poemas de manuel bandeira

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Tu Que Me Deste O Teu Cuidado... Tu Que Me Deste O Teu Cuidado... Manuel Bandeira Tu que me deste o teu carinho E que me deste o teu cuidado, Acolhe ao peito, como o ninho Acolhe ao pássaro cansado, O meu desejo incontentado. Há longos anos ele arqueja Em aflitiva escuridão. Sê compassiva e benfazeja. Dá-lhe o melhor que ele deseja: Teu grave e meigo coração. Sê compassiva. Se algum dia Te vier do pobre agravo e mágoa, Atende à sua dor sombria: Perdoa o mal que desvaria E traz os olhos rasos de água. Não te retires ofendida. Pensa que nesse grito vem O mal de toda a sua vida: Ternura inquieta e malferida Que, antes, não dei nunca a ninguém. E foi melhor nunca ter dado: Em te pungido algum espinho, Cinge-a ao teu peito angustiado. E sentirás o meu carinho. E sentirás o meu cuidado. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: carinho , cuidado , mal , peito Versos Escritos n'agua Versos Escritos n'água Manuel Bandeira Os poucos versos que aí vão,

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Page 1: Poemas de Manuel Bandeira

Tu Que Me Deste O Teu Cuidado...

Tu Que Me Deste O Teu Cuidado...Manuel Bandeira

Tu que me deste o teu carinhoE que me deste o teu cuidado,Acolhe ao peito, como o ninhoAcolhe ao pássaro cansado,O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele arquejaEm aflitiva escuridão.Sê compassiva e benfazeja.Dá-lhe o melhor que ele deseja:Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva. Se algum diaTe vier do pobre agravo e mágoa,Atende à sua dor sombria:Perdoa o mal que desvariaE traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida.Pensa que nesse grito vemO mal de toda a sua vida:Ternura inquieta e malferidaQue, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca ter dado:Em te pungido algum espinho,Cinge-a ao teu peito angustiado.E sentirás o meu carinho.E sentirás o meu cuidado. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: carinho, cuidado, mal, peito

Versos Escritos n'agua

Versos Escritos n'águaManuel Bandeira

Os poucos versos que aí vão,Em lugar de outros é que os ponho.Tu que me lês, deixo ao teu sonhoImaginar como serão.

Neles porás tua tristezaOu bem teu júbilo, e, talvez,

Page 2: Poemas de Manuel Bandeira

Lhes acharás, tu que me lês,Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.Meus pobres versos comovidos!Por isso fiquem esquecidosOnde o mau vento os atirou. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: beleza, mau, vento, versos

Volta

VoltaManuel Bandeira

Enfim te vejo. Enfim no teuRepousa o meu olhar cansado.Quando o turvou e escureceuO pranto amargo que correuSem apagar teu vulto amado!

Porém já tudo se perdeuNo olvido imenso do passado:Pois que és feliz, feliz sou eu.Enfim te vejo!

Embora morra encontentado,Bendigo o amor que Deus me deu.Bendigo-o como um dom sagrado.Como o só bem que há confortadoUm coração que a dor venceu!Enfim te vejo! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: amor, coração, deus, feliz

Ultimo Poema

Último PoemaManuel Bandeira

Assim eu quereria o meu último poemaQue fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionaisQue fosse ardente como um soluço sem lágrimasQue tivesse a beleza das flores quase sem perfumeA pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidosA paixão dos suicidas que se matam sem explicação. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: explicação, paixão, perfume, poema

Tres Idades

Page 3: Poemas de Manuel Bandeira

Três IdadesManuel Bandeira

A vez primeira que te vi,Era eu menino e tu menina.Sorrias tanto... Havia em tiGraça de instinto, airosa e fina.Eras pequena, eras frnazina...

A ver-te, a rir numa gavota,Meu coração entristeceuPor que? Relembro, nota a nota,Essa ária como eterneceuO meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,Já eras moça, e com que encantoA adolescência em ti se fez!Flor e botão... Sorrias tanto...E o teu sorriso foi meu pranto...

Já eras moça... Eu, um menino...Como contar-te o que passei?Seguiste alegre o teu destino...Em pobres versos te choreiTeu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,Oito anos faz que não te via...Quanta mudança o tempo trazEm sua atroz monotonia!Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.Essa tristeza é que diz...Ele marcou sobre o teu rostoA imperecível cicatriz:És triste até quando sorris...

Porém teu vulto conservouA mesma graça ingênua e fina...A desventura te afeiçoouÀ tua imagem de menina.E estás delgada, estás franzina... MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: graça, moça, nota, oito

Testamento

TestamentoManuel Bandeira

Page 4: Poemas de Manuel Bandeira

O que não tenho e desejoÉ que melhor me enriquece.Tive uns dinheiros — perdi-os...Tive amores — esqueci-os.Mas no maior desesperoRezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.Por outras terras andei.Mas o que ficou marcadoNo meu olhar fatigado,Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:Não tive um filho de meu.Um filho!... Não foi de jeito...Mas trago dentro do peitoMeu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu meninoPara arquiteto meu pai.Foi-se-me um dia a saúde...Fiz-me arquiteto? Não pude!Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.Não faço porque não sei.Mas num torpedo-suicidaDarei de bom grado a vidaNa luta em que não lutei!

(29 de janeiro de 1943) MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: filho, menor, pai, saúde

Satelite

SatéliteManuel Bandeira

Fim de tarde.No céu plúmbeoA Lua baçaPairaMuito cosmograficamenteSatélite.

Desmetaforizada,Desmitificada,Despojada do velho segredo de melancolia,

Page 5: Poemas de Manuel Bandeira

Não é agora o golfão de cismas,O astro dos loucos e dos enamorados.Mas tão-somenteSatélite.

Ah Lua deste fim de tarde,Demissionária de atribuições românticas,Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,Gosto de ti assim:Coisa em si,- Satélite. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: fim, lua, show, tarde

Rondo do Capitao

Rondó do CapitãoManuel Bandeira

Bão balalão,senhor capitão.tirai este pesodo meu coração.não é de tristeza,não é de aflição:é só esperança,senhor capitão!a leve esperança,a área esperança...área, pois não!peso mais pesadonão existe não.ah, livrai-me dele,senhor capitão! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: capitão, esperança, existe, peso

Poetica

PoéticaManuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedidoDo lirismo bem comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e[manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

Page 6: Poemas de Manuel Bandeira

[vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçãoTodos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifilíticoDe todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismoSerá contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com[cem modelos de cartas e as diferentes[maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbadosO lirismo difícil e pungente dos bêbadosO lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber de lirismo que não é libertação. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: cartas, modelos, tabela

Poema Tirado de uma Notícia de Jornal

Poema Tirado de uma Notícia de JornalManuel Bandeira

João gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia[num barracão sem número.Uma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDançouDepois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: bar, lagoa, noite, número

Plenitude

PlenitudeManuel Bandeira

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.O ar é como de forja. A força nova e puraDa vida embriaga e exalta. E eu sinto. fibra a fibra,Avassalar-me o ser a vontade da cura.

Page 7: Poemas de Manuel Bandeira

A energia vital que no ventre profundoDa Terra estuante ofega e penetra as raízes,Sobe no caule, faz todo galho fecundoE estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas...Arde-me na garganta... E nas artérias sintoO bálsamo aromado e quente das resinasQue vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estuaNo fundo das rechãs, no flanco das montanhas,E eu absorvo-o nos sons, na glória da luz cruaE ouço-o ardente bater dentro em minhas entranhas

Tenho êxtase de santo... Ânsias para a virtude...Canta em minh'alma absorta um mundo de harmonias.Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude- Belo como Davi, forte como Golias...

E neste curto instante em que todo me exaltoDe tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo,E nunca o sonho humano assim subiu tão altoNem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!Vós que cicatrizais minha velha ferida...Vós que me dais o grande exemplo de belezaE me dais o divino apetite da vida!

Clavadel, 1914 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: canta, fibra, sonho, vida

Paisagem Noturna

Paisagem NoturnaManuel Bandeira

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale...E lá no fundo vem a vozHumilde e lamentosaDos pássaros da treva. Em nós,- Em noss'alma criminosa,O pavor se insinua...

Um carneiro bale.Ouvem-se pios funerais.Um como grande e doloroso arquejoCorta a amplidão que a amplidão continua...

Page 8: Poemas de Manuel Bandeira

E cadentes, metálicos, pontuais,Os tanoeiros do brejo,- Os vigias da noite silenciosa,Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de trevaVai perdendo a espessura, e em breve se adelgaçaComo um diáfano crepe, atrás do qual se elevaA sombria massaDas serranias.

O plenilúnio vai romper... Já da penumbraLentamente reslumbraA paisagem de grandes árvores dormentes.E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,Tintas deliqüescentesMancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,Fazendo levantar a fronteDos poetas e das almas amorosas,Dissipando o temor nas consciências medrosasE frustrando a emboscada a espiar na noite escura,- A LuaAssoma à crista da montanha.Em sua luz se banhaA solidão cheia de vozes que segredam...

Em voluptuoso espreguiçar de forma nuaAs névoas enveredamNo vale. São como alvas, longas charpasSuspensas no ar ao longe das escarpas.Lembram os rebanhos de carneirosQuando,Fugindo ao sol a pino,Buscam oitões, adros hospitaleirosE lá quedam tranqüilos ruminando...Assim a névoa azul paira sonhando...As estrelas sorriem de escutarAs baladas atrozesDos sapos.E o luar úmido... fino...Amávico... tutelar...Anima e transfigura a solidão cheia de vozes...

Teresópolis, 1912 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: luz, noite, paisagem, vale

Page 9: Poemas de Manuel Bandeira

Oracao para Aviadores

Oração para AviadoresManuel Bandeira

Santa Clara, clareaiEstes ares.Dai-nos ventos regulares,de feição.Estes mares, estes aresClareai.

Santa Clara, dai-nos sol.Se baixar a cerração,AlumiaiMeus olhos na cerração.Estes montes e horizontesClareai.

Santa Clara, no mau tempoSustentaiNossas asas.A salvo de árvores, casas,E penedos, nossas asasGovernai.

Santa Clara, clareai.AfastaiTodo risco.Por amor de S. Francisco,Vosso mestre, nosso pai,Santa Clara, todo riscoDissipai.

Santa Clara, clareai. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: asas, clara, risco, santa

O Nome Em Si

O Nome Em SiManuel Bandeira

Antônio, filho de João Manuel Gonçalves Diase venância mendes ferreiraantônio mendes ferreira gonçalves diasantônio ferreira gonçalves diasgonçalves dutragonçalves dantasgonçalves diasgonçalves gonçalves gonçalves gonçalves

Page 10: Poemas de Manuel Bandeira

dias dias dias dias diasdias gonçalvesdias gonçalvesgonçalves, dias & ciagonçalves, dias & ciaDr. Antônio gonçalves diasprof. antônio gonçalves diasemerenciano gonçalves diaseremildo gonçalves diasaugusto gonçalves diasilmo. e exmo. sr. augusto gonçalves diasgonsalves diasdias gonçalvesgonçalves dias MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: antônio, cia, ferreira, gonçalves

O Amor, A Poesia, As Viagens

O Amor, A Poesia, As ViagensManuel Bandeira

Atirei um céu abertoNa janela do meu bem:Caí na Lapa - um deserto...- Pará, capital Belém! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: capital, deserto, lapa, pará

O Anel de Vidro

O Anel de VidroManuel Bandeira

Aquele pequenino anel que tu me deste,- Ai de mim - era vidro e logo se quebrouAssim também o eterno amor que prometeste,- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -Aquele pequenino anel que tu me deste,- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investeGritando maldições contra aquilo que amou.De ti conservo no peito a saudade celesteComo também guardei o pó que me ficouDaquele pequenino anel que tu me deste MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: amor, anel, eterno, vidro

Page 11: Poemas de Manuel Bandeira

Nova Poetica

Nova PoéticaManuel Bandeira

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.Poeta sórdido:Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.Vai um sujeito,Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:É a vida

O poema deve ser como a nódoa no brim:Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: calça, poema, poesia, vida

Momento num Cafe

Momento num CaféManuel Bandeira

Quando o enterro passouOs homens que se achavam no caféTiraram o chapéu maquinalmenteSaudavam o morto distraídosEstavam todos voltados para a vidaAbsortos na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto longo e demoradoOlhando o esquife longamenteEste sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidadeQue a vida é traiçãoEsaudava a matéria que passavaLiberta para sempre da alma extinta. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alma, café, morto, vida

Meninos Carvoeiros

Meninos CarvoeirosManuel Bandeira

Os meninos carvoeirosPassam a caminho da cidade.- Eh, carvoero!E vão tocando os animais com um relho enorme.

Page 12: Poemas de Manuel Bandeira

Os burros são magrinhos e velhos.Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.A aniagem é toda remendada.Os carvões caem.

(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,dobrando-se com um gemido.)

- Eh, carvoero!Só mesmo estas crianças raquíticasVão bem com estes burrinhos descadeirados.A madrugada ingênua parece feita para eles...Pequenina, ingênua miséria!Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!

- Eh, carvoero!

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,Encarrapitados nas alimárias,Apostando corrida,Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhosdesamparados! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: crianças, madrugada, meninos, noite

Libertinagem, O ULTIMO POEMA

Libertinagem, O ULTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema.Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos in-[tencionaisQue fosse ardente como um soluço sem lágrimasQue tivesse a beleza das flores quase sem perfumeA pureza da chama em que se consomem os diamantes mais[límpidosA paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Libertinagem, VOU ME EMBORA PRA PASARGADA

Libertinagem, VOU ME EMBORA PRÁ PASÁRGADA

Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Page 13: Poemas de Manuel Bandeira

Aqui não sou felizLá a existência é uma aventuraDe tal modo inconseqüenteQue Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparenteDa nora que nunca tive

E como farei ginásticaAndarei de bicicletaMontarei em burro bravoSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a mãe-d'águaPra me contar históriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcalóide à vontadeTem prostitutas bonitasPara gente namorar

E quando eu estiver mais tristeMas triste de não ter jeitoQuando de noite me derVontade de me matar- Lá sou amigo do rei -Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: amigo, cama, triste, vontade

Libertinagem, NAMORADOS

Libertinagem, NAMORADOS

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:- Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com[a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou.

Page 14: Poemas de Manuel Bandeira

- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê[uma lagarta listada?

A moça se lembrava:- A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prossegui com muita doçura:

- Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:

- Antônia, você é engraçada! Você parece louca. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: gente, moça, olhos, parece

Libertinagem, PALINÓDIA

Libertinagem, PALINÓDIAManuel Bandeira

Quem te chamara primaArruinaria em mim o conceitoDe teologias velhíssimasTodavia viscerais

Naquele invernoTomaste banhos de marVisitaste as igrejas(Como se temesses morrer sem conhecê-las todas)Tiraste retratos enormesTelefonavas telefonavas...

Hoje em verdade te digoQUe não és prima sóSenão prima de primaPrima-dona de prima- Primeva. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: dona, las, prima, verdade

Libertinagem, IRENE NO CÉU

Libertinagem, IRENE NO CÉUManuel Bandeira

Irene preta

Page 15: Poemas de Manuel Bandeira

Irene boaIrene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:- Licença, meu branco!

E São Pedro bonachão:- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: branco, licença, precisa, preta

Libertinagem, CABEDELO

Libertinagem, CABEDELOManuel Bandeira

Viagem à roda do mundoNuma casquinha de noz:Estive em Cabedelo.O macaco me ofereceu cocos.

Ó maninha, ó maninha,Tu não estavas comigo!...

- Estavas?...

1907 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: macaco, mundo, roda, viagem

Libertinagem, NOTURNO DA RUA DA LAPA

Libertinagem, NOTURNO DA RUA DA LAPAManuel Bandeira

A janela estava aberta. Para o que não sei, mas o que entrava era o vento dos lupanares, de mistura com o eco que se partia nas curvas cicloidais, e fragmentos do hino da bandeira.

Não posso atinar no que eu fazia:se meditava, se morria de espanto ou se vinha de muito longe.

Nesse momento (oh! po que precisamente nesse momento?...) é que penetrou no quarto o bicho que voava, o articulado implacável, implacável!Compreendi desde logo não haver possibilidade alguma de evasão. Nascer de novo também não adiantava. - A bomba de flit! pensei comigo, é um inseto!

Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos da redenção continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem fechou. Mas o monstruoso animal FICOU MAIOR. Senti que ele não morreria nunca mais, nem sairia, conquanto

Page 16: Poemas de Manuel Bandeira

não houvesse no aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma, o que é pior, a recordação persistente de alguma extinta Lenora. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: bicho, momento, po, quarto

Libertinagem, MACUMBA DO PAI ZUSÉ

Libertinagem, MACUMBA DO PAI ZUSÉManuel Bandeira

Na macumba do encantadoNego véio pai de santo fez mandingaNo palacete do BotafogoSangue de branca virou águaForam vê estava morta! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: branca, morta, pai, água

Libertinagem, NA BOCA

Libertinagem, NA BOCAManuel Bandeira

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnavalPaixãoCiúmeDor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vidaE nos três dias de carnaval éter de lança-perfumeQuem me dera ser como o rapaz desvairado!O ano passado ele parava diante das mulheres bonitasE gritava pedindo o esguicho de cloretilo:- Na boca! Na boca!Umas davam-lhe as costas com repugnância.Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade[aos viciados

Dorinha meu amor...Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o ou-[tro: - Na boca! Na boca! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: boca, carnaval, mulheres, vontade

Libertinagem, NOTURNO DA PARADA AMORIM

Libertinagem, NOTURNO DA PARADA AMORIMManuel Bandeira

Page 17: Poemas de Manuel Bandeira

O violoncelista estava a meio do Converto de SchumannSubitamente o coronel ficou transportado e começou a gri-[tar: - Je vois des anges! Je vois des anges![- E deixou-se escorregar sentado pela[escada abaixo.

O telefone tilintou.Alguém chamava?... Alguém pedia socorro?...

Mas do outro lado não vinha senão o rumor de um pranto[desesperado!...

(Eram três horas.Todas as agências postais estavam fechadas.Dentro da noite a voz do coronel continuava a gritas: - Je[vois des anges! Je vois des anges!) MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: coronel, horas, lado, noite

Libertinagem, MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO

Libertinagem, MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHOManuel Bandeira

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha[vida, inclusive o porquinho-da-índia que[me deram quando eu tinha seis anos. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: bonita, coisa, vida

Libertinagem, PROFUNDAMENTE

Libertinagem, PROFUNDAMENTEManuel Bandeira

Quando ontem adormeciNa noite de São JoãoHavia alegria e rumorVozes cantigas e risosAo pé das fogueiras acesas.

No meio da noite desperteiNão ouvi mais vozes nem risosApenas balõesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO ruído de um bondeCortava o silêncioComo um túnel.Onde estavam os que há poucoDançavam

Page 18: Poemas de Manuel Bandeira

CantavamE riamAo pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente

Quando eu tinha seis anosNão pude ver o fim da festa de São JoãoPorque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avóMeu avôTotônio RodriguesTomásiaRosaOnde estão todos eles?

- Estão todos dormindoEstão todos deitadosDormindoProfundamente. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: bonde, dormindo, noite, pé

Libertinagem, ANDORINHA

Libertinagem, ANDORINHAManuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!Passei a vida à toa, à toa... MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: triste, vida

Libertinagem, ORAÇÃO A TERESINHA DO MENINO JESUS

Libertinagem, ORAÇÃO A TERESINHA DO MENINO JESUSManuel Bandeira

Perdi o jeito de sofrer.Ora essa.Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.Quero alegria! Me dá alegria,Santa Teresa!

Page 19: Poemas de Manuel Bandeira

Santa Teresa não, Teresinha...Teresinha... Teresinha...Teresinha do Menino Jesus.

Me dá alegria!Me dá a força de acreditar de novoNoPelo SinalDa SantaCruz!Me dá alegria! Me dá alegria,Santa Teresa!...Santa Teresa não, Teresinha...Teresinha do Menino Jesus. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alegria, jesus, menino, santa

Libertinagem, CUNHANTÃ

Libertinagem, CUNHANTÃManuel Bandeira

Vinha do Pará.Chamava Siquê.Quatro anos. Escurinha. O riso gutural da raça.Piá branca nenhuma corria mais do que ela.

Tinha uma cicatriz no meio da testa:- Que foi isto, Siquê?Com voz de detrás da garganta, a boquinha tuíra:- Minha mãe (a madrasta) estava costurandoDisse vai ver se tem fogoEu soprei eu soprei eu soprei não vi fogoAí ela se levantou e esfregou com minha cabeça na brasa

Riu, riu, riu

Uêrêquitáua.O ventilador era a coisa que roda.Quando se machucava, dizia: Ai Zizus!

1927 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: cabeça, coisa, fogo, roda

Libertinagem, O MAJOR

Libertinagem, O MAJORManuel Bandeira

O major morreu.

Page 20: Poemas de Manuel Bandeira

Reformado.Veterano da Guerra do Paraguai.Herói da ponte do Itororó.Não quis honras militares.Não quis discursos.

ApenasÀ hora do enterroO corneteiro de um batalhão de linhaDeu à boca do túmuloO toque de silêncio. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: boca, linha, militares, toque

Libertinagem, ORAÇÃO NO SACO DE MANGARATIBA

Libertinagem, ORAÇÃO NO SACO DE MANGARATIBAManuel Bandeira

Nossa Senhora me dê paciênciaPara estes mares para esta vida!Me dê paciência para que eu não caiaPra que eu não pare nesta existênciaTão mal cumprida tão mais compridaDo que a restinga de Marambaia!...

1926 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: mal, saco, vida

Libertinagem, A VIRGEM MARIA

Libertinagem, A VIRGEM MARIAManuel Bandeira

O oficial de registro civil, o coletor de impostos, o mordomo[da Santa Casa e o administrador[do cemitério de São João BatistaCavaram com enxadasCom pásCom as unhasCom os dentesCavaram uma voca mais funca que o meu suspiro de re-[núnicaDepois me botaram lá dentroE puseram por cimaAs Tábuas da Lei

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da covaEu ouvi a vozinha da Virgem MariaDizer que fazia sol lá fora

Page 21: Poemas de Manuel Bandeira

Dizer i n s i s t e n t e m e n t eQue fazia sol lá fora. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: maria, sol, unhas, virgem

Libertinagem, LENDA BRASILEIRA

Libertinagem, LENDA BRASILEIRAManuel Bandeira

A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o quesaiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado nochão. Quis puxar o gatilho e não pôde.- Deus me perdoe!Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto docaçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: caçador, chão, comer, deus

Libertinagem, TERESA

Libertinagem, TERESAManuel Bandeira

A primeira vez que vi TeresaAchei que ela tinha pernas estúpidasAchei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novoAchei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do[corpo(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o res-[to do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nadaOs céus se misturaram com a terraE o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: corpo, espírito, olhos, terra

Libertinagem, POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

Libertinagem, POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNALManuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no mor-[ro da Babilônia num barracão sem número.Uma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDançouDepois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afo-[gado.

Page 22: Poemas de Manuel Bandeira

MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: bar, lagoa, noite, rodrigo

Libertinagem, EVOCAÇÃO DO RECIFE

Libertinagem, EVOCAÇÃO DO RECIFEManuel Bandeira

RecifeNão a Veneza americanaNão a Mauritsstad dos armadores das Índias OcidentaisNão o Recife dos MascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -Recife das revoluções libertáriasMas o Recife sem história nem literaturaRecife sem mais nadaRecife da minha infância

A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e[partia as vidraças da casa de Dona Aninha ViegasTotônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na[ponta do narizDepois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadei-[ras, mexericos, namoros, risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam:

Coelho sai!Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosaCraveiro dá-me um botão(Dessas rosas muita rosaTerá morrido em botão...)

De repente

nos longes da noiteum sino

Uma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antônio!Outra contrariava: São José!Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.Os homens punham o chapéu saíam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância

Page 23: Poemas de Manuel Bandeira

Rua do Sol(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondidoCapiberibe- CapibaribeLá longe o sertãozinho de CaxangáBanheiros de palhaUm dia eu vi uma moça nuinha no banhoFiquei parado o coração batendoEla se riuFoi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redo-[moinho sumiuE nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemi-[dos em jangadas de bananeiras

NovenasCavalhadas

E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão[nos meus cabelosCapiberibe- Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bana-[nas com o xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimque se chamava midubim e não era torrado era[cozidoMe lembro de todos os pregões:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma patacaFoi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoLíngua certa do povoPorque ele é que fala gostoso o português do BrasilAo passo que nósO que fazemosÉ macaquearA sintaxe lusíadaA vida com uma porção de coisas que eu não entendia bemTerras que não sabia onde ficavam

Page 24: Poemas de Manuel Bandeira

Recife...Rua da União...A casa de meu avô...

Nunca pensei que ela acabasse!Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...Meu avô morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de[meu avô.

Rio, 1925 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: casa, recife, rua, união

Libertinagem, BELÉM DO PARÁ

Libertinagem, BELÉM DO PARÁManuel Bandeira

BembelelémViva Belém!

Belém do Pará porto moderno integrado na equatorialBeleza eterna da paisagem

BembelelémViva Belém!

Cidade pomar(Obrigou a polícia a classificar um tipo novo de delinqüente:O apedrejador de mangueiras.)

BembelelémViva Belém!

Belém do Pará onde as avenidas se chamam Estradas:Estrada de São JerônimoEstrada de Nazaré

Onde a banal Avenida Marechal Deodoro da Fonseca de to-[das as cidades do BrasilSe chama liricamenteBrasileiramenteEstrada do Generalíssimo Deodoro

BembelelémViva Belém!Nortista gostosaEu te quero bem.

Page 25: Poemas de Manuel Bandeira

Terra da castanhaTerra da borrachaTerra de bribá bacuri sapotiTerra de fala cheia de nome indígenaQue a gente não sabe se é de fruta pé de pau ou ave de pluma-[gem bonita.

Nortista gostosaEu te quero bem.

Me obrigarás a novas saudadesNunca mais me esquecerei do teu Largo da SéCom a fé maciça das duas maravilhosas igrejas barrocasE o renque ajoelhado de sobradinhos coloniais tão boniti-[nhos

Nunca mais me esquecereiDas velas encarnadasVerdesAzuisDa doca de Ver-o-PesoNunca mais

E foi pra me consolar mais tardeQue inventei esta cantiga:

BembelelémViva Belém!Nortista gostosaEu te quero bem.

Belém, 1928 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: belém, estrada, gostosa, terra

Libertinagem, OFERTA

Libertinagem, OFERTAManuel Bandeira

Mangue mais Veneza americana do que o RecifeMeriti meretrizMange enfim verdadeiramente Cidade NovaCom transatlânticos atracados nas docas do Canal GrandeLinda como Juiz de Fora. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: canal, cidade, juiz, linda

Libertinagem, MANGUE

Page 26: Poemas de Manuel Bandeira

Libertinagem, MANGUEManuel Bandeira

Mangue mais Veneza americana do que o RecifeCargueiros atracados nas docas do Canal GrandeO Morro do Pinto morre de espantoPassam estivadores de torso nu suando facas de pontaCafé baixoTrapiches alfandegadosCatraias de abacaxis e de bananasA Light fazendo crusvaldina com resíduos de coqueHá macumbas no picheEh cagira mia paiEh cagiraE o luar é uma coisa só

Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do[que todas as Meritis da BaixadaPátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições[públicasGente que vive porque é teimosaCartomantes da Rua Carmo NetoCirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avul-[sivasO Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam[com rancor(Por issoEntre os doisDom João VI plantou quatro renques de palmeiras impe-[riais)Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcio-[nário público casado com mulher feia[e morri de tuberculose pulmonarMuitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num pín-[caro azulado.Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carna-[vais cariocasSambas da Tia CiataCadê mais Tia CiataTavez em Dona Clara meu brancoEnsaiando cheganças para o NatalO menino Jesus - Quem sois tu?O preto - Eu sou aquele preto principá do centro do[cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?O menino Jesus - Eu sou o fio da Virge Maria.O preto - Entonces como é fio dessa senhora, obedeço.O menino Jesus - Entonces cuma você obedece, reze[aqui um terceto pr'esse exerço vê.O Mangue era simplesinho

Page 27: Poemas de Manuel Bandeira

Mas as inundações dos solstícios de verãoTrouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da Ca-[riocaUiaras do TrapicheiroDo MaracanãDo Rio JoanaE vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressada[nos aterrados da GamboaHoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal GrandeO Senador e o Visconde arranjaram capangasHoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém[acreditavaE há partidas para o MangueCom choros de cavaquinho, pandeiro e reco-recoÉs mulherÉs mulher e mais nada MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: jesus, menino, mulher, preto

Libertinagem, PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Libertinagem, PORQUINHO-DA-ÍNDIAManuel Bandeira

Quando eu tinha seis anosGanhei um porquinho-da-índia.Que dor de coração me davaPorque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!Levava ele pra salaPra os lugares mais bonitos mais limpinhosEle não gostava:Queria era estar debaixo do fogão.Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namo-[rada.

Libertinagem, POÉTICA

Libertinagem, POÉTICAManuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedidoDo lirismo bem comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto expe-[diente protocolo e manifestações de apreço[ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário[o cunho vernáculo de um vocábulo

Page 28: Poemas de Manuel Bandeira

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçãoTodos os ritmos sobretudo os enumeráveis

Estou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifilítcoDo lirismo que capitula ao que quer que seja for a de si[mesmo.

De resto não é lirismoSerá contabilidade tabela de co-senos secretário do amante[exemplar com cem modelos de cartas[e as diferentes maneiras de agradar[às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbedosO lirismo difícil e pungente dos bêbedosO lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: cartas, co, diferentes, modelos

Libertinagem, COMENTÁRIO MUSICAL

Libertinagem, COMENTÁRIO MUSICALManuel Bandeira

O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra.Entram por ele dentroOs ares oceânicos,Maresias atlânticas:São Paulo de Luanda, Figueira da Foz, praias gaélicas da Ir-[landa...

O comentário musical da paisagem só podia ser o sussurro[sinfônico da vida civil.

No entanto o que ouço neste momento é um silvo agudo de[sagüim:Minha vizinha de baixo comprou um sagüim. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: civil, musical, paisagem, vida

Page 29: Poemas de Manuel Bandeira

Libertinagem, PNEUMOTÓRAX

Libertinagem, PNEUMOTÓRAXManuel Bandeira

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que não foi.Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o[pulmão direito infiltrado.- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: coisa, direito, doutor, tocar

Libertinagem, O CACTO

Libertinagem, O CACTOManuel Bandeira

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados de estatuária:Laocoonte constrangido pelas serpentes,Ugolino e os filhos esfaimados.Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excep-[cionais.[cionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.O cacto tombou atravessado na rua,Quebrou os beirais do casario fronteiro,Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas[privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.

Petrópolis, 1925 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: cabos, cidade, horas, iluminação

Libertinagem, CAMELÔS

Page 30: Poemas de Manuel Bandeira

Libertinagem, CAMELÔSManuel Bandeira

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:O que vende balõeszinhos de corO macaquinho que trepa no coqueiroO cachorrinho que bate com o raboOs homenzinhos que jogam boxeA perereca verde que de repente dá um pulo que engraçadoE as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.

Alegria das calçadasUns famam pelos cotovelos:- "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar[um pedaço de banana para eu acender[o charuto. Naturalmente o menindo pen-[sará: Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo[de dimiurgos de inutilidades.E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meni-[nice...E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma[lição de infância. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: banana, língua, papai, pen

Libertinagem, PENSÃO FAMILIAR

Libertinagem, PENSÃO FAMILIARManuel Bandeira

Jardim da pensãozinha burguesa.Gatos espapaçados ao sol.A tiririca sitia os canteiros chatos.O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.Os girassóisamarelo!

resistem.E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.Com gestos de garçom de restaurant-PalaceEncobre cuidadosamente a mijadinha.Sai vibrando com elegância a patinha direita:- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Petrópolis, 1925

Page 31: Poemas de Manuel Bandeira

MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: amarelo, gatos, jardim, sol

Libertinagem, MULHERES

Libertinagem, MULHERESManuel Bandeira

Como as mulheres são lindas!Inútil pensar que é do vestido...E depois não há só as bonitas:Há também as simpáticas.E as feias, certas feias em cujos olhos eu vejo isto:Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!O meu amor porém não tem bondade alguma,É fraco! fraco!Meu Deus, eu amo como as criancinhas...

És linda como uma história da carochinha...E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no[morro atrás de casa e tinham cara de pau). MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: feias, linda, mulheres, papai

Libertinagem, O ANJO DA GUARDA

Libertinagem, O ANJO DA GUARDAManuel Bandeira

Quando minha irmã morreu,(Devia ter sido assim)Um anjo moreno, violento e bom,- brasileiro

Veio ficar ao pé de mim.O meu anjo da guarda sorriuE voltou pra junto do Senhor. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: anjo, brasileiro, guarda, pé

Libertinagem, NÃO SEI DANÇAR

Libertinagem, NÃO SEI DANÇARManuel Bandeira

Uns tomam éter, outros cocaína.Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.Tenho todos os motivos menos um de ser triste.Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...

Page 32: Poemas de Manuel Bandeira

Abaixo Amiel!E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.Perdi a saúde também.É por isso que eu sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.Eu tomo alegria!Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...

Esta foi açafata...

- Não, foi arrumadeira.E está dançando com o ex- prefeito municipal:Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...Há até a fração incipiente amarelaNa figura de um japonês.O japonês também dança maxixe:Acugêlê banzai!

A filha do usineiro de CamposOlha com repugnânciaPra crioula imoral.No entanto o que faz a indecência da outraÉ dengue nos olhos maravilhosos da moça.E aquele cair de ombros...Mas ela não sabe...Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...Nem dos oito mil quilômetros de costa...O algodão de Seridó é o melhor do mundo?... Que me[importa?Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilós-[tomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.Eu tomo alegria!

Petrópolis, 1925 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alegria, band, brasil, japonês

Estrela da manhã

Page 33: Poemas de Manuel Bandeira

Estrela da manhãManuel Bandeira

Eu quero a estrela da manhãOnde está a estrela da manhã?Meus amigos meus inimigosProcurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nuaDesapareceu com quem?Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulhoUm homem que aceita tudoQue me importa?Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noitesFui assassino e suicidaLadrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuadaAtribuladora dos aflitosGirafa de duas cabeçasPecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandrosPecai com os sargentosPecai com os fuzileiros navaisPecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianosCom o padre e com o sacristãoCom o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de[uma ternura tão simples

Que tu desfalecerás

Procurem por toda partePura ou degradada até a última baixezaEu quero a estrela da manhã. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: estrela, homem, manhã, padre

Enquanto a chuva cai

Page 34: Poemas de Manuel Bandeira

Enquanto a chuva cai...Manuel BandeirA

A chuva cai. O ar fica mole...Indistinto... ambarino... gris...E no monótono matizDa névoa enovelada boleA folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,As velhas árias funerais.Minh'alma sofre e sonha e gozaÀ cantilena dos beirais.

Meu coração está sedentoDe tão ardido pelo pranto.Dai um brando acompanhamentoÀ canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados...Dos sós... - ouvir a água escorrer,Lavando o tédio dos telhadosQue se sentem envelhecer...

Ó caro ruído embalador,Terno como a canção das amas!Canta as baladas que mais amas,Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.Cai, benfazeja, a bom cair!Contenta as árvores! ContentaAs sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!Ó água amiga das raízes,Que na mudez das terras fundasÀs vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigasAo sopro mau dos vendavaisAs grandes árvores antigas,Quer quando mansamente cais.

É que na tua voz selvagem,Voz de cortante, álgida mágoa,Aprendi na cidade a ouvir

Page 35: Poemas de Manuel Bandeira

Como um eco que vem na aragemA estrugir, rugir e mugir,O lamento das quedas d'água!

Teresópolis, 1912 MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: canção, chuva, voz, água

Desesperança

DesesperançaManuel Bandeira

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.Como dói um pesar em cada pensamento!Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lentoQue dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,Quando a vida acabar e, astro apagado,Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterraA sua agulha de aço em meu crânio doído.Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.Temo a monotonia e apreendo a mudança.Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

- Ah, como dói viver quando falta a esperança! MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: ar, erro, mundo, vida

Cotovia

CotoviaManuel Bandeira

Alô, cotovia!Aonde voaste,

Page 36: Poemas de Manuel Bandeira

Por onde andaste,Que saudades me deixaste?- Andei onde deu o vento.Onde foi meu pensamentoEm sítios, que nunca viste,De um país que não existe . . .Voltei, te trouxe a alegria.- Muito contas, cotovia!E que outras terras distantesVisitaste? Dize ao triste.- Líbia ardente, Cítia fria,Europa, França, Bahia . . .

- E esqueceste Pernambuco,Distraída?

- Voei ao Recife, no CaisPousei na Rua da Aurora.

- Aurora da minha vidaQue os anos não trazem mais!

- Os anos não, nem os dias,Que isso cabe às cotovias.Meu bico é bem pequeninoPara o bem que é deste mundo:Se enche com uma gota de água.Mas sei torcer o destino,Sei no espaço de um segundoLimpar o pesar mais fundo.Voei ao Recife, e dos longesDas distâncias, aonde alcançaSó a asa da cotovia,- Do mais remoto e peremptoDos teus dias de criançaTe trouxe a extinta esperança,Trouxe a perdida alegria. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alegria, mundo, recife, água

Confissão

ConfissãoManuel Bandeira

Se não a vejo e o espírito a afigura,Cresce este meu desejo de hora em hora...Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Page 37: Poemas de Manuel Bandeira

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...Abrir-lhe o incerto coração que chora,Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,Agora embravecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfaleceDe sonhá-la prendada e casta e clara,Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me pareceTão acima de mim...tão linda e rara...Que hesito, balbucio e me acobardo. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alma, amor, chora, mostrar

Canto de Natal

Canto de NatalManuel Bandeira

O nosso meninoNasceu em Belém.Nasceu tão-somentePara querer bem.

Nasceu sobre as palhasO nosso menino.Mas a mãe sabiaQue ele era divino.

Vem para sofrerA morte na cruz,O nosso menino,Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceitaO humano destino:Louvemos a glóriaDe Jesus menino. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: cruz, jesus, menino, nome

Canção do Vento e da Minha Vida

Canção do Vento e da Minha VidaManuel Bandeira

O vento varria as folhas,O vento varria os frutos,O vento varria as flores...E a minha vida ficavaCada vez mais cheia

Page 38: Poemas de Manuel Bandeira

De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,O vento varria as músicas,O vento varria os aromas...E a minha vida ficavaCada vez mais cheiaDe aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhosE varria as amizades...O vento varria as mulheres...E a minha vida ficavaCada vez mais cheiaDe afetos e de mulheres

O vento varria os mesesE varria os teus sorrisos...O vento varria tudo!E a minha vida ficavaCada vez mais cheiaDe tudo. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: flores, mulheres, vento, vida

Canção da Parada do Lucas

Canção da Parada do LucasManuel BandeirA

Parada do Lucas- O trem não parou.

Ah, se o trem parasseMinha alma incendidaPediria à NoiteDois seios intactos.

Parada do Lucas- O trem não parou.

Ah, se o trem parasseEu iria aos manguesDormir na escurezaDas águas defuntas.

Parada do Lucas- O trem não parou.

Nada aconteceu

Page 39: Poemas de Manuel Bandeira

Senão a lembrançaDo crime espantosoQue o tempo engoliu. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: lucas, parada, trem, águas

Belo Belo

Belo BeloManuel Bandeira

Belo belo belo,Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentroContinuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,Não quero ser amado.Não quero combater,Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: amar, anjos, belo, homens

Auto Retrato

Auto RetratoManuel Bandeira

Provinciano que nunca soubeEscolher bem uma gravata;Pernambucano a quem repugnaA faca do pernambucano;Poeta ruim na arte da prosaEnvelheceu na infância da arte,

Page 40: Poemas de Manuel Bandeira

E até mesmo escrevendo crônicasFicou cronista de província;Arquiteto falhado, músicoFalhado (engoliu um diaUm piano, mas o tecladoFicou de fora); sem família,Religião ou filosofia;Mal tendo a inquietação de espíritoQue vem do sobrenatural,E em matéria de profissãoUm tísico profissional. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: arte, filosofia, mal, religião

Arte de Amar

Arte de AmarManuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar,esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor.Só em Deus ela pode encontrar satisfação.Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo.As almas são incomunicáveis.Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.Porque os corpos se entendem, mas as almas não.Consolo na praia ... MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alma, amar, corpo, deus

A Morte Absoluta

A Morte AbsolutaManuel Bandeira

Morrer.Morrer de corpo e de alma.Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,A exangue máscara de cera,Cercada de flores,Que apodrecerão - felizes! - num dia,Banhada de lágrimasNascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...A caminho do céu?Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,A lembrança de uma sombra

Page 41: Poemas de Manuel Bandeira

Em nenhum coração, em nenhum pensamento.Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamenteQue um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,- Sem deixar sequer esse nome. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: alma, céu, morte, nome

A Espada de Ouro

A Espada de OuroManuel Bandeira

Excelentíssimo GeneralHenrique Duffles Teixeira Lott,A espada de ouro que, por escote,Os seus cupinchas lhe vão brindar,Não vale nada (não leve a malQue assim lhe fale) se comparadaCom a velha espadaDe aço forjada,Como as demais.

Espadas estasQue a Pátria pobre, de mãos honestas,Dá a seus soldados e generais.Seu aço limpo vem das raízesBatalhadoras da nossa história:Aço que fala dos que, felizes,Tombaram puros no chão da glória!O ouro da outra é ouro tirado,Ouro raspadoPelas mãos sujas da pelegadaDo bolso gordo dos salafráriosDo bolso raso dos operários.É ouro sinistro,Ouro mareado:

Mancha o Ministro,Mancha o Soldado. MANUEL BANDEIRA, TEXTOS, POEMAS E POESIAS: aço, mancha, mãos, ouro

Andorinha

AndorinhaManuel Bandeira

Page 42: Poemas de Manuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!Passei a vida à toa, à toa...

A Antônio Nobre

A Antônio NobreManuel Bandeira

Tu que penaste tanto e em cujo cantoHá a ingenuidade santa do menino;Que amaste os choupos, o dobrar do sino,E cujo pranto faz correr o pranto:

Com que magoado olhar, magoado espantoRevejo em teu destino o meu destino!Essa dor de tossir bebendo o ar fino,A esmorecer e desejando tanto...

Mas tu dormiste em paz como as crianças.Sorriu a Glória às tuas esperançasE beijou-te na boca... O lindo som!

Quem me dará o beijo que cobiço?Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...Eu, não terei a Glória... nem fui bom.