planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

22
DEBATE DEBATE 221 Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando problemas Health planning, management and evaluation: identifying problems 1 Departamento de Medicina Preventiva, Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa, Faculdade de Medicina da USP, Av. Dr. Arnaldo 455, 2 ° andar, 01246-903, São Paulo, SP, Brasil [email protected] 2 Departamento de Orientação Profissional e Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa, Escola de Enfermagem da USP Lilia Blima Schraiber 1 Marina Peduzzi 2 Arnaldo Sala 1 Maria Ines B. Nemes 1 Elen Rose L. Castanhera 1 Rubens Kon 1 Abstract This paper presents some relevant is- sues for the health services from the planning and management perspective while dealing with those work processes which produce health care and assistance. It contributes therefore with the study of the interfaces between man- agement, planning and the labour process in health. Management is considered as a labour process itself, organising and executing health care submitted to a previous productive ratio- nality. On the other hand, some majors prob- lems of the health care and assistance are con- sidered as potential issues to be included in management: the integration of health prac- tices, dealing with the interdisciplinary nature of techniques and the multiprofissional health team, and the health care quality, from a tech- nical scientific efficacy and communicative per- spective. Labour is thus conceived as both pro- ductive action and interaction. That means considering the connections between the differ- ent professional works producing health care and assistance as well as considering those sub- jective interactions producing shared decisions and communication Key words Management and Work in Health; Work and Interaction in Health; Planning in Health; Labour Process Resumo Este texto apresenta um conjunto de problemáticas para o planejamento e a gestão dos serviços de saúde, a partir dos processos de trabalho produtores diretos da assistência e dos cuidados em saúde. Busca, pois, contribuir com questões relevantes ao estudo das interfaces en- tre a gestão e o trabalho em saúde. Aborda o próprio planejamento e a gestão como produção de um trabalho: o de organização e realização de outros trabalhos, com vistas à racionalidade produtiva dos serviços em seus diversos fins. De outro lado, pontua questões desses outros traba- lhos enquanto problemas que podem vir a ser tomados pelo trabalho gestor: a integralidade das ações com interdisciplinaridade das técnicas e interação entre multi-profissionais no traba- lho em equipe, ou a garantia de qualidade reso- lutiva da assistência, tanto como eficácia técni- co-científica quanto como adesão e intercomu- nicação na relação direta entre os diversos pro- fissionais e destes com os usuários dos serviços. Para tanto concebe-se trabalho como processo produtivo e como interação, levando-se em con- ta as articulações entre as ações em saúde, pelo que representam de ações estratégicas para a produção de cuidados e assistência, bem como as relações intersubjetivas, pelo que representam de ações comunicativas e partilhas de decisões. Palavras-chave Gestão e Trabalho em Saúde; Trabalho e Interação em Saúde; Planejamento em Saúde; Processo de Trabalho

Upload: others

Post on 30-Jul-2022

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

DE

BA

TE

DE

BA

TE

221

Planejamento, gestão e avaliação em saúde:identificando problemas

Health planning, management and evaluation:identifying problems

1 Departamento deMedicina Preventiva,Centro de Saúde EscolaSamuel B. Pessoa,Faculdade de Medicina da USP,Av. Dr. Arnaldo 455,2° andar, 01246-903,São Paulo, SP, [email protected] Departamento deOrientação Profissional e Centro de Saúde EscolaSamuel B. Pessoa, Escola de Enfermagem da USP

Lilia Blima Schraiber 1

Marina Peduzzi 2

Arnaldo Sala 1

Maria Ines B. Nemes 1

Elen Rose L. Castanhera 1

Rubens Kon 1

Abstract This paper presents some relevant is-sues for the health services from the planningand management perspective while dealingwith those work processes which produce healthcare and assistance. It contributes thereforewith the study of the interfaces between man-agement, planning and the labour process inhealth. Management is considered as a labourprocess itself, organising and executing healthcare submitted to a previous productive ratio-nality. On the other hand, some majors prob-lems of the health care and assistance are con-sidered as potential issues to be included inmanagement: the integration of health prac-tices, dealing with the interdisciplinary natureof techniques and the multiprofissional healthteam, and the health care quality, from a tech-nical scientific efficacy and communicative per-spective. Labour is thus conceived as both pro-ductive action and interaction. That meansconsidering the connections between the differ-ent professional works producing health careand assistance as well as considering those sub-jective interactions producing shared decisionsand communicationKey words Management and Work in Health;Work and Interaction in Health; Planning inHealth; Labour Process

Resumo Este texto apresenta um conjunto deproblemáticas para o planejamento e a gestãodos serviços de saúde, a partir dos processos detrabalho produtores diretos da assistência e doscuidados em saúde. Busca, pois, contribuir comquestões relevantes ao estudo das interfaces en-tre a gestão e o trabalho em saúde. Aborda opróprio planejamento e a gestão como produçãode um trabalho: o de organização e realizaçãode outros trabalhos, com vistas à racionalidadeprodutiva dos serviços em seus diversos fins. Deoutro lado, pontua questões desses outros traba-lhos enquanto problemas que podem vir a sertomados pelo trabalho gestor: a integralidadedas ações com interdisciplinaridade das técnicase interação entre multi-profissionais no traba-lho em equipe, ou a garantia de qualidade reso-lutiva da assistência, tanto como eficácia técni-co-científica quanto como adesão e intercomu-nicação na relação direta entre os diversos pro-fissionais e destes com os usuários dos serviços.Para tanto concebe-se trabalho como processoprodutivo e como interação, levando-se em con-ta as articulações entre as ações em saúde, peloque representam de ações estratégicas para aprodução de cuidados e assistência, bem comoas relações intersubjetivas, pelo que representamde ações comunicativas e partilhas de decisões.Palavras-chave Gestão e Trabalho em Saúde;Trabalho e Interação em Saúde; Planejamentoem Saúde; Processo de Trabalho

Page 2: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Introdução

Este texto busca trazer à discussão questõesrelacionadas ao planejamento e gestão, comouma das áreas da saúde coletiva brasileira. Asquestões apontadas são alguns dos problemasenfrentados no cotidiano dos serviços. Signi-ficam para os gestores desafios práticos e pos-síveis dilemas técnicos, éticos ou políticos, emseus enfrentamentos. Em razão disto, enten-demos que serão também problemáticas parao conhecimento, constituindo objetos de in-vestigação, a fim de se explicar suas origens econstituições, como forma de apoiar as resolu-ções concretas e particulares que o cotidianodos serviços demanda.

Esta área “planejamento e gestão” pode servista como um conjunto bastante amplo deproduções técnico-científicas que, de modomais tradicional, pertenceu a uma das divisõesda saúde coletiva já denominada “Planejamen-to e Administração em Saúde”. Ao longo dosúltimos 30 anos que consolidaram no Brasil asaúde coletiva como campo de produção desaber e prática1 o planejamento e administra-ção em saúde serviu de eixo aglutinador paraobjetos de investigação e propostas de inter-venção social tão diversas quanto, por exem-plo, a gerência de unidades ambulatoriais ouhospitalares, os recursos humanos, os progra-mas assistenciais, a avaliação das atividades eações dos serviços, financiamento das ações,orçamentos dos setores de produção e dos ser-viços, entre outros. Tais recortes também re-sultaram em tão variadas aproximações da rea-lidade dos serviços e das ações em saúde, quepara compreender essa área de estudos e in-tervenção e seu desenvolvimento, a rigor, se-ria necessário uma pesquisa histórico-episte-mológica específica2. Um estudo dessa natu-reza permitiria redispor, da perspectiva clas-sificatória, a produção que hoje encontramos,distinguindo a que pende mais ao polo teóri-co-conceitual daquela que se apresenta coma qualidade de projeto de intervenção, ou aque delimita objetos referidos ao planejamen-to daquela que pende mais à administração,identificando com precisão os conceitos e osreferenciais teóricos utilizados em cada qual.Isto, sem falarmos da óbvia busca contempo-rânea de superar esses limites clássicos sob astemáticas da gestão e da avaliação, apontan-do-se, inclusive, para a superação da dicoto-mia, também clássica, entre a pesquisa e a in-tervenção3.

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.222

Não contando, porém, com tal produção,neste texto, para identificarmos alguns proble-mas e problemáticas que consideramos impor-tantes, vamos recorrer a uma compreensão desua história cunhada pela nossa própria expe-riência de participantes: na qualidade de su-jeitos também construtores das mudanças edesenvolvimento do planejamento e adminis-tração em saúde. Com isso certamente incorre-remos no viés do espaço-tempo em que se deunossa própria prática, de pesquisadores na áreae de profissionais do planejamento e gestão.Por isso o que oferecemos à discussão deve sernecessariamente enriquecido com os demaispontos-de-vista, particulares a outros tantospersonagens partícipes da saúde coletiva e queconstituem nossa comunidade de interlocuçãocientífica e profissional.

Adiante-se que nosso viés deriva do fatode que vivemos a situação de gerentes, via deregra, de nível local, isto é, de unidade especí-fica de prestação de serviços com produção as-sistencial direta, também conhecida como a“ponta do sistema de saúde”: uma unidade bá-sica do tipo Centro de Saúde. Com isto privi-legiamos tanto este nível da entrada em umsistema, quanto as interfaces entre o planeja-mento/gestão e o processo de trabalho em saú-de, em que as questões fundamentais são ques-tões assistenciais bem próprias, como as dapromoção da saúde e prevenção primária, re-lativamente a outros níveis de prevenção, e tra-tamentos de recuperação clínica básica, rela-tivamente a outros níveis de intervenção mé-dica. São elas:• integralidade das ações, para a interven-ção médico-sanitária articulada e conforman-do modelo de assistência de natureza técnicainterdisciplinar específica;• interação entre multiprofissionais no tra-balho em equipe;• qualidade resolutiva da assistência muitomais da perspectiva da produção direta dasações do que do modelo de assistência gené-rico, gerando outras questões como: eficáciatécnico-científica na resolução de casos, ade-são e intercomunicação na relação direta desujeitos (profissionais-usuários, profissionais-profissionais e profissionais-gerentes) e delimi-tação do alcance e limites dos cuidados;• revalorização desse nível de atuação pro-fissional, em geral, desqualificado como exer-cício da profissão em saúde, particularmenteno caso de médicos, em primeiro lugar, e en-fermeiros, em segundo lugar.

Page 3: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Esta última questão merece uma observa-ção, pois, se as demais serão também proble-mas e problemáticas dos outros níveis de umsistema de saúde, mesmo que cabendo a cadaqual repensá-las, neste nível da unidade bási-ca e sua atenção (primária), há a necessidadede definir e requalificar a assistência e o tra-balho: o que é e quanto vale essa atenção pri-mária e a correlata tecnologia básica de inter-venção, em que a ação assistencial e ações deoutro tipo como a educativa ou da assistênciasocial, confundem-se com muita freqüência,tanto no bom sentido da interação de profis-sionais e articulação das ações, quanto no sen-tido de desqualificar, por exemplo, a educa-ção, facilmente reduzida a uma intervençãobiomédica, ou desqualificar a esta por ser“muito educativa” ou muito “assistência so-cial” e menos biomédica, permitindo a confu-são ideologicamente interessada aos modeloshegemônicos, da atenção primária como me-dicina da pobreza e da tecnologia apropriadacomo intervenção sem saber ou sem ciência4.

Este é, portanto, um recorte bem particu-lar sobre as questões e que é próximo a algunsmodelos assistenciais (Paim, 1993) ou progra-mas particulares (Mendes, 1996), como porexemplo Saúde da Família, pela preocupaçãocom esta assistência locada imediatamente noâmbito da vida privada (família) ou do coti-diano social (vida comunitária). Não recobretodas as situações nem do trabalho direto, nemda gestão em saúde. Não obstante, acredita-mos que suas problemáticas possam contri-buir para as demais situações de modo analó-gico, isto é, pela similitude de questões que te-rão que tratar os gestores locais de adminis-tração pública, mesmo quando em nível maisamplo tal como os distritos sanitários, porexemplo. Isto porque gestores de vários níveissempre se envolvem com a implementação deuma dada política assistencial, implantandouma certa organização da produção dos ser-viços em acordo com as diretrizes do SUS e,ao mesmo tempo, buscando, em especial, a in-tegralidade das ações e as interações que pro-duzem cuidados diretos à população.

Esta última pretensão – a integralidade dasações e as interações entre indivíduos e atoresresultantes – constituiu, afinal, nossa eleiçãotambém de pesquisa, investigando as possibi-lidades e os limites da integração entre a as-sistência clínica e aquela dos programas deprevenção e promoção da saúde na assistên-cia da unidade básica, o que se denominou

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

223

“ação programática em saúde” (Schraiber,1990; Schraiber et al.,1996). Examinada daperspectiva de produção direta dos cuidados– sua organização e seu dia-a-dia no cotidianodo trabalho em saúde, mais do que pelo ângu-lo dos modelos de consumo ou de políticas deEstado – tal modo de trabalhar e assistir pro-piciou o estudo da integração entre práticasrealizadoras de trabalho em saúde: possibili-dades e limites da interação entre os profissio-nais da prática clínica, e seu agir assentado naaproximação individual dos problemas de saú-de, e aquele da prática sanitária, de aproxima-ção populacional ou seus segmentos, sendoesta interação propiciadora de questões tantoda interdisciplinaridade dos saberes especia-lizados, quanto da interatividade na relaçãoentre os usuários e o próprio serviço. Expe-riência essa que, como pesquisadores, avalia-mos, e da qual procuramos extrair o conheci-mento técnico-científico que pudesse contri-buir para o planejamento e gestão de serviçosde saúde.

Mas não é nosso intuito novamente traba-lhar a proposta da ação programática, seja co-mo organização, seja como prestação de ser-viços. Pretendemos, sim, levantar algumasquestões que essa experiência nos colocou. Es-tamos certos de que serão compartilhadas comgestores que também viveram ou vivem, na re-ferida implementação das políticas de saúde, oempreendimento de buscar no planejamentoe avaliação, e por meio dos modelos assisten-ciais que propõem, a máxima qualidade assis-tencial de seus serviços (o que certamente in-clui, além da competência técnico-científica,a viabilidade econômico-financeira da produ-ção), bem como a realização das diretrizes po-líticas de nossa reforma sanitária.

As questões que trazemos serão abordadas,como já dito, pelas interfaces entre gestão eprocessos de trabalho em saúde. Estes últimoscompreendem o trabalho diretamente produ-tor dos cuidados e das ações assistenciais. Tra-ta-se, portanto, em nosso caso, das questõesdesse trabalho direto e de seu trabalhador: omédico, o enfermeiro, o psicólogo, o assisten-te social, o auxiliar de enfermagem, etc. Vamosdestacar questões que a partir desse processode trabalho assistencial se colocariam para otrabalho do gestor. São especificidades e pro-blemas para o momento da prestação diretados serviços, e alguns podem não se configu-rar, ainda, como problemas também para oplanejamento e a gestão. Vale dizer que o ges-

Page 4: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.224

tor acatará ou não tais questões como sua pro-blemática própria. Acreditamos que o gestorassim o fará sempre que aquelas questões seapresentarem como algo a disciplinar ou atransformar, do ponto de vista da organizaçãoe funcionamento geral do conjunto dos tra-balhos produtores diretos das ações assisten-ciais.

Tal como parte da bibliografia aponta, essaúltima perspectiva implica propor projetos deintervenção na organização do coletivo de tra-balho. Não o faremos exatamente desse modoe, então, não estaremos, por ora, propondo for-mas de gestão. Mas estaremos levantando umconjunto de questões que, da nossa experiên-cia, deveriam ser tomadas como problemas pa-ra o planejamento e a gestão em saúde.

Antes, porém, registremos que, em termosgenéricos, a assistência fornecida à população,enquanto um conjunto coordenado de açõese os produtos esperados em seu todo, tem sidoobjeto da organização dos serviços, situaçãoem que os gerentes de unidades (já não somen-te básicas ou de atenção primária) estão dian-te da necessidade de articular os trabalhos pro-dutores de cuidados e os princípios técnicos(do conhecimento científico), organizativos(do Sistema de Saúde) e ético-políticos (da Po-lítica Social em Saúde) da “boa prática” emsaúde. Entenda-se esta “boa prática” como sen-do aquela que, cientificamente, é a esperada.E que será operada segundo um modo de pres-tar os serviços que cumpra tanto com as ex-pectativas de consumo das sociedades estru-turadas na forma mercado, quanto com as ex-pectativas políticas e éticas da máxima distri-buição deste benefício que constitui a assis-tência à saúde e das conquistas do direito àsaúde com base na reforma sanitária brasilei-ra. Por isso, dentre as questões de interesse pa-ra a gestão em saúde, principalmente para en-frentar os problemas dessa “ponta do sistema”que representa a assistência direta e a produ-ção dos cuidados, estarão as contempladas pe-las interfaces que elegemos: da ação técnica ouda tecnologia dos cuidados com o planejamen-to e a gestão dos serviços.

Não obstante, algumas questões que esta-remos colocando são fruto de recentes estu-dos sobre o trabalho produtor direto dos cui-dados, ampliando o leque das interfaces a se-rem consideradas pela gerência, o que julga-mos nossa particular contribuição, neste mo-mento. Isto posto, cabe-nos iniciar especifi-cando como vemos, hoje, o próprio trabalho

dessa gerência e algumas de suas questões tec-nológicas.

Planejamento e gestão: desafios atuais

Em uma preliminar colocação, bem genérica,diremos que as considerações que seguem sãofruto do movimento histórico do próprio cam-po da saúde coletiva, tal como realizado naárea particular do planejamento e administra-ção em saúde, em função da especificidadedessa área.

Consideremos a mudança do tradicionalpapel do administrador público, ao somar àfunção anterior, aquela de gerente de serviçosde saúde. Vale dizer, a de organizar e contro-lar unidades produtoras de cuidados de assis-tência médica em redes do setor público, talqual nos mostra o estudo de Castanheira(1996). Isto foi produto das políticas de saú-de brasileiras na construção do próprio SUSe do modo peculiar como a saúde foi sendotomada como questão social e questão de Es-tado. O Estado brasileiro interferiu no merca-do e nos postos de trabalho na saúde, prati-cando políticas de proteção social tais queabriu espaços profissionais em seus dispositi-vos e aparelhos prestadores de serviços, con-figurando-se não apenas como Estado regula-dor mas Estado provedor. Assim, à clássica exi-gência da figura de “representante do interes-se público”, tal como emergiu nos anos 30-40o agente do Estado e suas políticas, caracteri-zando o administrador público, somou-se afigura do profissional que, técnico em organi-zar a produção – o gerente, deve otimizar aprodutividade, manejar os problemas e os con-flitos cotidianos, para a produção de serviçosassistenciais oferecidos ao consumo individuale de mercado, envolvendo todas as questõesda eficácia/eficiência empresarial, ainda queempreendimento (“empresa”) estatal.

Do administrador em saúde pública ao ge-rente da rede de unidades e serviços do setorpúblico de produção de assistência médica emarticulação com o setor privado, este persona-gem contemporâneo – o gestor público, de-fronta-se com uma prática de grande comple-xidade, resultante dos novos desafios deste no-vo lugar. E isto será, de um lado, garantir a uni-versalidade e a eqüidade na prestação de servi-ços; possibilitar a participação popular e pro-fissional nos processos decisórios correlatos àorganização da produção e também na execu-

Page 5: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

225

ção dos cuidados em saúde; lidar com a inte-gralidade das ações, criando espaços e formasde interação no trabalho cotidiano e geren-ciando conflitos, tal como convém ao repre-sentante dessa esfera pública que se plasmounas leis e normas da reforma. Mas será, de ou-tro lado, encontrar a melhor via de obter altaresolutividade e boa qualidade técnico-cien-tífica das ações que serão produzidas. Estas úl-timas exigências são produto e produtoras,também, da competência de incorporar todo oconhecimento científico já produzido e ope-rado, hoje, nas diversas tecnologias de inter-venção em medicina e em saúde pública, po-rém, com crítico discernimento – de técnicoe de gerente – tal como necessário (e comoconvém) para fazer frente à sua específica qua-lificação profissional. Esta, além de compreen-der as decisões quanto à intervenção apropria-da nos processos saúde-doença nas duas esfe-ras que agora se entrecruzam (individual e po-pulacional), deve contemplar a administraçãoda oferta e consumo dos serviços, no forma-to demanda individualizada por cuidados eoutros serviços e que, ainda mais, se dispõecomo consumo de bens em mercado5.

Não há dúvida de que esta transformaçãodo planejamento e administração em saúdemuda e renova as problemáticas e as técnicasde organização/gestão/avaliação às quais essepersonagem precisa, doravante, recorrer.

Em segundo lugar, considerando-se a es-pecificidade dessa área do planejamento e ad-ministração em saúde, registre-se que no cam-po da saúde coletiva ela representa o locus daprodução técnico-científico de caráter maisaplicado, vale dizer, a porção da saúde coleti-va que traduzirá suas ciências e suas tecnolo-gias-base, como por exemplo a epidemiologia,ou a biomedicina ou a sociologia ou a antro-pologia ou a matemática e estatística, em co-nhecimentos que são imediatamente propos-tas de intervenção nos serviços: tecnologias deorganização e funcionamento de espaços pro-dutores da intervenção em medicina ou emsaúde pública, prestando serviços e cuidadosmédicos e sanitários. Isto representa, quandotais intervenções também alcançam os proces-sos produtores diretos dos cuidados e a inte-gração neste nível clínico de atuação, comopor exemplo a “ação programática em saúde”,interferências desde a estruturação dos servi-ços nas tecnologias e técnicas clínicas e sani-tárias, mudando os modos mais tradicionaisdo agir profissional.

Isto tudo também quer dizer que, dificil-mente, essa produção técnico-científica do pla-nejamento e gestão se caracterizará por teoriamais abstrata, bem como, dificilmente, podedeixar de tratar dos conflitos políticos e éti-cos, perpassando os conflitos técnicos: entrea gerência e os profissionais do cuidado dire-to; ou desses últimos entre si; ou, mesmo, en-tre o serviço e seus usuários.

Dentro dessa especificidade e em razãodessa história, é que veremos a área interes-sar-se por problemas que vão se deslocandodo plano macro social, tal como se caracteri-zou em sua constituição inicial, quando a pla-nificação surgiu como instrumento de atua-ção/renovação do Estado, para a microfísicadas ações assistenciais (Kon, 1997). Se o pla-no macro social pode ser representado peloEstado e suas questões de planejamento/ad-ministração – em que há que se ocupar com acorreta enunciação da boa norma geral de pro-teger/produzir saúde, no âmbito do qual oconsumo da assistência é um dos itens, o mi-cro social é o deste consumo, plano da presta-ção direta de serviços assistenciais. Este é re-presentado pelas instituições e estabelecimen-tos produtores de serviços, em que há que seocupar com a boa realização prática das nor-mas, com o que se requer do planejamentouma habilidade de tecnologia do político: odomínio da arte de flexibilizar as normas pa-ra o cotidiano particular deste ou daquele es-tabelecimento ou conjunto deles, e não maiscom o geral social, ainda que sigam sendo taisatuações, com bastante freqüência, questõesda esfera organizativa da oferta dos serviçospara consumo.

Neste movimento de redelimitações das si-tuações que passam a ser alvos de propostas eestudos da área, redefinindo, pois, objetos pre-ferenciais das pesquisas e das intervenções, po-demos observar um outro, de natureza meto-dológica: a área cada vez mais se desvia daaproximação estrutural da organização e daadministração, rumando em direção às dinâ-micas interativas dos indivíduos, com o quevem produzir abordagens mais processuais dasorganizações, dando visibilidade à gerênciacomo o lugar do desempenho em redes inte-rativas – interação do gestor com outras rela-ções interativas, em uma ação sobre a ação deoutros (de profissionais e de usuários), ressal-tando os problemas dos sujeitos e seus valo-res, das culturas e seus comportamentos prá-ticos, como parte das flexibilizações das nor-

Page 6: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.226

mas. O que produziu a interatividade e a co-municação como também problemáticas doplanejamento e das técnicas de gestão, soman-do-se às questões da organização.

Todo esse movimento dos problemas a se-rem enfrentados geraram, como parte do de-senvolvimento da área original do planeja-mento e administração em saúde, um corre-lato movimento de individualização, e tam-bém de incorporação, de noções e conceitosno ideário do planejamento e da administra-ção em saúde. Idéias que tem sido operadascomo fundamentos para o conhecimento e pa-ra a ação social. Por exemplo, às noções-base‘planejamento’, ‘administração’, vão se soman-do as de gerência, gestão, organização tecnoló-gica, modelo assistencial e avaliação em saú-de. Isto sem falar daquelas que são tributáriasde sínteses com outras áreas da saúde coleti-va, tal qual a epidemiologia ou as outras ciên-cias humanas que não a economia, base parao planejamento e a administração. Nesta últi-ma categoria comparecem, entre tantas, as no-ções de vigilância, processo de trabalho emsaúde, agir comunicativo, atores e agentes emsaúde, autonomia, empoderamento e eman-cipação de profissionais ou usuários, repre-sentações profissionais ou populares, etc.

No entanto, percebemos que essas noçõescunhadas, desmembradas de suas raízes ori-ginais, vêm sendo progressivamente utiliza-das como substitutas das anteriores, novasidéias-base para intervenções ou estudos emque vão sendo operadas com a qualidade deconceitos independentes. Com isso, um gran-de leque de questões passa a se apresentar pa-ra a área do planejamento e administração emsaúde como parte de sua substância mesma,sem que, necessariamente, possamos percebertal pertencimento, em termos do sentido his-tórico e mesmo epistemológico das modifica-ções que ocasionam.

Contudo, como dissemos, recuperar essasraízes com certa exatidão e traçar a historici-dade desses novos conceitos, é uma tarefa a sefazer. O que doravante apresentaremos sãoapenas algumas das questões que, dialogandocom os processos de trabalho no interior daprodução de serviços, estão colocadas para ogestor em saúde e que, na qualidade de possí-veis objetos de pesquisas e recortes de inter-venção, se revelam incitantes poderosos a ins-tigarem nossa atenção.

Ciência, trabalho e processo de trabalho em saúde

De modo sintético enumeremos algumas es-pecificidades da ação que chamamos trabalho,para colocarmos como questão a dimensão te-leológica dessa ação, vale dizer, o trabalho co-mo ação instrumental. Instrumental, pelo ân-gulo da consecução de produtos esperados,com base em regras técnicas delimitadas. Doponto de vista normativo e das relações so-ciais, a instrumentalidade pode adquirir umcaráter estratégico ou comunicativo, confor-me seja a ação mais autonomizada e indepen-dente das interações ou seja produto pactuadonas relações intersubjetivas. Essas últimas con-siderações fundam-se na distinção haberma-siama da ação estratégica e ação comunicativa(Habermas, 1989; 1994). Essa abordagem temsido estudada no campo do planejamento edela também iremos nos valer, aqui, para re-tomar a dupla especificidade do trabalho comoação social: o trabalho como ação produtiva,dentro da racionalidade dirigida a fins dados,isto é, a teleologia que lhe é própria, e comoação comunicativa, o trabalho como intera-ção social. Essas especificidades consubstan-ciais à ação do trabalho, são, conforme Haber-mas, analiticamente distinguíveis mas mutua-mente irredutíveis, abrindo a possibilidade deinvestigarmos dentro do agir estratégico dotrabalho o modo concreto de realização da in-teração social, questão a que voltaremos adian-te. Por ora, examinemos características do tra-balho como ação estratégica.

A primeira está no fato de que sua ação nãoé qualquer, mas intencionalmente realizada.Intenção que se pauta pela finalidade dessaação, sempre socialmente reconhecida e reite-rada em sua legitimidade. O que ocorre por-que, em segundo lugar, é uma ação que pro-duz algo para a sociedade, satisfazendo as ne-cessidades de seus indivíduos, tal como umbem ou um serviço. Por isso, em terceiro lu-gar, tem que alcançar os resultados esperadose apresenta sempre um produto a seu final. Éação cujos resultados são igualmente reconhe-cidos/autorizados na sociedade. Em quarto,vamos lembrar que, para tanto, essa ação deveajustar meios a seus fins, o que lhe confere umadeterminada racionalidade de operação. Cria,em quinto lugar, um conhecimento tanto acer-ca dos referidos meios, diante do objeto de suaintervenção e de sua finalidade, quanto um co-nhecimento acerca da operação a ser feita, is-

Page 7: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

227

to é, qual o modo de produzir adequado parao produto pretendido, modo esse que passa aestar contido em uma técnica, isto é, um sa-ber-fazer. Esta técnica poderá, mediante o en-sino, ser transmitida de um a outro agente dotrabalho, sem que se perca essa qualidade deoperação corretamente exercida, componen-te importante da técnica.

Vamos tentar melhorar essa noção de téc-nica6. Extraída da idéia grega de arte – “dispo-sição pela qual fazemos coisas com a ajuda deum regra verdadeira” (Ross, 1987: 222), a téc-nica é manipulação, intervenção manual queproduz coisas, resulta em produtos, obras ex-teriores ao fazer, com o concurso de conheci-mentos. É, assim, exercício de saber, ação ar-tificial mediante o que há intervenção especi-ficamente realizada para a obtenção do pro-duto.

Por isso trabalhos são atos técnicos; os pro-cessos de trabalho valem-se de técnicas embo-ra a técnica não recubra todas as questões en-volvidas no trabalho, assim como o trabalhonão recobre todas as atividades que são técni-cas. No ensino das técnicas adestra-se o agen-te do trabalho. Mas a transposição não é tãoimediata. Basta lembrar que no caso das téc-nicas de base científica, quando o saber-fazertem por fundamento a ciência, ensina-se, mui-tas vezes, mais sistematicamente os conheci-mentos científicos que nos informam acercado objeto sobre o qual vamos intervir, do quesobre a ação da intervenção, principalmenteno contexto da produção dos serviços ou docotidiano do trabalho, o que corresponderianão à técnica em abstrato, como teoria, senãoo saber diretamente aplicado, saber operantedo trabalho.

Mas destaquemos o fato de que o mencio-nado conjunto de especificações dos atos téc-nicos confere ao trabalho a possibilidade deser ação repetida, e por muitas mãos diferen-tes, com alguma garantia de mesmo resulta-do. Isto é, um coletivo de agentes (os profis-sionais da técnica), que são pessoas diferentese com talentos igualmente diversos, ou comsentimentos, desejos e opiniões também di-versos, e mesmo distintas formas de apreen-der o saber exigido pela ação, esse conjunto deprofissionais age com regularidade do mesmomodo e produz, até nem sempre com meiosexatamente iguais em razão dos contextos dotrabalho, produtos bastante próximos, que sa-tisfazem pessoas também diferentes, e satisfa-zem de forma bem parecida.

Essa repetitividade, a capacidade de se rei-terar e agir como intervenção que pode ser,de fato, antevista e conformar o projeto daação, dá-se pelo caráter mais rotineiro de seu“modo de fazer”, ao que poderíamos chamarde “tecnicalidade” do trabalho. Isto quer di-zer que, de certa forma, há uma possibilida-de do saber de operação reter, enquanto sa-ber, previamente à ação em curso, o virtual daação. Destaca-se assim a presença desse saber,anterior, mas não externo, ao fazer. Esta pre-sença será tão mais forte quanto mais as téc-nicas forem complexas, tal como as que en-volvem conhecimento científico. Por isso oaparecimento das técnicas complexas com amoderna tecnologia instrumental permitiuque o saber de operação crescesse em volumede conhecimentos necessários e diversifica-ção de conteúdos, de modo a poder ser, hojeem dia, até tomado e mesmo criado isoladodo momento da produção dos trabalhos eapropriado pela forma ciência de produzir co-nhecimento. Em outros termos, um conheci-mento do tipo teoria. Diremos uma teoria so-bre práticas ou modos de praticar, a que al-guns autores chamam de teoria científica dastécnicas ou tecnologia – a ciência das técni-cas (Gama, 1986; Lenk,1990); para outros,simplesmente ciência, sem diferenciar as ciên-cias tecnológicas das ciências básicas, em ra-zão da grande aproximação histórica entreciência e técnica (Granger, 1994).

Esse é o resultado de um de longo trans-curso histórico. A partir dos séculos XV e XVI,processa-se uma grande alteração das cone-xões entre ciência e técnica, envolvendo essen-cialmente a questão do valor da prática e suasoperações, bem como o valor das necessida-des materiais humanas. Alteram-se, pois, asrelações entre a filosofia e a ciência, o traba-lho manual e o intelectual, a teoria e a técni-ca. Em síntese, abandona-se a concepção deciência como verdade desinteressada da pers-pectiva das necessidades materiais – busca quenasce apenas após o atendimento das coisas ne-cessárias à vida. (Rossi, 1989:17) – em prol deuma busca que nasce para esse atendimento,cujo modo mais imediato ou não de fazê-lotambém representa distintas situações histó-ricas, como a modalidade contemporânea deconhecimentos do tipo ciência (mais tecnoló-gico) ou a vigente ao longo de todo séculoXVIII e parte do XIX. Neste mesmo movimen-to, ocorre uma grande alteração no sentido so-cial do trabalho e da técnica, que culmina, no

Page 8: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.228

século XIX, na enorme importância do traba-lho para a conformação da vida social.

É interessante notar que a rearticulaçãociência-técnica corresponde ao movimentoque redispõe socialmente os artistas, os expe-rimentadores e engenheiros, os médicos, emespecial os cirurgiões-barbeiros, os artesões eos trabalhadores manuais, camponeses e pos-teriormente fabris, estabelecendo novas confi-gurações e hierarquias entre as artes mecâni-cas e as liberais. Este movimento cinde, sepa-ra e reagrupa distintas ações, compostas ante-riormente de outro modo, mas tidas em seuconjunto como intervenção manual, por opo-sição a atividades ligadas aos saberes eruditos.Por exemplo, os artistas e arquitetos passamda condição de artesões a de burgueses e inte-lectuais; são cisões de antigas corporações enovas constituições de arranjos de interessese representação coletiva (Rossi, 1989). Ao mes-mo tempo saberes técnicos são inscritos emconhecimento erudito até que a ciência mo-derna se aproprie plenamente dos saberes deofício das técnicas e isole, por sua vez, já nomovimento dos séculos XVIII e XIX, de umlado o trabalhador manual da grande indús-tria – o sem saber – e de outro, o artista, cujosaber criativo e livre é sem importância, por-que não seria “útil”.

Assim, diferentemente de outros momen-tos históricos, em razão da existência da ciên-cia moderna e de suas relações com o conhecerhumano, nos aproximamos desta ciência já co-mo conhecimento de natureza técnica em to-das as suas atuais conotações. De tal modo es-te caráter técnico está associado à teoria daciência, que a esta tendemos a valorizar tantomais quanto mais representa uma utilidadenecessária, resposta útil às necessidades da vi-da, ou, como Ayres (1995), razão tecnológicaregendo a produção de conhecimento.

Neste processo a própria técnica revestiu-se de ciência, tendencialmente expulsando sa-beres de outro tipo como conhecimento paraintervenções (Habermas, 1990). Esta associa-ção atual da técnica com a ciência, evita valo-rizarmos saberes práticos e artes técnicas di-versos da teoria e da técnica científica moder-na. Duas operações conceituais podem ser re-gistradas nesse sentido: de um lado, a valoriza-ção do âmbito prático para o conhecimentoteórico, erudito, sem que contudo este deixede ser teoria. De outro lado, o esvaziamentoda técnica, como forma de sua “valorização”moderna, na direção de um procedimento prá-

tico, mera aplicação da ciência ou seu braçomecânico para a ação, desqualificando seu âm-bito próprio de produção de conhecimentoenquanto ação. Essas concepções nos ocultama dialética saber-ação e, principalmente, a exis-tência de múltiplos saberes, em diversas for-mas de agir técnico, na passagem da ciênciapara o trabalho.

Entre a ciência e o trabalho, apontamos oconcurso de dois saberes: o saber operante,também denominado tecnológico, que orien-ta a aplicação da ciência, da perspectiva da ra-cionalidade da ação no trabalho; e o saber prá-tico, em que, na atividade do trabalho, o pró-prio saber tecnológico se testa e se enriquece.Observemos que a correção prática pode exer-cer-se sobre a tecnologia (saber tecnológico),mas também sobre o dado científico.

Estamos chamando atenção para a re-cria-ção de todo saber no ato do trabalho (Schrai-ber, 1993; 1995;1997)7. O saber não esgotaránunca sua recriação quando em ato; não se es-gotam as mudanças que qualquer agente in-troduz em sua ação, ainda mais se considera-do o caráter reflexivo de certos trabalhos talqual o trabalho em saúde (Offe, 1989), pormais que esteja sendo mecânico o trabalho.

Por outro lado, também sabemos que hásituações técnicas em que a exatidão do sabercientífico e tecnológico não é tão completa as-sim, e sequer pode sê-lo. É o caso próprio daação em saúde e em particular, mas não só, docuidado médico. Nestes casos, o saber práti-co, da experiência, muitas vezes bastante sis-tematizada e outras estudada cientificamente(como nos ensaios clínicos, na medicina ba-seada em evidências) mostra os “ajustes” clí-nicos dos casos ou de cada caso à norma geralesperada. São ajustes que buscam minimizaro efeito das incertezas dos fenômenos vitais,que não podem ser totalmente previstos8 . Deoutro lado, também sabemos dos contextos daprodução do trabalho, em que a própria preci-são do saber tecnológico e da ciência encon-trarão limitantes de operação.

Recriar, assim, é sempre fato do âmbitoprático e o saber prático fornece esse tipo deconhecimento que, se pode até mesmo corri-gir o conhecimento teórico, vai mostrar ou-tros caminhos da ação, que o saber tecnológi-co sistematiza, garantindo a “tecnicalidade”do ato de trabalho.

Ao planejamento do trabalho e sua gestãocaberá, pois, lidar também com este compo-nente do trabalho, ao mesmo tempo que deve

Page 9: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

229

zelar pela qualidade do produto objetivo dotrabalho, lidando com a racionalidade técni-co-científica de sua operação. Articular essescomponentes do trabalho em saúde no mo-mento que é processo particular e concreto emserviços dados é um dos problemas da gestão:conhecer melhor essas relações será, sem dúvi-da, uma questão.

Trabalho, sociabilidade e interação

Se técnica e trabalho (no sentido humano-ge-nérico) são a forma propriamente humana deproduzir respostas a necessidades através deprocedimentos intencionais de alteração danatureza, também devemos lembrar que sãomodos de construção da vida social, formasde sociabilidade, surgindo o trabalho comoexpressão da própria socialidade do homem.Deste modo, as finalidades dos trabalhos sãocorrespondentes à construção ético-políticado modo social de viver.

O saber tecnológico ao projetar o modo deexecutar o trabalho, viabilizando a ação estra-tégica, realiza a intencionalidade de naturezatécnico-científica, consolidando a ação técni-ca e, por meio desta técnica, realiza, simulta-neamente, a natureza ético-política da vida so-cial9.

Mas estabelecendo-se na esfera da referi-da tecnicalidade do trabalho, esse saber ope-rante pode deixar pouco visível essa complexi-dade da dimensão intencional para a ação. Aintenção parece respeitar apenas a realizaçãodo científico, obscurecendo sua qualidade deser também a realização de projeto social: ra-zões e propósitos histórico-sociais contidosno interior do saber-fazer técnico, ou o “co-mo agir” no exercício da profissão. Será combase nisto, pois, que toda ação de trabalho,mesmo que examinada pela perspectiva de atoprodutor de produtos dados, pode e deve serreconhecida (e estudada) como intenção téc-nica, ética e política em ato.

Da perspectiva do agente do trabalho, talintenção exterioriza nesse agir (e no ato dotrabalho) a inscrição de cada profissional nanormatividade social, articulando o indivíduoàs normas da sociedade (Ayres, 1995)10.

Se não tornarmos clara mais esta relaçãoem nosso entendimento de toda a questão dotrabalho, retiramos do agir seu complexo deintenções e o exercício de sujeito deste agenteda técnica, para esvaziar o ato produtivo e o

agir profissional – que são duas perspectivasdistintas de se abordar o trabalho – em um tec-nológico de senso muito restrito, um “como”se faz destituído de “para que” ou “por quê” as-sim o fazemos. Note-se que estes últimos pa-râmetros revelam as origens do ato, as raízeshistóricas do trabalho e do agir técnico do pro-fissional, ao apontar as necessidades e as fina-lidades sociais a que o ato se relaciona. Enquan-to que o “como” revela a expressão com que setorna visível a ação, o que, se tomado como arepresentação completa da ação, pode nos mas-carar a importância das origens e das razõesda ação, elementos-chave para nosso entendi-mento da intencionalidade do trabalho no pla-no ético e político de seu projeto. Além disso,na abordagem dos profissionais em situaçãode trabalho, mais do que abordar o trabalhoem si como ação estratégica, as origens e as ra-zões da ação são igualmente elementos centraispara conhecermos os sujeitos em ação. Sujei-tos expressando-se no e através do trabalho eo trabalho como interação social.

Este esvaziamento de sentido ocorre quan-do locamos nossa problemática de conheci-mento apenas relativa às questões da opera-ção do trabalho. Por exemplo, ao tomarmos atecnologia por si mesma ou por seu represen-tante maior – o equipamento, a máquina – iso-lados da finalidade social do processo de tra-balho. É comum concebermos que conhece-mos as razões ou finalidades da ação (o por-quê e para que) quando conhecemos a opera-ção (o como). Assim à pergunta: por que cor-tamos, montamos, pintamos, etc... o aço?, reme-tida por exemplo à fabricação de motos, res-ponderíamos para ter motos; ou à pergunta pa-ra que cortamos, montamos, pintamos o aço,etc..?, igualmente será respondida: para termotos. A indagação a que me refiro no texto é,porém, não relativa ao como ou à operação, se-não a seu produto: por que e para que motos?cuja resposta remete à origem social e históri-ca da ação, quando então produzir motos secria como necessidade da vida cotidiana11.

Todas essas questões são relevantes para li-dar com a técnica e os processos de trabalho. Esão tão mais relevantes diante dos sentidoscontemporâneos da técnica e do trabalho, emespecial a partir de suas crescentes complexi-dades nas sociedades modernas, tal como severificou sobretudo ao longo do século XIX eda subseqüente tendência de passarmos a verquase todos os atos da sociedade como traba-lho, ou ao menos sob suas referências12.

Page 10: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.230

Planejamento e gestão; técnica e trabalho

Uma incursão pelas diversas proposições deplanejamento em saúde que ocorreram naAmérica Latina nos mostra que quase todaselas, possuem uma rica e às vezes bem com-pleta exploração de técnicas. São proposiçõescom alto teor prescritivo e com orientaçõesbastante apuradas do agir (em planejamento).E talvez por essa característica é que autorescomo Testa (1992) propõe para suas reflexõesde caráter mais teórico e enunciadora de prin-cípios gerais para a ação, não a noção de pla-nejamento estratégico mas a do pensar estra-tégico13.

É interessante observar que estamos tra-tando da ação de planejar que produz uma pe-ça propositiva que é o plano. Este contém umprojeto futuro de ação, sendo esta ação igual-mente uma proposta para articular outrasações, isto é, uma futura organização e formasde gerenciamento do trabalho produtor dosserviços. E, de outro lado, através das propos-tas de gestão – que podem ou não pertencerao plano – produz tecnologias de operar a or-ganização do trabalho proposta. Tais tecnolo-gias serão a gestão: um saber capaz de condu-zir a planejada forma (organização) de realizaro trabalho em saúde.

Se o plano é uma orientação para a ação,uma proposição de otimização dos trabalhosde outros, que não o do planejador, essa moda-lidade de atuar é como se fosse um trabalharsobre trabalhos, fundado na necessidade deracionalização do trabalho produtor diretodos cuidados, pois a finalidade do planejamen-to é instruir e a da gestão é processar tal ins-trução sobre processos de intervenção em saú-de. Planejamento e gestão realizam ação es-tratégica quanto ao trabalho em saúde.

Essa compreensão não é absolutamente no-va. Basta relembrarmos as noções clássicas deuso corrente na administração de “atividades-meio” e “atividades-fim”. Ora chamamos aten-ção para o seu tratamento como técnica e tra-balho. Assim, se um trabalho de produção dedeterminados bens ou serviços corresponde àforma socialmente dada de responder a neces-sidades diretas sobre esses bens ou serviços, oplanejamento representa a perspectiva de ra-cionalizar (e otimizar) essa produção. Será,pois, indiretamente satisfação das mesmas ne-cessidades e diretamente satisfação das exigên-cias de melhor produtividade do trabalho pro-dutivo para o qual é necessidade direta.

Planejar assume, desse modo, imediata-mente as características de ação técnica, maisprecisamente, estratégia racionalizadora e sa-ber prescritivo, da perspectiva de tal ou qualpolítica a realizar: ação estratégica para interes-ses do Estado, da empresa.

Por isso o planejamento, como disciplinae prática, busca criar e aprimorar, experimen-tar e realizar tecnologias de poder.

Ao ser o braço da política que opera prá-ticas racionalizadoras para fazer com que serealizem projetos sociais dados, através da pro-dução social, em que se inclui a da assistênciaà saúde, o planejamento expressa-se como umsaber operante, tecnológico, cuja ação estra-tégica está em realizar aquele projeto. Inspi-rados na idéia foucaultiana do poder como aação de determinados sujeitos sobre as açõesde outros (Dreyfus Rabinow, 1995), afirmare-mos que o planejamento e gestão, “tecnicali-zando a política”, desenvolvem saberes ope-rantes de sua ação que representam tecnolo-gias de poder, ferramentas de exercício de po-deres, porque facultam modos de agir sobreas ações de outros. Relembremos que, no ca-so do gestor público, tal poder reside em sualegitimação social como agente do Estado, ge-rente (agente da empresa) e, ainda, profissio-nal da saúde (agente da ciência).

O planejamento é, pois, ele próprio tam-bém uma técnica, mas uma técnica que sabesobre o modo de dispor, arranjar e processaroutras técnicas. Quando na prestação diretados serviços para a população em geral, o pla-nejamento apresenta-se como um trabalho degestão, trabalho que se ocupa dos outros tra-balhos em saúde: organizando e processandoessa organização de modo a que a assistênciaproduzida para a população realize princípiosou pressupostos que instruem o agir, primei-ro, políticos, e segundo, técnico-científicos14.Por isso a esfera própria do planejamento egestão está, pois, em articular o político como técnico-científico na produção dos cuida-dos assistenciais em saúde.

Não será demais lembrar que esses requisi-tos da gestão representam aquela situação degerente/gestor antes comentada: esse agentedeve articular em sua prática profissional, nastécnicas que conhece para propor estruturase para operá-las, a racionalidade do ato médi-co e sanitário e os conflitos que aí se inscre-vem relativos às demandas; as razões de Esta-do e os conflitos que aí se inscrevem quantoàs necessidades sociais e à justiça social; as con-

Page 11: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

231

quistas de direitos em saúde, como as da re-forma sanitária com seus princípios (universa-lidade, eqüidade, por exemplo) e diretrizespráticas (descentralização, participação, porexemplo) e os conflitos que aí se inscrevemcom os sistemas já existentes de saúde e suasmodalidades de organização institucional.

Em razão disto, explicitar melhor toda es-sa passagem do político ao assistencial, e deque maneira isto implica articulações entre asdiretrizes políticas, os preceitos éticos e a nor-matividade dos processos de trabalho, passa aser uma questão. Também porque temos de-fendido a idéia de que essas passagens não es-tão suficientemente estudadas e claras para osprojetos de intervenção, talvez por conta decerta familiaridade com o técnico-científicoque detemos por nossa própria formação deprofissionais da saúde. Tendemos a tomar es-te plano como um conhecimento já dado, sematentarmos para o fato de que, como vida prá-tica, ele não está dado, mas precisa ser estuda-do como saber aplicado e recriado na ação dotrabalho, em seu cotidiano particular. Assim,compartilhando com o princípio etnográficode que nem tudo que é familiar, é conhecido,e que para conhecê-lo, é mister tornar o fami-liar algo estranho, exótico (Matta, 1978), umaproblemática importante será a desta relaçãoentre o planejamento e o trabalho em saúde(Schraiber, 1990;1995).

Claro está, de outro lado, que trabalhos co-mo os de planejamento, administração, gerên-cia ou gestão surgem como necessidade doprocesso de produção, em razão da complexi-ficação desta produção, como é o caso da es-pecialização do trabalho e da produção em es-cala. Neste contexto, a fragmentação do pro-cesso produtivo exige um trabalho de contro-le e supervisão que coordene a recomposiçãode conjunto. Esta será a racionalidade destetrabalho como ação estratégica, realizando suatecnologia de poder. Nestas circunstâncias pla-nejamento é sinônimo de gerência ou admi-nistração.

Mas, tal qual já dito, há outra situação emque aquele trabalho ganha conotações maisamplas: é o caso do administrador da coisa pú-blica, no interior dos dispositivos e equipa-mentos de governo. Aqui, o gestor de serviçosé também um implementador da política deEstado, ressaltando-se a natureza política (deprática imediatamente política) da sua ação,mesmo como supervisor ou controlador técni-co da recomposição do trabalho coletivo (ge-

rente). Um agente deste tipo não é só o execu-tor da política da empresa em que é o geren-te, mas situa-se como parte da formulação deEstado, um formulador também de políticas(Merhy, 1992).

Em realidade a noção de planejamento as-socia-se historicamente a essa “administração”de macroestruturas, a planificação social, aopasso que no plano da prestação direta dos ser-viços, associa-se à noção de gerência, que alémde planejar inclui outras ações, entre elas asda avaliação como instrumento tanto do con-trole e supervisão técnicos, quanto instrumen-to para agir nas interações.

Ocorre que na saúde, mas não só, este for-mulador é freqüentemente escolhido por seusaber de trabalhor técnico-científico. Vale di-zer, dentre os profissionais da saúde e maisusualmente dentre os médicos. Formulará po-líticas, então, ou criará tecnologias de realizaras políticas, com base em uma específica com-binação: as questões de Estado articuladas comas que conhece como profissional da saúde.Este agente porta duas competências que cor-respondem a autoridades em conflito. Cara-pinheiro (1993), mostra a tensão entre a au-toridade médica e a gerencial, a primeira cominteresses tradicionais da profissão e a segun-da representando a organização moderna dotrabalho profissional. Entre a situação racio-nal-legal desta última e o poder médico legi-timado socialmente, estabelece-se muito fre-qüentemente uma relação de oposição.

Sintetizadas ambas as exigências em um sópersonagem (Ribeiro, 1996), a superação doconflito corre dois riscos opostos. Primeiro, orisco da tecnificação da dimensão política des-te trabalho na tecnoburocracia de Estado,quando o formulador se desqualifica comoagente político e desqualifica a própria polí-tica. As críticas correntes sobre a técnica deprogramação local (Rivera, 1989; Merhy, 1995;Kon, 1997) apontam exatamente nessa dire-ção: o esvaziamento da dimensão política, co-mo planejamento de política pública. Este es-vaziamento pode se dar na direção da norma-tividade da medicina ou de seus saberes (epi-demiologia, clínica), mas também na direçãoou combinados, por vezes, ao desenvolvimen-to de tecnologias do político também reduzi-da à sua própria tecnicalidade: a racionalida-de produtiva com base na econometria da efi-ciência e eficácia “puras”15. Neste caso, a tecni-calidade do planejamento e da gestão assumeo sentido de um fim em si mesmo, e suas tec-

Page 12: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.232

nologias não são mais meios de realizar o po-lítico no técnico-científico. Mesmo formas nãotão normativas ou clássicas de planejar não es-tarão fora deste risco, que é o da valorizaçãoprimeira de sua própria tecnicalidade, ao in-vés dos princípios ético-políticos a que veioservir de saber operante16.

Em segundo lugar, há o risco oposto.Atuando estritamente conforme com os inte-resses do Estado e de suas organizações, inva-lida-se como portador de autoridade no seiodos profissionais, por não mais representarseus interesses e necessidades, invalidando-se,boa parte das vezes, também como autoridadejunto à população em geral, pela forma comoa autoridade médica incide nesta. Podemosver no atual modo pelo qual o próprio Siste-ma Único de Saúde (SUS) emerge como ques-tão de Estado, parte desse processo.

Esta consideração necessita de maior exa-me, pois envolve uma representação de natu-reza mais complexa da autoridade profissio-nal, visto estar em jogo também uma cisão in-terna às próprias corporações profissionais.Trata-se da especificidade de cada saber pro-fissional, de um lado, tomando de modos dis-tintos e sob valores diversos as necessidades dapopulação e formulando também de modo va-riado o que são as necessidades dos profissio-nais na produção de seus trabalhos. Além dis-to, os próprios profissionais detêm distintasvisões entre si, também disputando hegemo-nias na política pública e nas políticas profissio-nais, quanto às suas competências, autorida-des e poderes particulares, no conhecido con-flito entre as diversas “corporações” da saúde.

Esses riscos podem ser minimizados, quan-do o formulador detém a percepção de sua du-pla, por vezes tripla inserção: a de técnico (dasaúde no Estado) e a de político (de Estado nasaúde), a que pode-se somar a de técnico depolítica (do gerente na empresa do Estado). Eesta possibilidade além de representar um gran-de desafio ao próprio gestor em saúde, trazuma questão relevante de duas ordens para aárea do planejamento e da gestão dos serviços:a complexidade tecnológica de seu próprio tra-balho na saúde e os conflitos nas relações in-terativas que também perpassam esse traba-lho, ele próprio ação estratégica e interação.

Essas duas ordens de questões serão apre-sentadas a seguir através de dimensões na pro-dução dos serviços em saúde que são privile-giadas para apontar suas problemáticas, poisrepresentam os planos em que essas questões

são experimentadas como grandes impassesno cotidiano dos serviços: o trabalho em equi-pe e a relação entre gerentes e profissionais di-retos do cuidado quanto à produção e uso dasinformações em saúde para a tomada de deci-sões.

Trabalho em equipe; articulações técnicas e projetos assistenciais comuns

A proposta e a prática do trabalho em equipeestão, ambos, o almejado e o realizado, rela-cionados a uma série de mudanças que vêmocorrendo na oferta de serviços de saúde, taiscomo: a especialização do trabalho; a especia-lização das disciplinas científicas; a crescenteincorporação de tecnologia; a institucionali-zação elitizadora e segmentadora da oferta deatenção à saúde; o caráter interdisciplinar dosobjetos de trabalho em saúde; o valor ético ea diretriz política da atenção integral às neces-sidades de saúde do conjunto da população.Conjugam-se nesta aspiração ao trabalho emequipe, portanto, tanto a divisão dos traba-lhos e dos saberes, quanto a necessidade de re-composição de suas ações.

Visto que as necessidades de saúde expres-sam múltiplas dimensões – social, psicológi-ca, biológica e cultural, e que o conhecimen-to e as intervenções acerca desse objeto com-plexo – o processo saúde-doença – constituemum intenso processo de especialização, a ne-nhum agente isolado cabe, na atualidade, apossibilidade de realizar a totalidade das açõesde saúde demandadas, seja por cada um dosusuários em particular, seja pelo coletivo deusuários de um serviço. Coloca-se, pois, a ne-cessidade de recomposição dos trabalhos es-pecializados, com vistas à assistência integralde saúde, seja de especialidades de uma mesmaárea profissional, seja de áreas distintas – mul-tiprofissionais.

No entanto, a idéia de recomposição, nadireção da integralidade da atenção, não tem semostrado possível por meio da mera locaçãode recursos humanos de diferentes áreas pro-fissionais nos mesmos locais de trabalho. Apresença de variados profissionais realizandoações isoladas e justapostas, ou seja, apenasexecutadas lado-a-lado, sem articulação e semcomunicação, não permite realizar a eficiên-cia e a eficácia dos serviços na perspectiva pro-posta da atenção integral. Esta requer uma mo-dalidade de trabalho em equipe que traduza

Page 13: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

233

outra forma de conectar as diferentes ações eos distintos profissionais, no coletivo de agen-tes presentes à prestação de serviços.

Distinguimos dois tipos de trabalho emequipe: equipe agrupamento e equipe integra-ção, distinção em que o segundo tipo se carac-teriza pela articulação das ações e pela intera-ção dos agentes (Peduzzi, 1998). A articulaçãoseria resultante da intervenção ativa de cadaagente dos distintos trabalhos envolvidos emdada produção de cuidados, no sentido de li-dar com as conexões existentes, do ponto devista objetivo formal, entre as ações ou traba-lhos especializados. A interação como a açãocomunicativa consistiria, por parte de todosos envolvidos, na busca do entendimento e doreconhecimento recíproco de autoridades, sa-beres e autonomias técnicas17.

Quanto à articulação das ações, trata-se deconectar diferentes processos de trabalho, vis-to que cada trabalho especializado constituium processo peculiar com objetos, instrumen-tos e atividades próprias. A atividade ou açãoprofissional consiste no que pode ser obser-vado concretamente do trabalho de cada agen-te, no entanto, expressa a lógica interna do res-pectivo processo de trabalho, ou seja, como jámencionado, uma certa relação entre o objetosobre o qual incide a atividade e no qual o sa-ber técnico instrumentaliza a ação para certoresultado ou produto. Portanto, a articulaçãodas ações ou dos trabalhos requer, da parte decada agente, um dado conhecimento acerca dotrabalho do outro e o reconhecimento de suanecessidade para a atenção integral à saúde.Ou seja, a própria articulação das ações re-quer, ao menos, uma certa modalidade de re-lação entre os agentes, em que, ao menos al-gumas informações sejam trocadas, mesmoque não se estabeleça um agir comunicativocomo interação.

Já pensar essa interação ou comunicaçãodos agentes da equipe, é pensá-la não somen-te como meio que permite estabelecer as corre-lações e os nexos entre as distintas ações, mastambém como a construção de consensosquanto aos objetivos e resultados a serem al-cançados pelo conjunto dos profissionais e amaneira mais adequada de atingi-los. Ou seja,a interação dos agentes permite a construçãode um “projeto assistencial comum” à equipede trabalho – onde e como chegar no que serefere às necessidades de saúde dos usuários.

No entanto, ainda como nos mostra Pe-duzzi (1998), nem todas as formas de relacio-

namento conduzem à interação comunicati-va, em que cada estratégia de ação profissio-nal e a racionalidade de seus trabalhos é co-nhecida, dialogada e negociada como práticacomum. O trabalho em equipe é o trabalhoque se compartilha, negociando-se as distin-tas necessidades de decisões técnicas, uma vezque seus saberes operantes particulares levamà bases distintas de julgamentos e de tomadasde decisões quanto à assistência ou cuidadosa se prestar.

Nesse sentido, tal concepção de trabalhoem equipe assenta-se em algumas questõesprévias e que são também questões no plane-jamento e gestão dos serviços de saúde.

Primeiro, vamos considerar que os diver-sos trabalhos especializados expressam rela-ções de complementaridade e interdependên-cia entre si, não constituindo trabalhos inde-pendentes, visto serem resultantes de um pro-cesso de divisão do trabalho que se dá a par-tir de uma prática originária e fundadora datécnica científica moderna na área da saúde –a prática dos médicos. No entanto, esse carátercomplementar não se traduz automaticamen-te em articulação das ações, visto que estas im-plicam numa intervenção do agente que colo-ca em evidência as conexões entre os distin-tos trabalhos. Vale dizer: as conexões entre asações são objetivas, mas para refletirem-se eminteração, devem ser expressas pelos agentesdos trabalhos para que, ativamente, sejam tor-nadas públicas e alvo de uma atenção dessemesmo plano, a esfera gestora dos trabalhos.Portanto, faz-se necessário estimular, reconhe-cer e valorizar a disponibilidade dos agentespara operarem articulações entre os trabalhosexecutados pelas diferentes áreas.

Mas, em segundo lugar, a referida comple-mentaridade e interdependência entre os tra-balhos especializados que compõem a equipede saúde está freqüentemente em tensão coma autonomia técnica que os profissionais bus-cam ampliar. Por um lado, os agentes buscamuma autonomia tal como reza a tradição naárea da prática dos médicos e prática do tipoliberal, quando o profissional que já trabalhaisolado e como prestador independente de ser-viços, procede aos julgamentos e tomadas dedecisão técnicos por si mesmo e baseados emsua autoridade individual. Isto implica na atualprática especializada, julgamentos e decisões,sem nenhuma troca com os demais agentes.Claro que esta é uma retórica radical, pois se-ria exagerado falarmos em “nenhuma troca”.

Page 14: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.234

Contudo, ainda que muitas interconsultasocorram, sabemos também que dois procedi-mentos são freqüentes: ou realizar sem discu-tir o parecer do outro especialista, ou descon-siderá-lo, por completo ou submetido a seupróprio julgamento e decisão. Além do que épreciso também problematizar esses procedi-mentos da perspectiva das relações de poderno interior de uma equipe de trabalho, quan-do esta é multiprofissional, com profissões cu-jas autoridades são desiguais. Em realidade,trata-se da desigualdade dos poderes implica-dos nos particulares saberes das áreas profis-sionais, em que autoridades técnicas diferen-tes passam a significar poderes e valores dife-rentes, com conseqüente desigualdade na le-gitimidade de julgar e decidir no trabalho,criar e recriar a técnica.

Por outro lado, é curioso que em certas in-terconsultas informais, quando os especialis-tas detêm vínculos de confiança, mais que vín-culos formais do sistema prestador em que seinserem, há mais chances de interação e comu-nicação para o “projeto comum”, muito embo-ra, como nem sempre se trata de uma mesmaequipe de trabalho, esta interação não se dá co-mo um trabalho de equipe. Não há neste casoum projeto de trabalho a se realizar, mas co-mo uma cooperação profissional, sem conexãocom a produção concreta do trabalho.

Considerando-se, ademais, que os profis-sionais precisam reconhecer a complementa-ridade e proceder ativamente à articulação dasações, o que se têm como questão é a forma derealizar as necessárias autonomias técnicasatravés dessa complementaridade e interde-pendência. Espera-se, aqui, um duplo movi-mento por parte da equipe de saúde, pois tan-to a autonomia técnica dos profissionais quan-to a articulação das ações, são necessárias pa-ra a eficiência e eficácia dos serviços. Movi-mento que requer o exercício da autonomiatécnica de forma interdependente, autonomiasreconhecidas e negociadas pelos distintosagentes, por meio de sua interação.

A descentralização da tomada de decisão e,mais uma vez, a flexibilidade da divisão de tra-balho estão no âmago das questões colocadaspela equipe de saúde, pois, como o trabalhoem equipe requer a interação dos agentes nosentido do entendimento mútuo, não cabe aintolerância às iniciativas individuais ou cole-tivas, nem o cumprimento inquestionável dasrelações hierárquicas e das regras técnicas dotrabalho.

Informação, registro,comunicação e trabalho

A temática da informação – sua geração, re-gistro e transmissão ou socialização – é umaquestão articulada ao trabalho em equipe. Aintegração dos profissionais, trabalhadores deuma mesma equipe, pressupõe, sem dúvida,compartilhar informações, referidas não ape-nas aos usuários dos serviços, mas à popula-ção potencialmente usuária em geral, o que éuma referência mínima no sentido da cons-trução de projetos assistenciais comuns. Doponto de vista dos processos de trabalho e ar-ticulação de seu conjunto, tais informaçõesdevem ser ainda referidas aos desenvolvimen-tos efetivamente experimentados de produçãodos cuidados, nos trabalhos especializados.

De outro lado, a troca de informações, seé peça chave da comunicação nas relações in-terativas, não recobre, de certo, todas as ques-tões que antes referimos acerca dessa intera-ção. Não obstante, um projeto de trabalho debase comunicativa, não se inicia sem preverpráticas e instrumentos para tal e quais infor-mações serão alvo desses procedimentos.

Além da equipe de trabalho composta pe-los produtores diretos do cuidado, essa ques-tão da informação articula outra “equipe” detrabalho: a que reune os produtores diretos docuidado e os gerentes dos serviços. Através de-la, podemos tomar a perspectiva articuladorados trabalhos em um projeto comum, comoobjeto do trabalho gerencial.

Para cada uma desses agrupamentos deagentes em saúde (profissionais-profissionais;produtores diretos-gerentes), gerar informa-ções, registrá-las e compartilhá-las adquiresignificados diversos, em razão do próprio sen-tido instrumental da informação dentro desuas respectivas técnicas na produção do tra-balho. Isto porque, como já examinado, se ainformação é um dos meios para a consecu-ção dos objetivos de cada trabalho – o produ-tor de cuidados e o gerencial – esses trabalhospossuem diferentes objetivos a serem alcança-dos. E em seu interior distintas problemáticasrelativas à informação passam a se colocar.

Em estudo recente, Sala (1998) mostra queda perspectiva do produtor direto – aquiexemplificado com o caso do trabalho do mé-dico18 – a informação e seu registro impor-tam de dois pontos de vista: como base parao raciocínio clínico e a tomada de decisão mé-dica; e como memória auxiliar do próprio mé-

Page 15: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

235

dico, para o seguimento dos casos. A infor-mação comparece, obviamente, como ummeio para a resolução do problema médico-sanitário e que diante desse trabalho compa-rece na forma da demanda individual do pa-ciente, consoante com a finalidade desse tra-balho. O que significa a necessidade técnicade resolver o problema concreto e particulardaquele caso, naquele momento.

Além disso, resolver o caso, é, de fato, com-preendido pelo médico como sua atribuiçãoindividual, como já dito, reproduzindo a tra-dição do trabalho profissional dos médicos.Compartilhar essa responsabilidade, aceitan-do julgamentos e negociando decisões comoutros profissionais – médicos especialistas deoutras áreas e demais profissionais da saúdee, ainda, os cuidadores diretos como o pessoalde enfermagem, por exemplo – não é tomadocomo problema técnico e não se apresenta,portanto, como uma questão a que deve res-ponder. Somente naquelas situações em queessa independência de ação gera conflitos ra-dicais e impasses no prosseguimento da exe-cução do projeto assistencial que ele formu-lou para o caso, alguma comunicação em re-conhecimento da complementaridade no tra-balho surge como questão tecnológica e pas-sa a ser elemento de sua técnica.

Dessa perspectiva estão ausentes quer a ne-cessidade de informações que insiram o casoem grupos populacionais, a não ser para de-notar o estilo de vida individual e as caracterís-ticas pessoais dentro disso, quer a necessida-de de avaliar diretamente a situação grupal-populacional referida ao problema médico-sanitário em pauta. Também estarão ausentes,no sentido do trabalho em equipe, as necessi-dades quer de registro de informações queapresentadas à consulta médica são relevan-tes a outros trabalhos, quer o aproveitamentona consulta do registro de outros trabalhado-res especializados, e quer, ainda, de linguagemcompatível com trocas comunicacionais.

Todas essas questões abandonadas comotal pelos produtores diretos, como se sabe, po-dem ser problemas do gestor, quando inseri-do em contextos de políticas de saúde que va-lorizem essa atuação, como no caso do gestordo SUS. Também estamos dizendo com issoque tal ou qual informação faz sentido tecno-lógico para esta ou aquela técnica, mas não sãonecessidades tecnológicas iguais e constantespara todos os profissionais e trabalhadores emsaúde.

Para o produtor direto dos cuidados, o en-contro de linguagem adequada para o regis-tro-caso e registro-memória pessoal, e o en-contro de uma hierarquia de dados a serem re-gistrados, é sua problemática específica. Se is-to possui alguma disciplina de ordem cientí-fica que se encontra em tratados de clínica(Dalmaso, 1998), no sentido comunicacionale interativo entre profissionais especializados,esta será uma recriação do saber tecnológicono exercício prático de suas orientações. E atépara amparar tal recriação, em alguns servi-ços o registro padronizado serve de ponto departida. No entanto, se a linguagem médica jánão é mais comum entre os médicos, pois asáreas especializadas já cunharam linguagensespecíficas e de domínio restrito a seus especia-listas, como mostra Atkinson (1995), o regis-tro padronizado só encontra eco na tecnolo-gia do produtor direto quando porta idênticalinguagem específica. Caso contrário, mesmoo padronizado sofre recriações, como mostraSala (1998).

Temos, assim, da perspectiva comunica-cional, uma ampliação dessa possibilidade en-tre profissionais de mesma área e uma maiordificuldade entre o trabalho multiprofissio-nal, o que equivale a dizer que para o produtordireto, quando há preocupação interativa, dei-xando a informação e seu registro de terem ca-ráter de memória estritamente individual esendo instrumento de trocas de informações,isto só ocorrerá para as informações pertinen-tes senão ao caso individual, aos casos da es-pecialidade, sem que tal procedimento deixede ter o significado tecnológico de registro-caso.

Já diante da preocupação organizativa deintegração entre profissionais no trabalho emequipe multiprofissional, e da preocupaçãoavaliativa, como é a necessidade tecnológicado trabalho gerencial, a informação melhor éaquela que mais recobre a diversidade dos ca-sos e do conjunto das operações dos trabalhos,para além das clássicas informações acerca daprodutividade do trabalho e sua resolutivida-de em termos médicos e sanitários, para o con-junto dos casos. Primeiro, estará presente, aqui,sempre a preocupação de conjunto; segundo,a preocupação articuladora dos trabalhos, po-dendo a esta somar-se a percepção e conse-qüente preocupação na esfera comunicacionale interativa, no sentido de desenvolver formasde trabalho efetivamente compartilhado. A ne-cessidade tecnológica deste particular traba-

Page 16: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.236

lho, portanto, contrasta em vários pontos coma do trabalho produtor direto dos cuidados.

A isso acrescente-se o já mencionado fatode que gerentes de serviços pertencentes aoSUS, por exemplo, encontram-se diante de ne-cessidades tecnológicas advindas de sua repre-sentação como gestor das questões da saúdepública. A gerência compromete-se, nesses ser-viços, não somente com aquelas ações tradi-cionalmente relacionadas ao campo da saúdepública (tais como vacinação e vigilância epi-demiológica), mas destaca-se a marcada preo-cupação com a assistência individual. Nestesentido, a atividade gerencial está presente co-mo ordenadora e controladora das ações mé-dicas: a padronização dos registros, a formula-ção e implementação de diversas modalidadesde atenção individual e em grupos de usuáriosdos serviços, as padronizações de condutas pa-ra diagnóstico e terapêutica, a supervisão téc-nica dos atendimentos, entre outros, são mo-mentos presentes no cotidiano desses geren-tes. Mas os médicos, como dissemos, tendem adesqualificar aquela perspectiva gerencial e sa-nitária no momento em que tomam a tarefade intervir e resolver o problema do indivíduoque se apresenta à consulta médica.

Diante dessas divergências, dois tipos delacunas terminam ocorrendo na geração dasinformações, mas principalmente em seus re-gistros: uma que desqualifica a informaçãopertinente à atividade gerencial, outra, que re-duz a anotação do caso a breves referênciasbiomédicas que implicitamente justificariam atomada de decisão médica.

Para o produtor direto, informações do ti-po gerencial são tidas como apenas uma tare-fa mecânica adicional, com a qual raras vezessentem-se dispostos ou motivadas a colabo-rar. A nosso ver, uma melhora nesta direção édependente do encontro de um sentido tec-nológico a esse agente para tal atividade, exi-gência que se coloca para os formuladores daspolíticas públicas ou políticas institucionais edo planejamento dos serviços, além dos ges-tores. Essa questão é problemática a ser, cer-tamente, melhor conhecida.

Para o gerente, despreocupado com a téc-nica desse produtor direto – ou como já dis-semos, imaginando-se suficientemente ins-truído acerca dessa técnica, por familiaridadede capacitação profissional – não se coloca co-mo exigência pensar elementos do registro fa-cilitadores da “memória do caso” ou facilita-dores da tomada de decisão médica. Isto é, não

se coloca pensar uma linguagem e formas deregistro que aproxime a sua necessidade de co-nhecer a população usuária e a necessidadeclínica de conhecer o caso, a não ser os códi-gos bem estabelecidos pelos tratados clínicos,mas que apenas recobrem a dimensão biomé-dica da informação. É nesse sentido que, emsituação de trabalho mais especializado até ob-servamos convergência de objetos de interes-se entre a ação gerencial e a do trabalhador di-reto, em especial o médico, no sentido da abor-dagem da doença no indivíduo. Também é dese notar, diante do fato de que o trabalho ge-rencial dirige-se à organização dos outros tra-balhos, que em razão daquelas convergência,diminuem os conflitos entre esses trabalhado-res: a atividade gerencial ganha o sentido domanejo de recursos, e, simultaneamente, deuma “liderança profissional”. E isto é diferen-te do que ocorre nos serviços voltados à saúdepública, em que os contrates das técnicas e ne-cessidades tecnológicas dos trabalhos são maispolares (Sala, 1998).

Avaliação e trabalho;supervisão técnica e interação

As atividades de avaliação mais freqüentemen-te exercidas pelo gerente são as voltadas para averificação das metas mais gerais do plano eadministração de recursos. Se estas são dimen-sões evidentemente importantes do trabalhoda gerência, são também, por outro lado, li-mitadas na sua capacidade de dialogar com otrabalho direto. Levantamos aqui, a possibili-dade, aberta por diversas correntes do campoda avaliação em saúde e por diversas experiên-cias práticas de gestão do SUS, de entender aatividade avaliatória como potencialmente ca-paz de lidar e promover algumas das dimen-sões do trabalho que destacamos acima.

A corrente de avaliação mais conhecida,quando se trata de serviços assistenciais desaúde, é a da avaliação e garantia de qualidade,representada, principalmente, nos trabalhosclássicos de Donabedian. Não nos deteremosaqui em analisar a origem do inegável confli-to entre a necessidade de autonomia do atomédico, de um lado, e a necessidade de contro-le social (ou accountability), que move os pro-cessos de avaliação da qualidade. (Schraiber &Nemes, 1996). Gostaríamos de destacar aquium outro aspecto: a potencialidade inscritanesta relação.

Page 17: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

237

Os mecanismos mais tradicionais de ga-rantia e avaliação da qualidade técnica do cui-dado são, de fato, com muita freqüência, to-mados pelos profissionais como, no mínimo,constrangedores, quando não como persecu-tórios e punitivos. Muito embora os teóricosda qualidade afirmem que mais importanteque achar o culpado é achar e analisar o erro,até hoje os controles de qualidade mais tradi-cionais tendem, no mínimo, a ser restritivos,estanques e não vinculados a outros níveis daorganização (Malik, 1996). Tanto esta noçãopunitiva têm base real, que há um crença disse-minada de que é mais fácil trabalhar com qua-lidade no setor privado do que no setor públi-co, justamente pela relativa impunidade dostrabalhadores no setor público (Malik, 1992).

Não cabe aqui analisar esta questão, masassinalar que o abandono do caráter punitivodestes mecanismos, a assunção de que falhassão inevitáveis e de que ninguém erra por pra-zer são a base da lealdade da organização pa-ra com seus funcionários (Malik, 1996). E, evi-dentemente, são o ponto de partida para umaforma de avaliação que se pretenda dialógicaentre a gerência e o trabalhador direto.

Claro que a declaração desta intencionali-dade não é o bastante. O trabalhador da saúdeé hoje, no serviço público, submetido a umarelação péssima como o trabalho que se assen-ta nos constrangimentos às condições míni-mas de trabalho, na ausência de perspectivaprofissional, na perda substantiva de qualida-de do trabalho e no trabalho embrutecido pe-la política da “falta” ou da “escolha de Sofia”(Machado, 1993).

A implementação de mecanismos de ava-liação e controle da qualidade técnica do cui-dado a partir de definições de qualidade de fa-to negociadas entre os profissionais e a gerên-cia pode ser um mecanismo de resgate da pro-fissionalização, do orgulho e da valorizaçãodo trabalho. Embora o trabalho dos profissio-nais em saúde, especialmente o do médico,permaneçam necessariamente dependentes deajuizamentos pessoais e de decisões arrisca-das, a transformação tecnológica da medicina(Schraiber, 1997) ampliou significativamenteas possibilidades de controle “externo” da prá-tica. A polaridade entre a autonomia técnicae a maciça utilização de técnicas matérias dediagnóstico e terapêutica, abre um grande es-paço de “negociação” possível entre a singula-ridade do ato médico individual e seu contro-le técnico externo.

É como promotor e incentivador destesmecanismos que o papel do gerente enquan-to “liderança (também) profissional” podetambém consolidar-se; é aqui que o registropode ser informação re-valorizada enquantoalimentadora do processo avaliativo.

Novamente neste ponto é necessário res-saltar que o simples estabelecimento conjun-to de critérios, normas ou padrões de quali-dade não será suficiente. Não nos referimosapenas às necessidades de retro-alimentaçãoou de discussão constante dos padrões, já su-ficientemente ressaltadas pelos teóricos daqualidade. Chamamos a atenção para a especi-ficidade tecnológica da atenção primária e asdificuldades metodológicas que elas implicampara os processos de garantia e avaliação daqualidade. Para além dos problemas comunsàs práticas ambulatoriais como, por exemplo,a difícil caracterização dos episódios de doen-ça, grande volume de queixas mal definidas ea presença importante de condições crônicas(Palmer, 1988), agregam-se outras, destacan-do-se, principalmente, a complexidade da ar-ticulação de finalidades diversas como a aten-ção à demanda espontânea e à condições epi-demiologicamente importantes, ou a da qua-lidade do cuidado individual e a coberturaadequada da população adscrita (Nemes, 1996;Starfield, 1992).

Esta última questão nos parece a que maistensiona, ao nível tecnológico, o processo ava-liativo: enfrentar a cruel oposição entre prin-cípios éticos-normativos como o da universa-lização versus qualidade. Traduzida no discur-so dos trabalhadores pela triste expressão: “-aqui fazemos o mínimo”, esta oposição resul-ta na cisão entre os planos ético, político e téc-nico do trabalho, reduzindo o plano ético àcaracterísticas pessoais e paralisando, com fre-qüência, qualquer tentativa de negociação en-tre a gerência, empurrada à condição de res-ponsável exclusiva pelo plano político, e o tra-balhador direto, à condição de responsável ex-clusivo pelo plano técnico (Nemes, 1996;Schraiber & Nemes, 1996). Somente com baseno enfrentamento claro e negociado deste de-safio será possível o diálogo acerca das defini-ções de qualidade aceitáveis. Aqui, novamen-te, o papel do gerente é fundamental e só pos-sível de exercer, se a gerência estiver, de fato,inteirada e “aliada” ao trabalho direto (Casta-nheira, 1996).

As questões de avaliação que tratamos atéaqui, embora possam ser estendidas para al-

Page 18: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.238

gumas das atividades mais coletivas das uni-dades de saúde, envolvem especialmente as ati-vidades individuais e, em particular o cuida-do médico. De fato, o foco de avaliação e astécnicas avaliativas derivadas da corrente daqualidade são compatíveis com esta modali-dade assistencial. Mas os serviços de saúdecomplexos, como os de atenção primária, en-volvem processos de trabalho diversos. A ava-liação precisa dar conta deste conjunto. E aquiaparece uma outra problemática. “Dar conta”do conjunto não será somente a soma da ve-rificação de características desejáveis de cadaprocesso de trabalho. Evidentemente, esta ve-rificação pode constituir-se em etapa ou focotemporário da avaliação, mas não a esgota.

As “grandes” categorias avaliativas, opera-cionalidade e efetividade estratégica19, propos-tas para o trabalho em atenção primária (Salaet al., 1998) podem orientar metodologias ca-pazes de integrar, na avaliação, os trabalhosparcelares e o trabalho coletivo. Articulada-mente à qualificação estratégica das ações, háque se avaliar também sua qualificação comu-nicacional (Ayres, 1995; Sala et al., 1996).

A especificidade tecnológica desta moda-lidade assistencial complexa implica ainda umaoutra questão avaliativa, conforme Nemes(1996). Questão essa, que deriva do fato de queno plano da proposição do trabalho ocorremsucessivas reduções entre a escolha do objeto,seu recorte para o trabalho e o estabelecimen-to de padrões de operação e julgamento dotrabalho. Na operação concreta do trabalhotodos esses momentos são simultâneos, ocor-rendo necessariamente uma reconstrução to-talizadora daqueles níveis. A escolha, o recor-te do objeto e os padrões de operação estãoconsubstanciados na ação do trabalho. Na ava-liação, o trabalho pode ser apreendido apenaspelos padrões construídos a partir daquela re-dução sucessiva. Com isso, as práticas de ava-liação apenas detectam contrastes entre os pa-drões explicitamente esperados e os operados,sem analisar a rede de reconstruções que notrabalho como um todo estão sofrendo as es-colhas, as normas e os padrões. Isto porque adinâmica do trabalho, ao implicar uma tota-lização, necessariamente põe à prova aquelasreduções.

Isto implica que se partirmos de processosde trabalho onde este plano de reduções já seencontra claro e validado poderemos ignorarou ao menos abstrair parcialmente a escolhaprévia e a normatividade emanada desta pró-

pria escolha, avaliando imediatamente os pa-drões da operação técnica. Trata-se aqui deuma clareza de regras que, contudo, não evi-dencia a racionalidade de sua construção; es-ta já está dada e validada como “bem” tecnoló-gico. De fato, há processos de trabalho ondeessa racionalidade pode ficar abstraída, semprejuízo para a validade da avaliação e para aaplicabilidade tecnológica de seus resultados.Trata-se neste caso de avaliar processos isola-dos de trabalho cujos produtos encontram-sebem estabelecidos. É bastante razoável admi-tir, por exemplo, a abstração presente na ava-liação do cuidado médico tendo por base umpadrão fixo de tratamento para uma dadadoença. Quando porém, os padrões referem-sea processos complexos, de múltiplas dimen-sões articuladas, abstrair completamente aque-la instituição implica necessariamente uma li-mitação na capacidade da avaliação em revelara re-criação que o plano propositivo sofre naoperação do trabalho.

Evidentemente não estamos defendendoque a avaliação seja capaz de rotineiramentepromover uma argüição profunda do traba-lho tal como se faz nas investigações avaliati-vas baseadas em “grandes” aportes teórico-me-todológicos. Chamamos a atenção apenas pa-ra a necessidade do trabalho integral de supe-rar as avaliações instrumentais referidas nasnormas fixas da clínica e da epidemiologia,muito embora estas também possam jogar pa-pel importante em específicos arranjos do tra-balho. É preciso lembrar, contudo, que os pro-cessos de trabalho muito legitimados, tal co-mo ocorre no trabalho médico individual con-tam com padrões já tão fixados e igualmentelegítimos que assumem no trabalho a repre-sentação de imperativos tecnológicos, assen-tados sobre uma espécie de padrão máximo tãodifícil de atingir quanto sempre presente naformulação do plano discursivo do trabalho.Defrontar-se com padrões diversos, fundadosem outras normatizações, implicará conflitosde competência e de legitimação, incertezaséticas e técnicas e dilemas individuais profis-sionais para os agentes20 que serão reveladosna avaliação.Torná-los claros e submetê-los àdiscussão pública, pode ser o papel mais inte-rativo da avaliação. Cremos que as metodolo-gias avaliatórias baseadas na linha do empo-deramento (empowerment evaluation, confor-me Fetterman, 1994; Rowe, 1997) poderiam,pela sua compatibilidade de sua proposta comas questões que levantamos, ser bastante úteis

Page 19: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

239

para a gerência, na condução do processo deavaliação.

Trabalho e política pública:lembrando uma última questão

Seria importante considerar de que modo asquestões gerenciais aqui tratadas e as caracte-rísticas dos gestores nesta modalidade de or-ganização relacionam-se com as tendênciasatuais das políticas públicas na proteção so-cial, entendendo a saúde como parte dessa po-lítica. Isto porque, em razão da atual globali-zação dos mercados, há a tendência a se adotarpolíticas que passem tanto a “desproteger” otrabalho e o trabalhador, quanto, no caso dasaúde, a regular diretamente o produtor dire-to dos cuidados, interferindo imediatamenteem seus processos de trabalho. E nesta situa-ção caberia indagar como ficam os gestoresque representam esse Estado, exercendo seupapel de administrador público. Vale dizer, co-mo agente também das ações estratégicas doEstado quanto aos modos da prestação da as-sistência, com certos padrões de produtivida-de do trabalho, certas formas de valorizar o

médico e a equipe, certos resultados a alcan-çar junto à população, certas relações e con-dições de trabalho na articulação do setor pú-blico com o privado.

Os pontos de partida para uma tal reflexãoremetem às questões recentes das novas arti-culações Estado-sociedade (Gerschman &Vianna, 1997; Costa & Ribeiro, 1996), incluin-do a problemática da responsabilidade socialpara com a prestação direta de serviços. Istoagrega às problematizações de poder no cam-po das políticas públicas, aquelas concernen-tes à dimensão ética na articulação dos inte-resses público e privado (Girardi, 1996), aíconfigurando-se a problemática do Estado-provedor ou do Estado-regulador, como dua-lidade a ser estudada, tal qual mencionado aoinício deste texto. Isto implica novas relaçõesdo setor governamental não só com a socie-dade em geral, mas também com as organiza-ções coletivas de interesse profissional, emparticular, as corporações e seus arranjos (Ri-beiro, 1996).

É óbvio que, pelos limites do presente tex-to tanto quanto de nossas próprias indaga-ções, deixamos aqui apenas o convite para es-ta discussão.

Agradecimento

Os autores deste texto correspondem aos que tendo ocu-pado ou ocupando a gerência do CSE Samuel Pessoa, fi-zerem deste recorte seus objetos de pesquisa, para o quecontaram com a grande colaboração dos demais, docen-tes e sanitaristas pesquisadores do Centro, cujas linhasde investigação em muito contribuíram para a reflexãoora publicada. Agradecemos ao Prof. José Ricardo C.M.Ayres e à equipe: Alexandre Nemes Filho, Ana Flávia P.L. d’Oliveira, Ana Silvia W. Dalmaso, Angela M. de Lima,Diane D. Cohen, Ivan França Jr e Ricardo R. Teixeira.

Notas

1 A denominação Saúde Coletiva surge ao final dos anos70, embora o planejamento e a administração em saúdefossem já parte de campos que se fundiram na saúde co-letiva. O reconhecimento do planejamento e da admi-nistração como temática conjugada é deste período, poisse o planejamento é valorizado como instrumento deação para o desenvolvimento da saúde nos anos 60, aadministração pública e sanitária lhe é anterior, comotemática da saúde pública.

2 Uma primeira investigação nesta direção encontra-seem Teixeira e Sá (1996).

3 Buscando aproximar essas questões tanto da perspec-tiva da ação social, quanto da produção teórico-meto-dológica, o estudo da implantação de programas e suaavaliação tal como em Hartz (1997), fornece uma ricadiscussão, em um recorte amplo e conceitualmente de-talhado a esse respeito.

Page 20: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.240

maso (1998), que sistematiza tais distinções, ao estudaras mudanças na produção do saber clínico.

9 Caberia aqui apenas relembrar que este é o fundamen-to da nossa compreensão do projeto ético-político daação programática e de suas proposições para a opera-ção do trabalho: saberes de cunho prático-operativo, sa-beres tecnológicos (Mendes-Gonçalves, 1994). Comoprojeto, a ação programática apreende de certa perspec-tiva ética e política as necessidades sociais; como sabertecnológico, propõe modos de fazer em modos de orga-nizar o trabalho tecnicamente adequados às aproxima-ções pretendidas das necessidades e sua satisfação.

10 O que também pode ser explicitado como uma ex-ternalização ou ato que torna objetiva a síntese que es-te agir representa: a articulação que este sujeito de pro-jeto técnico (agente-sujeito técnico) realiza entre a ob-jetividade da realidade social (e do trabalho) introjeta-da em sua própria subjetividade, enquanto sujeito só-cio-histórico.

11 Veja-se discussão acerca do tecnológico como bemem si e desses deslocamentos em Ayres (1995).

12 Não entraremos aqui no debate sobre o atual deslo-camento do trabalho como o centro da construção socialou o deslocamento da categoria trabalho para a melhorinteligibilidade da socialidade (Offe, 1989). Reteremosapenas a idéia de que o valor como categoria teórica nãoé o mesmo que o valor do trabalho como prática centralde construção da socialidade, ao mesmo tempo que enten-demos a necessidade de examinar melhor ambos os des-locamentos e seus sentidos concretos para a produção doconhecimento e para a intervenção social. Também é pre-ciso contemplar as próprias mudanças do mundo do tra-balho mais atual em que tais deslocamentos são obser-vados. Quanto ao trabalho em saúde, ver Peduzzi (1997).

13 Ver também Giovanella (1990 e 1992) e Uribe (1995).

14 A priorização do político, neste caso, deve-se à situa-ção objetiva deste lugar de gestor/gerente, claro. De ou-tro lado, é bom lembrar, não estamos tratando da pró-pria dimensão política que está contida nas ações téc-nico-científicas. O projeto de ação na intervenção téc-nica em medicina e saúde pública realiza sempre umanormatividade científica e outra de natureza ético-po-lítica, combinando conhecimentos técnico-científicos,interesses profissionais, valores éticos e tradições cul-turais dadas. A esfera política ora em pauta é aquela docontexto da ação médica ou sanitária, contexto organi-zador e dinamizador dessas ações, em unidades dadasde produção (ambulatórios, hospitais, etc.).

15 Aqui fica claro o excesso da tecnificação pois o cál-culo de eficiência e de eficácia de um ato é rigorosamen-te técnico, em que se combina a técnica de cálculo deprodutividade de um trabalho com a técnica do cuida-do ou trabalho a ser produzido, sendo a combinação re-sultante tomada como um saber de operação em si mes-mo e sem sentido social (pela cisão entre o financeiro eas demais necessidades sociais implicadas).

16 É interessante notar que há diversas outras tentati-vas de tecnificação de práticas sociais. Por exemplo, se-

4 Cabe lembrar a discussão que se encontra em Schraibere Mendes-Gonçalves (1996), acerca do subdesenvolvi-mento do conceito de atenção primária e a pouca aten-ção que ganhou na saúde coletiva o desenvolvimento detecnologias nesse nível, denotando que nossa comuni-dade científica e profissional concebeu a simplicidadedas patologias e técnicas pouco aparelhadas como sen-do o mesmo que a simplicidade de cuidado e assistênciaao paciente, terminando por não distinguir a tecnolo-gia/equipamentos e as técnicas biomédicas da produçãode um trabalho de assistência. Com isto deixou de con-siderar a complexidade da atuação neste nível assistencial,em que patologias simples e demandas básicas envolvemtrabalho complexo, pois os cuidados são, em sua esferaprópria, também difíceis. Sobre o trabalho em saúde co-mo sendo sempre “ato difícil” por envolver em todos osníveis de atuação “julgamentos complexos e decisões ar-riscadas”, mesmo que mude a natureza do risco e dascomplexidades assistenciais, veja-se Schraiber (1997).

5 Note-se que dizemos cuidados e serviços a serem pro-duzidos na assistência à saúde, distinguindo esses ter-mos; queremos conotar que se todo cuidado prestado éuma produção de serviço, nem todo serviço produzidoé um cuidado, atenção e intervenção na forma indivi-dualizada de demanda e trabalho. Por outro lado, queproduzir/consumir serviços, em especial cuidados, se-ja visto como um bem a mais, no e do mercado, é cer-tamente uma forma conflitante de ver a questão da saú-de como parte do dever de proteção social do Estado, enão menos conflitante por referência à perspectiva de-mocratizadora da gestão à participação/controle popu-lar, o que apenas colocamos aqui como problemática aser melhor desenvolvida. Ela também incorre em con-flitos importantes na valorização do próprio trabalho ede seu profissional, problema que tem se tornado maisvisível para os médicos e em razão do crescimento dasorganizações empresariais do sistema supletivo de as-sistência, em especial no caso dos que atuavam em for-mas de produção tradicionalmente valorizadas, porexemplo o consultório particular, antes desse maciçomovimento de credenciamentos (Schraiber, 1997).

6 Especialmente relacionados a nosso campo valeria apena consultar, como produções nesta perspectiva maisconceitual e tendo por base referenciais diversos: Ayres(1995); Mendes-Gonçalves (1992;1994); Ribeiro (1995);Novaes (1996) e Dalmaso (1998).

7 O componente do processo de trabalho em que se rea-liza essa recriação, temos denominado, da perspectivade decisão/ação do profissional como sujeito da técnica,de autonomia técnica. Ao tomarmos, como linha de pes-quisa, o estudo acerca do cotidiano de trabalho, temospesquisado a noção de autonomia profissional exata-mente neste recorte, mostrando sua restrição no planomercantil, quando vende seus serviços em mercado, euma redisposição que atualiza o poder de controle daação no âmbito do julgamento e tomada de decisão as-sistencial, no atual trabalho altamente tecnológico. Ve-ja-se também Ribeiro (1995) e Peduzzi (1998).

8 Distinguimos, aqui, o conhecimento científico quefunda a técnica do saber prático da experiência profis-sional, do saber tecnológico que orienta a atividade dotrabalho (Schraiber, 1997). Ver a respeito também, Dal-

Page 21: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Ciên

cia & Saú

de C

oletiva,4(2):221-242,1999

241

rá possível vermos na prática política as buscas de se en-contrar formas estáveis de consecução de resultados sim-bólicos, mediante o recurso a saberes de operação de-terminados, tal como trabalhar imagens de candidatos acargos públicos por meio de técnicas de comunicaçãode massa. Pode-se perceber nessas tentativas, uma espé-cie de tecnocentrismo, ou tecnologização do agir, pormuitos colocado como o imperialismo dos meios (Gó-mez, 1990), por centrar a ação nos requerimentos datecnologia material e dissolver os fins éticos em recursostecnológicos de uma política tecnificada.

17 Retoma-se, aqui, a noção de autonomia técnica co-mo a capacidade, competência e autoridade de recria-ção no saber prático dos conhecimentos científicos pró-prios de cada profissão, bem como dos saberes operan-tes indicativos quando no contexto de sua prática, con-forme mencionado à nota 8.

18 O estudo analisa como o significado da informaçãoe seu registro, para médicos e gerentes, relaciona-se aosrespectivos processos de trabalho em saúde, examinan-do, empiricamente, situações diversas da assistência

ambulatorial: unidades básicas e ambulatórios especia-lizados. Uma aproximação, também da perspectiva doprocesso de trabalho, do sentido da informação e re-gistro para outros profissionais não médicos, em tra-balho de equipe, pode ser encontrada em Peduzzi(1998).

19 A operacionalidade é a medida da possibilidade dotrabalho realizar-se conforme a dinâmica processual es-tabelecida. Analisa, portanto, a operação do modelo deorganização do trabalho. A efetividade estratégica é amedida do alcance dos resultados estratégicos apreen-síveis nos usuários do serviço e/ou na população, atribuí-veis às ações realizadas e inicialmente previstos por ca-da um dos programas ou conjunto de atividades. Seusindicadores variam conforme o objeto do trabalho (Sa-la et al., 1998).

20 Não estamos aqui aludindo ao caráter de incertezapróprio do processo de trabalho médico em geral masà sobredeterminação desta incerteza técnica pela espe-cial articulação do trabalho na integralidade, que geradilemas de ordem diversa daquele do diagnóstico.

Referências

Atkinson P 1995. Medical Talk and Medical Work. SagePublications Ltd, London.

Ayres JRCM 1995. Epidemiologia e Emancipação.Hucitec/Abrasco, São Paulo.

Carapinheiro G 1993. Saberes e Poderes no Hospital. UmaSociologia dos Serviços Hospitalares. Afrontamento,Porto.

Castanheira ERL 1996. Gerência do Trabalho em Saúde:Desenvolvimento Histórico da Administração emSaúde nos Serviços Públicos do Estado de São Paulo.Dissertação de Mestrado. Faculdade de Medicina,USP, São Paulo.

Costa NR, Ribeiro JM 1996. Política de Saúde e InovaçãoInstitucional. Escola Nacional de Saúde Pública,Fiocruz, Rio de Janeiro.

Dalmaso ASW 1998. Estruturação e Transformação daPrática Médica. Técnica e Ciência na Segunda Metadedo Século XX. Tese de Doutorado. Faculdade deMedicina, USP, São Paulo.

Dreyfus H, Rabinow P 1995 Michel Foucault. Uma Tra-jetória Filosófica (para além do estruturalismo e dahermenêutica). Forense-Universitária, Rio de Janeiro.

Fetterman DM 1994. Empowerment evaluation. Evalu-ation Practice 15(1): 1-15.

Gama R 1986. A Tecnologia e o Trabalho na História.Nobel/Edusp, São Paulo.

Gerschman S, Vianna MLW 1997. A Miragem da Pós-modernidade. Democracia e Políticas Sociais no Con-texto da Globalização. Fiocruz, Rio de Janeiro.

Girardi SN 1996. Flexibilização dos mercados de tra-balho e escolha moral. Divulgação em Saúde paraDebate 14: 23-32.

Gómez OG 1990. La Comunicación desde las practicassociales. Cuadernos de Comunicación y Practicas So-ciales 1, Universidad IberoAmericana, México(Número temático).

Granger GG 1994. A Ciência e as Ciências. Unesp, SãoPaulo.

Habermas J 1989. Consciência Moral e Agir Comunica-tivo. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.

Habermas J 1990. O Discurso Filosófico da Modernidade.Publ. D. Quixote, Lisboa.

Habermas J 1994. Técnica e Ciência como Ideologia.Edições 70, Lisboa.

Hartz ZM de A 1997. Avaliação em Saúde: dos ModelosConceituais à Prática na Análise da Implantação deProgramas, Fiocruz, Rio de Janeiro.

Kon R 1997. O Planejamento no Distrito de Saúde: Es-tratégia e Comunicação. Dissertação de Mestrado.Faculdade de Medicina, USP, São Paulo.

Lenk H 1990. Razão Pragmática. A Filosofia entre a Ciên-cia e a Praxis. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.

Machado MH 1996. Os Médicos e sua Prática Profissional:as Metamorfoes de uma Profissão. Tese de Doutora-do. Iuperj, Rio de Janeiro.

Malik AM 1992. Desenvolvimento de recursos humanos,gerência de qualidade e cultura organizacional. Re-vista de Administração de Empresas 32(4): 32-41.

Malik AM 1996. Qualidade em serviços de saúde nos se-tores público e privado. Cadernos FUNDAP 19: 7-24.

Matta R da 1978. O ofício de etnólogo ou como ter “an-thropological blues”, p. 23-35. In E de O Nunes(org.) A Aventura Sociológica - Objetividade, Paixão,Improviso e Método na Pesquisa Social. Zahar, Riode Janeiro.

Mendes EV 1996. Uma Agenda para a Saúde. Hucitec,São Paulo.

Mendes-Gonçalves RB 1992. Práticas de saúde: proces-sos de trabalho e necessidades, CADERNOS CEFOR.Série Textos 1, Centro de Formação dos Trabal-hadores em Saúde da Secretaria Municipal da Saúde(CEFOR/SMS), São Paulo.

Page 22: Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando

Sch

raib

er,L

.B.,

et a

l.242

Mendes-Gonçalves RB 1994. Tecnologia e Organizaçãodas Práticas de Saúde: Características Tecnológicasdo Processo de Trabalho na Rede Estadual de Cen-tros de Saúde de São Paulo. Hucitec/Abrasco, SãoPaulo.

Merhy EE 1992. A Saúde Pública Como Política. Hucitec,São Paulo.

Merhy EE 1995. Planejamento como tecnologia degestão: tendências e debate do planejamento emsaúde no Brasil, p. 117-154. In E Gallo (org) Razãoe Planejamento: Reflexões sobre Política, Estratégia eLiberdade. Hucitec/Abrasco, São Paulo.

Nemes MIB 1996. Avaliação do Trabalho Programáticona Atenção Primária à Saúde, Tese de Doutorado.Faculdade de Medicina, USP, São Paulo.

Novaes RL 1996. Sobre a técnica. Manguinhos III(1): 24-49.

Offe C 1989. Capitalismo Desorganizado: TransformaçõesContemporâneas do Trabalho e da Política. Brasili-ense, São Paulo.

Paim JS 1993. A reorganização das práticas de saúde emdistritos sanitários. In EV Mendes (org) DistritoSanitário: o Processo Social de Mundaça das PráticasSanitárias do Sistema Único de Saúde. Hucitec/Abrasco, São Paulo.

Palmer RH 1988. The challenges and prospects for qual-ity assessement and assurance in ambulatory care.Inquiry 25: 119-131.

Peduzzi M 1997. Mudanças Tecnológicas e seu Impactono Processo de Trabalho em Saúde. Seminário sobrea Formação Técnica em Ciência e Tecnologia emSaúde, Escola Politécnica Joaquim Venâncio,Fiocruz, Rio de Janeiro. Mimeo.

Peduzzi M 1998. Equipe Multiprofissional de Saúde: a In-terface entre Trabalho e Interação. Tese de Doutora-do. Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp,Campinas.

Ribeiro JM 1995. Trabalho Médico: Ciência, Arte e Açãona Conformação da Técnica. Tese de Doutorado. Es-cola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio deJaneiro. 2 vols.

Ribeiro JM 1996. Estruturas tecno-burocráticas e in-stâncias colegiadas no SUS - uma abordagem dosfundamentos da política setorial, p. 51-68. In NRCosta & JM Ribeiro (orgs.) Política de Saúde e Ino-vação Institucional, Escola Nacional de Saúde Públi-ca, Fiocruz, Rio de Janeiro.

Rivera FJU 1989. Planejamento e Programação em Saúde:um Enfoque Estratégico. Cortez-Abrasco, São Paulo.

Rivera FJU 1995. Agir Comunicativo e Planejamento So-cial (uma crítica ao enfoque estratégico). Fiocruz, Riode Janeiro.

Ross D 1987. Aristóteles. Publ. D. Quixote, Lisboa.Rossi P 1989. Os Filósofos e as Máquinas. Cia das Letras,

São Paulo.Rowe A 1997. L’Evaluation Axée Sur L’Áutonomie. Bul-

letin de la Société canadienne d’evaluation: 1-3.Sala A 1998. O Registro Médico em Serviços Ambulatori-

ais: a Anotação como Componente da Técnica emSaúde. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina,USP, São Paulo.

Sala A, Nemes MIB, Cohen DD 1996. A avaliação e aprática programática, p. 173-192. In LB Schraiber,MIB Nemes & RB Mendes-Gonçalves (orgs.) Saúdedo Adulto: Programas e Ações na Unidade Básica.Hucitec, São Paulo.

Sala A, Nemes MIB, Cohen DD 1998. Metodologia deavaliação do trabalho na atenção primária à saúde.Cadernos de Saúde Pública 14(4): 741-751.

Schraiber LB 1990. Programação em Saúde Hoje. Hucitec,São Paulo.

Schraiber LB 1993, O Médico e seu Trabalho. Limites daLiberdade. Hucitec, São Paulo.

Schraiber LB 1995. Planejamento e política nas práticasde saúde. Saúde em Debate 47: 28-35.

Schraiber LB 1997. Medicina Tecnológica e Prática Profis-sional Contemporânea: Novos Dilemas, Outros De-safios. Tese de Livre-Docência. Faculdade de Medi-cina, USP, São Paulo.

Schraiber LB, Mendes-Gonçalves RB 1996. Necessidadesde saúde e atenção primária, p. 20-46. In LBSchraiber, MIB Nemes & RB Mendes-Gonçalves(orgs.) Saúde do Adulto: Programas e Ações na Uni-dade Básica. Hucitec, São Paulo.

Schraiber LB, Nemes MIB 1996. Processo de trabalho eavaliação de serviços de saúde. Cadernos FUNDAP19: 106-121.

Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB 1996.Saúde do Adulto: Programas e Ações em UnidadeBásica. Hucitec, São Paulo.

Starfield B 1992. Primary Care. Concept, Evaluation, andPolicy. Oxford University Press, Oxford.

Teixeira C, Sá MC 1996. Planejamento & gestão emsaúde: situação atual e perspectivas para a pesquisa,o ensino e a cooperação técnica na área. Ciência eSaúde Coletiva 1(1): 82-103.

Testa M 1992. Pensar em Saúde Artes Médicas/Abrasco,Porto Alegre.