poemas-claudio manuel da costa

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  • PoemasCludio Manoel da Costa

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  • PoemasCludio Manoel da Costa

    SONETOS

    I

    Para cantar de amor tenros cuidados,Tomo entre vs, montes, o instrumento;Ouvi pois o meu fnebre lamento;Se , que de compaixo sois animados:

    J vs vistes, que aos ecos magoadosDo trcio Orfeu parava o mesmo vento;Da lira de Anfio ao doce acentoSe viram os rochedos abalados.

    Bem sei, que de outros gnios o Destino,Para cingir de Apolo a verde rama,Lhes influiu na lira estro divino:

    O canto, pois, que a minha voz derrama,Porque ao menos o entoa um peregrino,Se faz digno entre vs tambm de fama.

  • II

    Leia a posteridade, ptrio Rio,Em meus versos teu nome celebrado;Por que vejas uma hora despertadoO sono vil do esquecimento frio:

    No vs nas tuas margens o sombrio,Fresco assento de um lamo copado;No vs ninfa cantar, pastar o gadoNa tarde clara do calmoso estio.

    Turvo banhando as plidas areiasNas pores do riqussimo tesouroO vasto campo da ambio recreias.

    Que de seus raios o planeta louroEnriquecendo o influxo em tuas veias,Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

    III

    Pastores, que levais ao monte o gado,Vde l como andais por essa serra;Que para dar contgio a toda a terra,Basta ver se o meu rosto magoado:

    Eu ando (vs me vdes) to pesado;E a pastora infiel, que me faz guerra, a mesma, que em seu semblante encerraA causa de um martrio to cansado.

  • Se a quereis conhecer, vinde comigo,Vereis a formosura, que eu adoro;Mas no; tanto no sou vosso inimigo:

    Deixai, no a vejais; eu vo-lo imploro;Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,Chorareis, pastores, o que eu choro.

    IV

    Sou pastor; no te nego; os meus montadosSo esses, que a vs; vivo contenteAo trazer entre a relva florescenteA doce companhia dos meus gados;

    Ali me ouvem os troncos namorados,Em que se transformou a antiga gente;Qualquer deles o seu estrago sente;Como eu sinto tambm os meus cuidados.

    Vs, troncos, (lhes digo) que algum diaFirmes vos contemplastes, e segurosNos braos de uma bela companhia;

    Consolai-vos comigo, troncos duros;Que eu alegre algum tempo assim me via;E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

    V

    Se sou pobre pastor, se no governoReinos, naes, provncias, mundo, e gentes;

  • Se em frio, calma, e chuvas inclementesPasso o vero, outono, estio, inverno;

    Nem por isso trocara o abrigo ternoDesta choa, em que vivo, coas enchentesDessa grande fortuna: assaz presentesTenho as paixes desse tormento eterno.

    Adorar as traies, amar o engano,Ouvir dos lastimosos o gemido,Passar aflito o dia, o ms, e o ano;

    Seja embora prazer; que a meu ouvidoSoa melhor a voz do desengano,Que da torpe lisonja o infame rudo.

    VI

    Brandas ribeiras, quanto estou contenteDe ver nos outra vez, se isto verdade!Quanto me alegra ouvir a suavidade,Com que Flis entoa a voz cadente!

    Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,Tudo me est causando novidade:Oh como certo, que a cruel saudadeFaz tudo, do que foi, mui diferente!

    Recebei (eu vos peco) um desgraado,Que andou t agora por incerto giroCorrendo sempre atrs do seu cuidado:

  • Este pranto, estes ais, com que respiro,Podendo comover o vosso agrado,Faam digno de vs o meu suspiro.

    VII

    Onde estou? Este stio desconheo:Quem fez to diferente aquele prado?Tudo outra natureza tem tomado;E em contempl-lo tmido esmoreo.

    Uma fonte aqui houve; eu no me esqueoDe estar a ela um dia reclinado:Ali em vale um monte est mudado:Quanto pode dos anos o progresso!

    rvores aqui vi to florescentes,Que faziam perptua a primavera:Nem troncos vejo agora decadentes.

    Eu me engano: a regio esta no era:Mas que venho a estranhar, se esto presentesMeus males, com que tudo degenera!

    VIII

    Este o rio, a montanha esta,Estes os troncos, estes os rochedos;So estes inda os mesmos arvoredos;Esta a mesma rstica floresta.

    Tudo cheio de horror se manifesta,

  • Rio, montanha, troncos, e penedos;Que de amor nos suavssimos enredosFoi cena alegre, e urna j funesta.

    Oh quo lembrado estou de haver subidoAquele monte, e as vezes, que baixandoDeixei do pranto o vale umedecido!

    Tudo me est a memria retratando;Que da mesma saudade o infame rudoVem as mortas espcies despertando.

    IX

    Pouco importa, formosa Daliana,Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;Se quanto mais me afliges, e consomes,Tanto te adoro mais, bela serrana.

    Ou j fujas do abrigo da cabana,Ou sobre os altos montes mais te assomes,Faremos imortais os nossos nomes,Eu por ser firme, tu por ser tirana.

    Um obsquio, que foi de amor rendido,Bem pode ser, pastora, desprezado;Mas nunca se ver desvanecido:

    Sim, que para lisonja do cuidado,Testemunhas sero de meu gemidoEste monte, este vale, aquele prado.

  • XEu ponho esta sanfona, tu, Palemo,Pors a ovelha branca, e o cajado;E ambos ao som da flauta magoadoPodemos competir de extremo a extremo.

    Principia, pastor; que eu te no temo;Inda que sejas to avantajadoNo cntico amebeu: para louvadoEscolhamos embora o velho Alcemo.

    Que esperas? Toma a flauta, principia;Eu quero acompanhar te; os horizontesJ se enchem de prazer, e de alegria:

    Parece, que estes prados, e estas fontesJ sabem, que o assunto da porfiaNise, a melhor pastora destes montes.

    XI

    Formosa Daliana; o seu cabelo,A testa, a sobrancelha peregrina;Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,Que todo o meu amor, o meu desv-lo:

    Parece escura a nove em paraleloDa sua branca face; onde a boninaAs cores misturou na cor mais fina,Que faz sobressair seu rosto belo.

  • Tanto os seus lindos olhos enamoram,Que arrebatados, como em doce encanto,Os que a chegam a ver, todos a adoram.

    Se algum disser, que a engrandeo tantoVeia, para desculpa dos que choramVeja a Eulina; e ento suspenda o pranto.

    XII

    Fatigado da calma se acolhiaJunto o rebanho sombra dos salgueiros;E o sol, queimando os speros oiteiros,Com violncia maior no campo ardia.

    Sufocava se o vento, que gemiaEntre o verde matiz dos sovereiros;E tanto ao gado, como aos pegureirosDesmaiava o calor do intenso dia.

    Nesta ardente estao, de fino amanteDando mostras Daliso, atravessavaO campo todo em busca de Violante.

    Seu descuido em seu fogo desculpava;Que mal feria o sol to penetrante,Onde maior incndio a alma abrasava.

    XIII

    Nise ? Nise ? onde ests ? Aonde espera

  • Achar te uma alma, que por ti suspira,Se quanto a vista se dilata, e gira,Tanto mais de encontrar te desespera!

    Ah se ao menos teu nome ouvir puderaEntre esta aura suave, que respira!Nise, cuido, que diz; mas mentira.Nise, cuidei que ouvia; e tal no era.

    Grutas, troncos, penhascos da espessura,Se o meu bem, se a minha alma em vs se esconde,Mostrai, mostrai me a sua formosura.

    Nem ao menos o eco me responde!Ah como certa a minha desventura!Nise ? Nise ? onde ests ? aonde ? aonde ?

    XIV

    Quem deixa o trato pastoril amadoPela ingrata, civil correspondncia,Ou desconhece o rosto da violncia,Ou do retiro a paz no tem provado.

    Que bem ver nos campos transladadoNo gnio do pastor, o da inocncia!E que mal no trato, e na aparnciaVer sempre o corteso dissimulado!

    Ali respira amor sinceridade;Aqui sempre a traio seu rosto encobre;Um s trata a mentira, outro a verdade.

  • Ali no h fortuna, que soobre;Aqui quanto se observa, variedade:Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!

    XV

    Formoso, e manso gado, que pascendoA relva andais por entre o verde prado,Venturoso rebanho, feliz gado,Que bela Antandra estais obedecendo;

    J de Corino os ecos percebendoA frente levantais, ouvis parado;Ou j de Alcino ao canto levantado,Pouco e pouco vos ides recolhendo;

    Eu, o msero Alfeu, que em meu destinoLamento as sem razes da desventura,A seguir vos tambm hoje me inclino:

    Medi meu rosto: ouvi minha ternura;Porque o aspecto, e voz de um peregrinoSempre faz novidade na espessura.

    XVI

    Toda a mortal fadiga adormeciaNo silncio, que a noite convidava;Nada o sono suavssimo alteravaNa muda confuso da sombra fria:

  • S Fido, que de amor por Lise ardia,No sossego maior no repousava;Sentindo o mal, com lgrimas culpavaA sorte; porque dela se partia.

    V Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;Querer enternec-na intil arte;Fazer o que ela quer, rigor forte:

    Mas de modo entre as penas se reparte;Que Lise rende a alma, a vida morte:Por que uma parte alente a outra parte.

    XVII

    Deixa, que por um pouco aquele monteEscute a glria, que a meu peito assiste:Porque nem sempre lastimoso, e tristeHei de chorar margem desta fonte.

    Agora, que nem sombra h no horizonte,Nem o lamo ao zfiro resiste,Aquela hora ditosa, em que me visteNa posse de meu bem, deixa, que conte.

    Mas que modo, que acento, que harmoniaBastante pode ser, gentil pastora,Para explicar afetos de alegria!

    Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,S costumada s vozes da agonia,

  • A frase do prazer ainda ignora!

    XVIII

    Aquela cinta azul, que o cu estendeA nossa mo esquerda, aquele grito,Com que est toda a noite o corvo aflitoDizendo um no sei qu, que no se entende;

    Levantar me de um sonho, quando atendeO meu ouvido um msero conflito,A tempo, que o voraz lobo malditoA minha ovelha mais mimosa ofende;

    Encontrar a dormir to preguiosoMelampo, o meu fiel, que na manadaSempre desperto est, sempre ansioso;

    Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:Mas de to triste agouro cuidadosoS me lembro de Nise, e de mais nada.

    XIX

    Corino, vai buscar aquela ovelha,Que grita l no campo, e dormiu fora;Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:Como vem to risonha, e to vermelha!

    J perdi noutro tempo uma parelhaPor teu respeito; queira Deus, que agora

  • No se me v tambm estoutra embora;Pois no queres ouvir, quem te aconselha.

    Que sono ser este to pesado!Nada responde, nada diz Corino:Ora em que mos est meu pobre gado!

    Mas ai de mim! que cego desatino.Como te hei de acusar de descuidado,Se toda a culpa tua meu destino!

    XX

    Ai de mim! como estou to descuidado!Como do meu rebanho assim me esqueo,Que vendo o trasmalhar no mato espesso,Em lugar de o tornar, fico pasmado!

    Ouo o rumor que faz desaforadoO lobo nos redis; ouo o sucessoDa ovelha, do pastor; e desconheoNo menos, do que ao dono, o mesmo gado:

    Da fonte dos meus olhos nunca enxutaA corrente fatal, fico indeciso,Ao ver, quanto em meu dano se executa.

    Um pouco apenas meu pesar suavizo,Quando nas serras o meu mal se escuta;Que triste alvio! ah infeliz Daliso!

    XXI

  • De um ramo desta faia penduradoVeja o instrumento estar do pastor Fido;Daquele, que entre os mais era aplaudido,Se alguma vez nas selvas escutado.

    Ser eternamente consagradoUm ai saudoso, um fnebre gemido;Enquanto for no monte repetidoO seu nome, o seu canto levantado.

    Se chegas a este stio, e te persuadeA algum pesar a sua desventura,Corresponde em afetos de piedade;

    Lembra te, caminhante, da ternuraDe seu canto suave; e uma saudadePor obsquio dedica sepultura.

    XXII

    Neste lamo sombrio, aonde a escuraNoite produz a imagem do segredo;Em que apenas distingue o prprio medoDo feio assombro a hrrida figura;

    Aqui, onde no geme, nem murmuraZfiro brando em fnebre arvoredo,Sentado sabre o tosco de um penedoChorava Fido a sua desventura.

    As lgrimas a penha enternecida

  • Um rio fecundou, donde manavaDnsia mortal a cpia derretida:

    A natureza em ambos se mudava;Abalava-se a penha comovida;Fido, esttua da dor, se congelava.

    XXIII

    Tu sonora corrente, fonte pura,Testemunha fiel da minha pena,Sabe, que a sempre dura, e ingrata AlmenaContra o meu rendimento se conjura:

    Aqui me manda estar nesta espessura,Ouvindo a triste voz da filomena,E bem que este martrio hoje me ordena,Jamais espero ter melhor ventura.

    Veio a dar me somente uma esperanaNova idia do dio; pois sabia,Que o rigor no me assusta, nem me cansa:

    Vendo a tanto crescer minha porfia,Quis mudar de tormento; e por vinganaFoi buscar no favor a tirania.

    XXIV

    Sonha em torrentes dgua, o que abrasadoNa sede ardente est; sonha em riqueza

  • Aquele, que no horror de uma pobrezaAnda sempre infeliz, sempre vexado:

    Assim na agitao de meu cuidadoDe um contnuo delrio esta alma presa,Quando tudo rigor, tudo aspereza,Me finjo no prazer de um doce estado.

    Ao despertar a louca fantasiaDo enfermo, do mendigo, se descobreDo torpe engano seu a imagem fria:

    Que importa pois, que a idia alvios cobre,Se apesar desta ingrata aleivosia,Quanto mais rico estou, estou mais pobre.

    XXV

    No de tigres as testas descarnadas,No de hircanos lees a pele dura,Por sacrifcio tua formosura,Aqui te deixo, Lise, penduradas:

    nsias ardentes, lgrimas cansadas,Com que meu rosto enfim se desfigura,So, bela ninfa, a vtima mais pura,Que as tuas aras guardaro sagradas.

    Outro as flores, e frutos, que te envia,Corte nos montes, corte nas florestas;Que eu rendo as mgoas, que por ti sentia:

  • Mas entre flores, frutos, peles, testas,Para adornar o altar da tirania,Que outra vtima queres mais, do que estas ?

    XXVI

    No vs, Nise, este vento desabrido,Que arranca os duros troncos? No vs esta,Que vem cobrindo o cu, sombra funesta,Entre o horror de um relmpago incendido?

    No vs a cada instante o ar partidoDessas linhas de fogo? Tudo cresta,Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,O raio a cada instante despedido.

    Ah! no temas o estrago, que ameaaA tormenta fatal; que o Cu destinaVejas mais feia, mais cruel desgraa:

    Rasga o meu peito, j que s to ferina;Vers a tempestade, que em mim passa;Conhecers ento, o que runa.

    XXVII

    Apressa se a tocar o caminhanteO pouso, que lhe marca a luz do dia;E da sua esperana se confia,Que chegue a entrar no porto o navegante;

    Nem aquele sem termo passa avante

  • Na longa, duvidosa e incerta via;Nem este atravessando a regio friaVai levando sem rumo o curso errante:

    Depois que um breve tempo houver passado,Um se ver sobre a segura areia,Chegar o outro ao stio desejado:

    Eu s, tendo de penas a alma cheia,No tenho, que esperar; que o meu cuidadoFaz, que gire sem norte a minha idia.

    XXVIII

    Faz a imaginao de um bem amado,Que nele se transforme o peito amante;Daqui vem, que a minha alma deliranteSe no distingue j do meu cuidado.

    Nesta doce loucura arrebatadoAnarda cuido ver, bem que distante;Mas ao passo, que a busco neste instanteMe vejo no meu mal desenganado.

    Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,E por fora da idia me convertoNa bela causa de meu fogo ativo;

    Como nas tristes lgrimas, que verto,Ao querer contrastar seu gnio esquivo,To longe dela estou, e estou to perto.

  • XXIX

    Ai Nise amada! se este meu tormento,Se estes meus sentidssimos gemidosL no teu peito, l nos teus ouvidosAchar pudessem brando acolhimento;

    Como alegre em servir-te, como atentoMeus votos tributara agradecidos!Por sculos de males bem sofridosTrocara todo o meu contentamento.

    Mas se na incontrastvel, pedra duraDe teu rigor no h correspondncia,Para os doces afetos de ternura;

    Cesse de meus suspiros a veemncia;Que fazer mais soberba a formosuraAdorar o rigor da resistncia.

    XXX

    No se passa, meu bem, na noite, e diaUma hora s, que a msera lembranaTe no tenha presente na mudana,Que fez, para meu mal, minha alegria.

    Mil imagens debuxa a fantasia,Com que mais me atormenta e mais me cansa:Pois se to longe estou de uma esperana,Que alvio pode dar me esta porfia!

  • Tirano foi comigo o fado ingrato;Que crendo, em te roubar, pouca vitria,Me deixou para sempre o teu retrato:

    Eu me alegrara da passada glria,Se quando me faltou teu doce trato,Me faltara tambm dele a memria.

    XXXI

    Estes os olhos so da minha amada:Que belos, que gentis, e que formosos!No so para os mortais to preciososOs doces frutos da estao dourada.

    Por eles a alegria derramada,Tornam-se os campos de prazer gostosos;Em zfiros suaves, e mimososToda esta regio se v banhada;

    Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendoDo rosto de meu bem as prendas belas,Dai alvios ao mal, que estou gemendo:

    Mas ah delrio meu, que me atropelas!Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,Eram (quem crera tal!) duas estrelas.

    XXXII

  • Se os poucos dias, que vivi contente,Foram bastantes para o meu cuidado,Que pode vir a um pobre desgraado,Que a idia de seu mal no acrescente!

    Aquele mesmo bem, que me consente,Talvez propcio, meu tirano fado,Esse mesmo me diz, que o meu estadoSe h de mudar em outro diferente.

    Leve pois a fortuna os seus favores;Eu os desprezo j; porque loucuraComprar a tanto preo as minhas dores:

    Se quer, que me no queixe, a sorte escura,Ou saiba ser mais firme nos rigores,Ou saiba ser constante na brandura.

    XXXIII

    Aqui sobre esta pedra, spera, e dura,Teu nome hei de estampar, Francelisa,A ver, se o bruto mrmore eternizaA tua, mais que ingrata, formosura.

    J cintilam teus olhos: a figuraAvultando j vai; quanto indecisaPasmou na efgie a idia, se divisaNo engraado relevo da escultura.

    Teu rosto aqui se mostra; eu no duvido,

  • Acuses meu delrio, quando tratoDe deixar nesta pedra o vulto erguido;

    tosca a prata, o ouro menos grato;Contemplo o teu rigor: oh que advertido!S me d esta penha o teu retrato!

    XXXIV

    Que feliz fora o mundo, se perdidaA lembrana de amor, de amor a glria,Igualmente dos gostos a memriaFicasse para sempre consumida!

    Mas a pena mais triste, e mais crescida ver; que em nenhum tempo transitriaEsta de amor fantstica vitria,Que sempre na lembrana repetida.

    Amantes, os que ardeis nesse cuidado,Fugi de amor ao venenoso intento,Que l para o depois vos tem guardado.

    No vos engane o infiel contentamento;Que esse presente bem, quando passado,Sobrar para idia do tormento.

    XXXV

    Aquele, que enfermou de desgraado,No espere encontrar ventura alguma:

  • Que o Cu ningum consente, que presuma,Que possa dominar seu duro fado.

    Por mais, que gire o esprito cansadoAtrs de algum prazer, por mais em suma,Que porfie, trabalhe, e se consuma,Mudana no ver do triste estado.

    No basta algum valor, arte, ou engenhoA suspender o ardor, com que se moveA infausta roda do fatal despenho:

    E bem que o peito humano as foras prove,Que h de fazer o temerrio empenho,Onde o raio do Cu, a mo de Jove.

    XXXVI

    Estes braos, Amor, com quanta glriaForam trono feliz na formosura!Mas este corao com que ternuraHoje chora infeliz esta memria!

    Quanto vs, trofu de uma vitria,Que o destino em seu templo dependura:De uma dor esta estampa s figura,Na f oculta, no pesar notria.

    Saiba o mundo de teu funesto enredo;Por que desde hoje um corao amanteDe adorar teus altares tenha medo:

  • Mas que empreendo, se ao passo, que constanteVou a romper a f do meu segredo,No h, quem acredite um delirante!

    XXXVII

    Continuamente estou imaginando,Se esta vida, que logro, to pesada,H de ser sempre aflita, e magoada,Se como o tempo enfim se h de ir mudando:

    Em golfos de esperana flutuandoMil vezes busco a praia desejada;E a tormenta outra vez no esperadaAo plago infeliz me vai levando.

    Tenho j o meu mal to descoberto,Que eu mesmo busco a minha desventura;Pois no pode ser mais seu desconcerto.

    Que me pode fazer a sorte dura,Se para no sentir seu golpe incerto,Tudo o que foi paixo, j loucura!

    XXXVIII

    Quando, formosa Nise, divididoDe teus olhos estou nesta distancia,Pinta a saudade, fora de minha nsia,Toda a memria do prazer perdido.

  • Lamenta o pensamento amortecidoA tua ingrata, prfida inconstncia;E quanto observa, s a vil jactnciaDo fado, que os trofus tem conseguido.

    Aonde a dita est? aonde o gosto?Onde o contentamento? onde a alegria,Que fecundava esse teu lindo rosto?

    Tudo deixei, Nise, aquele dia,Em que deixando tudo, o meu desgostoSomente me seguiu por companhia.

    XXXIX

    Breves horas, Amor, h, que eu gozavaA glria, que minha alma apetecia;E sem desconfiar da aleivosia,Teu lisonjeiro obsquio acreditava.

    Eu s minha dita me igualava;Pois assim avultava, assim crescia,Que nas cenas, que ento me oferecia,O maior gosto, o maior bem lograva;

    Fugiu, faltou-me o bem: j descompostaDa vaidade a brilhante arquitetura,V-se a runa ao desengano exposta:

    Que ligeira acabou, que mal segura!Mas que venho a estranhar, se estava postaMinha esperana em mos da formosura!

  • XL

    Quem chora ausente aquela formosura,Em que seu maior gosto deposita,Que bem pode gozar, que sorte, ou dita,Que no seja funesta, triste, e escura!

    A apagar os incndios da loucuraNos braos da esperana Amor me incita:Mas se era a que perdi, glria infinita,Outra igual que esperana me assegura!

    J de tanto delrio me despeo;Porque o meu precipcio encaminhadoPela mo deste engano reconheo.

    Triste! A quanto chegou meu duro fado!Se de um fingido bem no fao apreo,Que alvio posso dar a meu cuidado!

    XLI

    Injusto Amor, se de teu jugo isentoEu vira respirar a liberdade,Se eu pudesse da tua divindadeCantar um dia alegre o vencimento;

    No lograras, Amor, que o meu tormento,Vtima ardesse a tanta crueldade;Nem se cobrira o campo da vaidade

  • Desses trofus, que paga o rendimento:

    Mas se fugir no pude ao golpe ativo,Buscando por meu gosto tanto estrago,Por que te encontro, Amor, to vingativo?

    Se um tal despojo a teus altares trago,Siga a quem te despreza, o raio esquivo;Alente a quem te busca, o doce afago.

    XLII

    Morfeu doces cadeias estendia,Com que os cansados membros me enlaava;E quanto mal o corao passava,Em sonhos me debuxa a fantasia.

    Lise presente vi, Lise, que um diaTodo o meu pensamento arrebatava,Lise, que na minha alma impressa estava,Bem apesar da sua tirania.

    Corro a prend-la em amorosos laosBuscando a sombra, que apertar intento;Nada vejo (ai de mim!) perco os meus passos.

    Ento mais acredito o fingimento:Que ao ver, que Lise foge de meus braos,A cr pelo costume o pensamento.

    XLIII

  • Quem s tu? (ai de mim!) eu reclinadoNo seio de uma vbora! Ah tirana!Como entre as garras de uma tigre hircanaMe encontro de repente sufocado!

    No era essa, que eu tinha posta ao lado,Da minha Nise a imagem soberana?No era . . . mas que digo! ela me engana:Sim, que eu a vejo ainda no mesmo estado:

    Pois como no letargo a fantasiaTo cruel ma pintou, to inconstante,Que a vi.. . ? mas nada vi; que eu nada cria.

    Foi sonho; foi quimera; a um peito amanteAmor no deu favores um s dia,Que a sombra de um tormento os no quebrante.

    XLIV

    H quem confie, Amor, na seguranaDe um falsssimo bem, com que dourandoO veneno mortal, vs enganandoOs tristes coraes numa esperana!

    H quem ponha inda cego a confianaEm teu fingido obsquio, que tomandoLies de desengano, no v dandoPelo mundo certeza da mudana!

    H quem creia, que pode haver firmeza

  • Em peito feminil, quem advertidoOs cultos no profane da beleza!

    H inda, e h de haver, eu no duvido,Enquanto no mudar a NaturezaEm Nise a formosura, o amor em Fido.

    XLV

    A cada instante, Amor, a cada instanteNo duvidoso mar de meu cuidadoSinto de novo um mal, e desmaiadoEntrego aos ventos a esperana errante.

    Por entre a sombra fnebre, e distanteRompe o vulto do alivio mal formado;Ora mais claramente debuxado,Ora mais frgil, ora mais constante.

    Corre o desejo ao v-lo descoberto;Logo aos olhos mais longe se afigura,O que se imaginava muito perto.

    Faz-se parcial da dita a desventura;Porque nem permanece o dano certo,Nem a glria to pouco est segura

    XLVI

    No vs, Lise, brincar esse meninoCom aquela avezinha? Estende o brao;

  • Deixa-a fugir; mas apertando o lao,A condena outra vez ao seu destino?

    Nessa mesma figura, eu imagino,Tens minha liberdade; pois ao passo,Que cuido, que estou livre do embarao,Ento me prende mais meu desatino.

    Em um contnuo giro o pensamentoTanto a precipitar-me se encaminha,Que no vejo onde pare o meu tormento.

    Mas fora menos mal esta nsia minha,Se me faltasse a mim o entendimento,Como falta a razo a esta avezinha.

    XLVII

    Que inflexvel se mostra, que constanteSe v este penhasco! j feridoDo proceloso vento, e j batidoDo mar, que nele quebra a cada instante!

    No vi; nem hei de ver mais semelhanteRetrato dessa ingrata, a que o gemidoJamais pode fazer, que enternecidoSeu peito atenda s queixas de um amante.

    Tal s, ingrata Nise: a rebeldia,Que vs nesse penhasco, essa durezaH de ceder aos golpes algum dia:

  • Mas que diversa tua natureza!Dos contnuos excessos da porfia,Recobras novo estmulo fereza.

    XLVIII

    Traidoras horas do enganoso gosto,Que nunca imaginei, que o possua,Que ligeiras passastes! mal podiaDeixar aquele bem de ser suposto.

    J de parte o tormento estava posto;E meu peito saudoso, que isto via,As imagens da pena desmentia,Pintando da ventura alegre o rosto.

    Desanda ento a fbrica elevada,Que o plcido Morfeu tinha erigido,Das espcies do sono fabricada:

    Ento , que desperta o meu sentido,Para observar na pompa destroada,Verdadeira a runa, o bem fingido.

    XLIX

    Os olhos tendo posto, e o pensamentoNo rumo, que demanda, mais distante;As ondas bate o Grego Navegante,Entregue o leme ao mar, a vela ao vento

  • Em vo se esfora o harmonioso acentoDa sereia, que habita o golfo errante;Que resistindo o esprito constante,Vence as lisonjas do enganoso intento.

    Se pois, ninfas gentis, rompe a CupidoO arco, a flecha, o dardo, a chama acesaDe um peito entre os heris esclarecido;

    Que vem buscar comigo a nscia empresa,Se inda mais, do que Ulisses atrevido,Sei vencer os encantos da beleza!

    L

    Memrias do presente, e do passadoFazem guerra cruel dentro em meu peito;E bem que ao sofrimento ando j feito,Mais que nunca desperta hoje o cuidado.

    Que diferente, que diverso estado este, em que somente o triste efeitoDa pena, a que meu mal me tem sujeito,Me acompanha entre aflito, e magoado!

    Tristes lembranas! e que em vo componhoA memria da vossa sombra escura!Que nscio em vs a ponderar me ponho!

    Ide-vos; que em to msera loucuraTodo o passado bem tenho por sonho;S certa a presente desventura.

  • LI

    Adeus, dolo belo, adeus, querido,Ingrato bem; adeus: em paz te fica;E essa vitria msera publica,Que tens barbaramente conseguido.

    Eu parto, eu sigo o norte aborrecidoDe meu fado infeliz: agora ricaDe despojos, a teu desdm aplicaO rouco acento de um mortal gemido.

    E se acaso alguma hora menos duraLembrando-te de um triste, consultaresA srie vil da sua desventura;

    Na imensa confuso de seus pesaresAchars, que ardeu simples, ardeu puraA vtima de uma alma em teus altares.

    LII

    Que molesta lembrana, que cansadaFadiga esta! vejo-me oprimido,Medindo pela magoa do perdidoA grandeza da glria j passada.

    Foi grande a dita sim; porem lembrada,Inda a pena maior de a haver perdido;Quem no fora feliz, se o haver sidoFaz, que seja a paixo mais avultada!

  • Propcio imaginei ( bem verdade)O malvolo fado: oh quem puderaConhecer logo a hipcrita piedade!

    Mas que em vo esta dor me desespera,Se j entorpecida a enfermidadeInda agora o remdio se pondera!

    LIII

    Ou j sobre o cajado te reclines,Venturoso pastor, ou j tomandoPara a serra, onde as cabras vais chamando,A fugir os meus ais te determines.

    L te quero seguir, onde examinesMais vivamente um corao to brando;Que gosta s de ouvir-te, ainda quandoMais sem razo me acuses, mais crimines.

    Que te fiz eu, pastor ? em que condenasMinha sincera f, meu amor puro?As provas, que te dei, sero pequenas?

    Queres ver, que esse monte spero, e duroSabe, que s causa tu das minhas penas?Pergunta-lhe; ouvirs, o que te juro.

    LIV

  • Ninfas gentis, eu sou, o que abrasadoNos incndios de Amor, pude alguma hora,Ao som da minha ctara sonora,Deixar o vosso imprio acreditado.

    Se vs, glrias de amor, de amor cuidado,Ninfas gentis, a quem o mundo adora,No ouvis os suspiros, de quem chora,Ficai-vos; eu me vou; sigo o meu fado.

    Ficai-vos; e sabei, que o pensamentoVai to livre de vs, que da saudadeNo receia abrasar-se no tormento.

    Sim; que solta dos laos a vontade,Pelo rio hei de ter do esquecimento este, aonde jamais achei piedade.

    LV

    Em profundo silncio j descansaTodo o mortal; e a minha triste idiaSe estende, se dilata, se recreiaPelo espaoso campo da lembrana.

    Fatiga-se, prossegue, em vo se cansa;E neste vrio giro, em que se enleia,Ao duvidoso passo j receia,Que lhe possa faltar a segurana.

    Que diferente tudo est notando!Que perplexo as imagens do perdidoNum e noutro despojo vem achando!

  • Este no o templo (eu o duvido)Assim o afirma, assim o est mostrando:Ou morreu Nise, ou este no Fido.

    LVI

    Tu, ninfa, quando eu menos penetradoDas violncias de Amor vivia isento,Propondo-te ento bela a meu tormento,Foste doce ocasio de meu cuidado.

    Roubaste o meu sossego, um doce agrado,Um gesto lindo, um brando acolhimentoForam somente o nico instrumento,Com que deixaste o triunfo assegurado.

    J no espero ter felicidade,Salvo se for aquela, que confio,Por amar-te, apesar dessa impiedade.

    Em prmio dos suspiros, que te envio,Ou modera o rigor da crueldade,Ou torna-me outra vez meu alvedrio.

    LVII

    Bela imagem, emprego idolatrado,Que sempre na memria repetido,Ests, doce ocasio de meu gemido,Assegurando a f de meu cuidado.

  • Tem-te a minha saudade retratado;No para dar alvio a meu sentido;Antes cuido; que a mgoa do perdidoQuer aumentar coa pena de lembrado.

    No julgues, que me alento com trazer-teSempre viva na idia; que a vinganaDe minha sorte todo o bem perverte.

    Que alvio em te lembrar minha alma alcana,Se do mesmo tormento de no ver-te,Se forma o desafogo da lembrana ?

    LVIII

    Altas serras, que ao Cu estais servindoDe muralhas, que o tempo no profana,Se Gigantes no sois, que a forma humanaEm duras penhas foram confundindo?

    l sobre o vosso cume se est rindoO Monarca da luz, que esta alma engana;Pois na face, que ostenta, soberana,O rosto de meu bem me vai fingindo.

    Que alegre, que mimoso, que brilhanteEle se me afigura! Ah qual efeitoEm minha alma se sente neste instante!

    Mas ai! a que delrios me sujeito!Se quando no Sol vejo o seu semblante,

  • Em vs descubro penhas o seu peito?

    LIX

    Lembrado estou, penhas, que algum dia,Na muda solido deste arvoredo,Comuniquei convosco o meu segredo,E apenas brando o zfiro me ouvia.

    Com lgrimas meu peito enterneciaA dureza fatal deste rochedo,E sobre ele uma tarde triste, e qudoA causa de meu mal eu escrevia.

    Agora torno a ver, se a pedra duraConserva ainda intacta essa memria,Que debuxou ento minha escultura.

    Que vejo! esta a cifra: triste glria!Para ser mais cruel a desventura,Se far imortal a minha histria.

    LX

    Valha-te Deus, cansada fantasia!Que mais queres de mim? que mais pretendes?Se quando na esperana mais te acendes,Se desengana mais tua porfia!

    Vagando regies de dia em dia,Novas conquistas, e trofus empreendes:

  • Ah que conheces mal, que mal entendes,Onde chega do fado a tirania!

    Trata de acomodar-te ao movimentoDessa roda volvel, e descansaSobre to fatigado pensamento.

    E se inda crs no rosto da esperana,Examina por dentro o fingimento;E vers tempestade o que bonana.

    LXI

    Deixemo-nos, Algano, de porfia;Que eu sei o que tu s, contra a verdadeSempre hs de sustentar, que a divindadeDestes campos Brites, no Maria!

    Ora eu te mostrarei inda algum dia,Em que est teu engano: a novidade,Que agora te direi, , que a cidadePor melhor, do que todas a avalia.

    H pouco, que encontrei l junto ao monteDous pastores, que estavam conversando,Quando passaram ambas para a fonte;

    Nem falaram em Brites: mas tomandoPara um cedro, que fica bem defronte,O nome de Maria vo gravando.

  • LXII

    Torno a ver-vos, montes; o destinoAqui me torna a pr nestes oiteiros;Onde um tempo os gabes deixei grosseirosPelo traje da Crte rico, e fino.

    Aqui estou entre Almendro, entre Corino,Os meus fiis, meus doces companheiros,Vendo correr os mseros vaqueirosAtrs de seu cansado desatino.

    Se o bem desta choupana pode tanto,Que chega a ter mais preo, e mais valia,Que da cidade o lisonjeiro encanto;

    Aqui descanse a louca fantasia;E o que t agora se tornava em pranto,Se converta em afetos de alegria.

    LXIII

    J me enfado de ouvir este alarido,Com que se engana o mundo em seu cuidado;Quero ver entre as peles, e o cajado,Se melhora a fortuna de partido.

    Canse embora a lisonja ao que feridoDa enganosa esperana anda magoado;Que eu tenho de acolher-me sempre ao ladoDo velho desengano apercebido.

  • Aquele adore as roupas de alto preo,Um siga a ostentao, outro a vaidade;Todos se enganam com igual excesso.

    Eu no chamo a isto j felicidade:Ao campo me recolho, e reconheo,Que no h maior bem, que a soledade.

    LXIV

    Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!Parece, que se cansa, de que a um tristeHaja de aparecer: quanto resisteA seu raio este stio tenebroso!

    No pode ser, que o giro luminosoTanto tempo detenha: se persisteAcaso o meu delrio! se me assisteAinda aquele humor to venenoso!

    Aquela porta ali se est cerrando;Dela sai um pastor: outro assobia,E o gado para o monte vai chamando.

    Ora no h mais louca fantasia!Mas quem anda, como eu, assim penando,No sabe, quando noite, ou quando dia.

    LXV

    Ingrata foste, Elisa; eu te condeno

  • A injusta sem-razo; foste tirana,Em renderes, belssima serrana,A tua liberdade ao nscio Almeno.

    Que achaste no seu rosto de sereno,De belo, ou de gentil, para inumanaTrocares pela dele esta choupana,Em que tinhas o abrigo mais ameno?

    Que canto em teu louvor entoaria?Que te podia dar o pastor pobre?Que extremos, mais do que eu, por ti faria?

    O meu rebanho estas montanhas cobre:Eu os excedo a todos na harmonia;Mas ah que ele feliz! Isto lhe sobre

    LXVI

    No te assuste o prodgio: eu, caminhante,Sou uma voz, que nesta selva habito;Chamei-me o pastor Fido; de um delitoMe veio o meu estrago; eu fui amante.

    Uma ninfa perjura, uma inconstanteNeste estado me ps: do peito aflito,Por eterno castigo, arranco um grito,Que desengane o peregrino errante.

    Se em ti se d piedade, passageiro,(Que assim o pede a minha sorte escura)Atende ao meu aviso derradeiro:

  • Lgrimas no te peo, nem ternura:Por voto um desengano, te requeiroQue consagres minha sepultura.

    LXVII

    No te cases com Gil, bela serrana;Que um vil, um infame, um desastrado;Bem que ele tenha mais devesa, e gado,A minha condio mais humana.

    Que mais te pode dar sua cabana,Que eu aqui te no tenha aparelhado?O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado;Tudo aqui achars nesta choupana:

    Bem que ele tange o seu rabil grosseiro,Bem que te louve assim, bem que te adore,Eu sou mais extremoso, e verdadeiro.

    Eu tenho mais razo, que te enamore:E se no, diga o mesmo Gil vaqueiro:Se mais, que ele te cante, ou que eu te chore.

    LXVIII

    Apenas rebentava no orienteA clara luz da aurora, quando Fido,O repouso deixando aborrecido,Se punha a contemplar no mal, que sente.

  • V a nuvem, que foge ao transparenteAnncio do crepsculo luzido;E v de todo em riso convertidoO horror, que dissipara o raio ardente.

    Por que (diz) esta sorte, que se alcanaEntre a sombra, e a luz, no sinto agoraNo mal, que me atormenta, e que me cansa?

    Aqui toda a tristeza se melhora:Mas eu sem o prazer de uma esperanaPasso o ano, e o ms, o dia, a hora.

    LXIX

    Se memria trouxeres algum dia,Belssima tirana, dolo amado,Os ternos ais, o pranto magoado,Com que por ti de amor Alfeu gemia;

    Confunda-te a soberba tirania,O dio injusto, o violento desagrado,Com que atrs de teu olhos arrastadoTeu ingrato rigor o conduzia.

    E j que enfim to msero o fizeste,V-lo-s, cruel, em prmio de adorar-te,V-lo-s, cruel, morrer; que assim quiseste.

    Dirs, lisonjeando a dor em parte:Fui-te ingrata, pastor; por mim morreste;

  • Triste remdio a quem no pode amar-te!

    LXX

    Breves horas, que em rpida porfiaIdes seguindo infausto movimento,Oh como o vosso curso foi violento,Quando soubestes, que eu vos possua!

    J crdito vos dava; porque viaAvultar meu feliz contentamento:Que mui fcil num triste estar atentoAos enganos, que pinta a fantasia.

    Logrou-se o vosso fim; que foi levar-meDa falsa glria, do fingido gostoAo cume, donde venho a despenhar-me:

    Assim a lei do fado tem disposto,Que haja o instantneo bem de lisonjear-me;Por que o estrago, me diga, que suposto.

    LXXI

    Eu cantei, no o nego, eu algum diaCantei do injusto amor o vencimento;Sem saber, que o veneno mais violentoNas doces expresses falso encobria.

    Que amor era benigno, eu persuadiaA qualquer corao de amor isento;

  • Inda agora de amor cantara atento,Se lhe no conhecera a aleivosia.

    Ningum de amor se fie: agora cantoSomente os seus enganos; porque sinto,Que me tem destinado estrago tanto.

    De seu favor hoje as quimeras pinto:Amor de uma alma pesaroso encanto;Amor de um corao labirinto.

    LXXII

    J rompe, Nise, a matutina auroraO negro manto, com que a noite escura,Sufocando do Sol a face pura,Tinha escondido a chama brilhadora.

    Que alegre, que suave, que sonora,Aquela fontezinha aqui murmura!E nestes campos cheios de verduraQue avultado o prazer tanto melhora!

    S minha alma em fatal melancolia,Por te no poder ver, Nise adorada,No sabe inda, que coisa alegria;

    E a suavidade do prazer trocada,Tanto mais aborrece a luz do dia,Quanto a sombra da noite lhe agrada.

  • LXXIII

    Quem se fia de Amor, quem se asseguraNa fantstica f de uma beleza,Mostra bem, que no sabe, o que firmeza,Que protesta de amante a formosura.

    Anexa a qualidade de perjuraAo brilhante esplendor da gentileza,Mudvel por lei da natureza,A que por lei de Amor menos dura.

    Deste, Fbio, que vs, desordenado,Ingrato proceder se que examinasA razo, eu a tenho decifrado:

    So as setas de Amor to peregrinas,Que esconde no gentil o golpe irado;Para lograr pacfico as runas.

    LXXIV

    Sombrio bosque, stio destinado habitao de um infeliz amante,Onde chorando a mgoa penetrantePossa desafogar o seu cuidado;

    Tudo quieto est, tudo calado;No h fera, que grite; ave, que cante;Se acaso sabers, que tens dianteFido, aquele pastor desesperado!

  • Escuta o caso seu: mas no se atreveA erguer a voz; aqui te deixa escritoNo tronco desta faia em cifra breve:

    Mudou-se aquele bem; hoje delitoLembrar-me de Marfisa; era mui leve:No h mais, que atender; tudo est dito.

    LXXV

    Clara fonte, teu passo lisonjeiroPra, e ouve-me agora um breve instante;Que em paga da piedade o peito amanteTe ser no teu curso companheiro.

    Eu o primeiro fui, fui o primeiro,Que nos braos da ninfa mais constantePude ver da fortuna a face erranteJazer por glria de um triunfo inteiro.

    Dura mo, inflexvel crueldadeDivide o lao, com que a glria, a ditaAtara o gosto ao carro da vaidade:

    E para sempre a dor ter nalma escrita,De um breve bem nasce imortal saudade,De um caduco prazer mgoa infinita.

    LXXVI

    Enfim te hei de deixar, doce correnteDo claro, do suavssimo Mondego;

  • Hei de deixar-te enfim; e um novo pegoFormar de meu pranto a cpia ardente.

    De ti me apartarei; mas bem que ausente,Desta lira sers eterno emprego;E quanto influxo hoje a dever-te chego,Pagar de meu peito a voz cadente.

    Das ninfas, que na fresca, amena estnciaDas tuas margens midas ouvia,Eu terei sempre nalma a consonncia;

    Desde o prazo funesto deste diaSero fiscais eternos da minha nsiaAs memrias da tua companhia.

    LXXVII

    No h no mundo f, no h lealdade;Tudo , Fbio, torpe hipocrisia;Fingido trato, infame aleivosiaRodeiam sempre a cndida amizade.

    Veste o engano o aspecto da verdade;Porque melhor o vcio se avalia:Porm do tempo a msera porfia,Duro fiscal, lhe mostra a falsidade.

    Se talvez descobrir-se se procuraEsta de amor fantstica aparncia, como luz do Sol a sombra escura:

  • Mas que muito, se mostra a experincia,Que da amizade a torre mais seguraTem a base maior na dependncia!

    LXXVIII

    Campos, que ao respirar meu triste peitoMurcha, e seca tornais vossa verdura,No vos assuste a plida figura,Com que o meu rosto vedes to desfeito.

    Vs me vistes um dia o doce efeitoCantar do Deus de Amor, e da ventura;Isso j se acabou; nada j dura;Que tudo vil desgraa est sujeito.

    Tudo se muda enfim: nada h, que sejaDe to nobre, to firme segurana,Que no encontre o fado, o tempo, a inveja.

    Esta ordem natural a tudo alcana;E se algum um prodgio ver deseja,Veja meu mal, que s no tem mudana.

    LXXIX

    Entre este lamo, o Lise, e essa corrente,Que agora esto meus olhos contemplando,Parece, que hoje o cu me vem pintandoA mgoa triste, que meu peito sente.

    Firmeza a nenhum deles se consente

  • Ao doce respirar do vento brando;O tronco a cada instante meneando,A fonte nunca firme, ou permanente.

    Na lquida poro, na vegetanteCpia daquelas ramas se figuraOutro rosto, outra imagem semelhante:

    Quem no sabe, que a tua formosuraSempre mvel est, sempre inconstante,Nunca fixa se viu, nunca segura?

    LXXX

    Quando cheios de gosto, e de alegriaEstes campos diviso florescentes,Ento me vm as lgrimas ardentesCom mais nsia, mais dor, mais agonia.

    Aquele mesmo objeto, que desviaDo humano peito as mgoas inclementes,Esse mesmo em imagens diferentesToda a minha tristeza desafia.

    Se das flores a bela contexturaEsmalta o campo na melhor fragrncia,Para dar uma idia da ventura;

    Como, Cus, para os ver terei constncia,Se cada flor me lembra a formosuraDa bela causadora de minha nsia?

  • LXXXI

    Junto desta corrente contemplandoNa triste falta estou de um bem que adoro;Aqui entre estas lgrimas, que choro,Vou a minha saudade alimentando.

    Do fundo para ouvir-me vem chegandoDas claras hamadrades o coro;E desta fonte ao murmurar sonoro,Parece, que o meu mal esto chorando.

    Mas que peito h de haver to desabrido,Que fuja minha dor! que serra, ou monteDeixar de abalar-se a meu gemido!

    Igual caso no temo, que se conte;Se at deste penhasco endurecidoO meu pranto brotar fez uma fonte.

    LXXXII

    Piedosos troncos, que a meu terno prantoComovidos estais, uma inimigaE quem fere o meu peito, quem me obrigaA tanto suspirar, a gemer tanto.

    Amei a Lise; Lise o doce encanto,A bela ocasio desta fadiga;Deixou-me; que quereis, troncos, que eu digaEm um tormento, em um fatal quebranto?

  • Deixou-me a ingrata Lise: se alguma horaVs a vdes talvez, dizei, que eu cegoVos contei... mas calai, calai embora.

    Se tanto a minha dor a elevar chego,Em f de um peito, que to fino adora,Ao meu silncio o meu martrio entrego.

    LXXXIII

    Polir na guerra o brbaro gentio,Que as leis quase ignorou da natureza,Romper de altos penhascos a rudeza,Desentranhar o monte, abrir o rio;

    Esta a virtude, a glria, o esforo, o brioDo Russiano Heri, esta a grandeza,Que igualou de Alexandre a fortaleza,Que venceu as desgraas de Dario:

    Mas se a lei do herosmo se procura,Se da virtude o esprito se atende,Outra idia, outra mxima o segura:

    L vive, onde no ferro no se acende;Vive na paz dos povos, na brandura:Vs a ensinais, Rei; em vs se aprende.

    XCVIII

  • Destes penhascos fez a naturezaO bero, em que nasci! oh quem cuidara,Que entre penhas to duras se criaraUma alma terna, um peito sem dureza!

    Amor, que vence os tigre por empresaTomou logo render-me; ele declaraContra o meu corao guerra to rara,Que no me foi bastante a fortaleza.

    Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,A que dava ocasio minha brandura,Nunca pude fugir ao cego engano:

    Vs, que ostentais a condio mais dura,Temei, penhas, temei; que Amor tirano,Onde h mais resistncia, mais se apura.

    XCIX

    Parece, ou eu me engano, que esta fonteDe repente o licor deixou turvado;O cu, que estava limpo, e azulado,Se vai escurecendo no horizonte:

    Por que no haja horror, que no aponteO agouro funestssimo, e pesado,At de susto j no pasta o gado;Nem uma voz se escuta em todo o monte.

    Um raio de improviso na celesteRegio rebentou; um branco lrio

  • Da cor das violetas se reveste;

    Ser delrio! no, no delrio.Que isto, pastor meu? que anncio este?Morreu Nise (ai de mim!) tudo martrio.

    C Musas, canoras musas, este cantoVs me inspirastes, vs meu tenro alentoErguestes brandamente quele assentoQue tanto, musas, prezo, adoro tanto.

    Lgrimas tristes so, mgoas, e pranto,Tudo o que entoa o msico instrumento;Mas se o favor me dais, ao mundo atentoEm assunto maior farei espanto.

    Se em campos no pisados algum diaEntra a ninfa, o pastor, a ovelha, o touro,Efeitos so da vossa melodia;

    Que muito, musas, pois, que em fausto agouroCresam do ptrio rio margem friaA imarcescvel hera, o verde louro!

  • EPICDIO

    A MORTE DE SALCIO

    EPICDIO II

    Esprito imortal, tu que rasgandoEssa esfera de luzes, vais pisandoDo fresco Elsio a regio bendita,Se nesses campos, onde a glria habita,Centro do gosto, do prazer estncia,Entrada se permite mortal nsiaDe uma dor, de um suspiro descontente,Se l relquia alguma se consenteDesta cansada, humana desventura,No te ofendas, que a vtima to pura,Que em meus ternos soluos te ofereo,Busque seguir-te, por lograr o preoDaquela f, que h muito consagradaNas aras da amizade foi jurada.

    Bem sabes, que o suavssimo perfume,Que arder pode do amor no casto lume,Os suores no so deste terreno,Que odorfero sempre, e sempre ameno,Em coalhadas pores Chipre desata:Mais que os tesouros, que feliz recataA arbica regio, amor estimaOs incensos, que a f, que a dor anima,Abrasados no fogo da lembrana.Esta pois a discreta segurana,Com que chega meu peito saudoso,A acompanhar teu passo venturoso,

  • Oh sempre suspirado, sempre belo,Esprito feliz: a meu desveloNo negues, eu te rogo, que constanteViva a teu lado sombra vigilante.

    Inda que estejas de esplendor cercada,Alma feliz, na lcida morada,Que na pompa dos raios luminosaPises aquela esfera venturosa,Que a teu merecimento o Cu destina;Nada impede, que a chama peregrinaDe uma saudade aflita, e descontente,Te assista acompanhando juntamente.Antes razo ser, que debuxadaEm meu tormento aquela flor prostrada,Sol em teus resplendores te eternizes,E Clcie em minha mgoa me divises;Entre raios crescendo, entre lamentos,Em mim a dor, em ti os luzimentos.

    Se porm a infestar da Elsia esferaA contnua, brilhante primaveraChegar s pode o lastimoso rostoDeste meu triste, fnebre desgosto,Eu desisto do empenho, em que deliro;E as asas encurtando a meu suspiro,J no consinto, que seu vo ardenteA acompanhar-te suba diligente:Antes no mesmo horror, na sombra escuraDa minha inconsolvel desventuraEu quero lastimar meu fado tanto,Que sufocado em urnas de meu pranto,

  • A to funesto, lquido dispndio,A chama apague deste ardente incndio.

    Indigno sacrifcio de uma pena,Que chega a perturbar a paz serenaDe umas almas, que em campos de alegriaGozam perptua luz, perptuo dia;Que adorando a concrdia, desconhecemOs sustos, que da inveja os braos tecem;Que ignoram o rigor do frio inverno;E que em brando concerto, em jogo alternoGozam toda a suavssima carreiraDe uma sorte risonha, e lisonjeira.

    Ali, entre os favnios mais suaves,A consonncia ofenderei das aves,Que arrebatando alegres os ouvidos,Discorrem entre os crculos luzidosDe toda a vegetante, amena estncia.Ali pois as memrias de minha nsiaNo entraro, Salcio: que no queroSer contigo to brbaro, e to fero,Que um bem, em cuja posse ests ditoso,Triste magoe, infeste lastimoso.

    C vivera comigo a minha pena,Penhor inextinguvel, que me ordenaA sempre viva, e imortal lembrana.Ela me est propondo na vinganaDe meu fado inflexvel, Salcio,Aquele infausto, trgico exerccio,Que os humanos progressos acompanha.Quem cuidara, que fosse to estranha,

  • To prfida, to mpia a fora sua,Que maltratar pudesse a idade tua,Adornada no s daquele raio,Que anima a flor, que se produz em maio;Mas inda de frutferos abonos,Que antecipa a cultura dos outonos!

    Cinco lustros o Sol tinha dourado(Breves lustros enfim, Salcio amado),Quando o fio dos anos encolhendo,Foi tropos a teia desfazendo:Um golpe, e outro golpe preparava:Para empreg-lo a fora lhe faltava;Que mil vezes a mo, ou de respeito,De mgoa, ou de temor, no ps o efeito.Desatou finalmente o peregrino

    Fio, que j tecera. Ah se ao destinoPudera embaraar nossa piedade!No te glories, trgica deidade,De um triunfo, que levas to precioso:Desar de teu brao indecoroso;Que inda que a fria tua o tem roubado,A nossa dor o guarda restaurado.

    Vive entre ns ainda na memria,A que ele nos deixou, eterna glria;Dispndios preciosos de um engenho,Ou j da natureza desempenho,Ou para a nossa dor s concedido.Salcio, o pastor nosso, to querido,Prodgio foi no raro do talento,Sobre todo o mortal merecimento;

  • E prodgio tambm com ele agoraSe faz a mgoa, que o lastima e chora.

    A lutuosa vtima do prantoMelhor, que o imarcescvel amaranto,Te cerca, alma grande, a urna triste;O nosso sentimento aqui te assiste,Em nnias entoando magoadasHinos saudosos, e canes pesadas.

    Quisramos na campa, que te cobre,Bem que o tormento ainda mais se dobre,Gravar um epitfio, que declare,Quem o tmulo esconde; e bem que apareQualquer engenho a pena, em nada atina.Vive outra vez: das cinzas da runaRessuscita, Salcio; dita; escreve;Seja o epitfio teu: a cifra breveMostrar no discreto, e no polido,Que Salcio, o que aqui vive escondido.

  • FBULA

    FBULA DO RIBEIRO DO CARMO

    SONTO

    A vs, canoras ninfas, que no amadoBero viveis do plcido Mondego,Que sois da minha lira doce emprego,Inda quando de vs mais apartado;

    A vs do ptrio rio em vo cantadoO sucesso infeliz eu vos entrego;E a vtima estrangeira, com que chego,Em seus braos acolha o vosso agrado.

    Vde a histria infeliz, que Amor ordena,Jamais de fauno ou de pastor ouvida,Jamais cantada na silvestre avena.

    Se ela vos desagrada, por sentida,Sabei, que outra mais feia em minha penaSe v entre estas serras escondida.

    Aonde levantado Gigante, a quem tocara,Por decreto fatal de Jove irado,A parte extrema, e raraDesta inculta regio, vive Itamonte,Parto da terra, transformado em monte;

    De uma penha, que esposaFoi do invicto Gigante,Apagando Lucina a luminosa,

  • A lmpada brilhante,Nasci; tendo em meu mal logo to dura,Como em meu nascimento, a desventura.

    Fui da florente idadePela cndida estradaOs ps movendo com gentil vaidade;E a pompa imaginadaDe toda a minha glria num s diaTrocou de meu destino a aleivosia.

    Pela floresta, e pradoBem polido mancebo,Girava em meu poder to confiado,Que at do mesmo FeboImaginava o trono peregrinoAjoelhado aos ps do meu destino.

    No ficou tronco, ou penha,Que no desse tributoA meu brao feliz; que j desdenha,Desptico, absoluto,As tenras flores, as mimosas plantas,Em rendimentos mil, em glrias tantas.

    Mas ah! Que Amor tiranoNo tempo, em que a alegriaSe aproveitava mais do meu engano;Por aleivosa via Introduziu cruel a desventura,Que houve de ser mortal, por no ter cura.

    Vizinho ao bero caro,Aonde a ptria tive,

  • Vivia Eulina, esse prodgio raro,Que no sei, se ainda vive,Para braso eterno da beleza,Para injria fatal da natureza.

    Era Eulina de AucoloA mais prezada filha;Aucolo to feliz, que o mesmoApolo Se lhe prostra, se humilhaNa cpia da riqueza florescente,Destro na lira, no cantar ciente.

    De seus primeiros anosNa beleza nativa,Humilde Aucolo, em ritos no profanos,A bela ninfa esquivaEm voto ao sacro Apolo consagrara;E dele em prmio tantos dons herdara.

    Trs lustros, todos douro,A gentil formosura,Vinha tocando apenas, quando o louro,Brilhante Deus procuraAcreditar do pai o culto atento,Na grata aceitao do rendimento.

    Mais formosa de EulinaRespirava a beleza;De ouro a madeixa rica, e peregrinaDos coraes faz presa;A cndida poro da neve belaEntre as rosadas faces se congela.

  • Mas inda, que a venturaLhe foi to generosa,Permite o meu destino, que uma dura,Condio rigorosaOu mais aumente enfim, ou mais ateieTanto esplendor; para que mais me enleie.

    No sabe o culto ardenteDe tantos sacrifciosAbrandar o seu nume: a dor veemente,Tecendo precipcios,J quase me chegava a extremo tanto,Que o menor mal era o mortal quebranto.

    Vendo intil o empenhoDe render-lhe a fereza,Busquei na minha indstria o meu despenho:Com ingrata destrezaFiei de um roubo (oh msero delito!)A ventura de um bem, que era infinito.

    Sabia eu, como tinha Eulina por costume,(Quando o maior planeta quase vinhaJ desmaiando o lume,Para dourar de luz outro horizonte)Banhar-se nas correntes de uma fonte.

    A fugir destinadoCom o furto precioso,Desde a ptria, onde tive o bero amado;Recolhi numerosoTesouro, que roubara diligenteA meu pai, que de nada era ciente.

  • Assim pois prevenidoDe um bosque fonte perto,Esperava o portento apetecidoDa ninfa; e descobertoMe foi apenas, quando (oh dura empresa!)Chego; abrao a mais rara gentileza.

    Quis gritar; oprimidaA voz entre a gargantaApolo? diz, Apol... a voz partidaLhe nega forca tanta:Mas ah! Eu no sei como, de repenteDensa nuvem me pe do bem ausente.

    Inutilmente ao ventoVou estendendo os braos:Buscar nas sombras o meu bem intento:Onde a meus ternos laos. . . !Onte te escondes, digo, amada Eulina?Quem tanto estrago contra mim fulmina?

    Mas ia por diante;Quando entre a nuvem densaAparecendo o corpo mais brilhante,Eu vejo (oh dor imensa!)Passar a bela ninfa, j roubadaDo Nmen, a quem fora consagrada.

    Em seus braos a tinhaO louro Apolo presa;E j ludbrio da fadiga minha,Por amorosa empresa,

  • Era despojo da deidade ingrataO bem, que de meus olhos me arrebata.

    Ento j da pacinciaAs rdeas desatadas,Toco de meus delrios a inclemncia:E de todo apagadasDo acerto as luzes, busco a morte mpia,De um agudo punhal na ponta fria.

    As entranhas rasgando,E sobre mim caindo,Na funesta lembrana soluando,De todo confundindoVou a verde campina; e quase exangueEntro a banhar as flores de meu sangue.

    Inda no satisfeitoO Nmen soberano,Quer vingar ultrajado o seu respeito;Permitindo em meu dano.Que em pequena corrente convertidoCorra por estes campos estendido.

    E para que a lembranaDe minha desventuraTriunfe sabre a trgica mudanaDos anos, sempre pura,Do sangue, que exalei, bela Eulina,A cor inda conservo peregrina.

    Porm o dio tristeDe Apolo mais se acende;

  • E sobre o mesmo estrago, que me assiste,Maior runa empreende:Que chegando a ser mpia uma deidade,Excede toda a humana crueldade.

    Por mais desgraa minha,Dos tesouros preciososChegou notcia, que eu roubado tinha,Aos homens ambiciosos;E crendo em mim riquezas to estranhas,Me esto rasgando as mseras entranhas.

    Polido o ferro duroNa abrasadora chamaSobre os meus ombros bate to seguro,Quem nem a dor, que clama,Nem o estril desvelo da porfiaDesengana a ambiciosa tirania.

    Ah mortais! At quandoVos cega o pensamento!Que mquinas estais edificandoSobre to louco intento?Como nem inda no seu reino imundoVive seguro o Bratro profundo!

    Idolatrando a runaL penetrais o centro,Que Apolo no banhou, nem viu Lucina;E das entranhas dentroDa profanada terra,Buscais o desconcerto, a fria, a guerra.

  • Que exemplos vos no ditaDo ambicioso empenhoDe Polidoro a msera desdita!Que perigo o lenho,Que entregastes primeiro ao mar salgado,Que desenganos vos no tem custado!

    Enfim sem esperana,Que alvio me permita,Aqui chorando estou minha mudana;E a enganadora dita,Para que eu viva sempre descontente,Na muda fantasia est presente.

    Um murmurar sonoroApenas se me escuta;Que at das mesmas lgrimas, que choro,A Deidade AbsolutaNo consente ao clamor, se esforce tanto,Que mova compaixo meu terno pranto.

    Daqui vou descobrindoA fbrica eminenteDe uma grande cidade; aqui polindoA desgrenhada frente,Maior espao ocupo dilatado,Por dar mais desafogo a meu cuidado.

    Competir no pretendoContigo, cristalinoTejo, que mansamente vais correndo:Meu ingrato destino

  • Me nega a prateada majestade,Que os muros banha da maior cidade.As ninfas generosas,Que em tuas praias giram, plcido Mondego, rigorosasDe ouvir-me se retiram;Que de sangue a corrente turva, e feiaTeme Ericina, Aglaura, e Deiopia.

    No se escuta a harmoniaDa temperada avenaNas margens minhas; que a fatal porfiaDa humana sede ordena,Se atenda apenas o rudo horrendoDo tosco ferro, que me vai rompendo.

    Porm se Apolo ingratoFoi causa deste enleio,Que muito, que da Musa o belo tratoSe ausente de meu seio,Se o deus, que o temperado coro tece,Me foge, me castiga, e me aborrece!

    Enfim sou, qual te digo,O Ribeiro prezado,De meus engenhos a fortuna sigo;Comigo sepultadoEu choro o meu despenho; eles sem curaChoram tambm a sua desventura.

  • CLOGAS

    ARNCIO

    CLOGA V

    Frondoso e Alcino

    Fron. Em vo te ests cansando o dia inteiro,Alcino, em perguntar, que significaEste, que vs cortar, triste letreiro:

    Ele no debalde: aqui se explicaTudo, quanto h de grande, novo, e raro,Na pobre aldeia, e na cidade rica.

    Nada pode escapar do golpe avaro...(Diz cifra breve): agora entende;Que deste dito o assunto eu no declaro.

    Alc. Se o meu juzo o caso compreende,Essa letra, que entalhas, e que admiro,Com a morte de Arncio fala, ou prende.

    Fron. Ah! Que arrancas um msero suspiroDo centro de minha alma; o nome amadoMe faz deixar a vida, que respiro.

    Alc. Eu bem via, que estava o teu cuidado,Frondoso meu, lembrando a triste morteDesse caro pastor, to estimado.

    Fron. E quando esperas tu, que o fatal corte,

  • Que de mim separou to doce amigo,Possa romper de amor o lao forte!

    Primeiro se ver nascer o trigoNo cu; dar primeiro a terra estrelas,Que tenha esta lembrana algum perigo.

    Alc. Triste, e funesto caso! As ninfas belasDo ptrio Ribeiro tanto choraram,Que inda alvio no h, nem gosto entre elas.

    Os gados largos dias no pastaram;E mugindo maneira de sentidos,A pele sobre os ossos encostaram.

    Os mochos pelas faias estendidosEnchendo a terra, e cu de mil agouros,Espalharam tristssimos grasnidos.

    Os campos, que t ali se viam lourosCom o matiz vistoso das searas,Perderam de repente seus tesouros.

    Fron. Esses sinais, Alcino, se reparas,Dizem cousa maior, que sentimentosConsagrados da morte sobre as aras.

    Quando h mostras no cu, quando h portentosNa terra, algum segredo h, no sei onde,Que no para humanos pensamentos.

    Ao meu conhecimento no se escondeA grandeza do golpe: mas alcano,

  • Que a tanta perda a dor no corresponde.

    De te buscar exemplos me no canso;S te lembro porm, que o tronco duroFaz mais estrago que o arbusto manso.

    Alc. O que queres dizer, eu conjeturo:No vime, e no carvalho h igual runa:Igual a conseqncia eu no seguro.

    Aquele cai sem dano, este destinaFatal estrago a tudo, o que est postoDebaixo dele. isto? Ora imagina.

    Fron. Jove aparte de ns tanto desgosto:Baste, para avivar nossa saudade,O ser cortado em flor aquele rosto.

    Contente-se da morte a crueldadeEm nos levar com passo to ligeiroUma to bela, to mimosa idade.

    Roubou-nos um pastor, que era o primeiroEntre os nossos do monte; ele nos davaAs justas leis no campo, e no terreiro.

    Ele as dvidas nossas concertava;E sendo maioral, por arte nova,Com respeito o agrado temperava.

    De mil virtudes suas nos deu prova;Sempre a bem dirigindo os nossos passos.Oh quanto esta lembrana a dor renova!

  • Alc. Ai! E com quanta mgoa nos teus braosEu vi, Frondoso meu, que Arncio esteveDesatando da vida os doces laos!

    Fron. Meu pensamento, Amigo, no se atreveA lembrar-se (ai de mim!) da mortal hora.Em que vi acabar vida to breve.

    Quem fora duro seixo, ou bronze fora,Para animar agora na lembranaAquela imagem, com que esta alma chora!

    Eu vi, Alcino, eu vi, que na mudanaQue do caduco e eterno bem fazia,A alma tinha cheia de esperana.

    Tudo, o que era mortal, aborrecia:A cpia dos seus gados, o cajado,(Bem que era de ouro fino) em nada havia.

    Em vo o molestava o doce estadoDa honra, e da grandeza: a Jove entregueO esprito seguia outro cuidado.

    Mas ai, Alcino! A voz j no prossegue;Que tudo, o que a memria vem trazendo,Receio, Amigo, que a matar-me chegue.

    Alc. As ninfas do Mondego estou j vendoDescerem para ns com triste pranto.Ou eu me engano, ou elas vm dizendo:

  • Se do lrio, da murta, e do amarantoCercada deve ser a sepulturaDe Arncio, a ns nos toca ofcio tanto.

    Ns o criamos, com feliz ternura,Dando-lhe o mel, e o leite: a ns nos tocaMandar o corpo belo terra dura.

    Fron. De outro lado igualmente se provocaO Tejo (onde ele viu a luz primeira):E as ninfas do centro mido convoca.

    A mim s se me deve a glria inteira(Fala o soberbo Tejo) eu o demando:Minha h de ser esta honra derradeira.

    Aqui lhe estou uma urna preparando,Coberta de um cipreste; onde a memriaSeu nome viver sempre guardando.

    Por mais que voe a idade transitria,Nunca se h de apagar aquele afeto,Que de Arncio consagro triste histria.

    Durars entre ns, Pastor discreto,Renovando a lembrana de Corino,Que da nossa saudade inda objeto:

    Ele te deu o ser; tu peregrinoRetrato de seus dotes, consolavasNosso desejo, to constante, e fino.

    Aquele caro irmo, que tanto amavas,

  • Anio, digo, aquele, a quem deviasToda a felicidade, que gozavas,

    Hoje lamenta teus saudosos dias;Hoje chora comigo: eu lhe desejoAlvio a to cansadas agonias.

    Alc. Oh! Contente-se embora o claro TejoDe haver ao mundo dado, quem lhe ganhaFama, e nome a seu reino assaz sobejo.

    Contente-se o Mondego, que na estranhaVentura de educ-lo, deu ao mundo,Quem lhe soube adquirir glria tamanha.

    O fado, que conhece inda o mais fundo,Quer, que guarde seu corpo a turva areiaDe outro rio, mais triste, e mais profundo.

    Do rio, que seu curso no refreiaAt chegar, onde entra a grande costa,Que banha do Brasil salgada veia.

    Rio das Velhas se chama (se repostaBuscamos nos antigos, a pinturaDas drcades na histria se v posta).

    Os primeiros, que entraram na espessuraDos speros sertes, dizem, que acharamTrs brbaras, j velhas, nesta altura.

    Fron. Das trs Parcas melhor eles tomaramO nome desse rio; se verdade,

  • Que elas a vida humana governaram.

    Triste sejas, rio: a divindadeDe Apolo, que em ti cria o amvel ouro,Se aparte do teu seio em toda a idade.

    No sejas da ambio rico tesouro:Girar se vejam sobre as praias tuasOs brancos cisnes no, aves dagouro.

    Do inverno as enxurradas levem cruasAs sementeiras, que teus campos criam:Deixem s sobre a terra as pedras nuas.

    Os pobres navegantes, que se fiamDessas funestas guas, desde agoraConheam a traio, que no temiam.

    Alc. E contra quem, Frondoso, inda em tal horaSe armam as pragas tuas! Um delrioS para extremo tal desculpa fora.

    Se Jove quem nos manda este martrio,Soframos o seu golpe: ao pastor beloDerramemos em cima o goivo, o lrio.

    O nosso Ribeiro traz o modeloDo enterro, que dispe: ns entretantoDemos a conhecer nosso desvelo.

    Envolto o corpo em um cndido manto,Que distingue de Deus o braso nobre,Aqui se oferece para o nosso pranto.

  • Enquanto pois o corpo a terra cobre,Seguindo o teu princpio deixa, Amigo,Que um voto lhe consagre um pastor pobre,Um voto, que se escreva em seu jazigo.

    Soneto

    Nada pode escapar do golpe avaro,Alcino meu que a Parca endurecidaCorta igualmente os fios de uma vidaAo pastor pobre, ao corteso preclaro.

    Cresa embora esse tronco altivo, e raro,Ostentao fazendo mais luzida;Viva embora entre humilde, entre abatida,Essa planta, a que o nome em vo declaro.

    Tudo h de achar o fim: bem que a vaidadeEm uma, e outra glria faa estudo,Nada escapa fatal voracidade.

    Eu, que chego a pens-lo, fico mudo;E s tiro por certa esta verdade:Que, se Arncio acabou, acaba tudo.

    POLIFEMO

    CLOGA VIII

    linda Galatia,Que tantas vezes quantas

  • Essa mida morada busca Febo,Fazes por esta areia,Que adore as tuas plantasO meu fiel cuidado: j que EreboAs sombras descarrega sobre o mundo,Deixa o reino profundo:Vem, Ninfa, a meus braos;Que neles tece Amor mais ternos laos.

    Vem, Ninfa adorada;Que cis enamorado,Para lograr teu rosto precioso,Bem que tanto te agrada,Tem menos o cuidado,Menos sente a fadiga, e o rigoroso,Implacvel rumor, que eu nalma alento.Nele o merecimento .Minha dita assegura;Mas ah! que ele de mais tem a ventura.

    Esta frondosa faiaA qualquer hora (ai triste!)Me observa neste stio vigilante:Vizinho a esta praiaEm uma gruta assiste,Quem no pode viver de ti distante.Pois de noite, e de diaAo mar, ao vento s feras desafiaA voz do meu lamento:Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.No sei, que mais pretendes.Desprezas meu desvelo;E excedendo o rigor da crueldade,

  • Com a chama do zeloO corao me acendes:No assim cruel a divindade.Abranda extremo tanto;Vem a viver nos mares do meu pranto:Talvez sua ternuraTe faa a natureza menos dura.

    E se no basta o excessoDe amor para abrandar-te,Quanto rebanho vs cobrir o monte,Tudo, tudo ofereo;Esta obra do divino Alcimedonte,Este branco novilho,Daquela parda ovelha tenro filho,De dar-te se contenta,Quem guarda amor, e zelos apascenta.

    BELISA E AMARLIS

    CLOGA XV

    Corebo e Palemo.

    Cor. Agora, que do alto vem caindo A noite aborrecida, e s gostosa Para quem o seu mal est sentindo;

    Repitamos um pouco a trabalhosaFadiga do passado; e neste assentoGozemos desta sombra deleitosa.

    O brando respirar do manso vento

  • Por entre as frescas ramas, a douraDessa fonte, que move o passo lento;

    A doce quietao dessa espessura,O silncio das aves, tudo, amigo,Ouvir a nossa mgoa hoje procura.

    Principia, Palemo; que eu contigo memria trarei, quanto deixamosNo sossego feliz do estado antigo.

    Que esperas, caro amigo? Ss estamos:Bem podemos falar: porque os extremosDe nossa dor s ns testemunhamos.

    Pal. No vi depois, que o monte discorremos, H tantos anos, sempre atrs do gado, Noite to clara, como a que hoje temos:

    Mas muito estranho ser de teu agrado,Que despertemos inda a cinza friaDa lembrana do tempo j passado.

    Oh! no sei, o que pedes: bom seria,Que desse qualquer bem no cobre alentoO estrondo, que talvez adormecia.

    Loucura despertar no pensamentoO fogo extinto j de uma memria:No sabes, quanto brbaro o tormento.

    Em nos lembrarmos da perdida glria

  • Nada mais conseguimos, que ao gemidoDar novo impulso na passada histria.

    No se desperte o msero rudo;Que veremos, amigo, o desenganoDe um bem caduco, de um prazer fingido.

    Cor. Debalde a cautela; que o tirano, Contnuo atormentar de uma lembrana No o pode abrandar o esforo humano.

    V, como o teu ardor em vo se cansa;E quanto mais te negas a meu rogo,Despertas mais dos fados a mudana.

    Buscar no esquecimento o desafogo no saber, que neste infausto empenhoSe ateia da memria mais o fogo.

    Pal. Diga-o minha alma: porque nela tenho Impressa sempre a imagem de uma dita, Em que firmava o gesto o desempenho.

    Recompensa uma dor quase infinitaA grandeza do bem; a minha histriaDeixando em vivo sangue nalma escrita.

    Quero estragar mil vezes a memria,Meu amado Corebo, e a cada instanteTorna mais viva a imagem de uma glria.

    Oh tirana penso de um peito amante!Que s fora feliz, se a gua bebera

  • (Quando perde o seu bem) do Lete errante;

    Se na idia pintada no trouxeraA contnua lembrana de um veneno,Que Amor dissimulado oferecera.

    Ah! Que soluo, amigo, estalo, e peno;Quando me lembra a hora, em que o tiranoFado roubou-me estado to sereno.

    Cor. Caminhas, Palemo, de teu dano Como insensvel: Vs, que no tem modo Da funesta lembrana o golpe insano.

    Pal. Bem me advertes, Corebo: eu me acomodo Ao pensamento teu; e divertida Fique a memria minha j de todo.

    Cor. Ao cntico sonoro te convida Esta flauta, que fama em ns guardada, Que foi de Alfeu um tempo possuda.

    Pal. Eu a tomo, e com ela se te agrada, Alterno o verso; e seja aquele, que antes Cantamos l na nossa retirada.

    Cor. Se me lembra, assim era: Vinde, errantes Sombras, a sufocar-nos: porque a inveja s fiscal dos mseros amantes.

    Pal. Ficai, belas ovelhas: assim seja Convosco mais propcio o duro fado; Que pastor mais feliz vos guie, e reja.

  • Cor. Aqui te deixo, rstico cajado; Que algum tempo, apesar do empenho cego, De ningum, s de mim, foste logrado.

    Pal. Tu, Amarlis, adorado emprego, Toma conta de duas ovelhinhas, Que mais que todas amo: eu tas entrego.

    Cor. Vers, Belisa, entre essas prendas minhas, Que eu teci junto s margens dessa fonte, De vime desigual duas cestinhas.

    Pal. De ti, que ficas pois, saudoso monte, Me despeo; e talvez sem esperana De tornar a ver mais este horizonte.

    Cor. Ficai-vos em pacfica bonana, ninfas; que perdido o vosso agrado, Me ausento a lamentar tanta mudana.

    Pal. Adeus, pastores; vs, que em doce estado Tantas vezes nos bailes, na floresta Me vistes sempre alegre, e sossegado;

    Cor. De vs me aparta agora a lei funesta; E o tormento, a que esta alma est rendida, Bem o meu sentimento manifesta.

    Pal. Hei de trazer na idia sempre unida A imagem de Amarlis, que venero, E que estimo inda mais, que a prpria vida.

  • Cor. Alegria jamais nenhuma espero; Antes nesta saudosa soledade, Por ltimo remdio, a morte quero.

    Pal. Adeus, bela Amarlis; a vontade, Por ser nico bem, levo abrasada Na chama inextinguvel da saudade.

    Cor. Adeus, Belisa; adeus, ninfa adorada: Veja-se neste campo eternamente A tua formosura celebrada.

    Pal. Basta j de cantar: que do oriente J rompe o Sol vermelho; e o manso gado Os balidos esfora de impaciente.

    As nuvens vo correndo; e a este ladoO resplendor se v, com que a AuroraVai escondendo o rosto magoado.

    Das lgrimas saudosas com que choraSe derrama o orvalho; aves, e plantasDespertam, levantando a voz sonora.

    Cor. Eu guiarei o gado se tu cantas: Que prosseguindo tu, de meu tormento O excesso ao menos, e o rigor quebrantas. No me negues, se podes, esse alento.

    PESCADORES

    CLOGA XVI

  • Alicuto e Marino

    J vinha a manh claraDourando os horizontes,E os empinados montesCom a rosada luz, que os prateara,Mostravam na campinaO lrio, o goivo, a rosa, e a bonina.

    Nas ondas cintilavaO rosto luminoso,Com que de Cntia o esposoA pobre terra clara luz mandava,Formando um transparente,Na verde relva, resplendor luzente.

    Ambos os pescadores,Alicuto e Marino,A quem o Deus MeninoAteou na gua o fogo dos amores,As redes recolhiam;E de bastante peixe o barco enchiam.

    A praia procurandoVinham to mansamente,Que nem o mar se senteFerido de um, e outro remo brando,Quando do seu destinoComeou a queixar-se assim Marino.

    Alicuto o acompanhaCoa sonora harmonia,Que, h tempos, aprendia

  • De um pastor, que viera da montanha;E a seu modo vertendoPara a ninfa do mar, ia dizendo.

    Mar. Se assim como a manh clara, e brilhante da minha adorada o belo rosto, Como naufraga o peito vacilante, No incerto mar de um fnebre desgosto! Eu vejo, que se alegram neste instante Cheios de glria, de prazer, e gosto, Este mar, esta praia, esta ribeira: S no h cousa, que alegrar me queira.

    Alic. Deiopia adorada, a luz do dia, Como funesta nasce a um desgraado! Quanto me foi suave a noite fria, Tanto o rosto da Aurora me pesado: O silncio da noite dirigia O sossego tambm de meu cuidado; E apenas foge o horror da sombra escura, Quando mais viva toco a desventura.

    Mar. Que importa, que em contnua sentinela Eu ande os crespos mares descobrindo,

    Se ingrata sempre a luz da minha estrelaMe vai desses teus olhos dividindo!O vento, que suave entesa a vela,A meu ligeiro barco a estrada abrindo,Solcito me guia a esta praia;Onde sem ver-te o corao desmaia.

    Alic. Trs dias h, que giro, amada minha,Desesperado nesta mortal nsia

  • De ver o prmio, que guardado tinhaA meu peito fiel tua inconstncia.Outra ventura, outra merc convinha,De tanto amor, fatigada instnciaE quando o no merea na verdade,Quem h, que no te estranhe a falsidade!

    Mar. Abrasadas as ondas deste pegoTenho j com meus ais, com meus suspiros;Ele me escuta; eu cada vez mais cegoAcuso a sem-razo de teus retiros.De meus males ao passo, que o navego,O peso sente, e se revolve em giros;E at as brutas penhas mais pesadasEsto de meu tormento magoadas.

    Alic. Qual o peixe inocente, que enganadoBebe no curvo anzol a morte feia,Sem ver, que o pescador lhe tem armadoEscondida priso, em que se enleia;Ou qual o navegante, que enlevadoNo canto est da prfida sereia;E prova sem cautela a morte duraEntre os penhascos, onde o mar murmura.

    Mar. Qual foge o grande monstro, que o mar cria,Do arpo ferido, em sangue o mar banhando;Quando cuida, que escapa morte fria,O alento pouco, e pouco vai deixando;O destro pescador, que a presa fiaDo agudo ferro, a linha ento largando,Quando de todo j exangue o sente,

  • O barco chega, e o colhe mais contente.

    Alic. Tal eu, doce inimiga, sem cautelaAdorava a traio de um falso engano,Que no teu rosto, sempre ingrata, e bela.Sonhe dissimular Amor tiranoAcreditando aquela indstria, aquelaMal escondida imagem de meu dano,Imaginei, que o que era aleivosia,De um fino, e puro corao nascia.

    Mar. No de outra sorte a brbara destrezaDessa homicida mo, dessa alma ingrata,Depois de assegurar minha firmeza,De mim se ausenta, e com rigor me mata:Ah! quanto temo, ninfa, que a ferezaDe tua condio, que assim me trata,Nestas ondas em penha convertida,Pague o delito de roubar-me a vida!

    Alic. De que serve, que eu traga do mar fundo,A preo de fadiga to pesada,Esta, que em tal excesso estima o mundo,Rama, que fora dgua encarnada?De que serve; que l do mais profundoVenha oferecer-te a prola engraada,Se encontro sem-razes, iras, rigores?Se os teus desprezos sempre so maiores?

    Mar. Para trazer-te o peixe delicado,No rio escondo as nassas, ninfa minha;E ao levantar seu peso desejado,

  • Vejo saltar a truta e a tainha:No me fica tambm no mar salgadoO retorcido bzio, e a conchinha;Que supondo ser cousa, que te agrade,Tudo te vem render minha vontade.

    Alic. Em pensamentos mil eu me desfao,Ao ver traio to brbara, e to crua;Rompo o vestido, o corpo despedaoQuando me lembra a falsidade tua:Loucuras mil, mil desatinos fao,Sem pejo, e sem vergonha; em pele nuaCorro esta praia, giro esta ribeira;E ningum h, que socorrer me queira.

    Mar. Mas que isto, Alicuto? O nosso canto quase que vai passando a impacincia.

    Alic. Que h de ser, se o meu msero quebranto Se apodera de mim com tal violncia?

    Mar. Mal haja o ter amor, que pode tanto.

    Alic. Mal haja o conhecer uma inclemncia.

    Mar. Que intentar-lhe fugir desatino.

    Alic. Que assim o sinto eu, e tu, Marino.

    Mar. Temos chegado ao porto: larga o remo;Salta na praia tu; que eu aqui fico;A ver, se vejo a ninfa, por quem gemo,E a quem as minhas lgrimas dedico.

  • Alic. No fiques no, Marino: porque temoMaior mgoa; que a dor, que sacrifico.Carreguemos o peixe; que na aldeiaTalvez estejam Glauce; e Deiopia.

    Assim se acomodavam;E o peixe dividindoEntre ambos, vo subindoUm levantado oiteiro, a que chegavam,Deixando entanto postaNo barco a vara, a rede ao Sol exposta.

  • EPSTOLA

    FILENO A ALGANO

    EPSTOLA II

    Depois, Algano amado,Que por mais verde, e plcido terreno,Deixaste o stio ameno,Onde alegre pascia o manso gado,Tomou minha saudadeTriste posse no horror da soledade.

    De todos os pastoresFoi mui sentida a tua ausncia dura:Que o bem de uma venturaSe se perde, inda os mesmos moradoresDa choa, que os abriga,Sabem sentir: oh quanto a dor obriga!

    Pouco importa a cultura,E agudeza maior do pensamento:Que a fora do tormentoSobre a mesma rudeza o estrago apura;E quem melhor discorre,, quem buscando alvio, menos morre.

    Talvez mais lisonjeiaEsta no meu pesar nscia jactncia;Por ser minha ignornciaAlimento, em que a mgoa mais se ateia:Que a ser mais entendido,No fora o meu tormento to crescido.

  • No somente o efeitoDe to ingrato mal em ns sentimos;Mas, se bem advertimos,Tudo ao grande pesar ficou sujeito:Que fez a ausncia tuaA saudade em ns razo comua.

    O rio, que algum diaLquida habitao das ninfas era,A cor, que a primaveraNestes frondosos lamos vestia,Tudo perde o seu brio:No tem o lamo cor, ninfas o rio.

    No se ouvem j sonoras,(Quando argindo o adltero condena),Queixas da Filomena;E at do tempo as carregadas horasCorrem mais dilatadas;E parece, que a dor as faz pesadas.

    tudo horror; tudoUma plida imagem da tristeza.Habita esta asperezaO fnebre silncio, o assombro mudo:Que tanto pode, tantoDe tua ausncia o msero quebranto.

    Ah meu Algano caro,Doce consolao do campo ameno!O teu triste FilenoBusca debalde alvio: que o reparo

  • Da saudade est postoNa imagem s de teu alegre rosto:

    No s 0 seu alento,Porm inda dos campos a alegria,A clara luz do dia,Das aves o canoro, e doce acento,E quanto tem mudadoDa tua ausncia o desumano estado.

    Apressa, apressa o passo,Com que hoje alegras as regies do Tejo;Rompe ia o embarao,Que se interpe vista do desejo:E possa alegre ver-te,Algano meu, quem sabe merecer-te.

  • ROMANCES

    L I S E

    ROMANCE I

    Pescadores do Mondego,Que girais por essa praia,Se vs enganais o peixe,Tambm Lise vos engana.

    Vs ambos sois pescadores;Mas com diferena tanta,Vs ao peixe armais com redes,Ela coolhos vos arma.

    Vs rompeis o mar undoso:Para assegurar a caa;Ela aqui no porto espera,Para lograr a filada.

    Vs dissimulais o enredo,Fingindo no anzol a traa;Ela vos expe patentesAs redes, com que vos mata.

    Vs perdeis a noite, e diaEm contnua vigilncia;Ela em um s breve instanteConsegue a presa mais alta.

    Guardai-vos, pois, pescadores,Dos olhos dessa tirana;

  • Que para trofus de LiseDespojos de Alcemo bastam.

    Enquanto as ondas ligeirasDesta corrente to claraInundarem mansamenteEstes lamos, que banham;

    Eu espero, que a memriaO conserve nestas guas,Por padro dos desenganos,Por triunfo de uma ingrata.

    E na frondosa ribeiraDeste rio, triste a almaGirar sempre avisando,Quem lhe soube ser to falsa.

    ANTANDRA

    ROMANCE II

    Pastora do branco arminho,No me sejas to ingrata:Que quem veste de inocente,No se emprega em matar almas.

    Deixa o gado, que conduzes;No o guies montanha:Porque em poder de uma fera,No pode haver segurana.

  • Mas ah! Que o teu privilgio, louco, quem no repara:Pois suavizando o martrio,Obrigas mais, do que matas.

    Eu fugirei; eu, pastora,Tomarei somente as armas;E ho de conspirar comigoTodo o campo, toda a praia.

    Tenras ovelhas,Fugi de Antandra;Que flor fingida,Que spides cria, que venenos guarda.

    ALTIA

    ROMANCE III

    Aquele pastor amante,Que nas midas ribeirasDeste cristalino rioGuiava as brancas ovelhas;

    Aquele, que muitas vezesAfinando a doce avena,Parou as ligeiras guas,Moveu as brbaras penhas;

    Sobre uma rocha sentadoCaladamente se queixa:Que para formar as vozes,

  • Teme, que o ar as perceba.

    Os olhos levanta, e buscaDesde o tosco assento aquelaDistancia, aonde, discorro,Que tem a origem da pena:

    E depois que esmorecidosDa dor os olhos, na imensaExplicao do tormento,Sufocada a luz, se cegam;

    S s lgrimas recorre,Deixando-se ouvir apenasDaquelas rvores mudas,Daquela mimosa relva!

    Com torpe aborrecimentoA companhia desprezaDos pastores, e das ninfas;Nada quer; tudo o molesta.

    Erguido sabre o penhascoJ v, se grande a eminncia:Por que busque o fim da vida,Na violncia de uma queda.

    J louco se precipita;E j se suspende: a mesmaApetncia do tormentoMaior tormento lhe ordena.

    Pastores, vde a Daliso;

  • Vede o estado qual sejaDe um pastor, que em outro tempoGlria destes montes era:

    Vde, como sem cuidadoPastar pelos montes deixaAs ovelhas oferecidasAs iras de qualquer fera.

    Vde, como desta rama,Que fnebre est, suspensaDeixou a lira, que h pouco,Pulsava pela floresta.

    Vde, como j no gostaDa barra, dana, e carreira;E ao pastoril exerccioDe todo j se rebela.

    Segundo o volto, que nesteRstico penedo ostenta,Cuido, que o fizeram loucoDesprezos da bela Altia.

    A N A R D A

    ROMANCE IV

    Aonde levas, pastora,Essas tenras ovelhinhas?Que para seu mal lhes bastaO seres tu, quem as guia.

  • Acaso vo para o vale,Ou para a serra vizinha?Vo acaso para o monte,Que l mais distante fica?

    Vo porventura, pastora,A beber as cristalinas,Doces guas, que discorremPor entre estas verdes silvas?

    Ah! Quem sabe, triste gado,Onde a maior homicidaDos coraes, e das almas,Convosco agora caminha!

    Presumir, que cuidadosaVos conduz serra altiva,Imaginar, que ribeiraVos vai levando propcia;

    No o posso, no o posso;Quando a conjetura avisa,Que mal as ovelhas guarda;Quem as almas traz perdidas.

    Porm se a vossa venturaDe mais nobre se acredita,Se podeis vencer de Anarda. . .

    A condio sempre esquiva;

  • Ela vos conduza: os passosSegui da minha inimiga;Enquanto para cant-laMeu instrumento se afina.

    Mais que Ttiro suave,Aqui sentado sombriaCopa desta verde faia,Chorarei as penas minhas.

    Farei, com que soe o bosqueA seu nome: esta campina,Vereis, como s de AnardaA doce glria respira;

    Essas rvores, e troncosConcorrendo harmoniaDo meu canto, Orfeu nos vales,Cuidaro, que ressuscita.

    Eu repetirei contenteA cantilena, que tinhaCom Alcimedon composto,Quando no monte vivia.

    Direi aquelas cadncias,Que casca de uma cortiaEncomendou meu cuidado,De meu sangue com a tinta.

    Pastora (se bem me lembraAssim meu verso dizia),Mais branca, que a mesma nove,

  • Mais bela, do que a bonina;

    Eu sou, quem estas ribeiras,Sou, quem estes campos pisa,Atrs de uma alma, que roubas,To presa, como rendida.

    No te peco, que ma entregues:Porque quem ta sacrifica,De meu voluntrio cultoFaz ostentao mais fina:

    Quero s, que ma no deixes,Que a no desampares; indaQuando de Letes saudosoVires a margem sombria.

    Mais seguro, e mais constante,Que aquela mimosa ninfa,Que no cncavo das penhas,Por lei do destino, habita.

    Eco serei destas rochas,Aonde os clamores firamDos coraes, que se queixam,Das almas, que se lastimam.

    Assim, cndidas ovelhas,Assim clamarei: sozinhasCorrei embora contentesO vale, o monte, a campina.

  • CANONETAS

    LIRA DESPREZO

    Que busco, infausta lira,Que busco no teu canto,Se ao mal, que cresce tanto,Alvio me no ds?

    A alma, que suspira,J foge de escutar-te:Que tu tambm s parteDe meu saudoso mal.

    II

    Tu foste (eu no o nego)Tu foste em outra idadeAquela suavidade,Que Amor soube adorar;

    De meu perdido empregoTu foste o engano amado:Deixou-me o meu cuidado;Tambm te hei de deixar.

    III

    Ah! De minha nsia ardentePerdeste o caro imprio:Que j noutro hemisfrioMe vejo respirar.

  • O peito j no senteAquele ardor antigo:Porque outro norte sigo,Que fino amor me d.

    IV

    Amei-te (eu o confesso)E fosse noite, ou dia,Jamais tua harmoniaMe viste abandonar.

    Qualquer penoso excesso,Que atormentasse esta alma,A teu obsquio em calmaEu pude serenar.

    V

    Ah! Quantas vezes, quantasDo sono despertando,Doce instrumento brando,Te pude temperar!

    S tu (disse) me encantas;Tu s, belo instrumento,Tu s o meu alento;Tu o meu bem sers.

    VI

    Vai-te; que j no quero,Que devas a meu peito

  • Aquele doce efeito,Que me deveste j.

    Contigo j mais feroS trato de quebrar-te:Tambm hs de ter parteNo estrago de meu mal.

    VII

    No sabers desta almaSegredos, que sabias,Naqueles doces dias,Que Amor soube alentar.

    Se aquela ingrata calmaFoi s tormenta escura,Na minha desventuraTambm naufragars.

    VIII

    Nise, que a cada instanteTeu nmeros ouvia,Ou fosse noite, ou dia,Jamais no te ouvir.

    Cansado o peito amanteSomente ao desenganoO culto soberanoPretende tributar.

    IX

  • De todo enfim deixadaNo horror deste arvoredo,Em ti seu tosco enredoAracne tecer.

    Em paz se fique a amada,Por quem teu canto inspiras;E tu, que a paz me tiras,Tambm te fica em paz.

    A LIRA PALINDIA

    Vem, adorada Lira,Inspira-me o teu canto:S tu a impulso tantoTodo o prazer me ds.

    J a alma no suspira;Pois chega a escutar-te:De todo, ou j em parteVai-se ausentando o mal.

    II

    No cuides, que te negoTributos de outra idade:A tua suavidade Eu sei inda adorar;

    Desse perdido empregoEu busco o encanto amado;Amando o meu cuidado,

  • Jamais te hei de deixar.

    III

    V, de meu fogo ardente,Qual o ativo imprio:Que em todo este hemisfrioSe atende respirar.

    O corao, que senteAquele incndio antigo,No mesmo mal, que sigo,Todo o favor me d.

    IV

    Se tanto bem confesso,Ou seja noite, ou dia,Jamais essa harmoniaEspero abandonar.

    No h de a tanto excesso,No h de, no, minha almaDesta amorosa calmaMeus olhos serenar.

    V

    Ah! Quantas nsias, quantasAgora despertando,A teu impulso brandoEu venho a temperar!

  • No gosto, em que me encantas,Suavssimo instrumento,Em ti s busco o alento;Que eterno me sers.

    VI

    Contigo partir queroAs mgoas de meu peito;Quanto diverso efeito,Do que provaste j!

    No cuides, que sou fero;Porque j quis quebrar-te:No meu delrio em parteDesculpa tem meu mal.

    VII

    Se tu s de minha almaO caro amor sabias,Contigo s meus diasEterno hei de alentar.

    Bem que ameace a calmaFatal tormenta escura,Da minha desventuraJamais naufragars.

    VIII

    Clamar a cada instanteO nome, que me ouvia,

  • Ou seja noite, ou dia,O bosque me ouvir.

    Bem, que a meu culto amanteResista o desengano,O voto soberanoTe espero tributar.

    IX

    No temas, que deixadaTe ocupe este arvoredo,Onde meu triste enredoO fado tecer;

    Conhece, Lira amada,O afeto, que me inspiras;Na mesma paz, que tirasMe ds a melhor paz.

  • CANTATAS

    O PASTOR DIVINO

    CANTATA I

    F. Esperana.

    F. Onde, Enigma adorado,Onde guias perplexo,Confuso, e pensativoDa minha idia o vacilante curso?

    Esp. Que sombras, que portentosEncobres a meus olhos, ignorado arcano,Que l dessa distanciaInspiras de teu raio esforo ativo?

    F. Eu vejo, que rompendoDa noite o manto escuroVem cintilando a chama,Que sobre o mundo todo a luz derrama.

    Esp. Eu vejo, que do OrienteA luminosa estrela,Que os passos encaminha,Quase a buscar a terra se avizinha.

    Coro

    Chegai, pastores,Vinde contentes;

  • Que o novo solJ resplandece.Oh que glria, que dita, que gostoNestes campos se v respirar!

    P. esta a flor mimosa, Que da Vara bendita, Venturosa, jucunda, Da raiz de Jess brota fecunda!

    Esp. este o pastor belo,Que o rebanho espalhadoVem acaso buscar! este aquele,Que por montes, e valesConduz a tenra ovelha,E mais que a prpria vida,Ama o rebanho seu! este aquele,Que as ovelhas conhece e a seu preceitoObedecendo belas,Tambm o seuPastor conhecem elas!

    F. Eu o tinha alcanado,De enigmticas sombras na figura,Unignito Filho Do Eterno Criador.O Filho amado De Abro o testifica;

    Esp. Jac o compreende, Abel o explica.

    Ambas. Brandas ninfas, que no centro

  • Habitais dessa corrente,Vinde ao novo sol nascenteVosso obsquio tributar.

    F. J do monte descendoVem o pobre pastor: de brancas flores,Ou j grinaldas, ou coroas tece,E ao novo Deus contente as oferece.

    Esp. J de lrios, e rosas,Pela glria, que alcana,Animada a Esperana se coroa;E alegres hinos de prazer entoa.

    Coro

    Chegai, pastores,Vinde contentes;Que o novo solJ resplandece.Oh que glria, que dita, que gostoNestes campos se v respirar!

    F. Aquele tenro,Cordeiro amado,SacrificadoPor nosso amor,