planos de previdÊncia complementar e … · 2 provenientes de um regime público de previdência,...

35
PLANOS DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR E ALTERAÇÕES DOS REGULAMENTOS: UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO INTERTEMPORAL Andreia Simões Lemos * Publicado originalmente na Revista de Previdência nº 1 – Outubro de 2004 1. Introdução 2. Planos de Previdência: origem histórica e finalidades 3. A Relação Jurídica Existente entre os Fundos de Pensão e os seus Participantes 4. Desequilíbrio Econômico-Financeiro e Atuarial: necessidade de alteração dos regulamentos 5. Incidência das Novas Regras aos Contratos em Curso: conflito entre a segurança jurídica e a tutela imediata do bem comum 6. Conclusão 7. Bibliografia 1. INTRODUÇÃO A Previdência Social, espécie do gênero Seguridade Social, é tema recente no mundo todo. O seu surgimento decorreu da idéia de instituição de um modelo de Estado voltado para o bem-estar da sociedade (wellfare state). Esse modelo ideal de acolhimento se impôs com maior evidência a partir do crescente desenvolvimento industrial, tecnológico e científico em todo o mundo, o que proporcionou o aumento da expectativa de vida dos trabalhadores. Com isso, a previdência nasceu para garantir o bem-estar daqueles trabalhadores que, por idade avançada, motivos de doença ou outros fatores não pudessem mais trabalhar, provendo a ele e aos seus dependentes meios de subsistência. Apesar de ser uma criação recente (o marco púbico alemão e o marco privado norte- americano datam de fins do século XIX 1 ), as prestações previdenciárias, elencadas no rol dos direitos sociais, são hoje reconhecidas como prestações de índole fundamental, sejam elas * Andréa Lemos é advogada do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva, com curso de extensão em Previdência pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1 Everett T. Allen Jr. et alii, Planos de Aposentadoria, São Paulo, ICSS Consultor, 1994, p. 3.

Upload: hoangdan

Post on 26-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PLANOS DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR E ALTERAÇÕES DOS

REGULAMENTOS: UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO INTERTEMPORAL

Andreia Simões Lemos* Publicado originalmente na Revista de Previdência nº 1 – Outubro de 2004

1. Introdução 2. Planos de Previdência: origem histórica e finalidades 3. A Relação Jurídica Existente entre os Fundos de Pensão e os seus Participantes 4. Desequilíbrio Econômico-Financeiro e Atuarial: necessidade de alteração dos regulamentos 5. Incidência das Novas Regras aos Contratos em Curso: conflito entre a segurança jurídica e a tutela imediata do bem comum 6. Conclusão 7. Bibliografia

1. INTRODUÇÃO

A Previdência Social, espécie do gênero Seguridade Social, é tema recente no mundo

todo. O seu surgimento decorreu da idéia de instituição de um modelo de Estado voltado para o

bem-estar da sociedade (wellfare state). Esse modelo ideal de acolhimento se impôs com maior

evidência a partir do crescente desenvolvimento industrial, tecnológico e científico em todo o

mundo, o que proporcionou o aumento da expectativa de vida dos trabalhadores. Com isso, a

previdência nasceu para garantir o bem-estar daqueles trabalhadores que, por idade avançada,

motivos de doença ou outros fatores não pudessem mais trabalhar, provendo a ele e aos seus

dependentes meios de subsistência.

Apesar de ser uma criação recente (o marco púbico alemão e o marco privado norte-

americano datam de fins do século XIX1), as prestações previdenciárias, elencadas no rol dos

direitos sociais, são hoje reconhecidas como prestações de índole fundamental, sejam elas

* Andréa Lemos é advogada do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva, com curso de extensão em Previdência pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1 Everett T. Allen Jr. et alii, Planos de Aposentadoria, São Paulo, ICSS Consultor, 1994, p. 3.

2

provenientes de um regime público de previdência, sejam provenientes de um regime privado

complementar.

Entre nós, estes dois segmentos da previdência apresentam hoje uma extraordinária

dimensão normativa, inclusive com assento constitucional, determinando a observância de inúmeras

regras para a instituição e manutenção de planos previdenciários.

Especialmente no segmento complementar fechado, que se constitui por um processo

de capitalização de reservas, os gestores fiduciários exercem a atividade primordial na administração

dos ativos econômicos e do passivo obrigacional, sempre em busca do equilíbrio do plano, para

assegurar a aqueles que contrataram a entidade a futura percepção dos benefícios.

Porém, quando, apesar da estrita observância de todas as normas aplicáveis, este

equilíbrio não se opera, por circunstâncias muitas vezes imprevisíveis, a entidade é obrigada a tomar

medidas, a fim de garantir a solvabilidade do plano.

O principal objetivo do presente trabalho é, portanto, estudar uma das formas de se

alcançar o re-equilíbrio econômico-financeiro e atuarial dos planos de previdência dos fundos de

pensão, através da alteração de regras contidas nos Regulamentos dos planos de benefícios e sua

aplicação aos contratos em curso, analisando-se, para tanto, as regras de direito intertemporal, com o

apoio da melhor doutrina e da jurisprudência de nossos tribunais superiores.

2. PLANOS DE PREVIDÊNCIA: ORIGEM HISTÓRICA E FINALIDADES

A história nos dá notícia de que a previdência social nasceu, influenciada por

princípios de solidariedade, através da constituição de sociedades de socorro mútuo e atuavam como

caixas de assistência nos casos de velhice, doença etc.

No século XIX, foi instituído nos Estados Unidos da América o primeiro plano de

previdência privada, de iniciativa do empregador. No mesmo período, Otto Von Bismarck

implementou na Alemanha o primeiro programa público de bem-estar social, de índole pública e

3

iniciativa estatal. Anos mais tarde, esses programas de proteção previdenciária interligaram-se

dando origem ao que se chamou de multipillar system. Nesse sistema tem-se, de um lado, o primeiro

pilar, de natureza pública, vinculação obrigatória, com contribuição de natureza tributária, custeado

por regime de repartição simples2 e com limitação do valor dos benefícios. De outro lado, o segundo

pilar, de natureza privada, iniciativa patronal, vinculação facultativa, custeado por regime de

capitalização3 e sem limitação do valor dos benefícios.

No Brasil, a Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo nº 4.682/1929) foi considerada o

marco da Previdência Social, por ter determinado a criação de Caixas de Aposentadoria e Pensão

para os empregados das empresas ferroviárias, de natureza privada e vinculada ao empregador. Na

mesma década, começaram a surgir uma série de instituições dessa mesma natureza.

Após a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, na década de 30,

estas Caixas de Aposentadoria e Pensão foram unificadas formando os Institutos Públicos de

Aposentadoria e Pensão, mais conhecidos como os “IAPs”. Esses institutos congregavam, em

âmbito nacional, as classes e categorias de trabalhadores, não estando mais ligados às empresas.

Assim, surgiram os institutos dos marítimos (IAPM), dos comerciários (IAPC), dos bancários

(IAPB), dos industriários (IAPI) e dos empregados em transportes e cargas (IAPTEC).

2 Segundo FLAVIO MARTINS RODRIGUES, o regime de repartição representa “um sistema de custeio em regime de caixa, pelo qual o que se arrecada é imediatamente gasto, sem que haja, obrigatoriamente, um processo de acumulação. Este regime de custeio, também conhecido como pay-as-you-go (PAYG), pressupõe que um grupo de indivíduos mais jovens arcará com os custos da aposentadoria dos mais velhos; e os mais jovens acreditam que o mesmo será feito ao se tornarem idosos, montando-se aí o que se denominou ‘pacto entre gerações’, de forma que a geração anterior custeia os benefícios previdenciários da seguinte” (in Fundos de Pensão dos Servidores Públicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 10) 3 Na definição do mesmo autor, “o sistema de capitalização pressupõe acumulação de valores durante a fase ativa do trabalhador, para que esse montante possa suportar os custos de seu benefício futuro. Este processo pode se dar de forma individual ou coletiva. Em geral, este último caso vem acoplado ao regime de repartição por capitais de cobertura, método pelo qual determinados eventos não previsíveis (falecimento antes da aposentação ou invalidez) são cobertos pelo próprio grupo com aportes de recursos extras. Outros eventos (problemas de rentabilidade de ativos econômicos, por exemplo) são também suportados por todo o grupo envolvido, existindo, portanto, explícito mecanismo de solidariedade. O regime de capitalização possui a imensa vantagem de evitar que o custo dos principais benefícios seja postergado para a data de suas concessões, quando poderão estar presentes ou não as condições inicialmente previstas, daí chamar-se também de regime pré-custeado. O acúmulo de reservas, como a formiga da fábula de La Fontaine, evita os dissabores da escassez do inverno” (Flavio Martins Rodrigues. op. cit.. p. 11).

4

Com o advento do Decreto-lei nº 72, de 21 de novembro de 1966, ocorreu a

unificação dos Institutos, criando-se o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), que, anos

mais tarde, já na década de 90, transformou-se no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Porém, a previdência complementar que começou a surgir no Brasil no início do

século XX, com a criação das primeiras caixas de assistência mútua, sociedades civis e fundações,

organizadas de acordo com o Código Civil de 1916, somente se consolidou no ano de 1977, com o

advento da Lei no 6.435, hoje revogada pelas Leis Complementares nos 109/2001 (que contempla

regras gerais) e 108/2001 (que prevê regras específicas para as entidades fechadas de previdência

complementar que possuem como patrocinadores pessoas jurídicas de direito público).

Estes fundos, voltados para a constituição e capitalização de recursos que, anos mais

tarde, seriam destinados ao pagamento de prestações previdenciárias, foram criados face à premente

necessidade que existia, e ainda existe, de garantir a manutenção dos valores recebidos pelos

trabalhadores durante a fase produtiva de suas vidas, isto porque, conforme dito, os benefícios pagos

pela previdência pública tinham, como continuam a ter, limitação de valor máximo4.

Por obra do Poder Constituinte Reformador, levada a efeito através da Emenda

Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998, o regime de previdência privada passou a ter

previsão expressa no art. 202 da Constituição da República Federativa de 19885.

4 Nesse sentido, afirma ADACIR REIS, nosso atual Secretário de Previdência Complementar, que: “As alterações demográficas, ao lado da fragilização da capacidade estatal de promover o bem-estar social, colocaram em questão os modelos previdenciários tradicionais, ancorados no regime financeiro de repartição, provocando uma crescente procura pela previdência privada, baseada no regime de capitalização das reservas” (in Fundos de Pensão em Debate. Brasília: Brasília Jurídica: 2002. p. 15). 5 CRFB/88: “Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar. §1º. A lei complementar de que trata este artigo assegurará ao participante de planos de benefícios de entidades de previdência privada o pleno acesso às informações relativas à gestão de seus respectivos planos. §2º. As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei. (...) §6º. A lei complementar a que se refere o §4º deste artigo estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação” (grifamos).

5

De acordo com o nosso ordenamento jurídico, as entidades de previdência privada

podem ser instituídas de duas formas distintas: como entidade aberta de previdência complementar

(EAPC) e como entidade fechada de previdência complementar (EFPC), também chamada de fundo

de pensão. A finalidade precípua de ambas é idêntica e vem prevista no art. 2º da Lei Complementar

nº 109/200: “instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciário”. Porém, em diversos

aspectos essas entidades apresentam diferenças substanciais, como, por exemplo, a forma de

constituição, o enquadramento e a abrangência de proteção previdenciária.

Nesse sentido, as entidades fechadas de previdência complementar constituem-se sob

a forma de fundação ou sociedade civil6 e possuem como principais características a ausência de

finalidade lucrativa7, a abrangência restrita aos empregados ou servidores vinculados,

respectivamente, a empresas da iniciativa privada ou aos entes estatais8 e são reguladas e

fiscalizadas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, através do Conselho de Gestão da

Previdência Complementar (CGPC) e da Secretaria de Previdência Complementar (SPC)9.

Diversamente, as entidades abertas de previdência complementar são obrigatoriamente constituídas

sob a forma de sociedade anônima10, possuem finalidade lucrativa11, são acessíveis a quaisquer

6 Lei Complementar nº 109/2001: “Art. 31. As entidades fechadas são aquelas acessíveis, na forma regulamentada pelo órgão regulador e fiscalizador, exclusivamente: I – aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entes denominados patrocinadores; e II – aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores. §1º. As entidades fechadas organizar-se-ão sob a forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos. (...)”. 7 Os valores aportados destinam-se apenas ao pagamento dos benefícios, nos termos do art. 19, caput, da Lei Complementar nº 109/2001: “as contribuições destinadas à constituição de reservas terão como finalidade prover o pagamento de benefícios de caráter previdenciário (...)” (Vide parte final do §1º do art. 31, acima transcrito). 8 Vide incisos I e II, do art. 31, transcritos na nota nº 6. 9 Lei Complementar nº 109/2001: “Art. 74. Até que seja publicada a lei de que trata o art. 5º desta Lei Complementar, as funções do órgão regulador e do órgão fiscalizador serão exercidas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, por intermédio, respectivamente, do Conselho de Gestão da Previdência Complementar (CGPC) e da Secretaria de Previdência Complementar (SPC), relativamente às entidades fechadas (...)” Posteriormente à redação original, a Medida Provisória nº 233, de 30 de dezembro de 2004, criou a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC, “autarquia de natureza especial dotada de autonomia administrativa e financeira e patrimônio próprio, vinculada ao Ministério da Previdência Social, com sede e foro no Distrito Federal e atuação em todo o território nacional, que atuará como entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, observadas as disposições constitucionais, legais e regulamentares” (art. 1º). 10 Lei Complementar nº 109/2001: “Art. 36. As entidades abertas são constituídas unicamente sob a forma de sociedades anônimas e têm por objetivo instituir e operar planos de benefícios de caráter previdenciário concedidos em forma de renda continuada ou pagamento único, acessíveis a quaisquer pessoas físicas. (...)” 11 A finalidade lucrativa decorre da própria natureza da sociedade anônima, nos termos do art. 2º da Lei nº 6.404/76: “Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. §1º. Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio (...)”

6

pessoas físicas12 e são reguladas e fiscalizadas pelo Ministério da Fazenda, por intermédio do

Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e da Superintendência de Seguros Privados

(SUSEP)13. Assim, as entidades fechadas, cuja finalidade única seja prover planos de benefícios

previdenciários, possuem características próprias, às quais vamos nos ater com especial atenção, a

fim de cumprir, de forma concisa, o objetivo do presente trabalho. Para tanto, passamos a analisar a

natureza do vínculo que liga os participantes aos fundos de pensão.

3. A RELAÇÃO JURÍDICA EXISTENTE ENTRE OS FUNDOS DE PENSÃO E OS

SEUS PARTICIPANTES

Até o ano de 1998 não havia um consenso na doutrina sobre a natureza do vínculo

jurídico existente entre as entidades fechadas de previdência complementar e os seus respectivos

participantes.

Em decorrência do feixe de obrigações assumido por essas entidades, consistentes em

armazenar e gerir os recursos aportados pelos participantes e pelas patrocinadoras, destinados a

futura “devolução”, anos mais tarde, à título de prestações previdenciárias, reconhecia-se o vínculo

contratual. Nesse particular não havia grande divergência e, mesmo na vigência da Lei nº 6.435/77,

já afirmava CAIO TÁCITO:

“As entidades fechadas de previdência privada e os participantes que a elas se associam firmam uma relação contratual, constituído mediante a adesão desses últimos aos planos de benefício oferecidos por aquelas, nos termos de seus estatutos e regulamentos internos”.14

(grifamos)

12 Vide art. 36, caput, parte final, transcrito na nota nº 9. 13 Lei Complementar nº 109/2001: "Art. 74. Até que seja publicada a lei de que trata o art. 5º desta Lei Complementar, as funções do órgão regulador e do órgão fiscalizador serão exercidas pelo (...) Ministério da Fazenda, por intermédio do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), em relação, respectivamente, à regulação e fiscalização das entidades abertas”. 14 TÁCITO, Caio. Previdência privada e direito adquirido. Revista de direito administrativo. N 186. out./dez. 1991. p. 101.

7

De fato, as obrigações do participante e do fundo de pensão decorrem de negócio

jurídico bilateral, ou seja, dependente da conjugação de duas vontades, enquadrando-se, assim, no

conceito de contrato, que, nas palavras de MARIA HELENA DINIZ,

“É uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependendo, para a sua formação, do encontro da vontade das partes, por ser ato regulamentar de interesses privados”.15

A controvérsia era acirrada sobre o reconhecimento do vínculo contratual civil ou do

vínculo contratual trabalhista, que decorreria do contrato de trabalho. Durante muito tempo, os

nossos Tribunais reconheceram esta natureza, aplicando aos contratos celebrados entre os fundos de

pensão e os seus participantes as mesmas garantias conferidas pelas normas de Direito do Trabalho,

dentre elas, a prevista no art. 468, da Consolidação das Leis do Trabalho, que assim dispõe:

Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente dessa garantia. (...)

Todavia, verificava-se que em diversos aspectos este contrato não se identificava

com o contrato de trabalho. Com efeito, não existia em um dos pólos da relação jurídica a figura do

empregador, aqui substituída pela entidade fechada de previdência complementar. Do mesmo modo,

existia a possibilidade de manutenção do vínculo entre o participante e a entidade de previdência,

mesmo após a rescisão do contrato de trabalho celebrado com o empregador. A esse propósito,

pondera MIRIAN COSTA REBOLLO CÂMERA:

“(...) Uma outra hipótese, porém, é passível de ser aventada: a que encarasse tal vínculo como avença integrante, por acessão, ao contrato de trabalho, já que, consoante dispõe o art. 4º, I, a, da Lei n. 6.435/77, as entidades fechadas são aquelas ‘acessíveis exclusivamente aos empregados (e gerentes, diretores e conselheiros) de uma só empresa ou grupo de empresas’.

15 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 19 ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. p. 23.

8

Pode-se concluir dessa diretriz que preexiste e é coessencial à qualidade de participante da EFPP a qualidade de empregado. Destarte, na raiz do direito ao ingresso em tais entidades, e do subseqüente direito à percepção de benefícios, se encontra o contrato individual de trabalho, acrescido de novas estipulações quando do ingresso na entidade fechada. Os direitos oferecidos pelos Regulamentos, assim, seriam sempre oriundos dos contratos individuais de trabalho. (...) Não pensamos, porém, que a questão acabe por aqui. É que não se pode admitir como pacífico que a natureza desse vínculo seja trabalhista, isto porque, malgrado se assente no contrato individual de trabalho, que lhe é preexistente e coessencial, em verdade no outro pólo da relação que se estabelece com os participantes não está a empresa empregadora, mas sim uma outra entidade, com personalidade jurídica autônoma, distinta da do empregador. Por outro lado, podem ocorrer situações em que, mesmo rescindido o contrato de trabalho, subsista o vínculo entre participante e entidade, caso em que já não se poderia mais qualificar esse vínculo como contratual trabalhista, no sentido de um vínculo que acedeu ao contrato de trabalho, já extinto. Por esses motivos pensamos que a classificação do vínculo como de natureza trabalhista, por acessão, pode ser discutido (...)”.16

O exato delineamento da natureza do vínculo contratual importava, inclusive, na

atribuição de competência a Justiça Comum ou a Justiça do Trabalho para julgar os litígios oriundos

dos contratos celebrados entre os fundos de pensão e seus participantes. Na jurisprudência,

encontramos entendimentos nos dois sentidos:

“Contribuição Previdenciária - Justiça do Trabalho – Competência. Se a filiação à empresa de previdência privada só é possível se a pessoa for empregada da mantenedora, competente é a Justiça do Trabalho para apreciar questão relativa à devolução de descontos para tal empresa, posto que a origem primeira é o contrato de trabalho.”17 “Incompetência da Justiça do Trabalho. Complementação de aposentadoria não decorre de contrato de trabalho. (...)

16 CÂMERA, Miriam Costa Rebollo. Plano de benefícios das entidades de previdência privada: alterações do regulamento e o direito adquirido. Revista de Previdência Social. Nº 37. set/dez 1983. p. 29/31. 17 TRT 1a Região – RO 00388-87 – Julgado em 02.06.87, por unanimidade – Publicação DORJ, III, de 25.06.87 – Rel. Juiz Luiz Augusto Pimenta de Mello – Turma 2.

9

Por não ser um direito decorrente do contrato de trabalho é que se verifica a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar o presente feito, nos termos do art. 114 da Constituição Federal (...)”.18

Contudo, com o advento da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de

1998, a vinculação trabalhista aos planos de benefícios previdenciários foi definitivamente

suplantada, através da nova redação conferida ao art. 202, §2º, da Constituição da República, in

verbis:

§2º. As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.

(grifamos)

Este dispositivo do texto constitucional foi repetido ipsis litteris pela Lei

Complementar nº 109/2001, no caput do art. 68, reafirmando-se, assim, a natureza civil do vínculo

existente entre os fundos de pensão e os seus participantes.

Tal vínculo decorre de um contrato de adesão19 em que o participante manifesta a sua

vontade concordando com as condições estabelecidas pela entidade de previdência no Regulamento

do plano, respeitado o disposto no art. 10 da Lei Complementar nº 109/200120.

18 Proc. TST – E-RR – 81472/93.7 – Acórdão AC – SDI – 4173/97 – DJ 07/11/97 – Pleno TST – Rel. Min. Vantecil Abdala. 19 De acordo com SÍLVIO DE SALVO VENOSA, contrato de adesão “é o típico contrato que se apresenta com todas as cláusulas predispostas por uma das partes. A outra parte, o aderente, somente tem a alternativa de aceitar ou repelir o contrato. (...) O consentimento manifesta-se, então, por simples adesão às cláusulas que foram apresentadas pelo outro contratante. Há condições gerais nos contratos impostas ao público interessado em geral. Assim é o empresário que impõe a maioria dos contratos bancários, securitários, de transporte de pessoas ou coisas, de espetáculos públicos etc.” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 382). E acrescenta CLÁUDIA LIMA MARQUES: “O elemento essencial do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial decisiva, a falta de um debate prévio das cláusulas contratuais e sim, a sua predisposição unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante”. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 59). 20 Lei Complementar nº 109/2001: “Art. 10. Deverão constar dos regulamentos dos planos de benefícios, das propostas de inscrição e dos certificados de participantes condições mínimas a serem fixadas pelo órgão regulador e fiscalizador. §1º. A todo pretendente será disponibilizado e a todo participante entregue, quando de sua inscrição no plano de benefícios: I – certificado onde estarão indicados os requisitos que regulam a admissão e a manutenção da qualidade de participante, bem como os requisitos de elegibilidade e forma de cálculo dos benefícios; II – cópia do

10

Assim, constarão do contrato de adesão as características do plano e as condições

exigidas pela entidade como necessárias para conferir e manter a qualidade de participante, de forma

a ensejar o direito à futura percepção dos benefícios previdenciários, como a forma de custeio dos

planos, o valor dos benefícios e sua forma de cálculo. A idade ou número mínimo de contribuições,

eventualmente, também poderão estar previstas como marco para a elegibilidade ao benefício. É

certo, porém, que nem todos os fatos e condições futuras poderão estar previstas no Regulamento e,

conseqüentemente, no contrato celebrado entre a entidade e o participante. Sobre esse aspecto, é

importante lembrar que este contrato é celebrado para perdurar durante muitos e muitos anos.

FLAVIO MARTINS RODRIGUES, demonstrando a longa duração dos contratos de planos

previdenciários, exemplifica:

“(...) um homem começa a trabalhar aos 22 anos, passando então a contribuir para um plano de previdência. Após 35 anos de trabalho-contribuição, chega aos 57 e passa a perceber uma aposentadoria por mais 25 anos (vindo a falecer aos 82 anos). Deixa, então, uma viúva com 72 anos, que vive mais 15 anos, falecendo, portanto, aos 87 anos de idade. Ressalte-se que, atualmente, pelos atuais níveis de sobrevida humana, nenhuma destas idades nos causa especial impacto. Temos, por conseqüência, entre a adesão ao plano e o fim do benefício da viúva, 75 anos de relação contratual. É plausível crer que fatos não previstos no início da adesão venham a ocorrer? Claro que sim.”21

Na mesma linha, é o magistério de RONALDO PORTO MACEDO JÚNIOR.:

“O contrato previdenciário, à medida que envolve uma série de expectativas de longo prazo, não permite que todos os seus elementos sejam completamente definidos por elementos monetizáveis, porquanto com freqüência ele envolve uma relação de confiança na empresa na qual trabalha ou na empresa administradora do plano. A existência de elementos não monetizáveis não significa, contudo, a inexistência de elementos que tornem possível e desejável a monetização. Na verdade, o surgimento da ciência atuarial é o que vai

regulamento atualizado do plano de benefícios e material explicativo que descreva, em linguagem simples e precisa, as características do plano; III – cópia do contrato, no caso de plano coletivo de que trata o inciso II do art. 26 desta Lei Complementar; e IV – outros documentos que vierem a ser especificados pelo órgão regulador e fiscalizador. §2º. Na divulgação dos planos de benefícios, não poderão ser incluídas informações diferentes das que figurem nos documentos referidos neste artigo.” (grifamos) 21 RODRIGUES, Flavio Martins. Fundos de pensão: temas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 81.

11

tornar economicamente possível o surgimento dos contratos de seguro e contratos previdenciários à medida que cria uma técnica de determinação de equivalentes que confere a flexibilidade necessária a contratos de longo prazo de caráter relacional. Com a ciência atuarial, flexibiliza-se o âmbito das renegociações à medida que se cria um padrão de equivalência.”22

Fato é que nem sempre a ciência atuarial, a que se refere RONALDO PORTO,

consegue prever os acontecimentos futuros que influenciarão no cumprimento das obrigações

assumidas pelos fundos de pensão. Por vezes, durante o curso do contrato, surgem uma série de

fatores imprevisíveis ameaçadores da solvabilidade do plano, demandando soluções não pactuadas,

o que pode determinar, inclusive, a necessidade de alteração dos regulamentos dos planos, que ora

passamos a analisar.

4. DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO E ATUARIAL: NECESSIDADE

DE ALTERAÇÃO DOS REGULAMENTOS

O contrato de plano previdenciário, conforme visto, é celebrado para perdurar

durante um grande espaço de tempo. Através dele, as partes acordam capitalizar reservas suficientes

para assegurar a futura percepção dos benefícios previdenciários23. Isto significa que durante um

certo período, relativamente longo, os participantes e patrocinadores (em se tratando de plano

contributivo24) efetuarão prestações periódicas que serão capitalizadas pelo fundo de pensão.

Dentro desse processo de capitalização, analisa-se o nível de contribuição necessário

à constituição das reservas garantidoras dos benefícios, na expectativa de que se consiga cumprir

integralmente as obrigações assumidas. Para tanto, indispensável nessa tarefa é a colaboração do

atuário que, segundo MARÍLIA VIEIRA MACHADO DA CUNHA é

“o técnico especializado em matemática superior que atua, de modo geral, no mercado econômico-financeiro, promovendo pesquisas e

22 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 328. 23 Lei Complementar nº 109/2001: “Art. 19. As contribuições destinadas à constituição de reservas terão como finalidade prover o pagamento de benefícios de caráter previdenciário, observadas as especificidades previstas nesta Lei Complementar. (...)” 24 Plano contributivo é aquele em que, além da patrocinadora, o participante também contribui para a capitalização de reservas. Diversamente, plano não contributivo é aquele em que somente a patrocinadora contribui.

12

estabelecendo planos e políticas de investimentos e amortizações e, em seguro privado e social, calculando probabilidades de eventos, avaliando riscos e fixando prêmios, indenizações, benefícios e reservas matemáticas”.25

Portanto, em linhas gerais, a função do atuário em uma entidade fechada de

previdência complementar é aferir as condições de solvabilidade dos planos e sugerir que se adotem

medidas eficientes para que o plano seja permanentemente mantido em condições saudáveis,

utilizando-se, dentre outras, de técnicas relativas ao regime financeiro, às taxas de juros e às

premissas biométricas. Esse procedimento visa ao equilíbrio atuarial, podendo os planos

experimentar períodos em que os ativos garantidores são maiores do que o passivo obrigacional,

quando haverá superávit. No entanto, sendo o passivo maior do que o ativo, o plano enfrentará um

déficit, determinando medidas eficazes a fim de restabelecer o plano, com vistas à garantia do

pagamento dos benefícios futuros.

Aliado ao equilíbrio atuarial deve estar o equilíbrio financeiro que se afere através do

confronto da liquidez dos ativos econômicos com a exigibilidade do passivo atuarial, cuja apuração

se convencionou chamar de Asset Liability Management (ALM). Em outras palavras, não basta o

equilíbrio atuarial, é necessário apurar-se a capacidade de tornar investimentos em moeda apta a

pagar aposentadorias e pensões.

Do ponto de vista prático, assevera WLADIMIR NOVAES MARTINEZ a

importância do equilíbrio econômico-financeiro e atuarial de um plano de previdência

complementar:

“O desequilíbrio econômico-financeiro e atuarial de um plano ou regime compromete sua execução, daí a necessidade de ser plantada providência basilar que obstaculize ou dificulte medidas inadequadas, e até vede soluções incongruentes, como a criação de prestação sem fonte própria de custeio ou a extensão de tributos sem prévia destinação. Por isso, a ser perquirida em consonância com a idéia da

25 in Fundos de Pensão em Debate. Brasília: Brasília Jurídica: 2002. p. 143.

13

precedência do custeio e outras políticas, conducentes à ordenação sistêmica do edifício previdenciário.”26

Face à sua vital importância para a integridade do plano previdenciário, o equilíbrio

atuarial passou a ter assento constitucional com o advento da Emenda Constitucional nº 20/199827.

A Lei Complementar nº 109/2001, em seu art. 18, também determina a observância

de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, como medidas aptas a nortear o plano

de previdência para uma situação de solvência, ao assim dispor:

Art. 18. O plano de custeio, com periodicidade mínima anual, estabelecerá o nível de contribuição necessário a constituição das reservas garantidoras de benefícios, fundos, provisões e à cobertura das demais despesas, em conformidade com os critérios fixados pelo órgão regulador e fiscalizador. §1º. O regime financeiro de capitalização é obrigatório para os benefícios de pagamento em prestações que sejam programadas e continuadas. §2º. Observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, o cálculo das reservas técnicas atenderá às peculiaridades de cada plano de benefícios e deverá estar expresso em nota técnica atuarial, de apresentação obrigatória, incluindo as hipóteses utilizadas, que deverão guardar relação com as características da massa e da atividade desenvolvida pelo patrocinador ou instituidor. §3º. As reservas técnicas, provisões e fundos de cada plano de benefícios e os exigíveis a qualquer título deverão atender permanentemente à cobertura integral dos compromissos assumidos pelo plano de benefícios, ressalvadas excepcionalidades definidas pelo órgão regulador e fiscalizador.

(grifamos)

Contudo, apesar de todo este aparato da ciência atuarial, baseada em estatística que

leva em consideração situações previsíveis, a verdade é que fatos novos e, portanto, não previstos,

26 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito previdenciário. Tomo IV. Previdência complementar. 2 ed. São Paulo: LTr, 2002. p. 338. 27 “Art. 6º. As entidades fechadas de previdência privada patrocinadas por entidades públicas, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, deverão rever, no prazo de dois anos, a contar da publicação desta Emenda, seus planos de benefícios e serviços, de modo a ajustá-los atuarialmente a seus ativos, sob pena de intervenção, sendo seus dirigentes e os de suas respectivas patrocinadoras responsáveis civil e criminalmente pelo descumprimento do disposto neste artigo.” (grifamos)

14

podem surgir, determinando soluções novas. Nessa linha é a pertinente lição de FLAVIO

MARTINS RODRIGUES:

“Bem se sabe que planos previdenciários podem enfrentar resultados superavitários ou deficitários durante sua existência. A ciência atuarial, baseada em estatísticas, tende a projetar, com base em experiências passadas, resultados futuros, e o faz com razoável dose de acerto. Os últimos anos do século XX, contudo, foram tempos de mudanças impressionantes. O positivo avanço da ciência médica, alargando a expectativa de vida dos seres humanos e a revolução tecnológica, quando se consegue produzir mais, com maior nível de qualidade e menos trabalhadores, foram fatores imprevistos a causar desequilíbrios em planos previdenciários em todo o mundo, isto para ficarmos adstritos a fatos cuja visibilidade é mais aguda. Fatos novos, por conseguinte, demandam para o direito a busca de soluções também inovadoras para conflitos que naturalmente se põem.”28

Além do avanço frenético da tecnologia e da ciência médica, apontados por FLAVIO

MARTINS como causas de eventuais desequilíbrios dos planos previdenciários, até mesmo

institutos novos favoráveis ao participante podem também vir a gerar situações deficitárias.

Exemplifica-se com a portabilidade (art. 14, II, da Lei Complementar nº 109/2001) que autoriza ao

participante transferir (portar) as suas reservas em valores líquidos de um plano para outro. Essa

vantagem para aqueles participantes que transferem suas poupanças previdenciárias pode gerar

desequilíbrio no plano dos que permanecem. Imagine-se as conseqüências que poderiam advir se,

em um dado momento, um razoável número de participantes se valessem desse instituto, retirando

parte significativa dos recursos do plano até então computados como ativos garantidores de

benefícios que somente seriam pagos no futuro, de acordo com o que havia sido pactuado. Para

tornar ainda mais difícil a situação , imagine se esta mesma entidade possuísse, na mesma ocasião,

parte considerável de seus recursos alocados em investidos que não garantam liquidez imediata.

Certamente, restaria configurada a instabilidade do plano, demandando novas soluções.

Assim, de acordo com o que determina o art. 18 da Lei Complementar nº 109/2001, o

resultado deficitário deverá ser equacionado de forma paritária entre os participantes, patrocinadores

e assistidos, evitando-se, dessa forma, a onerosidade excessiva com relação a apenas um deles.

28 RODRIGUES, Flavio Martins. Fundos de pensão: temas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 71.

15

Algumas medidas poderiam ser satisfatórias, como o aumento das contribuições ou a redução do

valor dos benefícios ou, ainda, a majoração da idade considerada como causa de elegibilidade ao

benefício, vistas caso a caso conforme se demande em cada plano. Não se discute que qualquer uma

dessas soluções tornaria o plano menos generoso para os participantes. Porém, entre liquidá-lo e

torná-lo mais gravoso, entendemos que esta última solução seria indiscutivelmente a melhor, pois

permitiria a manutenção do plano de previdência com o atendimento dos fins a que se propôs:

pagamento de benefícios previdenciários.

Nessa vertente, é importante lembrar que os planos previdenciários administrados

pelos fundos de pensão guardam, em verdade, a “poupança coletiva” dos os participantes e

assistidos com vistas a benefícios previdenciários. Essas entidades, ademais, não possuem fins

lucrativos. Tudo o que é recebido a título de contribuições é capitalizado visando o posterior

pagamento dos benefícios. Assim, um custo maior do plano terá evidentes e diretas repercussões

para os participantes e assistidos, e, naturalmente, também para os patrocinadores.

A conseqüência natural da necessidade de equacionamento de eventuais déficits será

ou o aumento dos valores contributivos (incremento dos ativos econômicos) ou a alteração do

Regulamento do plano, com a revisão dos benefícios ou suas condições concessivas (diminuição do

passivo atuarial). Quaisquer dessas modificações estarão refletidas em modificações a serem

implementadas nos contratos celebrados entre a entidade de previdência e os participantes. Surge

então a grande questão de saber se a entidade poderia promover unilateralmente as alterações

necessárias a recompor as condições de equilíbrio dos planos e fazer incidi-las aos contratos em

curso.

A um primeiro lance de vista, poder-se-ia dizer que a alteração resultaria na violação

do princípio da obrigatoriedade da convenção, também chamado pelos civilistas de pacta sunt

servanda. Na esteira desse princípio, o contrato, uma vez celebrado livremente, faz lei entre as

partes, devendo, por essa razão, ser fielmente cumprido.

Servia de alicerce a este princípio a autonomia da vontade que enxergava as partes

contratantes como capazes de dispor livremente sobre o objeto do contrato, estando submetidas, é

16

claro, aos limites impostos pela lei. Após a sua celebração, as vontades ali manifestadas deveriam

ser integralmente protegidas, não podendo as partes se desprender do que havia sido pactuado.

No mundo jurídico, todavia, a observância plena desses princípios, muitas vezes

conduzia a submissão injusta de uma das partes aos anseios da outra. Passou-se, então, a amenizar a

força normativa desses princípios, a fim de remediar os efeitos negativos advindos da desigualdade

existente entre os dois pólos da relação contratual.

De fato, frisa SÍLVIO RODRIGUES, “tanto o princípio da autonomia da vontade

como o da obrigatoriedade das convenções perderam uma parte de seu prestígio, em face de anseios

e preocupações novas, nem sempre atendidos no apogeu do regime capitalista”29.

Dentro desse quadro, recorre-se a cláusula rebus sic stantibus, hoje conhecida como

Teoria da Imprevisão, fundada na onerosidade excessiva. Desenvolveu-se, a partir daí, o dirigismo

contratual que fez prevalecer sobre a vontade individual os interesses sociais30. Assim, a concepção

solidarista atingiu o domínio da autonomia da vontade e da obrigatoriedade das convenções,

reduzindo-lhes a sua força imperativa, diante de circunstâncias imprevisíveis à época da celebração

do contrato e excessivamente onerosas para uma das partes. Sobre o tema, leciona CAIO MÁRIO

DA SILVA PEREIRA:

“Passada a fase do esplender individualista, que foi o século XIX, convenceu-se o jurista de que a economia do contrato não podia ser confiada ao puro jogo das competições particulares. Deixando de lado outros aspectos, e encarando o negócio contratual sob o de sua execução, verifica-se que, vinculadas as partes aos termos da avenca, são muitas vezes levadas, pela força incoercível das circunstâncias externas, a situações de extrema injustiça, conduzindo o rigoroso

29 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. V. 3. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 18. 30 Esses interesses sociais que devem preponderar sobre os individuais em uma relação contratual, encontram, hoje, previsão expressa no art. 421 do Código Civil de 2002, como cláusula geral da função social do contrato. Nessa vertente, vale mencionar a pertinente lição de GUSTAVO TEPEDINO, segundo o qual, “à luz do texto constitucional, a função social torna-se razão determinante e elemento limitador da liberdade de contratar, na medida em que esta só se justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da República acima transcritos [arts. 1º, III, IV; 3º, I, III, 170, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII]. Extrai-se daí a definição da função social do contrato, entendida como o dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato o são por ele atingidos” (grifamos). (TEPEDINO, Gustavo (Coordenador). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. XXXII).

17

cumprimento do obrigado ao enriquecimento de um e ao sacrifício de outro. Todo contrato é previsão, e em todo contrato há margem de oscilação do ganho e da perda, em termos que permitem o lucro ou prejuízo. Ao direito não podem afetar estas vicissitudes, desde que constritas nas margens do lícito. Mas, quando é ultrapassado um grau de razoabilidade, que o jogo da concorrência livre tolera, e é atingido o plano de desequilíbrio, não pode omitir-se o homem do direito, e deixar que em nome da ordem jurídica e por amor ao princípio da obrigatoriedade do contrato um dos contratantes leve o outro à ruína completa, e extraia para si o máximo benefício. Sentindo que este desequilíbrio na economia do contrato afeta o próprio conteúdo da juridicidade, entendeu que não deveria permitir a execução rija do ajuste, quando a força das circunstâncias ambientes viesse criar um estado contrário ao princípio da justiça no contrato. E acordou de seu sono milenar um velho instituto que a desenvoltura individualista havia relegado ao abandono, elaborando então a tese da resolução do contrato em razão da onerosidade excessiva. (...) A teoria tornou-se conhecida como cláusula rebus sic stantibus, e consiste, resumidamente, em presumir, nos contratos comutativos, uma cláusula, que não se lê expressa, mas figura implícita, segundo a qual os contratantes estão adstritos ao seu cumprimento rigoroso, no pressuposto de que as circunstâncias ambientes se conservem inalteradas no momento da execução, idênticas às que vigoravam no da celebração”.31

Amplamente admitida na doutrina e na jurisprudência, a chamada Teoria da

Imprevisão passou a ter previsão expressa no art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor32. Hoje

a resolução do contrato por onerosidade excessiva encontra-se também disciplinada no Código Civil

de 2002, em seus artigos 478 a 480, in verbis:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V. III. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 161-163. 32 Lei nº 8.078/1990: “Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: (...) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

18

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executa-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Assim, no âmbito das entidades fechadas de previdência complementar, diante de um

quadro de manifesto desequilíbrio econômico-financeiro e atuarial, ocasionado por fatores

imprevisíveis e inesperados, permite-se, de acordo com o novo ordenamento jurídico, que o

equacionamento de déficits seja feito através da alteração dos Regulamentos dos planos e,

conseqüentemente, dos contratos celebrados entre os fundos de pensão e seus participantes. Nesse

sentido, argumenta WLADIMIR NOVAES MARTINEZ:

“Ausente finalidade lucrativa, própria da empresa mercantil, no pertinente à relação de previdência privada acresce-se a responsabilidade do gestor em relação à clientela protegida; deixar de promover alterações cabíveis ao equilíbrio do plano representa prejuízo à coletividade (...). O determinante da novação é aquele equilíbrio atuarial. De pouco adiantará observar-se a rigidez da força vinculante da vontade contida nos contratos, se ausentes os recursos programáticos capazes de fazer cumprir satisfatoriamente a obrigação avençada”.33

Em outra passagem, o mesmo autor acrescenta:

“As transformações da Previdência Social particular e as futuras obrigações à vista impõem dinamização ao sistema, inconciliável com a petrificação de realidades não mais existentes”.34

A alteração dos regulamentos, de acordo com o que dispõe o art. 13, II, da Lei

Complementar nº 108/200135, é de competência do Conselho Deliberativo da entidade, de onde

concluímos pela possibilidade de alteração unilateral dos contratos. A questão, todavia, não é

33 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Pareceres selecionados de previdência complementar. São Paulo: LTr, 2001. p. 18. 34 Op. cit. p. 20. 35 Lei Complementar nº 108/2001: “Art. 13. Ao conselho deliberativo compete a definição das seguintes matérias: (...) II – alteração de estatuto e regulamentos dos planos de benefícios, bem como a implantação e a extinção deles e a retirada de patrocinador”.

19

simples como se apresenta e suscita grandes controvérsias doutrinárias. A título de exemplo, citamos

JOSÉ RICARDO SASSERON36, que, defendendo os interesses dos participantes, afirma:

“Para avançar rumo a uma democratização efetiva das entidades de previdência, é absolutamente fundamental que as alterações estatutárias passem por processos negociais e sejam deliberadas por todos os participantes, mesmo nos casos em que estes tenham conquistado participação efetiva nos órgãos estatutários”.37

WLADIMIR NOVAES MARTINEZ, de forma ponderada, aceita a alteração

unilateral quando houver desequilíbrio no plano de previdência, o que se conclui interpretando-se a

contrario sensu a seguinte lição:

“Não ameaçado por desequilíbrio nem presente factum principis ou outro motivo importante, mantendo-se o plano como originariamente concebido pelo atuário, realizando-se a receita integralmente e comportando-se a massa exatamente como idealizada, não há razão para modificá-lo nem se justifica juridicamente. Pretender transformar o tipo de plano – de benefício definido em contribuição definida - , por que os especialistas tecnicamente vêm preconizando capitalização para benefício programado e repartição para os de risco, é propensão genérica válida (seu pressuposto é otimizar a possibilidade de consecução dos objetivos), mas só pode ser empreendida em novação bilateral e não comporta unilateralidade”.38

Mais adiante, o mesmo autor manifesta-se, de forma mais clara, pela possibilidade de

alteração unilateral, ao afirmar peremptoriamente que

“Mudanças nas regras pactuadas entre EFPC e participante são plausíveis unilateralmente, sendo preferível serem objeto de negociação e discussão com os interessados, ouvidos quando de sua vigência, isto é, revisão das condições ou, preferindo-se, nova convenção. Umas, soluções aconselhadas, outras nem tanto. O espírito superior norteador dessa política deve ser a tranqüilidade das relações jurídicas, mas o desiderato só será atingido quando o plano estiver equilibrado econômico-financeiramente, ser próprio e cabível, e

36 José Ricardo Sasseron , ao tempo em que redigiu o referido artigo, era Presidente da Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão – ANAPAR, entidade cujo objeto é o de representar e defender os interesses dos participantes de fundos de pensão junto aos poderes públicos, junto às empresas patrocinadoras e às entidades de previdência. 37 in Fundos de Pensão em Debate. Brasília: Brasília Jurídica: 2002. p. 176. 38 Op. cit. p. 29.

20

manter a correspectiva relação contribuição/benefício. Vale dizer, não extremar o princípio da solidariedade”.39

(grifamos)

Sem embargo de outras opiniões, entendemos, com esteio no art. 13, II, da Lei

Complementar nº 108/2001, que as entidades fechadas de previdência complementar, com

patrocinadoras públicas ou não, podem alterar os Regulamentos dos seus planos previdenciários

unilateralmente. Vale ressaltar, no entanto, que, em que pese tratar-se de alteração unilateral, o

conselho deliberativo (órgão dotado de competência para tanto) é composto por representantes das

patrocinadoras, dos participantes e dos assistidos40. Sendo assim, a definição da política de

administração da entidade e dos planos de benefícios conta com a participação dos representantes

dos participantes e assistidos, dentro de um sistema de governança corporativa que busca uma

administração transparente, responsável e equilibrada, não havendo, portanto, o que se falar em

violação aos direitos destes, que, no momento da alteração dos Estatutos e Regulamentos dos planos

de custeio e benefícios previdenciários, terão seus interesses ponderado pelos seus representantes

que integram o conselho deliberativo da entidade.

É importante ressaltar que essa forma organizativa desde 1998 já possuía assento

constitucional, com o advento da Emenda nº 20, que garantiu aos participantes dos fundos de pensão

acesso irrestrito às informações sobre os seus planos de benefícios. A nova redação dada ao art. 202,

§6º, do texto fundamental, obriga as entidades fechadas de previdência complementar com

patrocinadoras públicas a inserir os participantes “nos colegiados e instâncias de decisão em que

seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação”. Com isso, os fundos de pensão passaram a

ter bases mais sólidas, administrando os interesses dos participantes, assistidos e beneficiários de

39 Op. cit. p. 101. 40 Lei Complementar nº 108/2001: Art. 11. A composição do conselho deliberativo, integrado por no máximo 6 (seis) membros, será paritária entre representantes dos participantes e assistidos e dos patrocinadores, cabendo a estes a indicação do conselheiro presidente, que terá, além do seu, o voto de qualidade. §1º. A escolha dos representantes dos participantes e assistidos dar-se-á por meio de eleição direta entre seus pares. §2º. Caso o estatuto da entidade fechada, respeitado o número máximo de conselheiros de que trata o caput e a participação paritária entre representantes dos participantes e assistidos e dos patrocinadores, preveja outra composição, que tenha sido aprovada na forma prevista no seu estatuto, esta poderá ser aplicada, mediante autorização do órgão regulador e fiscalizador. Lei Complementar nº 109/2001: Art. 35. As entidades fechadas deverão manter estrutura mínima composta por conselho deliberativo, conselho fiscal e diretoria-executiva.§ 1º O estatuto deverá prever representação dos participantes e assistidos nos conselhos deliberativo e fiscal, assegurado a eles no mínimo um terço das vagas. (...)

21

forma mais democrática, garantindo aos interessados diretos transparência de informações, controle

e fiscalização dos seus planos previdenciários.

5. INCIDÊNCIA DAS NOVAS REGRAS AOS CONTRATOS EM CURSO: CONFLITO

ENTRE A SEGURANÇA JURÍDICA E O ATENDIMENTO IMEDIATO DO BEM COMUM

Estudamos até aqui a necessidade de alteração dos regulamentos dos planos de

custeio e de benefícios das entidades fechadas de previdência complementar e concluímos pela

possibilidade de alteração unilateral, conforme previsto na lei específica. Este entendimento,

todavia, pode parecer que conflita com a segurança jurídica, garantia individual do cidadão prevista

no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, in verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa;

(grifamos)

Nesse mesmo sentido, dispôs o legislador infraconstitucional ao editar, em 1942, a

Lei de Introdução ao Código Civil, pacificamente admitida pela doutrina como “leis de introdução

às leis”41, por conter princípios gerais sobre as normas. Em seu art. 6º, o legislador deixou a salvo da

nova lei o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, conceituando cada instituto.

Confira-se:

Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. §1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. §2º. Consideram-se adquiridos assim os direitos que seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício

41 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 3.

22

tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. §3º. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso.

O objetivo do presente trabalho não permitiria que enveredássemos pelas inúmeras

controvérsias que o conflito de leis no tempo suscita. Porém, para atendermos a seu escopo, faz-se

necessário analisar e sopesar o alcance do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, apontados por

LUIS ROBERTO BARROSO como “verdadeiros tormentos para os intérpretes”42.

Os artigos 5º, XXXVI, da Constituição da República, e 6º, da Lei de Introdução ao

Código Civil, positivam o princípio da irretroatividade da lei, impedindo-a de alcançar o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A intenção do legislador constitucional e

infraconstitucional foi conferir estabilidade e segurança jurídica às partes envolvidas em uma

relação jurídica.

A expressão “lei”, prevista nesses dois artigos, doutrinariamente, é entendida como

qualquer ato normativo primário, que são aqueles arrolados no art. 59, da Lei Maior, quais sejam,

emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias,

decretos legislativos e resoluções.

Em linhas gerais, o princípio da irretroatividade nada mais é do que um método para

disciplinar fatos em transição temporal, ou seja, que se desenvolvam durante a passagem de uma lei

para a outra.

No ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com as regras de direito intertemporal,

a nova lei somente atingirá os fatos futuros, permitindo-se, apenas excepcionalmente, que incida

sobre situações passadas, estando, portanto, consagrado o princípio da irretroatividade da lei.

A esse respeito, observa LUIS ROBERTO BARROSO que apesar da irretroatividade

ser a regra, somente condiciona o Poder Público nas hipóteses expressamente previstas nos artigos

42 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 50.

23

5º, XXXVI43, XL44 e 150, III, a45, da Constituição da República, sendo tolerável em outras

situações. Para exemplificar, o autor cita PINTO FERREIRA que afirma:

“O Estado pode determinar leis retroativas, pois as circunstâncias sociais e históricas se modificam. Os entes estatais podem editar normas com eficácia retroativa ou com efeito retrooperante, mas desde que não firam o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito protegidos constitucionalmente pela lex legum”.46

De fato, foi o próprio legislador que, ao prescrever, no art. 6º da LICC, que a nova lei

tem efeito imediato e geral, permitiu que a lei retroagisse em alguns casos. Na verdade, o legislador

infraconstitucional previu a irretroatividade, mas não a aceitou como princípio absoluto, impedindo-

a apenas de alcançar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Corroborando com

este entendimento, afirma MARIA HELENA DINIZ:

“(...) sob a égide da nova lei, cairiam os efeitos presentes e futuros de situações pretéritas, com exceção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, pois a nova norma, salvo situações anormais de prepotência e ditadura, não pode e não deve retroagir atingindo fatos e efeitos já consumados sob o império da antiga lei. Além disso, será preciso lembrar que o problema da irretroatividade é irrelevante na seara jurisprudencial e consuetudinária. Isto é assim porque o Judiciário resolve as questões de direito intertemporal caso por caso, fundado às vezes sobre o interesse geral, a ordem pública, as exigências fático-axiológicas do sistema jurídico etc. A irretroatividade das leis é somente um princípio de utilidade social, daí não ser absoluto, por sofrer exceções, pois, em certos casos, uma nova lei poderá atingir situações passadas ou efeitos de determinados atos.”47

A noção de direito adquirido, constituída por LASSALE e aperfeiçoada por

FRANCESCO GABBA, pressupõe a ocorrência de dois requisitos: deve ter origem em um fato

43 “Art. 5º. (...) XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. 44 “Art. 5º. (...) XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. 45 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. 46 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 143. 47 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 180.

24

idôneo e o direito há de ter entrado definitivamente no patrimônio do seu titular. Caso contrário, não

haverá direito adquirido, mas mera expectativa de direito48.

A teoria subjetivista de GABBA era contrariada pela teoria objetivista de PAUL

ROUBIER que admitia a “retroatividade mínima”, que, a rigor, seria a produção de efeitos

imediatos da nova lei. Pela doutrina de ROUBIER, a nova lei incidiria sobre os efeitos futuros que

seriam produzidos pelos atos jurídicos praticados ainda sob a égide da lei antiga49.

Todavia, até aqui prevaleceu no Brasil a teoria subjetivista de GABBA, circunscrita à

noção de direito adquirido, impedindo, assim, a aplicação da nova lei aos contratos celebrados antes

de sua vigência, cujos efeitos estão sendo produzidos ou serão produzidos no futuro.

Realmente, a princípio, é de bom alvitre proteger os interesses dos particulares,

manifestados através de um contrato celebrado durante o império da lei que à época encontrava-se

em vigor, garantindo-lhes estabilidade e segurança jurídica. Porém, essa segurança jurídica muitas

vezes conflita com a necessidade de tutelar imediatamente o bem comum, a fim de atender os

interesses da sociedade ou de um determinado grupo de pessoas que se encontrem na mesma

situação, hipóteses em que a nova lei merecerá aplicação imediata, para impedir a consumação de

um prejuízo de maior relevância, assim considerado por não atingir apenas uma pessoa, mas uma

coletividade. Decorre daí o conflito entre a segurança jurídica e a tutela imediata do bem comum.

Sabemos que a sociedade é dinâmica e, portanto, dinâmica deve ser a atividade

legiferante do Estado, regulando as relações sociais que a cada dia postam-se frente a uma realidade

diversa. Por isso, a segurança jurídica possui a sua razão de ser: conferir estabilidade às relações

jurídicas, protegendo da nova lei os interesses individuais outrora pactuados. Sobre a necessidade

dessa proteção, argumenta VICENTE RÁO:

“A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no espaço, seria o

48 GABBA, C. F. Teoria della retroatività delle leggi. Pisa: Nistri, 1869. p. 191. 49 ROUBIER, Paul. Le droit transitorie. Paris: Dalloz, 1960.

25

mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso do seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças”.50

Apesar de todo o mérito que possui esta teoria, defendida com veemência durante

séculos, dentro de uma perspectiva individualista, o Direito vem desenvolvendo um projeto de

transformação social, em que se busca, primordialmente, igualdade material e justiça social. Sob

este prisma, destaca, com inteira propriedade, DANIEL SARMENTO:

“(...) a segurança jurídica – idéia que nutre, informa e justifica a proteção constitucional do direito adquirido –, é, como já se destacou, um valor de grande relevância no Estado Democrático de Direito. Mas não é o único valor, e talvez não seja nem mesmo o mais importante dentre aqueles em que se esteia a ordem constitucional brasileira. Justiça e igualdade material, só para ficar com dois exemplos, são valores também caríssimos à nossa Constituição, e que, não raro, conflitam com a proteção da segurança jurídica. Se a segurança jurídica for protegida ao máximo, provavelmente o preço que se terá de pagar será um comprometimento na tutela da justiça e da igualdade substantiva, e vice-versa. O correto equacionamento da questão hermenêutica ora enfrentada não pode, na nossa opinião, desprezar esta dimensão do problema, refugiando-se na assepsia de uma interpretação jurídica fechada para o universo dos valores. Ademais, no Estado Democrático de Direito, o próprio valor da segurança jurídica ganha um novo colorido, aproximando-se da idéia de Justiça. Ele passa a incorporar uma dimensão social importantíssima. A segurança jurídica, mais identificada no Estado Liberal com a proteção da propriedade e dos direitos patrimoniais em face do arbítrio estatal, caminha para a segurança contra os infortúnios e incertezas da vida; para a segurança como garantia de direitos sociais básicos para os excluídos; e até para a segurança em face das novas tecnologias e riscos ecológicos na chamada ‘sociedade de riscos’”.51

50 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Max Limoned, 1952. p. 428. 51 TAVARES, Marcelo Leonardo (coordenador). A reforma da previdência social: temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 27-28.

26

Dessa forma, no âmbito das entidades fechadas de previdência complementar,

havendo necessidade de alteração do regulamento do plano de custeio e/ou de benefícios, sendo

estas as únicas medidas capazes de assegurar o reequilíbrio do plano, com a conseqüente garantia do

pagamento dos benefícios previdenciários aos assistidos, coloca-se a ponderação entre o interesse

individual imediato e o bem coletivo de longo prazo.

SAN TIAGO DANTAS, sopesando esses dois princípios, afirma:

“Esses dois princípios se contrariam: o princípio que manda zelar pela segurança da ordem jurídica – e que aconselha, portanto, a irretroatividade da lei – e o princípio que manda zelar pela tutela imediata do bem comum – e que, portanto, aconselha a retroatividade da lei. Como vêem, estes dois princípios se contrastam e se temperam na mente do legislador e ele, portanto, é quem decidirá se deve atender à voz de um ou à de outro. Se ele sente que o bem comum está exigindo uma intervenção radical, quaisquer que sejam os sacrifícios impostos à segurança jurídica dos particulares, ele para aí se inclina decididamente”.52

(grifamos)

Nesse diapasão, reconhecendo a dinamização do sistema previdenciário, o legislador

ordinário resolveu enfrentar a matéria, adotando um viés inovador, preservando somente o direito

adquirido do participante até a introdução das alterações do regulamento e os direitos dos

participantes que já tivessem cumprido os requisitos para a obtenção dos benefícios. É o que dispõe

o art. 17 da Lei Complementar nº 109/2001:

Art. 17. As alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante. Parágrafo único. Ao participante que tenha cumprido os requisitos para obtenção dos benefícios previstos no plano é assegurada a aplicação das disposições regulamentares vigentes na data em que se tornou elegível a um benefício de aposentadoria.

52 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 88.

27

Certamente, haverá quem sustente a inconstitucionalidade deste dispositivo, em razão

de uma aparente contrariedade com o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, pois, na hipótese, as

alterações dos regulamentos produzirão os seus efeitos sobre os contratos em curso, em prejuízo da

garantia do ato jurídico perfeito. Porém, este entendimento deve ser afastado, pela proteção da

justiça social que, assim como a segurança jurídica, também é digna de tutela. Através dela será

garantida a continuidade do plano que tem como único objetivo prover benefícios previdenciários

para uma coletividade.

Além disso, é importante ressaltar que, em que pese a proteção do ato jurídico

perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada, prevista no art. 5º da Constituição da República

como direito fundamental, posta, inclusive, ao abrigo do Poder Constituinte Reformador, nos termos

do art. 60, §4º, IV, do texto magno, estamos notando que nos últimos tempos a doutrina e a

jurisprudência vêm difundindo crescentemente que estas garantias não desfrutam de proteção

incondicional, não se apresentam como limites intransponíveis a outras garantias de idêntica

hierarquia, tais como a igualdade, a liberdade e outros valores que traduzam a idéia de justiça social.

A primeira garantia desmistificada foi a coisa julgada que, assim como o direito

adquirido e o ato jurídico perfeito, tem como finalidade conferir estabilidade às relações jurídicas,

impedindo, neste caso, a repetição de ação anteriormente julgada.

Atualmente, os tribunais pátrios vêm entendendo que diante de outros interesses

também albergados pela Constituição, a segurança jurídica conferida pela coisa julgada deve ser

ponderada, cedendo espaço a esses interesses. Com efeito, diante do confronto entre a segurança

jurídica conferida pela coisa julgada e a tutela aos direitos da personalidade, em que se inclui o

direito ao reconhecimento da paternidade, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, fundado na noção

de justiça social, vem admitindo a repetição de ação de investigação de paternidade que haja sido

julgada improcedente por falta de provas. Nesse sentido, proferiu a seguinte a decisão:

“Processo Civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa Julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de Família. Evolução. Recurso acolhido. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de

28

investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. (...) III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade’. IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.”53

(grifamos)

Outra garantia hoje mitigada é a do direito adquirido, que, assim como as demais,

deve se abrir para ponderações quando estiver diante de interesses de mesma envergadura.

A contribuição previdenciária incidente sobre os atuais servidores inativos e

pensionistas, instituída pela Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, vem

causando inúmeras polêmicas. Vozes abalizadas sustentam a sua inconstitucionalidade, por suposta

violação ao direito adquirido. Felizmente, há quem defenda a constitucionalidade, dentre estes

DANIEL SARMENTO, que com muita precisão aponta, como um dos fundamentos, o disposto no

art. 60, §4º, IV, da Lei Maior, que dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a abolir os direitos e garantias individuais” (grifamos). Assim, de acordo com o autor, a

Emenda Constitucional nº 41/2003 não estaria “abolindo” o direito à percepção dos benefícios

previdenciários, mas tão-somente retirando alguns elementos periféricos, mantendo-se íntegro o

núcleo essencial do direito. Confira-se:

53 REsp 226436/PR. DJ 04/02/02 P. 370. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. T4 – Quarta Turma.

29

“(...) não é a atual configuração constitucional de cada direito social que foi protegida do constituinte derivado, mas apenas o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais. Certas restrições marginais, que não afetem a essência do direito em questão, devem ser consideradas lícitas, já que só a abolição plena ou tendencial foi proscrita pelo constituinte originário. Daí porque entendemos ser possível a reforma constitucional da Previdência Social que limite direitos previdenciários atualmente consagrados, desde que continue preservado o núcleo essencial do direito fundamental à previdência. Este, na nossa opinião, pode ser identificado com a garantia de benefícios que assegurem a vida com dignidade para pessoas que, pela idade, doença ou outras adversidades, não tiverem mais condições de trabalhar, bem como para as respectivas famílias, em caso de falecimento”.54

Sobre a mesma questão, JOAQUIM BARBOSA, Ministro do Supremo Tribunal

Federal, manifestando-se pela constitucionalidade da EC 41/2003, no julgamento da Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 3105-8, observou que se considerarmos o direito adquirido como garantia

absoluta, concluiremos que mesmo após a abolição da escravatura os senhores de escravos poderiam

invocar este suposto direito adquirido de manter negros como sua propriedade privada, o que seria

absurdo.

Portanto, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência, diante da colisão de interesses

contrapostos, não estão mais se conformando em ficar com as mãos atadas pela segurança jurídica

em detrimento do bem comum. Hoje, esses interesses devem ser ponderados, com razoabilidade e

proporcionalidade, em busca de justiça social.

No caso em apreço, em tema de previdência complementar fechada, ameaçada por

desequilíbrio econômico-financeiro e atuarial, esta justiça social pode ser alcançada pela aplicação

imediata das novas regras estabelecidas nos regulamentos dos planos de custeio e benefícios, sem

que com isso esteja sendo violada outra garantia fundamental, porque o núcleo essencial do direito

estará sendo preservado, que é o equilíbrio do plano, com a conseqüente garantia do pagamento dos

benefícios.

54 TAVARES, Marcelo Leonardo (coordenador). A reforma da previdência social: temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 22.

30

Na verdade, estar-se-á aplicando a teoria de PAUL ROUBIER que admite a produção

de efeitos imediatos da nova lei, também chamada de retroatividade mínima, que, na verdade, não é

propriamente retroatividade, pois não alcança os fatos passados.

Este entendimento também parece estar de acordo com o art. 2.035 do novo Código

Civil55, que subordina os efeitos dos negócios e demais atos jurídicos constituídos sob a égide do

Código Civil revogado aos seus preceitos, sendo, portanto, uma forma de mitigação do ato jurídico

perfeito.

Sabemos, todavia, que a jurisprudência cristalizada da nossa Suprema Corte é no

sentido de não admitir a chamada “retroatividade mínima”. A título de exemplo, podemos citar a

decisão proferida na ADI 1.931-MC/DF, ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde –

Hospitais, Estabelecimentos e Serviços – CNS, buscando a declaração de inconstitucionalidade

formal e material da Lei n. 9.656/98, que dispõe sobre os Planos de Seguros Privados de Assistência

à Saúde. Essa lei determina, em alguns de seus dispositivos, a sua aplicação aos contratos em curso,

celebrados sob a égide da lei anterior. Por entender que estariam sendo violados o direito adquirido e

o ato jurídico perfeito, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão suspendendo a eficácia de

alguns dispositivos56.

55 “Art. 2.035. A validade dos negócios jurídicos e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”. 56 Confira-se trecho do voto do Min. MAURÍCIO CORREA: “(...) a retroatividade determinada por esses preceitos faz incidir regras da legislação nova sobre cláusulas contratuais preexistentes, firmadas sob a égide do regime legal anterior, que, a meu ver, afrontam o direito adquirido consolidado das partes, de tal modo que violam o princípio consagrado no inciso XXXVI do artigo 5o da Constituição Federal e põem-se em contraste com a jurisprudência desta Corte de que é exemplo o acórdão proferido na ADI 493-DF, Moreira Alves, publicado na RTJ 143/724. Do voto-condutor do referido julgamento extraio os seguintes fundamentos: ‘(...) pouco importa que as normas impugnadas nesta ação direta sejam normas de ordem pública, tendo em vista o interesse público desse sistema, pois, como acentuei, exaustivamente, na parte inicial deste voto, também as normas de ordem pública e de direito público estão sujeitas à vedação constitucional do artigo 5o, XXXVI, da Constituição Federal: ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’. Apesar de impostas pela lei certas cláusulas como obrigatórias num contrato, uma vez apostas a ele passam a integrá-lo como fruto de ato de vontade inclusive da parte que a ele adere, e, conseqüentemente, daí resulta que esse contrato, como ato jurídico perfeito, tem os seus efeitos futuros postos a salvo de modificações que a lei nova faça com relação a tais cláusulas, as quais somente são imperativas para os contratos que vierem a celebrar-se depois de sua entrada em vigor. Não há ato jurídico parcialmente perfeito, conforme suas cláusulas decorram da autonomia da vontade ou resultem de normas de ordem pública, para pretender-se que aquelas são infensas à retroatividade, ao passo que estas estão sujeitas à modificação imediata, que nada mais é – como já se viu – uma das espécies de retroatividade. Essa distinção, em última análise, volta ao problema da retroatividade das leis de ordem pública (ou seja, das leis cogentes), pois são leis dessa natureza que, em direito privado ou em direito público, impõem às partes contratantes a adoção de

31

Porém, ainda que diferentemente do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal

Federal neste caso específico, entendemos que a colisão entre a segurança jurídica e outras garantias

de idêntica hierarquia devem ser analisadas casuisticamente, considerando-se a natureza do direito

envolvido e o seu interesse geral e, neste caso, em se tratando de direito previdenciário, há que se

admitir a aplicação da nova lei, restringindo algumas garantias, mas mantendo-se o núcleo essencial

do direito, em benefício dos próprios participantes e assistidos, que são a razão de existir dos fundos

de pensão.

Segundo a lição engenhosa de FEIJÓ COIMBRA, “a segurança é um dos termos do

binômio que, com a liberdade, forma o sustentáculo da felicidade”57. Entrementes, na hipótese

vertente, não há que se cogitar de felicidade quando a própria segurança nos conduz ao

desequilíbrio, à desigualdade e à injustiça.

5. CONCLUSÃO

Os planos fechados de previdência complementar, administrados por entidades sem

fins lucrativos, têm como único objetivo garantir aos seus participantes, assistidos e beneficiários, o

pagamento de prestações previdenciárias de valores superiores àqueles pagos pela previdência

pública.

Para cumprir esse desiderato de promoção de bem-estar social, é indispensável que o

plano previdenciário mantenha-se sempre equilibrado, o que exige a gestão adequada do ativo e do

passivo previdenciário de acordo com o que determina a Constituição da República, as Leis

Complementares nºs. 108 e 109/2001 e as demais normas de hierarquia inferior.

cláusulas contratuais imperativas. Nem por isso essas cláusulas deixam de integrar o contrato, que, como ato jurídico perfeito, está a salvo das modificações posteriores que outras leis de ordem pública venham impor na redação dessas cláusulas. Volto a repetir o que já demonstrei: a norma constitucional impede a retroatividade da lei nova em face do ato jurídico perfeito, que, por não poder ser modificado retroativamente, tem os seus efeitos futuros resguardados da aplicação dessa lei”. 57 apud Revista de Previdência Social. Nº 252. São Paulo. Novembro/2001. p. 807.

32

Sendo facultativa a adesão do empregado ao plano de previdência complementar,

para que este se torne participante é necessário que assine um contrato de adesão, concordando com

as condições estabelecidas pela entidade nos regulamentos dos planos de custeio e de benefícios, de

onde se conclui que o "ato jurídico perfeito”, consubstanciado no contrato celebrado entre o

participante e o fundo de pensão, é um ato jurídico sob condição, dependente da realização das

condições estabelecidas pela entidade como capazes de ensejar o direito à percepção dos benefícios

previdenciários.

Como o contrato é celebrado para perdurar durante muitas dezenas de anos, porque

as obrigações previdenciárias são de longo prazo, eventualmente o plano pode encontrar-se diante

de fatores imprevisíveis que ameacem o seu equilíbrio, quando, então, poderão ser necessárias

modificações das condições nele dispostas.

A Teoria da Imprevisão, fundada na onerosidade excessiva, combinada com o

disposto no art. 13, II, da Lei Complementar nº 108/2001, autoriza que essas modificações sejam

feitas unilateralmente pelo Conselho Deliberativo das entidades fechadas de previdência

complementar, através da alteração dos regulamentos dos planos de custeio e de benefícios.

Para permitir a continuidade do plano, com a conseqüente garantia do pagamento dos

benefícios previdenciários, entendemos que essas alterações possam ser imediatamente aplicadas

aos contratos em curso, nos termos do art. 17, da Lei Complementar nº 109/2001.

Em linhas gerais, a produção imediata dos efeitos das novas regras justifica-se pela

preponderância, em um sistema previdenciário, da tutela imediata do bem comum sobre a garantia

individual da segurança jurídica, pois atende aos anseios de uma coletividade e não de cada

participante tomado isoladamente.

Portanto, fato notório e de especial relevância é a possibilidade da alteração das

premissas que sustentam o plano, tendo-se em vista que as obrigações pactuadas entre os fundos de

pensão e seus participantes são de longo prazo. A conseqüência lógica e requisito essencial para a

33

continuidade do plano, em condições de solvabilidade, é a alteração simultânea dos regulamentos e

conseqüentemente dos contratos já celebrados.

34

6. BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. CÂMERA, Miriam Costa Rebollo. Plano de benefícios das entidades de previdência privada:

alterações do regulamento e o direito adquirido. Revista de Previdência Social. N. 37. set/dez 1983. p. 29/31.

DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: teoria geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil interpretada. 9 ed. São Paulo: Saraiva,

2002. ________________. Curso de direito civil: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 19

ed. São Paulo: Saraiva, 2003. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 143. GABBA, C. F. Teoria della retroatività delle leggi. Pisa: Nistri, 1869. MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max

Limoned, 1998. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. São Paulo: RT,

2003. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Pareceres selecionados de previdência complementar. São Paulo:

LTr, 2001. ________________. Curso de Direito Previdenciário. Tomo IV. Previdência Complementar. 2 ed.

São Paulo: LTr, 2002. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 11 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2003. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Max Limoned, 1952. REIS, Adacir (coordenador). Fundos de pensão em debate. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. Revista de Direito Previdenciário. N. 252. São Paulo. Novembro de 2001. RODRIGUES, Flavio Martins. Fundos de pensão de servidores públicos. Rio de Janeiro: Renovar,

2002. ________________. Fundos de pensão: temas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

35

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. ROUBIER, Paul. Le droit transitorie. Paris: Dalloz, 1960. TÁCITO, Caio. Previdência privada e direito adquirido. Revista de direito administratrativo. N.

186. out/dez 1991. TAVARES, Marcelo Leonardo (coodernador). A reforma da previdência social: temas polêmicos e

aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. TEPEDINO, Gustavo (coordenador). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva

civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3

ed. São Paulo: Atlas, 2003.