poesia caiçara

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ATÉ PARECE POESIA © Domingos Fábio Santos Dê sua opinião sobre este livro, escreva para o autor em [email protected] 1

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Seleção de poesias publicadas no site www.entrementes.com.br no período 2012/13.

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Page 1: Poesia caiçara

ATÉ PARECE POESIA

© Domingos Fábio Santos

Dê sua opinião sobre este livro, escreva para o autor em [email protected]

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Page 2: Poesia caiçara

Poesia de memória

O bom da arquitetura pau-a-pique

é que a manhã vem sem convite,

entra casa adentro

pelos vãos dos telhados,

pelas frinchas das paredes,

trazendo a luz do sol

e a canção de pássaros

que estão na hit parade

dos sucessos musicais

desde tempos ancestrais.

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Page 3: Poesia caiçara

Em risco de extinção:

Suçuarana, irara, ariranha,

araçari, arara, ararinha,

bacurau, curiango, urutau,

saracura, jaó, macuco,

caiçara, caipira, capiau.

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Page 4: Poesia caiçara

Vestes do espírito

O chupim, o anu, o urubu

todos se vestem a rigor

em pretos paletós.

O tangará, o colibri, a arara

todos os dias se vestem

como quem vai para a folia.

Eu já fui urubu, hoje sou tangará,

amanhã é uma incógnita

e a que pássaro, então, minh'alma passará?

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Page 5: Poesia caiçara

Voz das ruas

Tem gente que faz festa de aniversário

pra cachorro

e outros estão matando cachorro a grito;

tem pessoas que só bebem água importada

e outras sequer tem água tratada;

tem gente lutando pra viver,

outros defendem a pena de morte;

tem pouca gente com muita terra

e muita gente deserdada.

E ainda cantam que dos filhos deste solo és mãe gentil,

ópátria amada Brasil?

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Page 6: Poesia caiçara

O que pode levar ao céu?

Já sabemos que o ouro não se leva,

mas entra o relógio

que marcaram as boas lembranças,

herança de família.

Entram gente irradiando luz

direto do amor cultivado no coração,

pessoas que o mundo imaginava

vivendo na escuridão.

Também não entram roupas de luxo,

mas são aceitos trajes de casamentos,

roupas de batizados,

e os pés perdidos

de pares de calçados.

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Page 7: Poesia caiçara

Historinha

A menina Flavinha ficou encantada

quando João Barbudo

desenhou para ela

o tubarão-martelo, o peixe-rei, o peixe-espada

e o peixe-lua rodeado de estrelas no fundo mar.

E ela só foi descobrir

que a imaginação ficou aquém da realidade

quando descobriu

que esses peixes existem de verdade.

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Page 8: Poesia caiçara

Parece até poesia

 

Santo Isidoro, pobrezinho,

mas com ouro no coração,

achou o caminho para a santidade

entre o arado e a enxada.

Enquanto, em oração, ele sobe aos céus,

os anjos descem à Terra

para fazer seu trabalho de arar e semear,

porque a colheita não pode atrasar.

E Nosso Senhor ri

ao saber dos anjos arteiros

tomando o lugar de Isidoro

no trabalho dos canteiros.

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Page 9: Poesia caiçara

Oferendas

É bonito ver as árvores debruçadas sobre o mar

atirando ofertas às ondas

que as levam e trazem sob o influxo da maré.

Um bacupari pra lá,

um miriguito pra cá,

uma coroanha pra lá,

um jamelão pra cá,

uma moça bonita pra lá,

uma pontada no coração, cá.

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Page 10: Poesia caiçara

Presente de pobre

Um favor é uma das poucas coisas

que os pobres podem dar,

assim dizia Vovó Martinha,

ao sair para mais um serviço de parteira

na Praia da Maranduba.

Quando contei essa história

ao professor Aziz  Ab'Saber,

ele gostou e comentou:

Como seria fácil trilhar o caminho

para o coração das pessoas:

bastaria uma palavra afetuosa,

ou uma solidariedade simpática,

tão comuns antigamente.

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Page 11: Poesia caiçara

O descobridor de manhãs

Antigamente era o canto do galo

nas fímbrias da madrugada

que franqueava os caminhos

às pessoas de bem:

pescadores partindo para o mar,

lavradores nas trilhas das roças,

ou viajantes partindo

(talvez por nomadismo atávico),

pois aqui  não faltavam peixe pra comer

nem água boa de beber.

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Page 12: Poesia caiçara

Terra de sonhos

 

Quem andou pela

Terra do Nunca e Ilha de Utopia

sentiu-se em casa quando,

do alto do último morro avistou,

por volta de 1970,

entre árvores e bananeiras,

a Vila Escondida dos Pescadores

da Praia da Fortaleza, Ubatuba.

 

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Page 13: Poesia caiçara

Jardim de Dona Eugênia

No piemonte da Serra da Fortaleza

há uma casa antiga

pintada de azul e branco

e cercada de flores

dos quatro cantos do mundo,

mais algumas do paraíso

(refiro-me às rosas de Nossa Senhora),

que foram parar,

não se sabe quando,

não se sabe como,

às mãos de Vovó Eugênia

que plantou e transplantou,

até ter um pedacinho do Céu

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Page 14: Poesia caiçara

todo seu,

de enternecer e tornar crente

até coração ateu.

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Page 15: Poesia caiçara

Não esqueça dos amigos

Leve de presente

uma penca de banana da terra,

ou um pedaço de torta,

ou abacates maduras,

ou um buquê de flores

a amigos ou amigas

que precisam de visitas como profilaxia

e para reencontrarem motivos

da alegria d-e-v-i-v-e-r.

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Page 16: Poesia caiçara

História de pescador

Naquele dia, ao largo da Ilha Vitória,

um peixe (terá sido marlim?)

abocanhou isca, anzol

destinado às caçoas,

arrastou boia, pescador, canoa

rumo ao mar novo.

Somente depois de muito arrasto,

antes que chegasse a meio caminho

dos mares dos africanos,

a linha foi cortada com faca,

e o vento da viração fez o favor

de encher os panos

para empurrar de volta a canoa

à segurança da praia da Maranduba

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Page 17: Poesia caiçara

e do bar do Pimenta,

onde a história foi narrada

por Francisco Félix,

neste canto do Brasil,

para descrédito geral,

do dia primeiro de abril.

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Page 18: Poesia caiçara

Das pequenas grandes coisas

No quintal de meus avós

eu vi árvore balançar

a ponto de quase tombar

em dia sem ventos

e ouvi festa barulhenta

entre seus galhos

sem nenhuma maritaca

que pudesse justificar

tamanha algazarra.

Porém, tudo que é bom

um dia se acaba

e um dia um machado

cortou o pé de jabuticaba.

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Page 19: Poesia caiçara

Técnica de pesca

Uma isca na ponta de uma vara

tira um guaiá da toca

e depois é preciso agilidade

para apanhá-lo,

ou tomar um beliscão

de sua potente tenaz...

descole se for capaz.

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Page 20: Poesia caiçara

Disputa milenar

Antigamente,

quando as pessoas eram donas do tempo,

e não vice-versa,

como hoje acontece,

um típico dia de domingo começava

com jogo de futebol

de solteiros contra casados.

Os solteiros muito visados

pelas mulheres casadoiras

esperando marcar o definitivo tento

que conduz ao casamento.

Por sua vez, os rapazes

faziam todo o esforço contrário

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Page 21: Poesia caiçara

para não vestir tão cedo a camisa

do time adversário.

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Page 22: Poesia caiçara

Sinais dos tempos

O tempo de partir chega

e os amigos vão

em busca da universidade, do emprego,

do amor, do eldorado...

que pode estar em terras distantes,

ou aqui mesmo ao lado.

Os lugares ficam cheios de vazios

no outrora espaço de poetas errantes

e seus poemas ainda mais erradios.

No silêncio ainda ecoa

um acorde musical que restou só.

No muro um anúncio: troca-se versos livres

por gravata e paletó.

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Page 23: Poesia caiçara

Vovó Zulmira

Más notícias de guerra em países distantes

atravessavam as escarpas

e seus esporões que isolavam nossa praia

trazendo inquietações para o cotidiano

da pequena vila de pescadores.

A pedido do padre rezávamos

pelas almas de tantas vítimas.

Mas Vovó Zulmira não se abalava e dizia:

por defunto que não conheço,

não rezo nem ofereço.

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Page 24: Poesia caiçara

O segredo de João Alegre

O segredo pra fazer música bonita

é sair de casa e andejar

pra ver e ouvir as obras de Deus

e dos homens:

o pescador que retorna da pescaria,

um carinho de namorada,

um sol que se anuncia

no vermelho da alvorada

e mais um monte

de lições de rejuvenescer.

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Page 25: Poesia caiçara

No Sertão do Ubatumirim

Antigamente, dizia Antonio Clemente,

era fácil encontrar Deus,

ele passava por aqui todo domingo,

na capelinha do bairro.

Mas a fé foi morrendo

e ninguém tinha tempo

para o compromisso mais importante da vida.

Na falta de onde ficar

foi que ofereci meu abrigo

e, desde então,

Ele está aqui comigo.

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Page 26: Poesia caiçara

Nova e antiga lição

Sabe aquele pão

arrancado de sua despensa quase vazia

para dar a quem pedia?

Sabe aquele dinheiro

tirado de seu saldo devedor

emprestado a um conhecido?

Sabe aquela palavra de ouro

tirada do rico veio de seu coração

pra dar a um necessitado de afeição?

No final se verificará

que são pequenos atos de sapiência:

tudo leva a conclusão que a eternidade

tem alicerces na solidariedade.

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Page 27: Poesia caiçara

Olhos atentos

Quando as gaivotas se reúnem

e voltam para suas ilhas

é sinal que vai soprar a tormenta.

Quando os golfinhos se ajuntam,

desnorteados, à tona d'água,

é preciso procurar porto seguro.

Quando as formigas fazem correição

barranco acima,

é presságio de enxurrada e inundação.

E o que a gente faz

quando os jornais noticiam

que chegou o tempo

de um irmão contra o outro

e dos filhos contra os pais?

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Page 28: Poesia caiçara

Além das aparências

Eu podia ser egocêntrico

e teimar que o mundo gira

em torno do meu umbigo,

mas só os loucos

escutariam o que digo.

Eu podia ser ateu e dizer

que uma explosão numa sopa de letrinhas

pode formar uma biblioteca

com todos seus livros mais as entrelinhas.

Eu podia por fé nos luminares da moderna ciência

Leslie Groves, Robert Oppenheimer, Enrico Fermi,

se não produzissem uma péssima rima

para a solução final na cidade de Hiroshima.

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Page 29: Poesia caiçara

Por isso tudo prefiro acreditar

em Mário Quintana, Robert Frost,

Manuel de Andrade,  São Francisco,

Santa Teresinha, Dom Bosco, Clube da Esquina,

que fizeram uma farofa de realidade com poesia,

enquanto Nossa Senhora dos Artistas

a tudo isso bendizia.

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Page 30: Poesia caiçara

Dica: 

No mês de janeiro

convém prestar atenção

para onde se dirigem as revoadas

de maritacas e periquitos.

Convém segui-los para investigar,

no final da trilha pode ter um prêmio,

uma fruteira carregada de cambucá.

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Page 31: Poesia caiçara

Sabedoria de avô

Quando meu avô perguntou

o que eu tinha aprendido de bom,

naquele dia, na escola,

eu respondi que a professora ensinou

que a baleia é mamífero

e não peixe como se pensava.

Mas, consolou-me o velho,

com aquela cara de peixe,

a qualquer um enganava.

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Page 32: Poesia caiçara

O índio Juruquivi

Um pingo de chuva

infiltrou-se pela palha do sapé

e caiu no rosto de Juruquivi

despertando-o para espiar

a chuva em todos os quadrantes

e lembrá-lo da luta pela subsistência.

Sem condições para luta nenhuma

ele teve uma ligeira refrega

com uns pés de inhame,

fez o desjejum e voltou para a rede.

Pra que ir contra as vontades celestiais?

Tupã é mais.

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Page 33: Poesia caiçara

Casa antiga

Na casa de meu avôs

havia muitos tesouros:

um rádio de válvulas

que irradiava Lamartine Babo

e Orlando Silva

que a gente não se cansava de escutar.

 

Um retrato que, visto de frente,

mostrava Nosso Senhor Jesus,

olhando de viés via-se, à direita, São João Batista

e, à esquerda, São Lázaro

que a gente não cansava de olhar.

 

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Page 34: Poesia caiçara

Na cozinha um velho fogão

fumegava cheiro de pirão de peixe

que a gente não cansava de paladar,

de tal modo, que até esse substantivo

virou verbo defectivo.

 

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Page 35: Poesia caiçara

Estação da chuva

Eu sei das minhas responsabilidades

que preciso ir à luta

que tenho uma família pra sustentar...

Mas, meu bem, ouça a chuva a tamborilar.

 

Eu sei que tem trabalho pra fazer,

que sou assalariado

e o dinheiro é contado...

Mas, meu bem, ouça a chuva no telhado.

 

Eu sei que tem contas a pagar,

que há um preço a pagar

pra viver em sociedade...

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Page 36: Poesia caiçara

Mas, meu bem, ouça a chuva nos convidando

a retornar à normalidade.

 

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Page 37: Poesia caiçara

Anchieta de Ubatuba

O dinâmico Padre Anchieta,

segundo conta a história,

andava pelas serranias e praias

da nossa região,

com os pés no chão

e a cabeça nas coisas do céu

que a distância não o cansava,

a chuva não o molhava

e obstáculos se arredavam

conforme o Santo passava.

( pois, como se aprende na academia,

uma boa história tem que ser

pelo menos 50% verdade,

o restante é poesia).

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Page 38: Poesia caiçara

Canção

Estudar o que o mar

tem a ensinar e aprender

os nomes dos seres

dos haveres

e de outras riquezas

dos rasos

e profundezas.

Eh, eh, eh, enguia, enguiá,

que é preciso ser amigo do mar.

 

Mergulhar até virar anfíbio

e familiarizar-se

com os quelônios,

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Page 39: Poesia caiçara

equinodermos,

moluscos,

crustáceos

e outros peixes.

eh, eh, eh, emborês,

por favor não nos deixes.

 

Envolver-se até tornar-se

caiçara,

pescador,

profissional

ou amador,

suas histórias,

cantorias

e no lanço da rede

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Page 40: Poesia caiçara

pescar até poesias.

Eh, eh, eh, espadarte

que viver é uma arte.

 

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Page 41: Poesia caiçara

A fé e a rabeca

Compadre Maneco Almiro,

venho cá pedir emprestada

a vossa rabeca

para a festa do Divino

que a minha está estragada

por um tombo que levou,

quando me atrevi a tocá-la

em seresta desbragada.

Foi castigo, disso sei eu,

mas o caso é que preciso

da vossa rabeca emprestada

para tocar para o Divino Espírito Santo

pois sem ela, meu compadre,

a música e a minha alma

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Page 42: Poesia caiçara

Outras riquezas

Na praia da Fortaleza

o Dario pescador é mestre da viola

e seu filho Elias faz o cavaquinho chorar;

Maneco Almiro do canto da praia

aprendeu sozinho a tocar rabeca

para ser um astro da folia de reis

e o cego Doquinha tem pão e pouso

em troca de modinhas.

A gente é pobre,

o lugar é acanhado,

a alma é rica,

o coração desmesurado.

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Page 43: Poesia caiçara

Visão

 Vós trocastes as vestes de aurora

por trajes comuns

e viestes andar na praia.

Apreciastes a cor do céu,

o cheiro do mar,

o voo das gaivotas,

as crianças brincando

e tudo ficou mais bonito.

O caranguejo guaruçá

foi esconder-se na toca

e eu, pobre de mim,

o que poderia fazer

senão colher todas as flores bem-me-queres

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Page 44: Poesia caiçara

para vos presentear

com a louca esperança de vos agradar

e aqui permaneceres.

 

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Page 45: Poesia caiçara

Evolução

Antigamente nos ensinavam

Que é preciso proteger a nação

Com paus e pedras,

Com mosquetes e bombardas,

Com bombas e canhões.

Felizmente os tempos mudaram,

E todo esse belicismo acabou

E agora defendemos a Pátria

Com chutes e bolas ao gol.

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Page 46: Poesia caiçara

Da amizade

Pessoa amiga mesmo

a gente não chama pelo nome,

mas sim pelo apelido:

Tiona, para Tia Apolônia,

Tiúta, Tia Teresa,

Zé Grande, meu avô José Almiro,

José Amorim é Cação,

Clóvis Gilberto é Verdura,

Leovigildo Félix é Carpinteiro,

e Jajá é um mistério,

até ele próprio esqueceu o nome verdadeiro.

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Page 47: Poesia caiçara

Até parece poesia

São Francisco falou com os bichos,

São José de Cupertino andou nos ares,

Santa Clara de Assis enxergava à distância,

Santo Pio de Pieltrecina desviou bombas no ar,

São Paulo ressuscitou um jovem,

Santa Rita de Cássia conversou com anjos.

São Simão do Egito fez a montanha mover,

São Pedro curou um coxo,

São João Bosco multiplicou pães

e Santa Bernardete virou bela adormecida.

E ainda há quem diga

não ter espaço pra poesia

na rotina do dia-a-dia.

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Page 48: Poesia caiçara

Santo cozinheiro

Nesse momento

tem um pescador

que mora no canto de lá

da praia deserta

preparando seu almoço.

O mar deu o peixe,

a terra deu a farinha de mandioca,

e São Benedito,

o padroeiro dos cozinheiros,

ao notar que faltava tempero

foi lá na horta do céu,

trouxe folhas de coentro graúdo

e acertou o gosto do pirão.

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Page 49: Poesia caiçara

Fábula

Duas míseras lagartas

comiam couve na minha horta

e discutiam metafísica:

- Tem vida após a morte, dizia uma.

- Não seja idiota, respondia a outra.

Em teimosia típica de lagarta

mastigavam mais um pouco de couve

e voltavam ao mesmo assunto:

- A vida não acaba aqui, dizia uma.

- Guarde seu fôlego pra comer couve, respondia a outra.

Enquanto isso borboletas multicores

pairavam acima de toda essa discussão

e sorviam o néctar das flores.

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Page 50: Poesia caiçara

Lição de amanhecer

Toda manhã,

surpreendendo o sol

ainda sonolento,

o pescador Júio Barbosa

espia o céu

repara no vento

sente na pele

a meteorologia

do ventochuvasol.

Quem tem juízo o escuta

antes de começar o dia.

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Page 51: Poesia caiçara

Consertada

Nas festas juninas de antigamente

os homens tomavam quentão

ou cachaça em grandes talagadas.

Para as mulheres sobrava chá quente -

ou pelo menos assim pensavam os marmanjos -

sem saber que a bebida estava consertada

com um boa dose de aguardente.

Ingredientes: 5 litros de água, 1 litro de pinga, 1 kg de

açúcar, 1 pacote de canela, 1 pacote de cravo, casca de 6

laranjas (preferência curtida) e capim cidrão.

Preparo: Pôr no fogo o açúcar, a canela, o cravo, o capim

e as cascas. Mexer até dourar. Em seguida, colocar a água

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Page 52: Poesia caiçara

e deixar ferver até reduzir a mais ou menos 3 litros.

Colocar a pinga e deixar ferver mais um pouco.

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Page 53: Poesia caiçara

Receita de Quintana

Em dias nublados

procurem janelas no céu

para surpreender

os anjinhos que as abrem

procurando arejar o ambiente.

Procurem apanhar um sorriso de anjo,

como dizem que aconteceu outrora

a Quintana que marchou para o crepúsculo

imaginando ser a aurora.

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Page 54: Poesia caiçara

História de bem-te-vi

Igual ao minúsculo bem-te-vi

que enfrenta e afugenta o carcará,

a menina Malala Yousafzai

enfrentou a barbárie

e vai pintando de luz do sol

a ignorância sob a escuridão

nas terras do Paquistão.

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Page 55: Poesia caiçara

Tal e qual

Todo pescador que com linhas de pesca em cada bordo da

canoa

Vai tenteando os peixes em profundidades e lugares

diferentes

É a imagem do poeta

Tenteando entre os dias

Pescando imagens e palavras

Enquanto sua rede de tresmalhos

Captura, em alguns dias, uns pobres pampos,

Em outros, grandes robalos.

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Page 56: Poesia caiçara

Paula e Régis

Foi a irmã maior que,

de tanto assistir filme românticos,

ajeitou o menino para a foto

com o chapéu de feltro antigo,

um lenço no pescoço,

os olhos azuis matreiros

parecendo mais um artista de cinema

do que um menino arteiro.

E o resultado ficou bom

porque o rosto do menino

refletiu a alma pura

e a bondade de seu coração,

confirmando a lição da esperança:

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Page 57: Poesia caiçara

quem quiser o reino dos céus

tem que se tornar criança.

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Page 58: Poesia caiçara

Sonho bom

Quando eu, afinal, acordar

com os primeiros raios de sol

varando as telhas vãs,

com o cheiro de café quentinho,

que vem da cozinha,

com o cacarejar

das galinhas no quintal,

com o rumorejar das ondas

quebrando no lagamar,

terei chegado

onde minha história começou

e para onde,

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Page 59: Poesia caiçara

em todos esses anos,

eu procurei retornar.

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Page 60: Poesia caiçara

Lição de homem do mar

Quando o marinheiro embarcou

Pela primeira vez

para pescar no mar de fora

a bordo do barco Taurus

foi o Mestre Benedito quem o recebeu:

- Veio preparado, moço?

Pediu bênção à sua mãe e ao seu pai?

Se não, comigo não vai!

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Page 61: Poesia caiçara

Visita

Esta é minha casa, entre

e seja bem-vindo, veja

seu retrato na parede, beba

essa garapa, coma

esse peixe assado, ganhei

do Senhor seu pai, descanse

seu corpo ferido na tarimba, deixe-me

passar esse unguento, pagar-me?

Só com um quinhão de sua luz,

pouco pra você,

demasiado pra mim, Jesus.

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Page 62: Poesia caiçara

O cego Doquinha

Doquinha era cego

porque esse era seu destino.

Ficou cego paulatinamente,

Primeiro perdeu os pequenos detalhes,

depois deixou de ver as cores mais suaves

e, por fim, objetos e pessoas foram afundando em

abismos.

Um dia ele me revelou que gostava de trovoadas

porque podia ver a luz dos relâmpagos.

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Page 63: Poesia caiçara

Labirinto

Comecei tão bem a jornada

entre o mar e a terra,

princípio de vida caiçara,

mas acabei por me desviar

não sei em qual curva da estrada,

quando fecharam as possibilidades

de viver da pesca e da roça.

Desde então guio-me

mais pelo que ouço e vejo

sem dar atenção ao que sinto

e eis-me aqui perdidinho

neste labirinto.

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Page 64: Poesia caiçara

Receita caiçara

Com 1 kg de mangarito,

2 kg de galinha do quintal,

2 xícaras de arroz,

1 xícara de óleo,

1 litro de água quente,

e mais 2 tomates, 2 pimentões,

1 dedo de açafrão, Gengibre,

Manjericão, Louro,

Cheiro-verde, Alho, Cebola

Sal e Pimenta a gosto,

mais um toque de alecrim,

tudo isso rematado com um copo de mucungo,

o que será de mim?

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Page 65: Poesia caiçara

Modo de Preparo: Cozinhe o mangarito e tire a casca.

Refogue a cebola, o alho, o gengibre e o açafrão. Ponha

os pedaços de galinha com um litro de água quente.

Quando a carne começar a amaciar, coloque mais 1 litro

de água quente e misture o arroz e o mangarito. Mexa

para não grudar. Quando o arroz estiver no ponto, ponha

o resto dos temperos e aguarde o cozimento se completar.

E o mucungo, para quem não sabe, é vinho de garapa.

Antigamente deixava-se a garapa fermentar dentro de um

pote de barro debaixo da terra por três dias, depois coava-

se, devolvia-se a bebida ao pote sob o solo para fermentar

mais três dias e boa carraspana.

Recomenda-se comer e beber como antigamente, isto é,

fazendo a sesta após a refeição.

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Page 66: Poesia caiçara

Quintal de infância

O quintal de meus avós

tinha tamanho suficiente

para jogar bola,

brincar de esconder,

pular corda e

jogar malha.

Cabia ainda

um jardim de rosas de todas cores

(as flores preferidas de Vovó

e de Nossa Senhora),

um bananal nos fundos,

laranjeiras, cafezal, jabuticabeiras

uma horta protegida

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Page 67: Poesia caiçara

das aves do quintal

e outros seres rapaces

(nós, inclusive).

Era um quintal tão grande

que até hoje ocupa

quase todo o meu coração.

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Page 68: Poesia caiçara

Homenagem a Zeev Frajnovits

Zeev Frajnovits, húngaro, tinha 10 anos de idade quando

foi levado para Auschwitz. Seu crime? Pertencer à

religião judaica. Com a esperteza de criança e certamente

com a proteção dos anjos ele escapou da câmara de gás

nazista e foi resgatado, segundo suas próprias palavras,

apenas com a pele por cima dos ossos. Se os soldados

aliados demorassem mais um dia para libertar os

prisioneiros daquele campo de concentração certamente o

encontrariam morto pela fome.

Seus pais e irmãos não tiveram a mesma sorte, o menino

se viu órfão ao voltar para sua cidade de origem onde

ficou algum tempo. Mudou para o recém-formado Estado

de Israel. Mas lá não encontrou a paz.

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Page 69: Poesia caiçara

A Terra Prometida, onde haveria a paz e o pão em

abundância ele só veio encontrar no Brasil. Com uma

risadinha ele costumava dizer: Será que o bom Abrahão

não parou antes, por falta de um bom barco para chegar

até à verdadeira terra prometida?

Mas toda essa experiência triste não tornou Zeev um

homem amargo, era um homem expansivo e com modos

alegres até que veio a falecer em 2005.

Guardo até hoje as suas palavras que mais me

impressionaram: “Eu sofri o ódio, por isso dou valor ao

amor; eu conhecí a guerra, por isso dou valor à paz; eu

conhecí a morte, por isso dou valor à vida.”

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Page 70: Poesia caiçara

Homens de dura cerviz!

A paz vencerá a guerra,

O amor sufocará o ódio,

A vida vencerá a morte,

Quando a fragilidade valer mais do que a força,

Quando o carinho ganhar da agressão,

Quando o ouro for encontrado nos corações,

Quando a luz vencer as trevas,

Quando a mão parar a espada,

Quando a descrença der lugar à fé

E quando os castelos tiverem a riqueza

De uma casinha de Nazaré.

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Page 71: Poesia caiçara

No meu quintal

Em troca de um braço forte,

um abraço suave,

uma chuva de ouro

e uma parceria para a vida inteira:

orquídea na laranjeira.

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