainda, departamentos da Administrao Pblica que

    apoiem as aces de preveno e de investigao criminal poder-se-

    afirmar que h uma ingerncia na autonomia do MP, titular da aco

    penal.

    11. J no que concerne aos princpios da humanidade e da

    ressocializao do delinquente parece-nos que esta LQPC muito pouco nos

    traz de novidade56, podendo-se to s referir que o legislador teve o

    cuidado de inserir no art. 1. que a poltica criminal compreende a

    definio de objectivos, de prioridades e orientaes em matria de (...)

    execuo de penas e medidas de segurana. Na exposio de motivos,

    pode ler-se que a poltica criminal tem como objectivo precpuo a

    defesa de bens jurdicos, proclamada como a primeira finalidade das

    sanes penais pelo Cdigo Penal e legitimada pelo princpio da

    necessidade das penas e das medidas de segurana (art. 18., n. 2 da

    56 A LQPC fica aqum e, digamos, afirma-se de forma superficial quanto aos princpios da

    humanidade e da ressocializao do agente do crime, todavia o legislador na Lei n. 51/2007

    procurou materializar instrumentos jurdicos e directrizes administrao da justia para que

    o princpio da humanidade p. e., a 13. e 14.. J COSTA ANDRADE alertara para o facto

    de que esta LQPC que est longe de ser uma LQ de Poltica criminal no verdadeiro sentido

    jurdico-poltico (formal e materialmente) se esqueceu da ressocializao, logo na primeira

    verso coloca a discusso pblica, quando a ressocializao configura uma das estrelas

    polares da nossa experincia e das nossas instituies penais, ao longo dos ltimos anos, por

    estar demasiado notrio a tnica repressiva da celeridade da investigao criminal e da aco

    penal. Cfr. M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in RLJ, n.

    Ano 135, n. 3938, pp. 267-270.

  • 23

    Constituio)57. Parece-nos que, quanto a esta temtica, o legislador

    manifestou esta vertente humanista nas alteraes previstas para o

    Cdigo Penal, cujo tema no estamos a discutir. Podemos apontar como

    breve concluso que a LQPC detm manifestaes directas ou indirectas

    dos princpios da poltica criminal, cuja materializao mais se faz sentir

    na lei de poltica criminal que de objectivos, prioridades e orientaes

    para o binio 2007-09.

    III

    Pequenas mas relevantes questes pontuais

    12. Consideramos que o objecto da poltica criminal no devia

    ter separado a investigao criminal da aco penal, pois esta engloba

    aquela, ou seja, a investigao criminal encontra-se e existe dentro da

    aco penal e no fora desta. Esta separao pode-se afigurar perigosa

    por duas ordens de razo: por um lado, corremos o risco de pensarmos

    que existe investigao criminal fora da aco penal, i. e., fora da direco

    e dependncia funcional do MP, imposta pelo art. 263. do CPP, e por

    outro lado, esta opo legislativa pode dar voz aos que defendem a

    policializao da investigao criminal e a sua consequente

    desjudiciarizao e desjurisdicionalizao, diminuindo a proteco dos

    direitos, das liberdades e das garantias fundamentais processuais do

    cidado.

    13. Outra questo relevante que se pode erradamente retirar

    desta LQPC o nivelamento dos OPC perante o MP quanto prossecuo

    57 Cfr. ponto 4 da exposio de motivos do anteprojecto da LQPC.

  • 24

    das leis sobre poltica criminal, como se infere do art. 11. da LQPC. Os

    OPC so rgos auxiliares de administrao da justia, so rgos

    coadjuvantes das autoridades judicirias, que actuam no processo penal

    sob a direco e dependncia funcional da AJ competente para a fase do

    processo em curso e no esto ao mesmo nvel de aco procedimental

    penal. Claro est que a poltica criminal tem como escopo a preveno

    da criminalidade em sentido lato e polcia cabe a funo de preveno

    criminal nos termos do n. 3 do art. 272. da Constituio. Contudo,

    neste preceito constitucional no est consagrada como funo da polcia

    participar na execuo da poltica criminal definida pelos rgos de

    soberania, como consagra o n. 1 do art. 219. da Constituio como

    competncia do Ministrio Pblico, porque a ele cabe tambm exercer a

    aco penal orientada pelo princpio da legalidade e dentro da aco

    penal encontra-se, na nossa opinio, a coadjuvao dos OPC quer na

    prossecuo de actos delegados genrica ou concretamente quer na

    prossecuo de medidas cautelares e de polcia, que tero de ser

    apreciadas e validadas pela autoridade judiciria competente58.

    IV Concluso

    14. A LQPC o incio e a conscincia de que necessrio orientar

    o fluxo penal e processual para a credibilizao do sistema de justia

    penal portugus e para a certeza de que os bens jurdicos afectados por

    58 Quanto aos destinatrios da LQPC e das relaes de coadjuvao face aos princpios da

    legalidade e das prioridades, assim como do afastamento e, paralelamente, da quebra da

    independncia dos Tribunal da poltica criminal quando a Ele compete administrar a

    justia em nome do povo , M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica

    Criminal, in RLJ, n. Ano 135, n. 3938, pp. 271-277.

  • 25

    condutas delituosas so repostos e os autores da leso ou de colocao

    em perigo de leso de bens jurdicos so responsabilizados. Nesta linha

    de eficcia mxima na linha do TGV penal, parece-nos que a LQPC um

    ensaio adequado a medir as fragilidades do sistema penal portugus, at

    da prpria LQ quer no quadro formal quer no material, e de promover

    um sentimento de maior segurana. Todavia, no se afigura como uma

    lei de poltica criminal com o desiderato ne peccetur que deve ser reflectido

    quer na lege ferenda quer na lege lata. o incio de uma caminhada que se

    ir construindo com o contributo de todos os que se preocupam com as

    questes do crime.

    Muito obrigado.

    Lisboa, 2 de Maio de 2007