perspectiva sociologica

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Revista Sociologia Jurídica - ISSN: 1809-2721 Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico: a necessidade de superação do bacharelismo- tecnicista Elizabete David Novaes Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras - UNESP- Araraquara. Profa. Dra. na disciplina de Sociologia Geral e do Direito I e II da Faculdade de Direito das Faculdades COC Ribeirão Preto-SP. Resumo: O artigo trata da necessária aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído, discorrendo a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Entende-se que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei. Considerando-se que o direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais, entende-se que, na realidade social concreta este fenômeno não transparece como simples expressão da vontade da classe dominante, nem tampouco como simples reflexo das determinações econômicas. Aponta-se assim que o direito moderno institui-se como mediador entre as classes. Aponta-se assim, para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real. Sumário: 1. Introdução; 2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito; 3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas. Palavras-chave: Fenômeno jurídico - formação sociológica - profissional do direito 1. Introdução Consideramos fundamental a aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído e, para tanto, pretendemos discorrer a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Esta matéria visa, fundamentalmente, contribuir para a superação de uma visão tecnicista, esvaziada de conteúdos humanistas, que tantas vezes acomete a formação legalista do bacharel em Direito. Entendemos que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei. Consideradas como eixo da formação crítico-reflexiva, as disciplinas humanistas devem estar imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que permita a compreensão do Direito como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como instrumento não somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e transformação. Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico, representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido, portanto, como processo capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas sociais vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos então, que o Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um processo histórico, significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das forças sociais presentes na

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Perspectivas sociologicas

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Page 1: Perspectiva Sociologica

Revista Sociologia Jurídica - ISSN: 1809-2721

Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico: a necessidade de superação do bacharelismo-

tecnicista

Elizabete David Novaes – Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras - UNESP-

Araraquara. Profa. Dra. na disciplina de Sociologia Geral e do Direito I e II da Faculdade de Direito

das Faculdades COC – Ribeirão Preto-SP.

Resumo: O artigo trata da necessária aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico,

percebido como fenômeno socialmente construído, discorrendo a respeito da importância da

Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Entende-se que a Sociologia, junto com as demais

disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um

positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei.

Considerando-se que o direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais,

entende-se que, na realidade social concreta este fenômeno não transparece como simples

expressão da vontade da classe dominante, nem tampouco como simples reflexo das determinações

econômicas. Aponta-se assim que o direito moderno institui-se como mediador entre as classes.

Aponta-se assim, para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente

na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real.

Sumário: 1. Introdução; 2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito; 3. O

pluralismo jurídico e o profissional do direito; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Fenômeno jurídico - formação sociológica - profissional do direito

1. Introdução

Consideramos fundamental a aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico,

percebido como fenômeno socialmente construído e, para tanto, pretendemos discorrer a respeito da

importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Esta matéria visa, fundamentalmente,

contribuir para a superação de uma visão tecnicista, esvaziada de conteúdos humanistas, que tantas

vezes acomete a formação legalista do bacharel em Direito. Entendemos que a Sociologia, junto com

as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”,

decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos

operadores da Lei.

Consideradas como eixo da formação crítico-reflexiva, as disciplinas humanistas devem estar

imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que permita a compreensão do Direito

como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como instrumento não

somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e transformação.

Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico,

representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido, portanto,

como processo – capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas sociais

vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos então, que o

Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um processo histórico,

significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das forças sociais presentes na

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sociedade que o constrói.

Por outro lado, quando o Direito é tratado como instrumento emanado unicamente do Estado,

possuindo a lei como sua única expressão, favorece a consolidação de uma formação positivo-

normativa, cuja função passa a ser muito mais informar do que formar o bacharel em Direito. Tal

tratamento fortalece o tecnicismo, impondo uma padronização da linguagem e da leitura dos códigos,

justificando e reproduzindo a realidade social. Como conseqüência, formas sociais são reproduzidas,

garantidas e mantidas as hegemonias e ideologias, sem que se percebam as possibilidades de

transformação desta realidade. Daí a importância de transcender a visão tecnicista, bem como de

transcender a visão unilateral e unidimensional, que não absorve as contradições e os movimentos do

real, especialmente aqueles que apontam para a existência de um pluralismo jurídico.

Tomando por base essas colocações, entendemos que o profissional do direito não deve ler o

universo como se esse fosse meramente um livro de direito, já que o universo social do qual o direito

faz parte é sempre maior que o próprio direito, não podendo ser reduzido a este. Pelas palavras de

Jean Carbonnier, afirmamos que “uma certa insignificância do Direito deve ser um dos postulados da

sociologia jurídica: o direito é como uma espuma na superfície dos relacionamentos sociais ou

interindividuais” (Carbonnier, 1999, p 47).

2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito

A Sociologia do Direito possui bases originais em Emile Durkheim, especialmente a partir dos

estudos que o autor faz acerca da solidariedade social, garantida nas sociedades complexas, pela

divisão social do trabalho e por um tipo de direito restitutivo. Esta perspectiva esteve voltada

marcadamente para estudos sobre as formas de controle social, preocupadas em fechar ou cimentar

as “brechas” que se produzem na realidade social, e que são frutos de contradições e antinomias do

direito. De acordo com Gurvitch (1999), esta forma de conceber o direito apresenta problemas que

devem ser superados, uma vez que não leva em conta a questão da pluralidade das fontes pelas

quais o controle é produzido e exercido, não permitindo que sejam consideradas as diferentes

hierarquias de controle social, segundo diferentes contextos históricos e culturais.

Uma significativa contribuição para a sociologia do direito foi a do jurista austríaco Eugen

Erlich, que em 1912 escreveu os Fundamentos da Sociologia do Direito, afirmando que “a Sociologia

do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se primeiramente ao concreto e

não ao abstrato. Somente o concreto pode ser observado” (Ehrlich, 1999, p. 113). Segundo Ehrlich,

as leis são parte das regulações sociais e, desse modo, o código civil não expressa toda a

complexidade do direito, uma vez que o que a lei propõe nem sempre se efetiva realmente.

Evidentemente, o documento só mostra aquele segmento do direito vivo que está documentado.

Como se pode, pois constatar aquela parte do direito vivo, que não está incorporada em documentos,

a qual é grande e bastante importante? Não há outros meios a não ser abrir os olhos, Informar-se

através de uma observação atenta da vida, entrevistar as pessoas e anotar suas respostas. (Ehrlich,

1999, p. 113 ).

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A partir dessas rápidas inferências às idéias de Ehrlich, podemos perceber o caráter

precursor do autor no que diz respeito à elaboração de uma sociologia do direito, pautada na

investigação empírica e concreta dos fenômenos jurídicos, evidenciando o caráter social de que estes

são revestidos.

Partindo do pressuposto de que o Direito é multidimensional, podemos afirmar que uma de

suas dimensões é tomada como objeto de estudo da sociologia, cabendo a ela investigar as causas e

os efeitos das leis. Compreendendo que as leis são fenômenos sociais, historicamente construídos, é

possível afirmarmos que há causas sociais para a existência de determinadas leis, bem como efeitos

ou conseqüências sociais destas leis sobre a realidade social em que são forjadas. Em outras

palavras, a sociologia investiga o impacto social das leis numa dada sociedade. Não se trata de

observar ou julgar valorativamente as leis (o que é papel da filosofia do direito) e sim, investigar os

valores sociais que nutrem a existência de determinadas leis, bem como sua eficácia social. Desse

modo, apontamos para a importância da pesquisa científica de cunho sociológico, que seja voltada

para o universo jurídico, envolvendo estudos de representações sociais, percepção de valores e

expectativas sociais acerca do direito, da justiça, das leis e inovações jurídicas.

A sociologia jurídica examina a influência dos fatores sociais sobre o direito e as incidências deste

último na sociedade, ou seja, os elementos de interdependência entre o social e o jurídico, realizando

uma leitura externa do sistema jurídico. (Sabadell, 2000, p. 49)

A sociologia jurídica, em seu desenvolvimento histórico como disciplina, apresenta inúmeras

diversidades, tanto pelo seu amplo leque de objetos de investigação, bem como pelas teorias que lhe

fundamentam. Como ciência social, é marcada por diferentes “olhares”, que garantem a observação

da realidade jurídica por diferentes prismas e dimensões. Acerca da importância da sociologia nos

cursos de Direito, afirmam Faria e Campilongo:

As grandes transformações que atingiram o Brasil durante os últimos anos – das quais são um

importante desdobramento os movimentos em favor dos direitos humanos e de acesso à Justiça,

procurando tornar mais efetiva a idéia de que o direito é “universal” e tentando forjar, por meio de

lutas políticas, formas alternativas de lei capazes de atenuar as desigualdades sócio-econômicas,

abriram caminho para o questionamento da estrutura vigente dos cursos jurídicos. Isso fez com que

muitos juristas, pondo em questão as fronteiras tradicionais do direito com as ciências sociais,

substituindo abordagens lógico-formais por outras mais críticas e problematizantes, historicizando a

análise do direito, identificando os pressupostos ideológicos da dogmática jurídica implícitos na

cultura “técnica” dos operadores dos códigos, colocando em novos termos o conceito de

“juridicidade”, retomando a discussão em torno do pluralismo jurídico, dando um novo tratamento ao

problema das fontes do direito e convertendo a eficácia do direito num dos temas obrigatórios da

reflexão dos juristas, passassem a defender uma ampla reformulação estrutural desses cursos. (Faria

e Campilongo, 1991, p. 25-26)

O que podemos observar é que a sociologia jurídica caminha para uma reflexão acerca da

cisão ou distanciamento existente entre o direito formalmente vigente e o direito socialmente eficaz.

Isto passa a se evidenciar à medida que o direito se torna um objeto de investigação autônomo para

a sociologia, distanciando-se da filosofia do direito e da dogmática jurídica, clamando interesse

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sociológico pela emergência das lutas sociais movidas por grupos de interesses específicos,

referentes aos novos e plurais direitos sociais (estudantes, negros, mulheres, sem-terra, etc.).

Assim, tratar sociologicamente o Direito é supor que este se situa numa realidade

socialmente construída e possui, em sua essência, um caráter social, bem como um caráter histórico,

uma vez que se constitui a partir de relações sociais historicamente determinadas. O direito sofre

mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais. Possui uma historicidade e, por isso,

quando se fala da origem do direito, fala-se da origem de certo direito, quando se diz defender o

direito, o que se defende é uma certa concepção de direito (Lyra Filho, 1982). Isso nos reporta à

direta associação entre direito e política, direito e história, direito e realidade social, evidenciando que

o direito é concreto, vivo, contínuo processo em construção e transformação. Desse modo,

a sociologia aplicada ao estudo do direito deve estar voltada para o desmascaramento das idéias

jurídicas, revelando objetivos e interesses que se ocultam por trás dessas idéias. Para tanto, é

necessário que a dogmática jurídica não prepondere, para que a investigação sociológica não seja

por ela abafada. Isso é fundamental para entendermos a própria realidade social na qual o direito se

situa e atua, como forma de intervenção racional de controle social e de expansão das liberdades.

A norma jurídica, assim como as demais normas que regulam a vida social, emana da

sociedade. Utilizando-se dos instrumentos e instituições voltados para a constituição do direito, a

norma jurídica fundamenta-se nos objetivos, crenças, valores e interesses (sociais, políticos,

econômicos) que prevalecem na estrutura social vigente. Realidades sociais diferenciadas

condicionam, historicamente, ordens jurídicas também diferenciadas, operando a existência de uma

forte relação entre conjuntura global e normatividade jurídica. Do mesmo modo, cada processo

nacional ou grupal expressa uma realidade particular a que correspondem instituições também

particulares, dentre elas, as instituições jurídicas, sobre as quais recaem os condicionantes sócio-

culturais reforçados pelos costumes, pela moral e pelos valores sociais.

Entendendo que o contexto social em que vivemos apresenta-se marcado por determinações

de classe, de raça/etnia e de gênero, sabemos que o poder, entidade metafísica e abstrata, ao

expressar-se concretamente, apresenta-se como proprietário dos meios de produção, branco e adulto

e, certamente, masculino. É nesse contexto de relações de poder bem definidas que as leis são

promulgadas, normas instituídas, códigos acatados.

Podemos apontar um exemplo bastante elucidativo das desigualdades e discriminações

sociais que são reproduzidas e, muitas vezes, abafadas pelas leis em vigor até que, após muitas lutas

e reivindicações, sejam modificadas. Segundo a advogada Alessandra Teixeira, o fato dos homens

presos terem o direito a visita íntima contrasta com a ausência desse direito para as mulheres presas

no Estado de São Paulo. Embora formalmente tenha sido superada a visão de que a visita íntima

pudesse ser uma regalia ou um privilégio do apenado, ainda não foi percebida como um direito que

deve também ser estendido às mulheres presas, e não somente aos homens. Trata-se, segundo a

autora, de mais uma forma de violência de gênero e discriminação sexual a que a mulher é

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submetida, reforçada pelo tratamento jurídico-penal a ela destinado. O abandono da mulher presa é perpetuado pelo sistema penal, que além de criminalizar,

tradicionalmente, as condutas das classes desfavorecidas, lhes aplica o tratamento penalizador o

mais estigmatizante e feridor de seus direitos fundamentais. (Teixeira, 2001, p. 04)

Num de seus ilustrativos trabalhos de pesquisa, Sérgio Adorno elabora uma crítica à máxima

do pensamento político clássico, forjada no interior do liberalismo do Estado Moderno, que afirma a

igualdade de todos perante as leis. O autor aponta que este princípio ateve-se a uma eficácia

simbólica que esteve (e está ainda) em desequilíbrio com a eficácia material, o que o leva a

questionar a relação estabelecida entre justiça social e igualdade jurídica. Aplicada esta reflexão

sobre as condições jurídicas no Brasil, Sérgio Adorno aponta que a distribuição de justiça alcança

somente alguns cidadãos; enquanto o acesso aos serviços judiciais é dificultado e as decisões

judiciárias são discriminatórias (Adorno, 1999).

Afirma Adorno que o foco da atenção processual é voltado para elementos subjetivos, como o

comportamento criminoso, virtudes e vícios dos personagens envolvidos no processo judiciário, os

dramas da vida cotidiana, a busca de comportamentos considerados dignos, justos, normais,

universais. No decorrer dos processos penais, o crime deixa de ser um drama social, quando outros

fatores – além do próprio crime – passam a concorrer para a condenação ou absolvição dos réus:

investigação da vida pregressa e dos antecedentes dos agressores e vítimas, imaginação hipotética

de situações e circunstâncias, dedução de prováveis comportamentos de vítimas e agressores.

Assim, o processo judiciário aparece como um constructo social, permitindo a contaminação por

inúmeros preconceitos, interpretações deturpadas e informais que podem ser confundidas com a

interpretação racional dos códigos. Objetividade e subjetividade se mesclam e se confundem.

Essas contribuições de Sérgio Adorno permitem desfazer a imagem de que a justiça possa

ser cega e neutra, uma vez que revela a complexidade dos processos judiciais, descaracterizando a

dimensão puramente técnica e jurídica dos agentes e aparelhos de condenação. Conclui o autor,

portanto, que a justiça penal é incapaz de traduzir diferenças e desigualdades em direitos, incapaz de

fazer da norma uma medida comum, incapaz de fundar o consenso em meio às diferenças e

desigualdades (Adorno, 1999).

3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito

Buscamos salientar o caráter social do direito para fazê-lo emergir como instrumento de

garantia da igualdade e justiça, que não pode ser ignorado na formação do profissional do direito.

Para este profissional, torna-se fundamental considerar o direito como processo, entendendo-o como

realidade móvel, flexível, dialógica e não estritamente “lógico”, no sentido de não estar aprisionado

ao formalismo das leis e à coerência dos fatos. O direito nasce da luta de classes, dos conflitos

sociais, do permanente desejo de libertação e superação das desigualdades. É processo em devir,

produto e produtor das transformações históricas.

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Nessa perspectiva, entendemos que o direito, na sociedade capitalista, não é a pura e

simples expressão da vontade da classe dominante. Nem é o simples reflexo das determinações

econômicas, que uma concepção simplista da relação entre infra-estrutura e superestrutura poderia

nos fazer crer. Podemos dizer que o direito moderno, pela sua função ideológica, institui-se como

mediador entre as classes, uma vez que, para que o direito apareça como justo é necessário que

possa manter uma lógica coerente com os critérios de igualdade, que possa ser utilizado como

um obstáculo à exploração desenfreada da classe dominada pela classe que está no poder. Trata-se

aqui, de ocuparem-se as “brechas”, as lacunas que o próprio direito deixa, para o exercício da justiça.

Assim, fundamental distinguir entre direito e lei, uma vez que o direito deve ser entendido

como um sistema de relações e interesses classistas, codificados através da lei, porém, não se

reduzindo a ela. De certa maneira, podemos falar em aplicação do direito através da lei – podendo

ser entendida esta lei como instrumento muitas vezes injusto para a classe oprimida, se representar

os interesses arbitrados pela classe dominante e garantidos pelo Estado. Contudo, também podemos

interpretar o Direito como libertador, se considerarmos que sua fonte de emanação não se restringe

ao Estado, podendo nascer dos embates e lutas sociais que marcam a vida cotidiana. Nesta

perspectiva, o Direito ganha poder de ação dialética, revelando sua essência contraditória e,

consequentemente, transformadora. Para que isso se concretize, contudo, torna-se fundamental

construir um “direito comprometido”, um direito que seja fruto do “conflito entre o direito posto, vigente

e eficaz, contra um direito potencial que emerge das lutas dos dominados, dos destinatários

esmagados na ordem jurídica posta.” (Aguiar, 1980, p.183)

Depreendemos assim, que o direito, dialeticamente compreendido, emerge como um

mediador entre as classes, um mediador entre as contradições do real. Lembrando Roberto de

Aguiar, sempre que existe direito é porque existe um problema que o gerou. O direito não nasce da

concordância e do consenso, pelo contrário, ele nasce do conflito das contradições (Aguiar, 1980).

Numa sociedade de classes, a diversidade de interesses favorece uma diversidade de

consciências jurídicas e, conseqüentemente, a emergência de diferentes fontes de Direito. Nessa

perspectiva, nem todo o direito pode ser visto como direito estatal, bem como, não podemos reduzir o

direito à política e à ideologia da classe dominante. O direito estatal é parte de uma totalidade, que

por sua vez pode ser percebida como um momento no processo de totalização. Tal percepção nos

faz compreender o caráter processual e transitório do direito – histórico, portanto! Em outros termos,

o Direito é constituído pela, e constituinte da realidade social.

Uma vez que consideremos o direito como um fato social de profundo significado, possuidor

de um caráter voltado para a normatividade e o controle social, falar em mudança social é,

necessariamente, falar em mudança do direito. De acordo com Roberto Lyra Filho, as normas devem

ser expressão do direito móvel, aquele que está em constante progresso. Mas quando o direito é

confundido com o legalismo, com normas envelhecidas, tornando-se “direito em si”, torna-se reificado,

perdendo seu caráter de processo, de instrumento de mudança social. O direito não nasce

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metafisicamente, ele é fruto de um processo de lutas, fruto de oposições e conflitos, avanços e

recuos. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é

aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e

que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições

fazem brotar as novas conquistas (Lyra Filho, 1982).

Segundo tal perspectiva, a proposta de mudança implica num complexo processo social,

marcado por transformações da sociedade civil. Em tal empreitada, emerge como fundamental o

papel do profissional do direito e sua inserção nas lutas democráticas. Caberá a este profissional

desempenhar a função de um intelectual orgânico, capaz de construir a contra-hegemonia, no sentido

que dá Gramsci, a esses conceitos (Arruda Jr., 1997). Daí a necessidade de formação de um

profissional com perspectiva sociológica, capaz de dialogar com a realidade concreta, que dá vida e

eficácia às normas legais.

Sob tal ótica, percebemos a sociedade civil como sede principal das lutas transformadoras,

uma vez que é a sede do pluralismo que serve de base para os movimentos sociais comunitários. A

medida que os profissionais do direito questionam os “descaminhamos do sistema normativo”,

marcado pelo excesso de formalismo, pelo reforço das situações de injustiça e pelos critérios

arbitrários de decisão, inicia-se a construção, o fortalecimento e a emergência de juridicidades

latentes. Nesta percepção, o conceito de anomia ganha um papel central, agora reinterpretado,

porque fica “vinculado à crise estrutural e ao desgaste de valores”, mostrando a presença de uma

imposição ideológica que não corresponde efetivamente aos valores existentes, nem tampouco à

realidade concreta.

Torna-se essencial adotar-se uma perspectiva crítico-dialética, na tentativa de relacionar

anomia e mudança, voltando-se para a possibilidade de ruptura da ordem vigente. Fundamental

perceber o conflito latente entre legalidade e legitimidade, uma vez que a legalidade expressa o

interesse e forças predominantes na sociedade de classes (considerada ideologicamente como

sociedade global), enquanto a legitimidade está voltada para as subculturas e grupos econômica e

politicamente minoritários, que também possuem suas normas e códigos.

Essa percepção passa necessariamente pelo resgate do pluralismo jurídico, que compreende

o direito como essencialmente múltiplo e heterogêneo, significando que num mesmo espaço social

podem coexistir diversos sistemas jurídicos, já que existe uma pluralidade de fontes. Por meio da

correlação entre anomia-legitimidade, estabelece-se a importância e a possibilidade da criação de

espaços sociais alternativos para o exercício do direito, na construção de algo que podemos

denominar de “legalidade alternativa”.

Como forma de ilustrar essa idéia, tomemos como exemplo os bairros de periferia: espaços

sociais de luta que possibilitam a transformação da realidade social por meio da ação cotidiana.

Observemos os grupos de moradores de bairros que, unidos por laços de vizinhança, amizade ou

parentesco, voltam-se para a discussão de problemas concretos, experimentados na realidade dos

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bairros em que vivem, tornando-se com isto embriões de organização popular, defendendo seus

interesses, identificando necessidades e fortalecendo-se nas formas de resistência que favorecem as

reivindicações sociais e o alargamento de direitos (Novaes, 1999). A esta realidade devem estar

atentos os profissionais do direito em formação, capazes de articular o universo jurídico às lutas

sociais e políticas, voltando-se para as representações sociais que animam o direito vivo.

4. Considerações finais

Evidenciamos a ação dos chamados movimentos populares que caracterizam uma anomia

emergente, por meio do fortalecimento da capacidade de mobilização e organização das lutas

populares, ao ponto de oferecerem propostas concretas de democracia da sociedade e alternativas

para o estabelecimento de um poder popular. Entendemos que aqui se encontra uma importante

fonte de ação política e de exercício do direito, constituído sobre o pluralismo jurídico, que

necessariamente passa por uma compreensão sociológica da realidade jurídica e social por parte do

profissional do direito.

Por isso, amarrando as considerações e reflexões tecidas até o momento, apontamos para a

necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente na formação do

profissional do direito adequado às necessidades do real. Um paradigma calcado na construção e

reconhecimento de um pluralismo participativo e democrático, capaz de perceber a emergência de

novos direitos nascidos dos movimentos sociais populares. Tais profissionais, verdadeiramente

comprometidos com a eficácia real das leis por meio de sua legitimidade, contribuirão para a

legitimação de novos sujeitos de direito, democratizando os diferentes espaços sociais e favorecendo

a busca por formas alternativas de resoluções de conflitos que fortaleçam a sociedade civil e a

construção da verdadeira cidadania. Como explicita Antonio Carlos Wolkmer,

Este pluralismo ampliado e de novo tipo, além de possuir certos pressupostos fundantes de

existência material e formal, encontra a força de sua legitimidade nas práticas sociais de cidadanias

insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por sua vez, fontes autênticas de nova forma de

produção dos direitos, direitos relacionados à justa satisfação das necessidades desejadas.

(Wolkmer, 2001, p. 347)

O profissional do direito que não estiver afeito a estas percepções e perspectivas, estará

concorrendo para reproduzir os anacronismos do bacharelismo e as arbitrariedades do tecnicismo,

em prejuízo da realização de um ideal de justiça que favoreça uma sociedade igualitária, que sirva a

um direito sustentado nas bases sólidas da eficácia social, e não engessado no limitado formalismo

das leis.

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