os espantalhos desamparados de manuel bandeira

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ESTUDOS AVANÇADOS 16 (44), 2002 255 A mitologia da infância A BELA e misteriosa narrativa “Josefina, a cantora ou O povo dos camun- dongos”, que Franz Kafka escreve pouco antes da morte, a arte do “can- to” da ratinha Josefina é associada em dado momento à “pobre, curta infância”, a algo de uma “felicidade perdida, não mais recobrável”. Os termos parecem contraditórios, mas fazem pleno sentido referidos às circunstâncias da vida infantil na comunidade em que Kafka projeta e tematiza o enigma da arte e de sua relação com a sociedade (1). O atributivo “pobre” também poderia aplicar-se à meninice evocada por Raul Pompéia em seu romance O Ateneu, ainda que no início esta assome à memória do eu-narrador banhada pelo “ouro da manhã”, isto é, durante o bre- ve período de proteção e aconchego na “estufa de carinho que é o regime do amor doméstico”: trata-se dos momentos de sonhos e devaneios do menino Sérgio junto ao lago do jardim de casa, à “sombra dos tinhorões, na transpa- rência adamantina da água...” (2). E não se poderia reconhecer nessas imagens de “transparência adamantina” a fonte arquetípica e inesgotável em que vem haurir toda criação literária empe- nhada em recordar uma plenitude perdida ou, inversamente, em denunciar os ultrajes contra o mundo da criança? A resposta afirmativa teria o apoio de não poucas reflexões teóricas voltadas, com sensibilidade e rigor, para esse momento auroral da existência, em que – como sugerem versos de Manuel Bandeira – o desejo de alcançar o céu já significa habitá-lo: “Não sente a criança / Que o céu é ilusão: / Crê que o não alcança / Quando o tem na mão.” No início de seu estudo sobre “poesia ingênua e sentimental”, Friedrich Schiller refere-se a momentos na vida do adulto em que o encontro com a “na- tureza humana” idealmente presente na criança vem acompanhado de profun- da comoção. Vivenciamos, nesses raros momentos, a mesma intuição da pleni- tude suscitada pelo gorjeio dos pássaros, pela contemplação de uma flor ou de uma árvore, de uma fonte ou mesmo de uma simples pedra coberta pelo mus- go... Levanta-se em nós, assim, a “idéia” de uma vida singela e ativa, da existência autônoma, guiada por leis próprias, no sentido da eterna unidade do ser consi- go mesmo – a mesma idéia, enfim, que se vislumbra no universo das crianças: Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira MARCUS V. MAZZARI N

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  • OS ESPANTALHOS DESAMPARADOS DE MANUEL BANDEIRA

    ESTUDOS AVANADOS 16 (44), 2002 255

    A mitologia da infnciaA BELA e misteriosa narrativa Josefina, a cantora ou O povo dos camun-dongos, que Franz Kafka escreve pouco antes da morte, a arte do can-to da ratinha Josefina associada em dado momento pobre, curta

    infncia, a algo de uma felicidade perdida, no mais recobrvel. Os termosparecem contraditrios, mas fazem pleno sentido referidos s circunstncias davida infantil na comunidade em que Kafka projeta e tematiza o enigma da artee de sua relao com a sociedade (1).

    O atributivo pobre tambm poderia aplicar-se meninice evocada porRaul Pompia em seu romance O Ateneu, ainda que no incio esta assome memria do eu-narrador banhada pelo ouro da manh, isto , durante o bre-ve perodo de proteo e aconchego na estufa de carinho que o regime doamor domstico: trata-se dos momentos de sonhos e devaneios do meninoSrgio junto ao lago do jardim de casa, sombra dos tinhores, na transpa-rncia adamantina da gua... (2).

    E no se poderia reconhecer nessas imagens de transparncia adamantinaa fonte arquetpica e inesgotvel em que vem haurir toda criao literria empe-nhada em recordar uma plenitude perdida ou, inversamente, em denunciar osultrajes contra o mundo da criana? A resposta afirmativa teria o apoio de nopoucas reflexes tericas voltadas, com sensibilidade e rigor, para esse momentoauroral da existncia, em que como sugerem versos de Manuel Bandeira odesejo de alcanar o cu j significa habit-lo: No sente a criana / Que o cu iluso: / Cr que o no alcana / Quando o tem na mo.

    No incio de seu estudo sobre poesia ingnua e sentimental, FriedrichSchiller refere-se a momentos na vida do adulto em que o encontro com a na-tureza humana idealmente presente na criana vem acompanhado de profun-da comoo. Vivenciamos, nesses raros momentos, a mesma intuio da pleni-tude suscitada pelo gorjeio dos pssaros, pela contemplao de uma flor ou deuma rvore, de uma fonte ou mesmo de uma simples pedra coberta pelo mus-go... Levanta-se em ns, assim, a idia de uma vida singela e ativa, da existnciaautnoma, guiada por leis prprias, no sentido da eterna unidade do ser consi-go mesmo a mesma idia, enfim, que se vislumbra no universo das crianas:

    Os espantalhos desamparadosde Manuel BandeiraMARCUS V. MAZZARI

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  • MARCUS V . MAZZARI

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    So o que ns fomos; so o que devemos vir a ser de novo. Fomos natu-reza como elas, e nossa cultura deve nos reconduzir natureza pelocaminho da razo e da liberdade. So, portanto, expresso da nossainfncia perdida, que para sempre permanece como aquilo que nos mais precioso; por isso, enchem-nos de uma certa melancolia. Ao mes-mo tempo, so expresses de nossa suprema completude no Ideal, trans-portando-nos, por isso, a uma sublime comoo (3).

    Concepo semelhante da infncia subjaz arquifamosa reflexo de Marxa respeito das relaes paradoxais entre o grau de desenvolvimento material deuma sociedade e o nvel de suas manifestaes artsticas. O esforo de compre-ender o fascnio imorredouro exercido pela arte grega (e, em particular, a epopiahomrica), leva Marx ao estabelecimento de um paralelo entre o que consideraa infncia histrica da humanidade e a infncia de cada existncia humana:

    Um homem no pode voltar a ser criana, ou ele se tornar pueril. Masno o alegra a ingenuidade da criana, e no deve ele prprio aspirar areproduzir a verdade infantil num nvel superior? No se revigora nanatureza infantil o carter prprio de toda poca em sua verdade natu-ral? Por que a infncia histrica da humanidade, onde desabrochou damaneira mais bela, no deveria exercer eterno encanto como um est-gio que nunca mais retorna? (4)

    Tendo experimentado portanto, em seus primeiros anos, a percepoanimista, mgica, que guardaria afinidades com a correlata fase filogentica deinocncia e plenitude (fase mitolgica, diz o pensador materialista; ingnua,na perspectiva idealista de Schiller), o homem adulto ser eternamente suscet-vel ao encanto que emana das primeiras produes artsticas do Ocidente.

    Por mais surpreendente que possa parecer, podemos encontrar em Ma-nuel Bandeira complementao das mais expressivas para o paralelismo traadopor Marx, e precisamente no trecho do Itinerrio de Pasrgada (final do pri-meiro captulo) em que rememora a quadra de sua vida, dos seis aos dez anos,em que se constituiu a sua prpria mitologia, plena de figuras com a mesmaconsistncia das personagens dos poemas homricos. As argumentaes se-guem direes opostas: em Marx, a incurso pela infncia individual subordi-na-se tentativa de apreender e especificar relaes entre as esferas social eartstica, como volta a evidenciar-se no final da passagem: O encanto de suaarte no est para ns em contradio com o nvel social no-desenvolvido noqual ela vicejou. antes o resultado deste e est indissoluvelmente ligado aofato de que as condies sociais imaturas nas quais ela se originou, e apenas nasquais poderia ter-se originado, no podem retornar nunca mais.

    Em Bandeira, a reflexo sobre a fora potica e vital contida nessesureos tempos de sua meninice que o faz transitar para a infncia histrica dahumanidade: A Rua da Unio, com os quatro quarteires adjacentes limita-

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    dos pelas ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minhaTrada; a casa de meu av, a capital desse pas fabuloso. Quando comparo essesquatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vidade adulto, fica espantado do vazio desses ltimos em cotejo com a densidadedaquela quadra distante (5).

    A infncia pobre em Manuel BandeiraRevelao viva e epifnica dessa quadra de felicidade mtica, em que, para

    alm da passagem do tempo, tudo l parecia impregnado de eternidade (6),aflora no poema Evocao do Recife, que consta do quarto livro de poesia deManuel Bandeira, Libertinagem. Outra obra-prima que Bandeira extraiu da minadessa sua Trada recifense o poema Profundamente (tambm de Liber-tinagem), que a anlise de Davi Arrigucci Jr. iluminou de diferentes ngulos,ressaltando porm a fora simblica com que o poeta retoma e atualiza um tpi-co to antigo como o do ubi sunt?, relacionando-o no s com a sua histria devida, mas tambm com o processo de modernizao da sociedade brasileira (7).

    Sabemos, contudo, que a tematizao da infncia na obra de ManuelBandeira no se deu apenas mediante o ato de recordar a prpria experinciaindividual. Pois ainda antes da Evocao do Recife ou de Profundamente,vieram poemas que se assentam na observao do mundo da infncia, ou me-lhor dizendo, poemas em que Bandeira, mais ainda do que observar, comparti-lha liricamente dos acontecimentos tematizados. Expressivo momento dessaatitude encontra-se no livro O ritmo dissoluto, precisamente nos poemas Me-ninos carvoeiros, Na Rua do Sabo e ainda Balezinhos, que fecha olivro com a imagem dos menininhos pobres presentes na metonmia espe-cular dos olhos muito redondos fixos nos grandes balezinhos muito re-dondos compondo em torno do vendedor loquaz, numa feira de arrabalde,um crculo inamovvel de desejo e espanto.

    Do ponto de vista formal, podemos destacar em primeiro lugar, comotrao comum a esses trs poemas, o predomnio do verso-livre, que na trajetriapotica de Bandeira pode ser considerado ndice de seu acercamento ao prosai-co, vida cotidiana, aprofundando a ruptura com o incio parnasiano-simbolis-ta. Os poemas constam, como j ficou dito, de O ritmo dissoluto, o primeiro dosquatro livros (incluindo-se a prosa das Crnicas da Provncia do Brasil) queescreve na rua do Curvelo, para onde o poeta j marcado pela pobreza, pelasolido e pela tuberculose muda-se em 1920. Foi publicado o livro em 1924e, conforme reconstitui Bandeira no Itinerrio de Pasrgada, teve recepocontroversa por parte dos admiradores de sua poesia, como se exemplifica, porum lado, com Adolfo Casais Monteiro, para quem muitas so as poesias semritmo de espcie alguma; mais do que ritmo dissoluto portanto...; e, por ou-tro lado, Octvio de Faria, que vislumbra a o momento em que o poeta ven-cendo as ltimas barreiras da sujeio a regras que o tolhem demais, atinge a

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    sua forma mais agradvel. O prprio Bandeira, ainda segundo a reconstituiode seu Itinerrio, considera O ritmo dissoluto um livro de transio, e istotanto para a afinao potica conquistada no mbito do verso-livre e dosversos rimados e metrificados, como tambm, quanto expresso de sentimen-tos e idias, para a completa liberdade de movimentos, liberdade de que che-guei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem (8).

    Se O ritmo dissoluto representa assim o primeiro fruto da experincia deBandeira na rua do Curvelo, ento legtimo supor que essa influncia mun-dana, oriunda da rua, tenha contribudo igualmente para a constituio datemtica desdobrada nos poemas Na Rua do Sabo, Meninos carvoeiros eBalezinhos. O prprio Itinerrio de Pasrgada fornece indicaes nessesentido, quando reproduz por exemplo a seguinte observao de Ribeiro Couto,feita no discurso com que saudou, em 1940, o ingresso do amigo na AcademiaBrasileira de Letras: Das vossas amplas janelas, tanto as do lado da rua em quebrincavam crianas, como as do lado da ribanceira, com cantigas de mulherespobres lavando roupa nas tinas de barrela, comeastes a ver muitas coisas. Omorro do Curvelo, em seu devido tempo, trouxe-vos aquilo que a leitura dosgrandes livros da humanidade no pode substituir: a rua.

    E, caracterizando em seguida a vista que tinha, de sua nova casa, sobre oambiente do Curvelo, as palavras de Bandeira elucidam de maneira ainda maisparticularizada o tema da infncia pobre, pois enquanto pelo fundo da casapodia observar a pobreza mais dura e mais valente, o lado da frente traava azona de convvio com a garotada sem lei nem rei que infestava as minhasjanelas, quebrando-lhes s vezes as vidraas, mas restituindo-me de certo modoo meu clima de meninice na Rua da Unio em Pernambuco. E na seqncia,como sntese dessas vivncias e observaes: No sei se exagero dizendo quefoi na Rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infncia (9).

    De dois testemunhos dessa aprendizagem do poeta adulto, Meninoscarvoeiros e Na Rua do Sabo, possvel acompanhar tambm um poucode sua gnese mediante cartas trocadas com Mrio de Andrade, j que as deBandeira foram acompanhadas, por duas vezes, dos manuscritos dos poemas,com variantes bastante interessantes em relao verso definitiva. Em cartaescrita provavelmente no dia 22 de maio de 1923, Mrio pede permisso e jem seguida responde pelo amigo para publicar Na Rua do Sabo no ltimonmero da revista Klaxon (10), e num post scriptum carta de 7 de junho domesmo ano l-se a seguinte observao: Esqueci de dizer do teu poema Osmeninos carvoeiros que s a Rua do Sabo o ultrapassa. UMA DELCIA.

    A prxima carta que Mrio dirige ao amigo, datada de 5 de agosto, voltaa referir-se a esses dois poemas, mas agora como que para repreender o sen-timento merencrio e autocomiserativo que Bandeira colocara numa observa-o relativa ao seu relacionamento com a tuberculose:

  • OS ESPANTALHOS DESAMPARADOS DE MANUEL BANDEIRA

    ESTUDOS AVANADOS 16 (44), 2002 259

    Espantalho1960Pintura a tmpora e leo/tela47 x 38 cmColeo Particular - So Paulo - SP

    Projeto Portinari

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    Mas erras enormemente, Manuel, quando dizes como na tua ltimacarta Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tsico. No o s mais.Ao menos sarcasticamente. Nem o foste nunca, propriamente. Eu sei.Ironicamente, inda v. Mas quem escreve Os meninos carvoeiros e aRua do Sabo no mais sarcasticamente tsico, amorosamente tsi-co. E o Bonheur lyrique? Eis a, meu amigo, onde estamos hoje, tu eeu (11).

    J uma leitura inicial poderia fixar, como trao comum mais geral aos doispoemas, a temtica da infncia pobre. Mas, num segundo passo, tambm jseria necessrio atentar s diferenas no tratamento lrico que o poeta dispensa sua observao (no importa se imaginria ou real) dos pequenos trabalhado-res de carvoaria e dos acontecimentos protagonizados pelas crianas pobres darua do Sabo. Vale observar aqui, em primeiro lugar, que o gesto amorosa-mente tsico a que se refere Mrio de Andrade evidencia-se com mais intensi-dade no poema que tambm considera superior. Entretanto, isto no deve sig-nificar que o poeta tenha colocado menos amorosidade na observao dotrabalho dos carvoeiros, essas crianas raquticas que a despeito daquiloque o poema silencia parecem integradas na madrugada ingnua e comoque fundidas com os burrinhos descadeirados que vo tocando: adorveiscarvoeirinhos que trabalhais como se brincsseis! Pois tal como nos versos queacompanham a serena ascenso do balozinho na rua do Sabo, tambm aqui aempatia do poeta com os seres de sua observao plasma-se na qualidade dosversos livres que se amoldam ao ritmo da marcha dos meninos, mais compostana ida, mais dissoluta na volta:

    Quando voltam, vm mordendo num po encarvoado,Encarapitados nas alimrias,Apostando corrida,Danando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados!

    Seria tarefa de uma anlise mais detalhada revelar aqui em que medida aestrutura rtmica e sonora desses versos prosaicos, tambm a preciso vocabularque surpreende por um refinamento que jamais resvala no pedantismo, expres-sam, j na imanncia da linguagem, a profunda empatia do poeta com os meni-nos carvoeiros, que refulgem ao final na esvoaante imagem dos espantalhosdesamparados. Tudo isso torna difcil, numa comparao entre os dois poe-mas, dar a primazia a um ou a outro. Mas talvez o juzo de Mrio deva-sesobretudo estrutura formal mais elaborada que se verifica no poema Na Ruado Sabo; alm disso este que evidencia de maneira mais explcita, como sever a seguir, o poeta que seria, acima de tudo, amorosamente tsico.

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    ESTUDOS AVANADOS 16 (44), 2002 261

    Na Rua do Sabo

    Cai cai baloCai cai baloNa Rua do Sabo!

    O que custou arranjar aqule balozinho de papel!Quem fz foi o filho da lavadeira.Um que trabalha na composio do jornal e tosse muito.Comprou o papel de sda, cortou-o com amor, comps os gomos oblongos...Depois ajustou o morro de pez ao bocal de arame.

    Ei-lo agora que sobe pequena coisa tocante na escurido do cu.Levou tempo para criar flego.Bambeava, tremia todo e mudava de cr.A molecada da Rua do SaboGritava com maldade:Cai cai balo!

    Sbitamente, porm, entesou, enfunou-se e arrancou das mos que o tenteavam.E foi subindo...

    para longe...serenamente...

    Como se o enchesse o soprinho tsico do Jos.

    Cai cai balo!

    A molecada salteou-o com atiradeirasassobiosapupospedradas.

    Cai cai balo!

    Um senhor advertiu que os bales so proibidos pelas posturas municipais.Ele foi subindo...

    muito serenamente...para muito longe...

    No caiu na Rua do Sabo.Caiu muito longe... Caiu no mar nas guas puras do mar alto.

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    O balo em ascensoProcedendo inicialmente a um comentrio descritivo mais geral, assinale-

    se de imediato que o poema se estrutura em versos livres, cuja tcnica ia sendoapurada nesse mesmo livro que, como se viu, o prprio poeta considerar de-pois de transio. No entanto, o poema abre-se com a citao de uma canti-ga junina, anunciando assim, de chofre, um motivo popular: Cai cai balo /Cai cai balo / Na Rua do Sabo! Predominam no poema os versos brancos,mas se tem na abertura uma rima simples e ingnua, prpria de cantigas popu-lares e folclricas. Observe-se ainda que o versinho Cai cai balo ocorrermais trs vezes, constituindo-se em espcie de leitmotiv que exprime a tendn-cia contrria ao acontecimento celebrado no poema. Mas, se possvel falar emacontecimento celebrado no poema, ento pode-se tambm inferir da queeste possui um argumento narrativo, e at mesmo, indo um pouco alm, queNa Rua da Sabo est impregnado a exemplo de outros clebres poemas deBandeira, como Gesso, Profundamente, O cacto de elementos picos,assumindo assim uma atitude para a qual a perspectiva didtica de um WolfgangKayser teria a designao de enunciao lrica.

    Nesse sentido, a primeira aproximao ao poema se poderia dar mediantea considerao de sua estratificao temporal da dimenso, portanto, em quea narrativa potica desdobrada. De que forma essa exposio lrica de umahistria que se desenvolve no tempo (mas tambm no espao) concebe e arti-cula entre si os diferentes planos temporais?

    O primeiro e mais remoto apresenta, de maneira sinttica, o trabalho deconfeco; ressalta inicialmente a dificuldade que foi arranjar aquele balozinhode papel e estende a descrio at o ajuste do morro de pez ao bocal dearame. O artfice referido apenas, de forma indireta, como o filho da lava-deira, a que se segue complemento introduzido pelo artigo indefinido: umque trabalha na composio do jornal e tosse muito.

    O segundo plano temporal seria aquele em que o eu-lrico o sujeito daenunciao lrica, a partir de cuja perspectiva e em cujo tom o poema se organi-za (12) vem situar-se mais explicitamente, como indicia o verso Ei-lo agoraque sobe pequena coisa tocante na escurido do cu. Observe-se, porm,que logo aps este verso, o nico referente histria do balo que traz o verbono presente, recua-se ligeiramente no tempo para falar de uma outra dificulda-de, que foi a de alar vo, de entesar, enfunar-se e arrancar das mos que ten-teiam. Contudo, se nessa dimenso houve, aps o momento da presentificao(Ei-lo agora que sobe), um recuo no tempo, haver tambm um avano paraalm deste momento, que primeiro se realiza nos versos:

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    E foi subindo...para longe...

    serenamente...

    e, em seguida, reiterado e intensificado pelo advrbio:

    Ele foi subindo...muito serenamente...

    para muito longe...

    J pela configurao visual dos versos, que sugere o movimento de ex-panso, pelo uso das reticncias (ou pontos de suspenso), sugerindo o fluxodo processo, e tambm pela reiterao intensificada dos trs primeiros versos, omovimento de ascenso no espao, por conseguinte tambm a seqncia tem-poral at ento empiricamente reconstituvel, entram no ilimitado, noindeterminado, no mais apreensvel ao eu que se situara na dimenso dos acon-tecimentos narrados.

    Todavia, a ltima palavra do poema no reside na notcia da vigorosa eserena ascenso do balozinho, at esfumar-se, para os olhos que o acompa-nham, no espao infinito. Rompendo esse avano no plano da presentificao,que tenderia alis continuidade plena lembrem-se aqui as definies da lricaenquanto sensao que se encerra no presente diz o verso final que o balocaiu nas guas puras do mar alto. Redimensiona-se assim o plano temporalem que se inscrevera a voz lrica e a partir do qual se organizam as etapas doevento celebrado no poema. A historieta arredonda-se portanto com aenunciao de que o destino do balo foi as guas puras do mar alto, trminoe coroamento dos esforos em transcender das adversidades que enfrentara narua do Sabo para ganhar os cus.

    O sopro lricoEssa primeira abordagem do poema Na Rua do Sabo a partir da con-

    siderao de sua base temporal pode justificar-se, como ficou dito, pelos com-ponentes narrativos que constituem a sua atitude enunciativa. Mesmo assim, evidente que o significado do poema no se resume meramente em imitaruma ao completa (para valer-se aqui da conhecida formulao de Aristteles),no se esgota portanto no ato de reconstituir um acontecimento observadonum meio pobre e humilde. Se essa formao lrica possui um significado maisespecfico, este no se deve em primeiro lugar ao xito do procedimentomimtico, mas resultaria antes da impregnao de sua prpria forma de expres-so pelo mundo social observado e vivenciado. Dessa maneira, o aprofundamentona estrutura formal do texto deveria demonstrar que Na Rua do Sabo nose limita a representar, com elementos lrico-narrativos, a realidade social de

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    uma festa num meio humilde, mas se constitui o poema, na prpria materialidadelingstica, enquanto expresso esttica dessa mesma realidade social.

    Esta vem filtrada pela participao afetiva do poeta, uma vez que o eventofoi concebido sob um certo ponto de vista e acolhido dentro de uma certatonalidade afetiva, recorrendo aos termos propostos por Alfredo Bosi em suaInterpretao da obra literria (13). assim que o eu-lrico, logo aps osversinhos de abertura, valoriza quanto pode, mas tambm com simplicidade, afeitura do balo: O que custou arranjar aquele balozinho de papel! Estecustou ndice, sem dvida, de uma dificuldade artesanal, mas pode com-portar igualmente uma aluso ao custo material que, embora pequeno, tem apobreza como pano de fundo: Quem fez foi o filho da lavadeira. Contrastan-do com os dois artigos definidos deste verso (dando a entender que pelo menosa lavadeira personagem conhecida), o verso seguinte comea com o artigo in-definido e deixa o pequeno arteso no anonimato, mal destacando-o talvez deoutros eventuais filhos da lavadeira, pois trata-se to somente de um que tra-balha na composio do jornal e tosse muito.

    Segue ento a descrio de todo o processo de feitura do balo, e a qua-lidade desses versos livres que mais uma vez deixam entrever a mestria deBandeira tambm na arte da prosa pode ser observada na preciso eexpressividade dos verbos, substantivos, adjetivos usados tanto para a descriocomo para narrar as circunstncias que envolvem a subida do balozinho. Poiso leitor no se cansa de admirar a preciso vocabular de Bandeira, o domniosoberano de matizes e nuanas perfeitamente concertados com o tom funda-mental do poema (14). Como tambm se pode dizer em relao aos Meninoscarvoeiros (com a descrio dos burrinhos descadeirados, da aniagem todaremendada, da madrugada ingnua assim como da pequenina, ingnuamisria!, e ainda expresses como mordendo num po encarvoado,encarapitados nas alimrias etc.), os termos e as expresses presentes no po-ema sobre a rua do Sabo no pertencem de forma alguma esfera lingsticados agentes do acontecimento: compor os gomos oblongos, ajustar o morrode pez ao bocal de arame, e ainda criar flego, bambear, enfunar-seetc. Dessa maneira, revela-se na prpria dimenso lingstica trabalhada porBandeira a profunda empatia (ou mesmo solidariedade) com o elemento hu-mano envolvido na historieta contada, entranhando-se assim a amorosa faturado balozinho na imanncia da linguagem, ou seja, na no menos amorosafatura do poema Na Rua do Sabo.

    Nesse sentido isto , no mbito da composio lrica, desenvolvida emcorrespondncia com a cuidadosa composio do balozinho , pode-se talvezsustentar que o movimento de ascenso deste (E foi subindo... / para longe.../ serenamente...) vem como que antecipado pelo ritmo dos versos imediata-mente anteriores, moldado em segmentos regidos por formas verbais em cres-

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    cente expanso, como se observa em entesou, enfunou-se (expanso peloacrscimo da partcula reflexiva) e, por fim, terceiro e mais longo segmentortmico do verso: e arrancou das mos que o tenteavam. Assinalem-se ainda,quanto a este verso, dois outros recursos empregados por Bandeira para adensar-lhe a coeso: por um lado, o tempo verbal no aspecto perfeito, em contrastecom a fase do cai no cai, regida pelo imperfeito, no verso Bambeava,tremia todo e mudava de cor; pelo outro lado, o anasalamento, com a expres-siva ocorrncia das consoantes /m/ e /n/, que se verifica no nvel do substratosonoro do poema. E, neste ponto, h de considerar-se que, se tal processo desonorizao por si s no suficiente para sugerir subliminarmente o movi-mento ascensional do balo, o anasalamento cria ao menos forte contraste so-noro com os versos referentes atitude da molecada da rua, que vm logoem seguida e exprimem sentido oposto ao movimento mencionado. Observe-se ainda que a expanso conduzida pelas formas verbais no perfeito se reiterarnos versos ou antes semi-versos (15) imediatamente adjacentes, cujaprolao espraia-se em consonncia com as reticncias, ou pontos de suspen-so, que os configuram visualmente.

    A esse movimento ascensional, e tambm aos seus apoios rtmico-sono-ros, ope-se drasticamente a verticalizao dos versos referentes ao damolecada, salteando-o com atiradeiras e depois, em semi-versos simetrica-mente verticalizados, assobios / apupos / pedradas. Dominam aqui, emcontraste com a brandura do anasalamento anterior, aliteraes oclusivas, tantoas linguodentais /t/ e /d/ quanto as bilabiais /b/ e /p/, reforando no nvelda sonoridade, com a sugesto de choque prpria a essas consoantes (momen-tneo-explosivas), as resistncias que se colocam ascenso do balo. Resistn-cias, alis, que se intensificam no verso seguinte separado porm por novaocorrncia do leitmotiv Cai cai balo! , tambm apoiado em expressivas alite-raes oclusivas e tendendo, com toda a intencionalidade, para a fala prosaica:Um senhor advertiu que os bales so proibidos pelas posturas municipais (16).

    Como ltima observao relativa estrutura formal do poema Na Ruado Sabo, valeria apontar ainda para o recurso de Bandeira a correspondnciasternrias. Num poema cuja opo pelo verso-livre o fez prescindir do apoio quepoderia advir do esquema mtrico e rmico, esse recurso contribui certamentepara fundar a sua unidade formal, emoldurando tambm o referido jogo decontrastes. A ocorrncia de tal estrutura ternria, manifesta j no leitmotiv doCai cai balo (17), pode ser apontada ainda nos versos que falam da ascensodo balo e da periclitante fase inicial, apresentando, ambos os momentos, trsverbos que contrastam os aspectos perfeito e imperfeito. Tambm os semi-versos, organizados como que a sugerir, inclusive pelos pontos de suspenso, omovimento horizontal-expansivo, estruturam-se, da mesma forma que averticalizao brusca dos semi-versos assobios / apupos / pedradas, em rit-mo ternrio. E assim tambm o trmino da histria, com a trplice ocorrncia

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    do verbo caiu, primeiro pela negativa: No caiu na Rua do Sabo e, emseguida, na afirmao que se faz no verso de fecho. Mas tambm este apia-seem trs segmentos, os quais vo atualizando com preciso crescente a notciada queda do balo, com o seu momento culminante no ondulamento rtmicomarcado pelo extraordinrio contraste entre a abertura e alteamento do /a/assonante nas guas do mar lto e a vogal que se fecha e alonga na palavra(ligeiro obscurecimento na claridade do verso) que traz por fim o sentido depureza narrativa lrica de Bandeira: Caiu muito longe... Caiu no mar nasguas puras do mar alto.

    A imagem e a idiaCom a enunciao da queda do balozinho arredonda-se, portanto, a

    histria que comeara com a compra do papel de seda e o trabalho amoroso deuma criana pobre. Uma histria de dificuldades, enfeixadas logo no verso deabertura: O que custou arranjar aquele balozinho de papel!, e de superao,compondo um arco que leva da Rua do Sabo (espao em que atua a molecadada vila, salteando-o com gritos e pedras), at o espao insondvel das guaspuras do mar alto. Nessa passagem de um plo a outro, o momento decisivoparece explicitar-se no centro do poema, quando o balo, vacilando at entoentre a queda e a ascenso, finalmente entesou, enfunou-se e arrancou dasmos que o tenteavam. E retornando agora hiptese de uma correspondn-cia entre a composio do balo e a do poema, mediadas ambas pelo trabalhoamoroso, seria possvel complement-la com a observao de que no mbitodessa identificao e justamente no momento decisivo em que o balo criaflego e se ala aos cus que o seu pequeno artfice, um que trabalha nacomposio do jornal e tosse muito, ganha um nome, acompanhado pormde importante revelao: Como se o enchesse o soprinho tsico do Jos.

    Tambm aqui o momento do reconhecimento (ou da anagnrisis, parausar o termo aristotlico), libera profunda emoo, mas no como conclusodo poema, como se pode observar, por exemplo, em relao a Gesso, Ocacto, O martelo e outros poemas de Manuel Bandeira. E na surpresadesse verso simples e delicado que se concentra subitamente toda a fora sim-blica que o poeta investiu nessa narrativa lrica de um acontecimento observa-do num meio pobre e humilde, mas alado por fim, pequena coisa tocante, esfera sublime do espao e da pureza do mar alto. Nessa perspectiva pode-sedizer ento, reforando a correspondncia j assinalada, que o soprinho tsicodo Jos o que insufla vida no s ao balozinho feito com tanto esforo eamor mas tambm a esse poema que, mais do que qualquer outro, exprime ogesto amorosamente tsico que Mrio de Andrade reconheceu no amigo decorrespondncia.

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    Nessa linha de leitura, a interpretao pode ento transcender a imannciada histria tematizada no poema e apreend-la tambm como uma simbolizaoda prpria existncia do homem e do poeta Manuel Bandeira. Na superaodos vrios obstculos que se colocaram ao impulso ascensional do balo sevislumbraria assim a transfigurao simblica das muitas adversidades doena,pobreza, solido que marcaram essa existncia, e sobre as quais Bandeiracomo que triunfou atravs da poesia, que transformou toda uma vida quepodia ter sido e que no foi em outra que foi ficando cada vez mais cheia detudo, para lembrar a observao de Otto Maria Carpeaux reproduzida nofinal do Itinerrio de Pasrgada (18). Pode-se dizer, portanto, que foi a forada poesia que possibilitou a essa existncia criar flego, alar-se sobre as ad-versidades da prosa da vida e alcanar por fim as guas puras do mar alto,nas quais tambm se projetar depois, como se devaneia no poema Cantiga,o desejo de felicidade e de morte.

    Observe-se ainda que o ingresso na esfera do sublime articula-se de ma-neira concreta, enquanto derradeira etapa da pequena histria que o poemaconta, com a idia presente na imagem ascensional do balo, em direoportanto ao elevado, ao sublimis. O smbolo experimenta assim um significati-vo adensamento, podendo-se dizer ento que a idia entranhada na imagemdo balo leva para mais alm do paralelo entre o trabalho paciente e amorosodo pequeno Jos, pobre e tuberculoso, e o trabalho esttico do poeta de Ritmodissoluto, igualmente pobre e tuberculoso. Sempre ativa e inatingvel, con-forme a formulao de Goethe, a idia que se vislumbra no balozinho buscan-do seu destino nos cus e nas guas puras do mar alto estaria representandotambm, como revelao viva e momentnea do inescrutvel, todo esforoem transcender dos obstculos e adversidades da vida e alar a prpria existn-cia a um sentido mais elevado, seja atravs de um poema, de algo como essapequena coisa tocante na escurido do cu ou de outra criao simblica.

    O balo e a pipa: um aceno comparativoO poeta melhor que ns todos, o poeta mais forte, diz Carlos Drummond

    de Andrade num dos versos de sua Ode ao cinqentenrio do poeta brasilei-ro, e se h procedncia nessa afirmao, se Manuel Bandeira, esse nosso lricoda Stoa, pode de fato ser considerado, revelia da prpria opinio, um poetamaior da lngua portuguesa, ento isto se deve tambm sensibilidade comque soube modular ao longo de sua obra o tema da infncia. Como testemu-nho avultam aqui, em primeiro lugar, as j mencionadas obras-primas Evoca-o do Recife e Profundamente, em que a recordao lrica do prprio pas-sado articula-se com aquele que talvez seja, por excelncia, o tema magno dapotica bandeiriana: a morte (19).

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    Meninos Soltando Pipasc.1943Pintura a guache/papel16 x 11,5 cmColeo Particular - Rio de Janeiro - RJ

    Projeto Portinari

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    Em modulaes posteriores do tema, verifica-se tambm a tendncia a ar-rematar o poema com uma espcie de flash, de sbita iluminao lrica dos anosde meninice, como se o poeta j maduro ou mesmo envelhecido se descobrisse,em percepo instantnea, como sendo ainda o menino que como est dito emVersos de Natal todos os anos na vspera do Natal / Pensa ainda em pr osseus chinelinhos atrs da porta. So versos da Lira dos cinqentanos, de ondepoderamos extrair ainda outras ilustraes para esse procedimento: enquantoo poema Peregrinao arredonda-se com a evocao final do Mim da-queles tempos!, em Velha Chcara vemos levantar-se inesperadamente, noverso de fecho, o nico sobrevivente das runas do passado: Mas o meninoainda existe. Com semelhante efeito de pointe contemplada tambm a Ele-gia de Vero, esta de Opus 10, mediante a reivindicao final ao mesmo tempodivertida e pungente: Dem-me as cigarras que eu ouvi menino.

    Diferentemente de todos esses poemas, Na Rua do Sabo e MeninosCarvoeiros adentram o universo da infncia no pela presentificao epifnicada experincia individual, isto , a plenitude mtica de quatro anos vividos emextinta Trada recifense, mas pelo lado sombrio do trabalho infantil. Longe,porm, de pretender denunciar um sistema social que condena misria a mai-or parte de suas crianas, privando-as assim de uma vivncia digna da infncia,esses dois poemas de Ritmo dissoluto exprimem antes de mais nada a empatiado poeta com os pequenos trabalhadores que contempla: os adorveiscarvoeirinhos que trabalham como se estivessem brincando, e o pequeno Jos,filho tuberculoso de lavadeira e empregado de tipografia. O olhar sublimadordo poeta parece comprazer-se em surpreender a capacidade das crianas deextrair momentos ldicos ao pesado fardo do trabalho, transfigurando-se dessemodo a opresso real em pequenina, ingnua misria.

    Mas seria justo cobrar de Manuel Bandeira uma postura que mesmo umdos mais veementes tericos do engajamento social do escritor, o Jean-PaulSartre de Quest-ce que la littrature?, em momento algum exige do poeta lri-co? Ainda que seja a indignao social ou o dio poltico a dar origem ao poe-ma, o verdadeiro lrico, observa Sartre, jamais estar se utilizando das palavrascomo faria o prosador, mas sim entregando-se incondicionalmente lingua-gem (20), numa penetrao surda no reino das palavras, como talvez se pos-sa dizer recorrendo a verso drummondiano do poema Procura da poesia.

    Ao problema do trabalho infantil, to vergonhoso quanto emblemticode nossa longa histria de opresso e injustias (21), Bandeira dispensa um tra-tamento simblico e, em conseqncia, os verdadeiros questionamentos queNa Rua do Sabo ou Meninos Carvoeiros possam suscitar j tero encon-trado resoluo na dimenso esttica em que se inscrevem enquanto poemas.No entanto, seria lcito contempl-los por um instante a partir da prpria reali-dade tematizada (e liricamente transfigurada). Tambm no deixaria de ser le-

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    gtimo, para efeito de comparao e contraste, lembrar outras tematizaeslricas da infncia, e mesmo as que mais se afastam da potica de Bandeira.Dada a magnitude dessa temtica na histria da literatura, possibilidades prati-camente ilimitadas abrir-se-iam aqui perspectiva comparativa. Podemos lem-brar, por exemplo, alguns momentos da poesia de Bertolt Brecht, com suapostura social to diferente da bandeiriana, mas que tem na expresso despoja-da, em que a simplicidade dissimula no raro a complexidade da elaboraolingstica (um lrico contemplado com a integridade da linguagem, comoobservou Adorno) uma zona de afinidades com o poeta brasileiro.

    Ao contrrio do autor de Evocao do Recife e de tantos outros lricospara quem a nossa infncia perdida, voltando citada formulao de Schiller,para sempre permanece como aquilo que nos mais precioso, as poucasvezes em que Brecht fala da infncia, ele o faz em sentido irnico: O belotempo de criana, que nunca mais volta, l-se por exemplo num dos versos dopoema Coisas que so ditas s crianas, do ciclo Canes Infantis 1937.Aps o perodo nacional-socialista e os anos de guerra, impe-se em sua poesiaa tendncia a falar em primeiro lugar sobre e para as geraes que poderiamconstruir uma sociedade mais justa e solidria, e um momento culminante des-sa tendncia realiza-se nas quatro pequenas estrofes do Hino Infantil (1950),que encontrou na msica de Hans Eisler uma criao congenial. Vendo pelaprimeira vez, nas jovens geraes da Repblica Democrtica Alem, possibili-dades reais para a concretizao das esperanas no futuro socialista, Brecht for-mula, em novo ciclo de canes infantis, uma espcie de utopia da infncia,retomando de certa forma as aspiraes que exprimira em 1939 no poema Aosque vierem depois de ns.

    O fato de dirigir-se o poeta alemo, em seus ciclos de canes infantis,diretamente s crianas isto , com imagens, linguagem e ritmo em sintoniacom essa inteno constitui evidentemente uma diferena fundamental emrelao aos poemas de Ritmo dissoluto voltados para o tema da infncia pobre.No entanto, trao comum a ambos os poetas o recurso a elementos intima-mente associados ao universo ldico da criana, smbolos como o balo ou apipa, que compem um espao de afinidades justamente no movimentoascensional ou na esfera do sublime, onde soa tambm, muito acima destabaixa vida terrena e no firmamento azul, vizinho do trovo e prximoao mundo das estrelas, o Sino de Schiller, como comenta Hegel em suasexplanaes sobre o lrico (22).

    Brecht intitulou de Pequena cano do ps-guerra duas estrofes dequatro versinhos que integram um novo ciclo de canes infantis escritas em1950: a primeira gira no ritmo clere de um pio que tem agora, em meio aostrabalhos de limpeza dos escombros e reconstruo da cidade, toda a rua suadisposio; na segunda uma pipa, espcie tambm de pequena coisa tocan-

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    te num cu agora em paz, que pode alar vo: Voa, pipa, voa! / No h maisguerra no cu. / E se arrebenta a linha, ento a coisinha voa / Por cima deMoscou at Pequim. / Voa, pipa, voa!

    Em outro poema infantil, Cano da pipa (que segue aqui em traduoliteral), celebra-se tambm um movimento ascensional, submetido porm aocontrole humano e, assim, com caractersticas diferentes do impulso que, nodelicado verso de Bandeira, emana do soprinho tsico do Jos:

    Cano da Pipa

    Voa, pequena pipa, voa,Eleva-te com vontade aos aresEmpina, pequena coisa azul, empina,Sobre a nossa catacumba de casas!

    Se ns te seguramos pela linhaTu te mantns nos aresEscravo dos sete ventosA levantar-te os obrigars.

    E ns ficamos a teus ps!Voa, voa, pequeno ancestralDe nossos grandes aeroplanosOlha ao teu redor para saud-los!

    Linguagem, ritmo, imagens assim como a estrutura rmica do originalmoldam-se, como observado, em consonncia com o mundo-de-vida das crian-as, cuja superioridade em relao ao mundo dos adultos revela-se na imagemda pipa empinando sobre a catacumba de casas e saudando orgulhosa osgrandes aeroplanos. E tambm no seria difcil reconhecer a viso que opoeta alemo insuflou a seu ciclo de canes infantis: Escravo dos sete ventos/ A levantar-te os obrigars no est celebrando outra coisa seno o domniodo homem transposto porm ao espao ldico (o menino empinando a pipa) sobre as foras da natureza (os sete ventos).

    E neste ponto abre-se imensa distncia em relao ao poeta brasileiro emcujas apreciaes polticas podemos reconhecer por vezes as marcas de umaristocratismo no muito diferente daquele que Brecht costumava ironizar emRainer Maria Rilke e que o prprio Sartre, j no livro mencionado, disseca emFlaubert com um prazer indisfarvel. E isso sem falar ainda nas invectivasanticomunistas que se infiltraram na bela prosa do Itinerrio de Pasrgada, aprimeira das quais se arrogando o direito de desqualificar um engajamento de

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    Paul luard, o antigo companheiro de sanatrio em Davos que, com seu talen-to bastante pessoal e to aristocrtico, jamais deveria sujeitar-se boal es-ttica imposta pelo comunismo russo aos seus escravos. Palavras estranhas deBandeira, que se fecham a qualquer possibilidade de crtica dialtica s defor-maes do socialismo real e que em seu tom furibundo tanto contrastam com oespao generoso que abriu a Alberto Childe, em tudo um homem de direita,e de quem tambm, nas palavras que arrematam a evocao, poderia dizer queera um puro. No entanto, foi justamente num trecho dessas memrias dePasrgada que se pde colher ilustrao das mais expressivas para a reflexo deMarx citada na primeira parte do ensaio.

    Mas estas consideraes finais no poderiam ter outra finalidade senofazer ressaltar com mais intensidade a dimenso viva que, para alm das postu-ras ideolgicas, pulsa nos grandes textos lricos. E que valha aqui, mais umavez, a recomendao de vigilncia que faz Adorno, em seu texto sobre lrica esociedade, com relao ao conceito de ideologia: Ela se manifesta no ma-logro da obra de arte, no que esta tem em si de errado, e alvo da crtica. E,em seguida, a advertncia quanto ao perigo de se imputar a acusao de ideolo-gia a obras de arte que tm sua essncia no poder de configurar e, somenteatravs desse poder, na capacidade de conciliao tendencial de contradiesfecundas da existncia real (23).

    No deixa de ser verdade que poemas como Meninos carvoeiros ouNa Rua do Sabo no questionam (e nem sequer roam) a questo social deque conseguem extrair lirismo to pungente, isto , a misria que atinge ascrianas e fomenta a explorao do trabalho infantil realidade historicamentevergonhosa, mas que hoje, em funesta conjuno com as diversas formas deviolncia que grassam na sociedade brasileira, vem atingindo nveis sempre cres-centes de barbrie. O poeta de Ritmo dissoluto que se voltou ento s crianasexcludas e exploradas no acusa nem denuncia, como buscar fazer muitosanos depois no poema O bicho, no volume Belo Belo, conferindo expresso perplexidade diante da misria e da fome que animalizam o homem. Tampoucopoder-se-ia vislumbrar, nessas tematizaes lricas da infncia pobre, a emoosocial que emana, na viso do prprio Bandeira, de um poema como O mar-telo, vigorosa celebrao do trabalho cotidiano de um ofcio humilde.

    Acima, contudo, de eventuais omisses e insuficincias que se possamapontar nos poemas aqui considerados, avulta o gesto amorosamente solidrioque Bandeira estende aos carvoeirinhos ou ao tsico Jos os meninos traba-lhadores que, com sua tica ingnua, com sua pequena humanidade sofrida,animam esses poemas, suscitando nos leitores o sentimento expresso pela pri-meira vez na citada carta de Mrio de Andrade. Se fazer versos de guerra,como est dito em Testamento, nunca esteve ao alcance de Manuel Bandeira,ele soube todavia abrir muitos caminhos para levar aos seus semelhantes mo-

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    dulada em sons, ritmos e imagens a palavra fraterna que soa no final doItinerrio de Pasrgada como a grande mensagem de sua obra. No se podeexigir de poemas como Meninos carvoeiros ou Na Rua do Sabo mais doque a empatia sublime, o gesto enlevado e tico que, acima de todas as contra-dies da existncia real, irmana o grande poeta lrico aos seus pequenos es-pantalhos desamparados e que ao mesmo tempo faz ressoar em muitos deseus leitores a aspirao por um estado social mais justo e solidrio.

    Notas

    1 Pobre e breve de um lado, mas evocada como uma felicidade perdida para sempre:tambm para essa caracterizao paradoxal da infncia vale certamente a observaode Walter Benjamin de que podemos ler durante muito tempo as histrias de ani-mais de Kafka sem perceber que elas no tratam de seres humanos. (Franz Kafka: apropsito do dcimo aniversrio de sua morte. In Magia e tcnica, arte e poltica,So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 147. Traduo de Srgio Paulo Rouanet.)

    2 Lembre-se aqui a formulao de Alfredo Bosi referente s imagens citadas: Atravsdas guas do lago passava a luz, aquele ouro da manh que brilha na pgina deabertura como a eterna metfora da infncia (O Ateneu Opacidade e destruio.In Cu, inferno, So Paulo, tica, 1988, p. 35.)

    3 Friedrich Schiller, Poesia ingnua e sentimental, So Paulo, Iluminuras, p. 44; tradu-o e estudo de Mrcio Suzuki. A observao citada desdobrada por Schilleralgumas linhas adiante: erro acreditar que a mera representao do desamparoseja aquilo que, em certos momentos, nos detm com tanta emoo junto s crian-as. (...) No ficamos comovidos porque olhamos para a criana do alto de nossafora e perfeio, mas porque da limitao de nosso estado, que inseparvel dadeterminao uma vez atingida por ns, elevamos o olhar para a determinabilidadeilimitada e para a inocncia pura da criana, e em tal instante nosso sentimento estmuito visivelmente mesclado a uma certa melancolia para que se possa desconhecera sua fonte.

    4 Essa reflexo encontra-se na Introduo ao volume Grundrisse der Kritik der politischenkonomie, Berlim, Dietz Verlag, 1983, v. 43 (konomische Manuskripte 1857/1858), p. 44-45. Entre os vrios comentrios a esse texto de Marx, citem-se porexemplo Georg Lukcs (Introduo a uma esttica marxista, captulo A arte comoautoconscincia do desenvolvimento da humanidade, Rio de Janeiro, CivilizaoBrasileira, 1970, p. 269); ou ainda, entre ns, Alfredo Bosi (O ser e o tempo dapoesia, captulo Poesia resistncia, So Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 163-227). Emil Staiger, em seus Conceitos fundamentais da potica (Estilo pico, 6segmento), estabelece igualmente uma relao entre a infncia individual e o estgiohistrico que se vislumbra na epopia homrica.

    5 Manuel Bandeira, Seleta de prosa (org. Jlio C. Guimares), Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1997. O Itinerrio de Pasrgada encontra-se reproduzido s pginas 295-360 (citao p. 297).

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    6 Como que impregnada de um presente eterno tambm a dimenso temporal queevoca Hermann Hesse na segunda das cinco estrofes do seu poema Recordao, dejaneiro de 1945: O mais elevado seria: viver / Em eterno presente. / Mas essagraa s foi dada / s crianas e a Deus.

    7 A anlise e interpretao desse poema encontra-se no captulo A festa interrompida,que abre a terceira parte do livro Humildade, paixo e morte (So Paulo, Compa-nhia das Letras, 1990, p. 201-232). A idia da morte como sono e a presentificaoepifnica dos que adormeceram permitiriam lembrar aqui o poema Die Entschlafenen,em que Hlderlin recorda (no sentido etimolgico do verbo, afim ao corresponden-te alemo erinnern) os adormecidos: Um dia fugaz eu vivi e cresci entre osmeus, / Um aps outro j me adormece e vai fugindo pra longe. / E no entanto,vs que dormis, stais-me acordados c dentro do peito, / Na alma parente repousaa vossa imagem que foge. / E mais vivos viveis vs ali, onde a alegria do espritodivino / A todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce (Traduo dePaulo Quintela: Hlderlin Poemas, Coimbra, Atlntida, 1959, p. 249)

    8 Op. cit., p. 328.

    9 Op. cit., p. 322.

    10 E tu? que fazes? Manda-me alguns versos teus. No publicas algum livro proxima-mente? Fala-me de teus projetos. Se Klaxon sair mais uma vez, permitirs a coloca-o do poema Rua do Sabo nela? Sim. Obrigado. In Correspondncia Mriode Andrade & Manuel Bandeira. So Paulo, EDUSP/IEB, 2000. Organizao,introduo e notas de Marcos Antonio de Moraes. A carta em questo encontra-sereproduzida s pginas 92-94, e a datao traz apenas a indicao do dia 22, mas ocomplemento de ms e ano atestado em nota do organizador da edio (citaoseguinte pgina 96.)

    11 Op. cit., p. 100. Significativamente, Mrio faz com que o seu questionamento doestado de esprito sugerido por Bandeira seja precedido de uma verso anterior dopoema XVII de Losango cqui, que conclui com o verso: A prpria dor umafelicidade! A observao de Bandeira, em carta de 27 de julho de 1923, quesuscitou a discordncia do amigo, refere-se a um retrato que tirara 10 anos atrs eque anexava ento carta: Mas no o Manuel Bandeira de hoje. o ManuelBandeira da Cinza das horas. de um tempo em que eu era muito mansamente emuito doloridamente tsico. Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tsico. Naque-le tempo vivia do dinheiro de meu pai e do carinho dele e de minha me e de minhairm. Hoje vivo da caridade do Estado e como ao Brs Cubas o que me conforta no transmitir a ningum o legado da minha misria (op. cit., p. 97).

    12 Em seu ensaio A interpretao da obra literria, Alfredo Bosi chama a ateno parao significado dos conceitos de tom e perspectiva na organizao da obra liter-ria. Veja-se em especial a reflexo desenvolvida no tpico Perspectiva e tom inCu, inferno, So Paulo, tica, 1988, p. 274-287.

    13 Op. cit., p. 276. Na perspectiva hermenutica exposta no ensaio, algo s se tornariaum evento para o sujeito quando este o situa no seu aqui e o temporaliza no seu

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    agora; enfim, quando o sujeito o concebe sob um certo ponto de vista e o acolhedentro de uma certa tonalidade afetiva. Mais adiante (p. 283), outra formulaoenfatizando a relevncia hermenutica dos conceitos de tom e perspectiva: Aafinao do tom e a busca da perspectiva exata iluminam os dados particulares.

    14 Quanto a este ponto, valeria lembrar a observao de Davi Arrigucci Jr. referente qualidade da prosa imitada bandeiriana nos versos livres do poema O cacto: Ocontrole perfeito da nuance exata que se busca, supervisionando o andamento dodiscurso em percurso contnuo e linear, ajustado precisamente ao assunto, revela defato a atitude do exmio prosador. O cacto e as runas, So Paulo, Duas Cidades /Editora 34, 2000, citao pgina 82.

    15 No extraordinrio ensaio Como fazer versos?, que no apenas sistematiza a suaconcepo de poesia mas tambm descortina ao leitor vrios detalhes de sua prpriaoficina potica, Maiakvski fundamenta o emprego de semi-versos, ou semi-linhas, enquanto procedimento que confere maior firmeza e clareza ao ritmo e aosentido do segmento do poema em que se inserem. In Boris Schnaiderman, Apotica de Maiakvski, So Paulo, Perspectiva, 1971, p. 167-219 (sobre o assunto,ver p. 199).

    16 Na verso manuscrita enviada a Mrio de Andrade, l-se obtemperou no lugar deadvertiu. Embora rico em consoantes oclusivas, o termo, alm de trazer ao versoum preciosismo que no existe em advertir, estaria amainando o rigor da proibi-o levantada por esse porta-voz das posturas municipais. Lembremos tambmque na verso manuscrita dos Meninos carvoeiros, Bandeira usa erroneamente otermo chouteira para designar o instrumento com que os burrinhosdescadeirados vo sendo tocados. Mrio chama a ateno do amigo para o erro erecomenda a substituio do termo, o que tambm se d em prol de uma maiorsimplicidade: E vo tocando os animais com um relho enorme.

    17 Observe-se tambm, no poema Meninos carvoeiros, a tripla ocorrncia do verso Eh, carvoero!, que transforma em leitmotiv rtmico a exclamao (ou prego)dos meninos a caminho do trabalho.

    18 Na mencionada edio do Itinerrio (nota 5) l-se poderia em lugar de podia,como de fato est no segundo verso do poema Pneumotrax: A vida inteira quepodia ter sido e que no foi.

    19 tambm a presena da morte que encerra as evocaes do poema Infncia, fechopor sua vez do volume Belo belo. O poema expe o esforo consciente do poeta jsexagenrio em fixar as suas mais velhas reminiscncias, comeando com as pri-meiras impresses em Petrpolis, aos trs anos de idade. Tem-se porm a impressode que Bandeira, sem o transporte da revelao epifnica, no consegue de fatoromper os ruos definitivos do tempo, restando lacunar esse esforo da memriaem reconstituir acontecimentos da infncia.

    20 A diferenciao entre a atividade do lrico e a do prosador estabelecida por Sartreno captulo O que escrever?, o primeiro do livro. Ao contrrio do prosador que,ao expor os seus sentimentos, busca esclarec-los, o poeta, na argumentao sartriana,

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    deixa de reconhecer os sentimentos e paixes que virtualmente deram ensejo aopoema, pois os entrega livre ao das palavras, que deles se apoderam e osmetamorfoseiam. As palavras, no poema, deixam assim de significar, de remeter arealidades exteriores, como seria prprio do signo; elas no mais significam, mesmoaos olhos do poeta: A emoo se tornou coisa, passou a ter a opacidade das coisas; turvada pelas propriedades ambguas dos vocbulos em que foi confinada (cita-do conforme a edio brasileira: Que a literatura? So Paulo, tica, 1993, trad.de Carlos Felipe Moiss.). nos captulos posteriores (Por que escrever? e Paraquem se escreve?) que Sartre ir precisar, em bases filosficas, o seu conceito delittrature engage. Somente ao romancista (e ao prosador de modo geral) coloca-se portanto a exigncia de dotar o universo criado de um movimento que leva superao das injustias que esse universo encerra. As implicaes que esse movi-mento tem para o leitor no so evidentemente extensveis ao leitor de poesia:Quanto a mim, que leio, se crio e mantenho em existncia um mundo injusto, noposso faz-lo sem que me torne responsvel por ele. E toda a arte do autor consisteem me obrigar a criar aquilo que ele desvenda portanto em me comprometer. Eisque ns dois arcamos com a responsabilidade pelo universo. E precisamente porqueesse universo sustentado pelo esforo conjugado de nossas duas liberdades, eporque o autor tentou, por meu intermdio, integr-lo ao humano, preciso que ouniverso aparea verdadeiramente em si mesmo, em sua massa mais profunda, comoque atravessado de lado a lado e sustentado por uma liberdade que tomou por fima liberdade humana (...) (p. 50).

    21 Sobre esse assunto, vejam-se os estudos enfeixados no volume Histria das crianasno Brasil, organizado por Mary Del Priore (So Paulo, Contexto, 1999), em espe-cial a contribuio de Irma Rizzini: Pequenos trabalhadores do Brasil (p. 376-406).

    22 sthetik, Berlim e Weimar, Aufbau-Verlag, 1976. (A referncia Cano do Sino deSchiller encontra-se no 3 captulo, A Poesia, da seo dedicada s Artes Romnti-cas v. 2, p. 502).

    23 Lrica e sociedade, traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho, com assessoria deRoberto Schwarz. In Textos escolhidos, So Paulo, Abril, 1980, p. 193-208, citaos p. 194-195.

    Marcus V. Mazzari professor de teoria literria na USP e autor do livro Romance deformao em perspectiva histrica (Ateli, 1999).