escola de munique e politica criminal raquel lima

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Doutrina

Funcionalismo Penal da Escola de Munique: Contributos e Inconsistncias de uma Construo do Conceito de Crime a Partir dos Fins de Poltica Criminal

RAQUEL LIMA SCALCON Mestranda em Cincias Criminais pela PUC/RS, Graduada em Direito pela UFRGS, Assistente de Desembargador Federal do TRF da 4 Regio, com atuao em matria penal. RESUMO: Por meio do presente artigo, pretende-se analisar, criticamente, o funcionalismo penal da Escola de Munique. Para tal desiderato, inicialmente, se discorre acerca da evoluo da teoria do delito, para, a seguir, tratar das caractersticas fundamentais da construo funcional do conceito de crime. Feitas essas consideraes, defende-se, por um lado, que a (re)compreenso dos conceitos jurdico-penais como conceitos de valor, a partir da reafirmao da sua relao com o social e com o poltico, contributo irrenuncivel da teoria sob estudo. Conquanto se reconhea tal contribuio, sustenta-se, por outro lado, a presena de duas importantes inconsistncias na teoria funcional do delito, uma de ordem filosfica (racionalidade finalstica) e outra de ordem metodolgica (ausncia de fundamento de validade autnomo). Por fim, prope-se um questionrio acerca da aceitabilidade de um Direito como mero instrumento para fins que lhe so externos e, portanto, vazio de sentido e carecedor de autonomia, concluindo-se ser isso, exatamente, o que o Direito no pode ser. PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo penal da escola de Munique (ou sistema teleolgico de Direito Penal); fins de poltica criminal; pensamento que calcula (das rechnende Denken); racionalidade instrumental (Zweckrationalitt); Direito Penal constitucionalmente orientado. SUMRIO: Introduo; 1 A construo do conceito de crime: antecedentes histricos; 1.1 O conceito clssico (causal ou naturalista); 1.2 O conceito neoclssico (normativista); 1.3 O conceito final (ntico-fenomenolgico); 2 Funcionalismo penal da Escola de Munique. A construo do conceito de crime a partir dos fins de poltica criminal; 2.1 Um sistema jurdico-penal de orientao teleolgica. A nova relao entre Direito Penal Normativo e Poltica Criminal; 2.2 Uma teoria do delito poltico-criminalmente fundada; 3 Anlise crtica do funcionalismo teleolgico-racional: contributos e inconsistncias na compreenso da cincia conjunta do Direito Penal; 3.1 A reafirmao da relao do conceito de crime com valoraes poltico-sociais: contributo irrenuncivel do funcionalismo penal; 3.2 Crticas ao funcionalismo penal da Escola de Munique; 3.2.1 Inconsistncia filosfica: o funcionalismo penal como um pensamento que calcula (das rechnende Denken). A

assuno de uma racionalidade finalstica (Zweckrationalitt); 3.2.2 Inconsistncia metodolgica: a ausncia de um fundamento autnomo ao pensamento funcional; Concluso.

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INTRODUO O presente estudo tem por escopo a anlise do Sistema Racional-Final ou Teleolgico de Direito Penal (ou, simplesmente, do Funcionalismo Penal), ora conceituado como uma teoria do crime caracterizada por construir os conceitos jurdico-penais em funo de fins poltico-criminais pr-fixados 1 e inaugurada a partir da obra Poltica criminal e sistema jurdico-penal (Kriminalpolitik und Strafrechtssystem) 2. Posteriormente, tal doutrina ganhou maior sistematizao em Schnemann 3 e Wolter 4, bem como expresso paradigmtica no Tratado de Direito Penal de Roxin 5, no de Jakobs 6 e, ainda, no de Figueiredo Dias 7. Por conseguinte, uma vez que acolhida por juristas pertencentes a diferentes tradies ou escolas, a Teoria Funcionalista Penal sofreu, pouco a pouco, especificaes e acrscimos de contedo, podendo-se hoje, com segurana, afirmar a existncia no de um, mas de muitos funcionalismos penais. Considerando tal diversidade e at por respeito metodologia , faz-se necessrio realizar um recorte no objeto do presente estudo. Portanto, o funcionalismo, cuja anlise se pretende aprofundar, o funcionalismo penal da Escola de Munique ou o funcionalismo teleolgico-racional cujo principal representante Claus Roxin. Esta escolha fundamenta-se no apenas no inegvel reconhecimento do pensamento funcional de Roxin como um ponto de inflexo na teoria do crime, a partir do qual foi constitudo um novo paradigma acerca da construo do conceito de crime e da compreenso da cincia conjunta do Direito Penal (die gesamte Strafrechtswissenschaft) 8, mas tambm e principalmente pela sua notria aceitao, j que a tal pensamento no so dirigidas as to severas crticas sofridas por teorias funcionalistas como a de Jakobs.

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No obstante, imperioso desde logo atentar para o fato de que todos esses funcionalismos inclusive, pois, o da Escola de Munique , em que pese suas peculiaridades inegveis, compartilham as pretenses de superar os problemas constatados nas teorias antecedentes acerca do delito, mas, concomitantemente, preservar os seus mais importantes contributos. Por essa razo, a compreenso da evoluo da teoria do crime condio de possibilidade do entendimento do prprio Funcionalismo Penal, de tal modo a, como percurso necessrio, a partir dela inaugurar-se este estudo. Por fim, adverte-se que na anlise dos antecedentes histricos da doutrina do delito far-se-o referncias apenas a alguns elementos do crime, mas no necessariamente a todos, por no se pretender exaurir o tema, bem como porque o objetivo da explanao , a um, conferir importncia ao fundamento filosfico de cada uma das teorias do delito, e, a dois, demonstrar o quanto tal fundamento necessariamente estrutura (e determina) a construo do conceito de crime, a ponto deste necessariamente buscar sua validade e sua atribuio de sentido naquele referencial. 1 A CONSTRUO DO CONCEITO DE CRIME: ANTECEDENTES HISTRICOS

1.1 O conceito clssico (causal ou naturalista) Desenvolvendo-se na segunda metade do sculo XIX, principalmente pelo pensamento de Liszt e de Beling, a concepo clssica de delito sofreu decisiva influncia do Naturalismo, caracterizado pelo monismo cientfico 9, que pretendia aplicar o mtodo das Cincias Naturais (exatas) s Cincias do Esprito (humanas em sentido amplo), sob pena de serem estas incapazes de alcanar a exatido cientfica, que era, na poca, condio de possibilidade do seu reconhecimento enquanto Cincia 10. Nesse sentido, como bem referiu Mir Puig,

el positivismo jurdico foi el resultado de esta nueva mentalidad en el mbito de la doctrina jurdica: vio en el dato real del derecho positivo el material emprico susceptvel de observacin cientfica y adopto frente ao mismo um mtodo descriptivo e classificatrio. 11

Por conseguinte, o fundamento filosfico que justificava e conferia validade construo do conceito de crime e de todos os a ele conexos era, para a Teoria Clssica do Delito, o prprio Naturalismo Positivista 12.

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No por acaso, pois, que no causalismo a ao era conceituada como um movimento corporal que provocava, no mundo exterior, uma alterao ligada vontade do agente e, portanto, estava concebida como um processo puramente mecnico ou causal. J a tipicidade seria, por sua vez, constituda apenas de elementos objetivos, tratando-se, assim, como bem explicou Figueiredo Dias, de uma mera operao lgico-formal de subsuno 13, ausente, inclusive, uma mnima noo de bem jurdico. Tambm a ilicitude era compreendida de maneira formal, j que seriam ilcitas todas as condutas sobre as quais no incidisse uma causa de justificao. Ora, tais conceitos nada mais eram do que o reflexo do fundamento sobre o qual estava estruturada a teoria clssica, que, consoante Figueiredo Dias 14, visava a inserir o Direito e, em especial, o Direito Penal no monismo metodolgico das Cincias Naturais, relacionado-o, apenas, a realidades ontolgicas (do ser), cognoscveis pela experincia psicossensvel e, por isso, cujas operaes deveriam ser, unicamente, de pura lgica formal 15. Negava-se, assim, a possibilidade de compreenso dos conceitos jurdico-penais como conceitos de valor, uma vez que esses exigiriam juzos normativos e no apenas objetivos para o seu conhecimento. 1.2 O conceito neoclssico (normativista) Com ascenso nas dcadas iniciais do sculo XX, a teoria neoclssica do delito estava fundamentada na filosofia de valores de origem, Neokantista, teorizada pela Escola de Baden (cujos principais componentes eram Windelband, Rickert e Lask). Influenciados por tal filosofia, os neoclssicos sustentavam a impossibilidade da construo do conceito de crime a partir, unicamente, de uma realidade objetiva entendida como mundo do ser, devendo-se situar o Direito, como cincia do esprito que , em uma zona intermediria entre aquele mundo e o puro dever-ser, [...] no mundo das referncias da realidade

aos valores, do ser ao dever-ser e, logo por a, [...] da axiologia e dos sentidos 16. Mas no s. Negando o monismo cientfico que imperava no naturalismo positivista, a teoria neoclssica desenvolveu para as cincias do esprito um fundamento autnomo e uma metodologia prpria, por nelas verificar uma peculiaridade que as distinguia das cincias naturais. Tal especificidade consistia na necessria referncia da realidade a determinados valores supremos 17, a partir dos quais ela seria delimitada e sistematizada 18. Por conseguinte, a teoria neoclssica buscou sistematizar tambm os conceitos relativos ao crime a partir dos fundamentos da Filosofia dos Valores de origem Neokantista.

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Nesse contexto axiolgico de sentido, tornou-se insuficiente conceber os conceitos jurdico-penais como puramente objetivos, para cuja construo e compreenso se prescindiria de valorao. Muito ao contrrio. Para os neoclssicos, tais conceitos eram tambm normativos, j que necessitavam de juzos de valor para sua adequada anlise. Nesse diapaso, a tipicidade no poderia ser uma mera descrio objetivo-formal de condutas, nos termos antes preconizados pela Teoria Clssica do Crime. Materialmente ela era, tambm, uma unidade de sentido socialmente danoso, como comportamento lesivo de bens juridicamente protegidos 19, valorando-se o injusto, pois, a partir da sua danosidade social. Outra significativa alterao sofrida pela tipicidade foi a incluso dos elementos normativos ou valorativos ao lado dos elementos objetivos do tipo (nico contedo do tipo na teoria clssica). Da mesma forma, se a culpabilidade no Causalismo era uma ligao psico-fsica entre a conduta do agente e a alterao no mundo exterior (a conhecida concepo psicolgica da culpabilidade), a teoria neoclssica enriqueceu o seu exame, j que passou a valor-la a partir da reprovabilidade social da conduta, consubstanciada no exame da exigibilidade de um comportamento adequado ao direito, da denominar-se concepo normativa da culpabilidade. 1.3 O conceito final (ntico-fenomenolgico) Vindo a lume as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, verificou-se, cabalmente, a insuficincia de orientaes de origem Neokantistas na garantia da validade material (justia do contedo) das normas jurdicas 20. Foi nesse contexto que se edificou a teoria finalista do crime, a qual tinha por pretenso a limitao da normatividade nas cincias do homem (cincias do esprito) 21. Tal teoria apresentava um fundamento filosfico ntico-fenomenolgico, a partir do qual, nas palavras de Roxin, se intentava poner de relieve determinadas leyes estructurales del ser

humano y convertilas en el fundamento de las ciencias que se ocupan del hombre 22.

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Nesse sentido, as referidas leis estruturais determinantes do ser a chamada natureza do ser ou natureza da coisa seriam, assim que descobertas, fundamentos vinculantes s Cincias Humanas e tambm ao Direito 23. No entanto, era o legislador, em especial, que estaria vinculado, uma vez que, determinada a mencionada natureza do ser ou, nas palavras de Welzel, a estrutura lgico-real, caberia a ele, to somente, aceit-la, mas jamais alter-la, uma vez que, por serem estruturas ontolgicas, teriam como caracterstica primordial a imutabilidade e, como pretenso principal, a eternidade. Por conseguinte, era a esse ontologismo, base do Sistema Jurdico e fundamento vinculante das suas construes posteriores, que o finalismo creditava a justificao da perenidade do prprio sistema como um todo. Consequentemente, como bem referiu Figueiredo Dias 24, restou um espao muito restrito para as opes jurdico-polticas (e, sendo assim, tambm para as poltico-criminais) do legislador, bem como para a atividade do intrprete-aplicador: tudo residiria afinal e s em determinar as estruturas lgico-materiais nsitas nos conceitos usados pelo legislador, e, a partir delas, deduzir a regulamentao ou a soluo aplicveis ao caso 25. Da o suposto alcance, a partir da teoria finalista, de uma limitao normatividade e, logo, s valoraes poltico-sociais no Sistema jurdico-penal 26. Considerando tais fundamentos filosficos, torna-se compreensvel a busca incessante do finalismo em estruturar o conceito de crime, a partir de uma base ontolgica, e, portanto, predeterminada e insusceptvel de alterao pela voluntas do legislador. E tal base ou essncia do ser foi encontrada por Welzel no conceito antropolgico (pr-jurdico) e finalstico do agir humano 27, posto como pedra angular da estruturao do delito, a partir da constatao de que, nas palavras de Figueiredo Dias, o homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em direo a fins mentalmente antecipados, escolhendo para o efeito os meios correspondentes 28. A ao humana seria, pois, supradeterminada

de modo final 29.

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Nesse diapaso, os conceitos de crime e de seus elementos constitutivos, porque, conformados pela natureza do ser (ontolgica) verificada no carter final do agir humano, alteraram-se profundamente. tipicidade, portanto, deu-se um novo e fundamental elemento: o dolo, passando ela a ser constituda por um tipo objetivo (composto de elementos objetivos e normativos) e por um tipo subjetivo (tipo doloso ou culposo). Por sua vez, o ilcito tornou-se um ilcito pessoal 30, j que, ausente o dolo ou a culpa do agente, o fato no mais poderia ser considerado como contrrio ordem jurdica. Por fim, e em apertada sntese, a culpabilidade efetivamente configurou-se normativa, a partir da retirada do dolo e da culpa, caracterizando-se apenas por um puro juzo de (des)valor, um autntico juzo de censura 31, do qual participariam a imputabilidade, a conscincia potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. 2 FUNCIONALISMO PENAL DA ESCOLA DE MUNIQUE. A CONSTRUO DO CONCEITO DE CRIME A PARTIR DOS FINS DE POLTICA CRIMINAL Realizada a necessria anlise da evoluo histrica da teoria do crime, prosseguir-se-, desde logo, com o estudo do funcionalismo penal da Escola de Munique, objeto propriamente dito deste trabalho. Entretanto, consoante a advertncia j feita, somente possvel a compreenso de tal teoria na sua complexidade se consideradas as que a antecederam, bem como o contexto histrico no qual ela se insere. E a imprescindibilidade desses elementos para o estudo do funcionalismo se rifica j no exame da sua conceituao, assim apresentada por Roxin:Los defensores de esta orientacion estn de acuerdo con muchas diferencias en lo dems en rechazar el punto de partida del sistema finalista y parten de la hiptesis de que la formacin del sistema jurdicopenal no puede vincularse a realidades ontolgicas previas (accin, causalidad, estructuras lgico-reales, etc.), sino que nica e exclusivamente puede guiarse por las finalidades del derecho

penal. 32

Por conseguinte, a teoria funcional do direito penal dirigiu uma importante crtica ao ontologismo prprio do finalismo e, dessa forma, acabou por rejeitar, indiretamente, a teoria causal do delito, haja vista que tal caracterstica nela tambm se verificava 33. Por outro lado, ao resgatarem o pensamento neokantista e, portanto, a compreenso dos conceitos jurdico-penais como conceitos normativos, o funcionalismo da Escola de Munique aproximou-se da teoria neoclssica do crime, ainda que, como advertiu o prprio Roxin, dela tenha se diferenciado, ao substituir la algo vaga orientacin neokantiana a los valores culturales por um criterio de sistematizacin especificamente jurdicopenal: las bases polticocriminales de la moderna teoria de los fines de la pena 34.

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Feitas essas breves consideraes introdutrias, deve-se adentrar no estudo das principais caractersticas da teoria ora sob anlise, tarefa cuja realizao, para fins metodolgicos, ser dividida em: (a) exposio da refundada relao entre Direito Penal Normativo e Poltica Criminal, proposta por Roxin a partir de um Sistema Jurdico-Penal teleologicamente orientado; e (b) apresentao da construo da teoria do crime poltico-criminalmente fundada (teoria funcionalista do delito). 2.1 Um sistema jurdico-penal de orientao teleolgica. A nova relao entre Direito Penal Normativo e Poltica Criminal O estudo do pensamento sistemtico foi de fundamental importncia para a construo da teoria funcionalista da Escola de Munique. No por acaso, ainda nas pginas iniciais de sua obra Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, Roxin questionou a necessidade, a utilidade e a prpria possibilidade de construir-se a teoria do crime a partir de um pensamento sistemtico 35. E o tema foi-lhe to central que, mesmo em suas obras mais recentes, chega tal autor a referir que um Direito Penal concebido sob a forma de sistema no unanimidade mesmo em pases de elevado desenvolvimento cultural 36, bem como que um incipiente estudante de direito ou mesmo um leigo provavelmente no poderiam compreender o porqu de tantos esforos em busca de uma sistematizao do Direito Penal 37. No obstante, o prprio Roxin admite, curiosamente, que as principais teorias do crime teoria clssica, neoclssica e final foram assim estruturadas e que, atualmente, a construo sistemtica do Direito Penal predominante mesmo em diferentes tradies jurdicas, com rarssimas excees. Nesse diapaso, pareceu-lhe lgico procurar uma razo para tal hegemonia. E, na compreenso do autor alemo, os grandes mritos de um sistema jurdico-penal, os quais

justificariam o seu merecido destaque, podem assim ser elencados 38: (a) facilidade de anlise dos casos concretos; (b) capacidade de propiciar uma aplicao uniforme do Direito; (c) capacidade de simplificar a aplicao do Direito; e (d) capacidade de atuar como guia para a posterior elaborao e desenvolvimento do Direito.

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De outro lado, conquanto o pensamento sistemtico possua seus inegveis contributos, Roxin nele tambm observou problemas severos, como: (a) esquecimento da justia particular (ou seja, da justia do caso concreto); (b) reduo das possibilidades de legtima resoluo do problema jurdico; (c) ocorrncia de dedues sistemticas contrrias aos fins de poltica criminal; e (d) utilizao de conceitos excessivamente abstratos 39. Diante de crticas desse jaez, Roxin questionou se o mtodo de deciso mais conforme a Cincia do Direito no seria a prpria discusso de casos concretos, ou seja, um proceder fundamentado no pensamento problemtico (tpica) 40. Conquanto a breve hesitao 41, o prprio autor alemo referiu a seguir que, apesar de tal pensamento valorizar o caso concreto, ele no poderia substitui o pensamento sistemtico, em razo da necessria vinculao do Direito Penal lei, o que torna incompatvel a tpica 42. Pois bem. Se o sistema tornou-se, assim, elemento irrenuncivel do Direito Penal desde o Estado de Direito (princpio da legalidade), Roxin percebeu que a questo no era tanto desprez-lo, mas sim constru-lo corretamente, de modo a evitar resultados equivocados 43. Dessa maneira, buscou estruturar seu sistema de forma teleolgica, ou seja, a partir de fins, de valores. Com tal importante alterao, pretendeu solver, em grande medida, as inconsistncias antes referidas, a partir da seguinte constatao: se o sistema, por vezes, impede a realizao de valores materiais no caso concreto, pela sua abstrao e generalidade, ento, o prprio sistema deve ser construdo a partir de tais valores. Assim, estar-se-ia a garantir de antemo, para Roxin, a justia no caso concreto, sem, contudo, violar o princpio da legalidade, haja vista que a concretizao dessas finalidades, quando da aplicao da norma ao caso, dar-se-ia, agora, sob a forma de uma interpretao conforme os prprios fins de norma (interpretao teleolgica dirigida a ratio legis) 44. dizer, pela circularidade da construo de Roxin, que a ratio legis seria, agora, aqueles mesmos fins cuja promoo, no caso concreto,

se pretenderia 45. Por conseguinte, tais valores e finalidades seriam, ao mesmo tempo, ponto de partida (fundamento) para a construo do sistema e ponto de chegada da interpretao e realizao do sistema (funo).

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E quais seriam, afinal, os valores que estruturariam o Sistema Jurdico-Penal? Para Roxin, os fins poltico-criminais. Eis o caminho correto a ser tomado:Deixar as decises valorativas poltico-criminais introduzirem-se no sistema do Direito Penal, de tal forma que a fundamentao legal, a clareza e previsibilidade, as interaes harmnicas e as consequncias detalhadas deste sistema no fiquem a dever nada verso formal-positivista de provenincia lisztiana. Submisso ao direito e adequao a fins poltico-criminais (Kriminalpolitische ZweckmBigkeit) no podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa sntese [...]. 46

E foi assim que o sistema jurdico-penal proposto por Roxin e construdo a partir dos fins de poltica criminal mostrou-se to diverso e inovador em relao ao sistema jurdico-penal anterior, o qual estava, em sua opinio, erroneamente calcado, desde Liszt, em premissas ontolgicas e em um positivismo jurdico acrtico, cujo valor supremo era puramente formal: a segurana jurdica. Da a razo de Roxin se opor concepo lisztiana acerca da Cincia conjunta do Direito Penal (die gesamte Strafrechtswissenschaft), por entender residir justamente nela o equvoco que ensejou a edificao de um sistema jurdico-penal poltica e socialmente neutro, ao qual tanto dirigiu crticas. E o erro de Liszt teria sido verificar, entre o Direito Penal Normativo e a Poltica Criminal, uma relao unicamente de tenso e de incompatibilidade, ao conceber aquele como o espao de defesa da liberdade individual 47 e esta como o de tutela dos interesses da coletividade no combate ao crime 48. Em Liszt, categoricamente, o Direito Penal a barreira intransponvel da poltica criminal 49 e o Cdigo Penal, a magna carta do criminoso 50.

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Para Roxin, tal compreenso reflexo de uma orientao positivista, a qual, ao pretender retirar do Direito um possvel contedo social ou poltico 51, teve sua importncia histrica, no podendo, contudo, ainda prevalecer 52. Sustentou, pois, a necessidade de (re)visitar a relao entre o Direito Penal Normativo e a Poltica Criminal. Nesse horizonte, a tarefa da Lei Penal no mais se esgotaria na funo garantstica 53, devendo-se reconhecer desde que preservado o contedo de garantia presente na dogmtica penal que problemas poltico-criminais constituem o contedo prprio tambm da teoria do delito 54. Por conseguinte, Roxin nega, como nica possibilidade, uma relao de necessrio conflito entre o Direito Penal e Poltica Criminal, substituindo-a por outra, na qual ambos seriam reunidos a partir de uma sntese, tornando-se, pois, uma unidade sistemtica 55, como j ocorreu com as compreenses de Estado de Direito e Estado Social 56. Dito isso, preciso atentar para as consequncias da re(construo) da tal relao. A dogmtica penal, assim, torna-se, nas palavras de Roxin, muito mais a forma atravs da qual as finalidades poltico-criminais podem ser transferidas para o modo de vigncia jurdica 57. Consequentemente, consoante anlise de Fabio DAvila, significa dizer, sem rodeios, que os princpios fundamentais de Direito Penal, que os critrios axiolgicos reitores da dogmtica penal so, agora, nada mais que poltica criminal 58. Desse modo, se os fins de Direito Penal so os de poltica criminal, ganha em dificuldade a possibilidade de distino entre os seus conceitos, por apresentarem, na teoria de Roxin, a mesma funo 59. Da falar-se em uma quase fuso de ambos, a partir de um esvaziamento de contedo autnomo da dogmtica penal e da consequente hegemonia axiolgica das finalidades poltico-criminais.

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2.2 Uma teoria do delito poltico-criminalmente fundada Os importantssimos reflexos dessa inovadora relao entre Direito Penal Normativo e Poltica Criminal podem ser verificados, com maior clareza e concretude, na (re)estruturao da teoria do crime proposta pela Escola de Munique. Nesse sentido, rejeitando fundamentaes ontolgicas, Roxin sustentou que cada categoria do delito tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade deve ser observada, desenvolvida e sistematizada sob o ngulo de sua funo poltico-criminal 60. E assim o fez por meio de uma tripartio dos elementos do crime em tipo (Tatbastend), injusto (Unrecht) e responsabilidade (Verantwortlichkeit), cuja definio e conceituao tm por referencial uma finalidade poltico-criminal: se o tipo a ao valorada do ponto de vista da necessidade abstrata de pena 61, o injusto todo comportamento a que deve ser cominada uma pena por razes ligadas proteo de bens jurdicos 62, enquanto a responsabilidade a preveno limitada pela culpabilidade 63. Por conseguinte, ainda que simplificadamente, o tipo estrutura-se a partir da finalidade poltico-criminal da pena em abstrato (preveno geral); o injusto, a partir da funo do Direito Penal de proteo de bens jurdico-penais e a responsabilidade, a partir da finalidade poltico-criminal da pena a ser aplicada concretamente (preveno geral e especial). preciso, no entanto, dizer mais. Uma anlise pormenorizada das estruturas do delito presentes no pensamento funcional de Roxin impe-se no apenas pela relevncia das consideraes ali presentes, mas tambm em razo das consequncias da sua adoo. Iniciemos com o tipo (Tatbestand). Quando da obra inaugural de Roxin acerca do funcionalismo, concebia tal autor que a sua funo era a de cumprimento das exigncias do princpio da legalidade (nullum crimen sine lege), devendo-se, pois, estruturar a tipicidade dogmaticamente a partir dele 64. Tal concepo, contudo, ganhou

maior complexidade em estudos posteriores, de forma a hoje se verificar, no Tratado de Direito Penal de Roxin, a compreenso do tipo como orientado a uma funo relacionada, fundamentalmente, necessidade da pena em abstrato, ou seja, a uma finalidade preventivo-geral 65. Nesse sentido, tal funo conduziria, para o precitado autor, a duas consequncias principais: (a) necessria utilizao da interpretao teleolgica segundo o fim da norma (restritiva ou extensiva), para que pudessem ser abarcadas da maneira mais completa possvel as condutas legalmente censuradas 66; e (b) indispensvel busca da preciso e da clareza da lei, requisito indispensvel no apenas para eficaz preveno geral, mas principalmente para uma legitimidade constitucional (princpio da legalidade) 67.

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Outra teoria central no funcionalismo penal da Escola de Munique a da imputao objetiva. Constatando que em construes ontolgicas do sistema jurdico-penal a imputao ao tipo objetivo reduzia-se, erroneamente, a uma mera verificao de causalidade fsica, o sistema teleolgico buscou corrigir as inconsistncias decorrentes de tal nexo causal, a partir de um conjunto de regras orientadas a valoraes jurdicas 68. Por conseguinte, a imputao ao tipo objetivo exigiria no apenas uma anlise de causalidade, mas tambm, conforme Roxin, la realizacin de un peligro no permitido dentro del fin de proteccin de la norma 69. Dito isso, passa-se anlise da categoria do injusto (Unrecht). Inicialmente, deve-se advertir que, para Roxin, injusto e antijuridicidade no so sinnimos. Nesse sentido, enquanto esta seria uma propriedade da ao tpica (especificamente, a sua contradio com as determinaes do ordenamento jurdico) 70, aquele seria a ao tpica propriamente dita, ou seja, el objecto de valoracin de la antijuridicidad junto con su predicado de valor. [...] en el concepto de injusto se renen las tres categoras delictivas de la accin, tipicidad y antijuridicidad 71. Ademais, o injusto seria, em sentido material, toda a conduta que deveria ser criminalizada para fins de proteo de bens jurdicos 72, j que o Direito Penal, segundo o precitado autor, teria por funo poltico-criminal a tutela subsidiria de tais bens 73. Inclusive tal conceito de injusto acabou justificando, em sua opinio, o desenvolvimento da teoria da imputao objetiva, haja vista que, se o Direito Penal deve proteger bens jurdicos, ento um meio para tanto, concretizado naquela teoria, foi o de proibir as condutas que produzissem riscos no permitidos a tais bens, e, consequentemente, imputar ao seu autor a eventual concretizao do risco no permitido no resultado tpico 74.

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Por fim, a elaborao do conceito de responsabilidade (Verantwortlichkeit) foi outra importante inovao do sistema teleolgico-racional do Direito Penal. Nesse sentido, Roxin sustentou que categoria da culpabilidade deveria ser agregado um questionamento acerca do merecimento da pena 75 ou da necessidade preventiva da punio 76, uma vez que aquela, sozinha, seria incapaz de explicar e promover as finalidades poltico-criminais de preveno geral ou especial, o que somente se alaria a partir do conceito superior de responsabilidade, o qual englobaria ambos os pressupostos (culpabilidade e necessidade da pena). Assim, nas palavras do prprio Roxin, ter-se-ia uma preveno limitada pela culpabilidade (schuldbegrenzie Prvention) 77. A consequncia fundamental de tal construo a de que, em casos concretos, mesmo diante de idnticas culpabilidades, ser a necessidade preventiva da aplicao da pena ou a sua ausncia que determinar, diretamente, a configurao da responsabilidade (Verantwortlichkeit) do agente 78 e, indiretamente, a prpria existncia do crime. 3 ANLISE CRTICA DO FUNCIONALISMO TELEOLGICO-RACIONAL: CONTRIBUTOS E INCONSISTNCIAS NA COMPREENSO DA CINCIA CONJUNTA DO DIREITO PENAL

3.1 A reafirmao da relao do conceito de crime com valoraes poltico-sociais: contributo irrenuncivel do funcionalismo penal O funcionalismo penal da Escola de Munique tem seus mritos. Um dos mais importantes foi (re)visitar uma determinada compreenso dos conceitos jurdico-penais semelhante presente nos neoclssicos, mas abnegada, ingnua e equivocadamente, desde a ascenso do finalismo. Neste, os conceitos jurdico-penais eram concebidos como puramente ontolgicos e decorrentes de uma natureza do ser, e, consequentemente, como imanentes, insusceptveis de modificao

pelo legislador porque essencialmente imutveis e, claro, eternos. Desde Roxin, no mais. Com a teoria funcional, assumiu-se o que no mais podia ser negado diante da crise, ou seja, da perda de sentido e do esgotamento explicativo 79 da teoria final: os conceitos jurdico-penais esto, necessariamente, relacionados com valoraes poltico-sociais e, portanto, com valores 80 referentes ao homem na sua temporalidade 81. No obstante o reconhecimento dessa compreenso enquanto contributo irrenuncivel do funcionalismo ao Direito Penal Contemporneo, a pergunta que se prope : relacionados com quais valores e de que maneira? , pois, a partir de tal questionamento que se intenta desvelar, a seguir, algumas inconsistncias verificadas no sistema teleolgico (funcional) de Direito Penal.

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3.2 Crticas ao funcionalismo penal da Escola de Munique

3.2.1 Inconsistncia filosfica: o funcionalismo penal como um pensamento que calcula (das rechnende denken). A assuno de uma racionalidade finalstica (Zweckrationalitt) O sistema jurdico-penal pode fundamentar-se desde duas perspectivas: ou se parte das consequncias do crime a pena ou do seu objeto de valorao o injusto 82. Pretende-se ora sustentar que teorias funcionalistas e, portanto, tambm o funcionalismo objeto do presente estudo estruturam o delito normativamente a partir da sua consequncia. Para tal desiderato, inicialmente se reitera que, no funcionalismo teleolgico-racional, como preconizou Roxin, cada categoria do delito tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade deve ser observada, desenvolvida e sistematizada sob o ngulo de sua funo poltico-criminal 83. Pois bem, se cedio que, na teoria funcional, o conceito de crime est condicionado por finalidades de poltica criminal, resta ainda saber, especificamente, quais so elas. Nesse sentido, Roxin explicitou que os critrios de sistematizao jurdico-penal seriam las bases polticocriminales de la moderna teora de los fines de la pena 84. Portanto, as finalidades estruturantes de tal sistema teleolgico seriam as de preveno geral e especial (a dita moderna teoria dos fins da pena).

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Inclusive, quando se analisa em pormenor as categorias do delito desenvolvidas no funcionalismo da Escola de Munique tipicidade, injusto, responsabilidade , verifica-se, claramente, que todas elas foram (re)construdas em funo de finalidades de preveno geral e especial, servindo, pois, de meio ou instrumento para a persecuo de tais fins. Nessa senda, o tipo (Tatbestand), conforme antes referido, orienta-se a uma finalidade preventivo-geral 85. J o injusto (Unrecht) relaciona-se com a funo do Direito Penal de tutela de bens jurdicos, no estando, ao menos primeira vista, orientado a fins de preveno, o que somente se torna perceptvel a partir de uma anlise mais profunda, a qual se passa a realizar. Inicialmente, preciso distinguir entre a fundamentao do injusto e, portanto, do crime a partir da ofensa a bens jurdico-penais 86 e a fundamentao a partir da funo de tutela de bens jurdico-penais 87. Enquanto naquela se est diante de um fundamento retrospectivo para o injusto (violao passada de bens jurdico-penais), nesta tem-se uma justificativa prospectiva (promoo futura da tutela de bens jurdico-penais). Ocorre que a estruturao do injusto em funo da proteo de bens jurdico-penais pressupe, necessariamente, a adoo de uma teoria prevencionista da pena, haja vista ser incoerente a atribuio de tal tarefa ao Direito Penal no contexto axiolgico de uma teoria retributivista da pena. dizer, pois, que a construo funcional do injusto no apenas compatvel com, mas tambm decorrncia lgica da prpria teoria dos fins da pena adotada pelo sistema racional-final de Direito Penal especificamente preveno geral-especial. Por fim, na categoria da responsabilidade que se encontra o efeito mais importante de uma elaborao da teoria do delito a partir da sua consequncia a pena. Ora, se responsabilidade preveno limitada pela culpabilidade, ento, conforme j referido, em casos concretos, mesmo frente a idnticas culpabilidades, ser a necessidade preventiva da aplicao da pena ou a sua ausncia

que definir, diretamente, a configurao da responsabilidade do agente e, indiretamente, a prpria existncia do crime. Isso significa, sem rodeios, que, mesmo diante de condutas igualmente tpicas, injustas (ou antijurdicas, para alguns doutrinadores) e culpveis, a necessidade da pena para fins de preveno geral ou especial que determinar a ocorrncia, ou no, do delito. Haver crime, pois, se presente tal necessidade. Ausente esta, crime no ser.

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Notoriamente, o que se verifica um alarmante monoplio axiolgico das finalidades poltico-criminais na elaborao do prprio conceito de crime. Em tal construo funcionalista, o questionamento que norteia o sistema jurdico-penal considerar X crime promove ou atinge os fins de poltica criminal (preveno geral-especial)? ou, afirmativamente, os fins de poltica criminal definem e constituem o existir do delito. Por conseguinte, o conceito de crime antecedido de e justificado por um exame de utilidade, cujos critrios de valorao decorrem, fundamentalmente, de uma determinada concepo acerca dos fins da pena criminal (especificamente preveno geral e especial). E aqui, necessariamente, deve-se propor a seguinte reflexo: aceitvel construir o sistema jurdico-penal e, consequentemente, toda a teoria do crime a partir de uma categoria que tem por condio de possibilidade a prpria ocorrncia do crime? Em outras palavras, possvel edificar uma teoria do delito partindo-se da sua consequncia, qual seja, a pena? O questionamento apresentado no despretensioso. Muito pelo contrrio. A partir dele, pretende-se sustentar que a teoria funcionalista do Direito Penal estrutura-se no que Heidegger denominou de pensamento que calcula (das rechnende Denken) 88. E, buscando dar-lhe concretude, o filsofo alemo apresentou em sua obra o seguinte exemplo, sobre o qual construiu o prprio conceito de pensamento calculista:Quando concebemos um plano, investigamos ou organizamos uma empresa, contamos sempre com condies prvias que consideramos em funo do objetivo que pretendemos atingir. Contamos, antecipadamente, com determinados resultados. Este clculo caracteriza todo o pensamento planificador e investigador. Este pensamento continua a ser um clculo, mesmo que no opere com nmeros, nem recorra mquina de calcular, nem a um dispositivo para grandes clculos. O pensamento que calcula (das rechnende Denken) faz clculos. [...] O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca

para, nunca chega a meditar [...] sobre o sentido que reina em tudo o que existe. 89 (destacado)

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Tal pensamento, poeticamente exposto por Heidegger, ganha maior sentido e plena realizao no contexto do sistema teleolgico de Direito Penal, tendo em vista que a racionalidade sob a qual se estrutura o funcionalismo penal a finalstica (Zweckrationalitt). dizer, pois, que o sistema funcional do delito, tal qual o agir racional-final teorizado por Weber, determina-se por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como condies ou meios para alcanar fins prprios 90. Aplicando-se essa racionalidade ao Direito, ele perde seu contedo de sentido e sua capacidade de autonomia, tornando-se, pois, um mero instrumento, ou seja e agora nas palavras de Castanheira Neves , um finalstico instrumento e um meio ao servio de teleologias que de fora o convocam e condicionalmente o submetem 91. J no funcionalismo penal, justamente o Direito Penal que nada ser alm de um finalstico instrumento, um meio, a servio de uma teleologia que lhe externa, no caso, os fins de poltica criminal. E, nesse contexto, as categorias que se relacionam com o conceito de crime so, como antes j afirmado, as de utilidade, eficincia e funcionalidade do meio (o prprio crime) em relao aos fins (os de poltica criminal). Ora, se em uma racionalidade finalstica, conforme Maihoffer 92, os sentidos e conceitos fundamentam-se no benefcio ou no prejuzo, nada mais lgico que assim tambm o faa o prprio conceito de crime em um sistema funcional e, portanto, racional-final (Zweckrational) do Direito Penal. Mas no s. Considerando que, no funcionalismo jurdico, o contedo do Direito est merc da sua funo, j que ele conhecido a partir da pergunta o direito para que serve? 93, ento da mesma forma o contedo do prprio crime no funcionalismo penal. Tanto assim que, tendo por base o conceito de responsabilidade (Verantwortlichkeit) proposto por Roxin, se ausente finalidade preventiva (geral-especial), ainda que configurado um ilcito-tpico

culpvel, crime no haver, tendo em vista que, se houvesse, de nada serviria aos fins poltico-criminais pressupostos. E, no sistema funcional do delito, despreza-se, claro, o intil. O problema que, como bem sustentou Fabio DAvila, somente quando j existe o crime que se pode cogitar sobre a legitimidade ou mesmo a utilidade poltico-criminal de aplicar-lhe uma sano, sendo no todo ilgico e, portanto, inaceitvel condicionar o existir do delito a sua consequncia 94.

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Acrescenta-se, ainda, que o funcionalismo jurdico no se preocupa em conhecer o que o direito, nem em conceb-lo pelo seu princpio 95, mas apenas em saber para que ele serve. Isso porque nega, consoante bem explicou Castanheira Neves, um pressuposto bsico daquela pergunta, qual seja, a possibilidade de autonomia do Direito quer dizer, a sua independncia a fins externos 96. Significa que, se o Direito deve ser concebido como um mero instrumento, um simples meio, ento ele est indefeso perante toda e qualquer relatividade e contingncia constitutiva e intencional implicadas na possvel disponibilidade e variao dos fins, dos sociais objetivos a realizar com ele na sua instrumentalidade 97. E assim tambm o conceito de crime. exatamente isso, contudo, o que no se pode de modo algum aceitar. Do contrrio, estar-se-ia a admitir que ao crime falta um contedo autnomo, e, portanto, que ele existe, unicamente, se e para atender funo que lhe atribuda 98. 3.2.2 Inconsistncia metodolgica: a ausncia de um fundamento autnomo ao pensamento funcional A palavra, o pensamento ou a razo (odos); o caminho para algo alm (meta). esta, pois, segundo Castanheira Neves, a raiz etimolgica da palavra mtodo 99. Por conseguinte, conceitua o precitado autor metodologia como a lgica, a razo (racionalidade) ou o pensamento de um proceder (modus, processo) que visa a um fim especfico ou se prope certo objetivo 100. A partir dessa compreenso, pode-se sustentar que qualquer teoria, porque necessariamente calcada em determinada metodologia, apresenta uma racionalidade ou melhor, um fundamento de validade e, da mesma forma, um objetivo ao qual se prope ou seja, uma finalidade. Toda teoria, pois, possui um fundamento que a justifica e uma funo cujo alcance se pretende. Fundamento e funo no coincidentes, mas autnomos, haja vista ser aquele necessariamente retrospectivo (como prvia justificao), e esta, necessariamente prospectiva (enquanto objetivos a serem atingidos) 101.

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Curiosamente, em virtude de estar baseado em um pensamento que calcula (das rechnende Denken) e, por tal razo, em uma racionalidade finalstica-instrumental (Zweckrationalitt), falta ao conceito de crime construdo pelo funcionalismo penal um fundamento autnomo, cujo lugar resta ocupado por uma funo, no caso, os fins de poltica criminal. Por conseguinte, o que se verifica na teoria funcionalista penal da Escola de Munique uma notria reconstruo da relao metodolgica fundamento-funo: da autonomia e da diferenciao entre esses dois elementos estruturantes de qualquer teoria, chega-se sua fuso ou sua igualdade, j que a finalidade passa a ocupar em monoplio, portanto ambas as posies. Nesse sentido, funo da poltica criminal atribuiu-se, desde o funcionalismo de Roxin, uma importncia tamanha, a ponto de ela dar nome a essa construo sistemtica do delito. No entanto, preciso atentar, nesse contexto, para um importante problema: finalidades, fins, funes devem ser pontos de chegada e no de partida, pois so incapazes de, consistentemente, atuarem como base ou fundamento sobre a qual se construir toda uma teoria do crime. Do contrrio e assim ocorre com o funcionalismo , tal teoria justificar-se- pela simples persecuo ou promoo de suas finalidades. O que no ser diferente de dizer que, em nome do alcance dos fins aos quais se prope uma teoria, poder-se- justificar qualquer ato 102. E tal percepo ganha relevo e causa preocupao quando se est a falar de uma teoria como o funcionalismo penal da Escola de Munique que pretende apresentar um conceito de crime e, a partir dele, um limite legitimidade da criminalizao de condutas pelo Estado. Um limite, pois, ao poder estatal. Por conseguinte, quando se percebe a insuficiente capacidade dessa teoria em restringir, mas a sua ampla propenso em justificar e legitimar muitas medidas em nome da busca de importantes fins, faz-se oportuno e necessrio perquirir acerca dos riscos que podem advir da sua aceitao irrestrita como consistente construo

(funcional) do conceito de crime 103. claro que, pelo exposto, no se pode sequer cogitar, seriamente, tal reconhecimento. No entanto, como j dito, ainda que os fundamentos das teorias sejam superados, no necessariamente todas as suas contribuies tambm o devem ser. Por conseguinte, conquanto aqui adiante-se se julgue profundamente inconsistente qualquer espcie de funcionalismo penal, isso no enseja, obrigatoriamente, o seu desprezo por inteiro. Nesse horizonte, admitiu-se como contributo irrenuncivel da teoria funcional do delito o retorno compreenso dos conceitos jurdico-penais como conceitos de valor relacionados com o social e com o poltico.

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Se tal afirmao se mostrara inegvel aps a ainda difcil superao do normativismo formalista 104, importa saber, afinal, de quais valores se est a falar. Espera-se ter-se demonstrado, pelo exposto, que estes no podem ser os de poltica criminal. Mas sim e necessariamente os constitucionais. neles que deve orientar-se um Direito Penal que no pretenda ser, de um lado, um conjunto de silogismos pobres em contedo, nem, de outro, um sistema que exista, unicamente, se e para atender funo heternoma que lhe for atribuda 105. CONCLUSO O problema posto reflexo neste estudo no pretende ser uma mera pergunta acerca da (in)consistncia da construo funcional do conceito de crime, mas, antes, um profundo questionar acerca do sentido e da autonomia do Direito. Um perquirir sobre a prpria aceitabilidade de um Direito como mero instrumento para fins que lhe so externos e, portanto, vazio de sentido e carecedor de autonomia. E isso , exatamente, o que o Direito no pode ser. O seu sentido e a sua autonomia, os quais devem existir, no esto em lugar outro que no na sua relao com o homem. E, para encontrar esse sentido e construir essa autonomia, preciso, antes, faz-lo a prpria humanidade. imperioso, pois, na inesquecvel lio de Castanheira Neves, que o homem no se compreenda somente como beneficirio ou titular de direitos 106, mas, antes, como sujeito comprometido e construtor do Direito (d) o direito no reivindicado no clculo e sim assumido na existncia 107.