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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO PRÓ-REITORIA ACADÊMICA MESTRADO EM DIREITO JOSÉ FERNANDES MARIZ PERSPECTIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE DA AFIRMAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Recife 2017

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO

PRÓ-REITORIA ACADÊMICA

MESTRADO EM DIREITO

JOSÉ FERNANDES MARIZ

PERSPECTIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE DA AFIRMAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Recife

2017

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JOSÉ FERNANDES MARIZ

PERSPECTIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE DA AFIRMAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Wanderley Nogueira

Recife

2017

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada à fonte.

Ficha Catalográfica

Serviço da Biblioteca e Documentação

JOSÉ FERNAES MARIZ

M343p Mariz, José Fernandes Perspectiva da administração pública em face da afirmação

de direitos fundamentais / José Fernandes Mariz ; orientador Roberto Wanderley Nogueira, 2017.

146 f. : il. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Pernambuco.

Pró-reitoria Acadêmica. Coordenação Geral de Pós-graduação. Mestrado em Direito, 2017.

1. Direitos humanos. 2. Direitos fundamentais. 3. Administração Pública. I. Título.

CDU 342.7

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Perspectiva da administração pública em face da afirmação de direitos fundamentais

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Aprovado em: _______________________

Banca Examinadora:

___________________________________________________________________

Presidente e Orientador: Prof. Dr. Roberto Wanderley Nogueira (UNICAP)

___________________________________________________________________

Examinador Interno: Prof. Dr. Sergio Torres Teixeira (UNICAP)

___________________________________________________________________

Examinador Externo: Prof. Dr. Walber Moura Agra (UFPE)

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Dedico o presente trabalho

A minha mãe, FRANCISCA FERNANDES MARIZ, a minha esposa,

ERYKA ALBUQUERQUE MARIZ, aos meus filhos JÉSSICA BARROS

MARIZ, ALEXANDRE JOSÉ BARROS MARIZ, LETÍCIA ALBUQUERQUE

MARIZ e LOUISE ALBUQUERQUE MARIZ, que se privaram da minha

convivência e dos meus dias de lazer, em prol do desenvolvimento deste

trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço sobremaneira aos professores integrantes deste programa de Mestrado,

pela fundamental colaboração com a minha formação acadêmica e especialmente

ao Professor Dr. Roberto Wanderley Nogueira pela cordialidade e afetividade em

assinalar os pontos cardeais deste trabalho.

Ao Dr. Walber Moura Agra, conterrâneo admirável, pelas judiciosas lições

doutrinárias de vanguarda que adornaram esta dissertação.

A minha amada esposa Eryka Waleska Albuquerque Mariz, pela colaboração em

justificar a minha ausência em casa para me dedicar a produção desse trabalho,

pela afinidade ideológica e pela dedicação exclusiva as minhas filhas Leticia

Albuquerque Mariz e Louise Albuquerque Mariz.

Aos meus filhos amados Alexandre José Barros Mariz e Jéssica Barros Mariz pela

compreensão das lacunas afetivas que eventualmente eu tenha lhes dispensado.

Ao filho do meu filho, José Fernandes Mariz Neto, que, ainda no ventre materno, me

deu esperança da imortalidade.

A minha mãe Francisca Fernandes Mariz de onde extrai as mais virtuosas lições de

vida, de firmeza de caráter, garra e de enfretamento da vida sem medo.

Aos meus irmãos Bertúcio Fernandes Mariz, Thompson Fernandes Mariz, Bertolúcia

Mariz de Melo, Gisélia Mariz Simões, Isaac Mariz Filho, Francisco Steferson

Fernandes Mariz, Fátima Marques Mariz pelas suas sempre presente solidariedade

em todas as fases da minha vida.

As minhas irmãs falecidas Silvia Fernandes Mariz e Aluska Fernandes Mariz pela

felicidade de suas imorredouras lembranças.

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RESUMO

A evolução histórica da ciência jurídica passou, primeiramente, pela substituição do paradigma jusnaturalista ao modelo positivista. Posteriormente, a suplantação do positivismo pelo paradigma pós-positivista, que trouxe como tema central a busca pela afirmação dos direitos humanos e fundamentais. Referida busca por efetivação dos direitos sociais, tendo como protagonista o Poder Judiciário, sob a égide do ativismo judicial, trouxe uma série de dilemas para a administração pública. Impossibilitado de prover, na integralidade, a extensa gama de direitos constitucionalmente reconhecidos, o administrador público viu-se em uma verdadeira quimera. Desta feita, concluímos a presente discussão focando na Teoria da Reserva do Possível e seu preponderante papel na solução desta problemática.

Palavras-Chave: Administração Pública. Direitos Humanos e Fundamentais. Efetividade. Ativismo Judicial. Reserva do Possível.

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ABSTRACT

The historical development of legal science has, first, passed by replacing the natural law paradigm with the positivist model. Subsequently, the supplanting of positivism by post-positivist paradigm brought as a central theme the search for affirmation of human and fundamental rights. Said search for realization of social rights, with the protagonist the Judiciary, under the aegis of judicial activism, brought a number of dilemmas for public administration. Unable to provide, in full, the extensive range of constitutionally recognized rights, the public administrator found himself in a true chimera. This time, we conclude this discussion by focusing on the possible reserve theory and its key role in solving this problem.

Keywords: Public Administration. Human and Fundamental Rights. Effectiveness. Judicial Activism. Possible Reserve.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 – A IMPLOSÃO DO LEGALISMO JURIDICO E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS .............................................................................................. 14

1.1 AS BASES DO DIREITO: O JUSNATURALISMO ...................................................... 14

1.2. DIFERENÇA ENTRE JUSNATURALISMO E POSITIVISMO JURÍDICO ................... 21

1.3. A ORIGEM E ASCENSÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO ........................................ 27

1.4. DA SUPERAÇÃO DO PROJETO POSITIVISTA E A ASCENSÃO DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO ................................................................................................ 33

CAPÍTULO 2 – O PAPEL DO JUDICIÁRIO DIANTE DA INÉRCIA ESTATAL ........ 45

2.1. DA CONCEPÇÃO DE ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ................................ 45

2.2. EXPANSÃO JUDICIAL E A CONSAGRAÇÃO DA REVISÃO JUDICIAL ................... 48

2.3. O ATIVISMO JUDICIAL E A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS .............................. 53

2.4. A EXPANSÃO JUDICIAL NO BRASIL E O SUBJETIVISMO DAS DECISÕES ......... 55

CAPÍTULO 3 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS .................................................................................................. 59

3.1. DA VINCULAÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DIREITOS SOCIAIS ..... 59

3.2. DIFICULDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ........................... 63

3.3. ENTRENCHMENT DOS DIREITOS SOCIAIS ........................................................... 64

3.4. DENSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS PELA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ...................................................................................................... 66

CAPÍTULO 4 – DO DISCURSO ENGENHOSO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA MITIGAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ............................................................. 83

4.1. RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL ........................................... 83

4.2. ANÁLISE DE CASO: PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE VERSUS

UNIÃO FEDERAL, EM QUE SE INVOCOU A RESERVA DO POSSÍVEL EM PROL DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. .......................................................... 89

4.3. RESERVA DO POSSÍVEL E AUTONOMIA DO ENTE FEDERADO ......................... 97

4.4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E DO MÍNIMO EXISTENCIAL ............................................................... 100

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4.5. DO JULGAMENTO DE CASO CONCRETO SOBRE A GRATUIDADE DO ACESSO A EDUCAÇÃO PELAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS ...................................................... 103

4.6 DA DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO A PACIENTES PORTADORES DE DOENÇAS RARAS ......................................................................... 106

4.7 DA DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS NÃO CADASTRADO NA LISTA DO SUS/ANVISA .................................................................................................................. 122

CAPÍTULO 5 - DA FUNÇÃO ATÍPICA DO JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. ................................................................................ 127

5.1 DA RATIO DO DISCURSO DE PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM FACE DAS CONVENÇÕES E PACTOS INTERNACIONAIS “SUPRALEGALIDADE” ....................................................................................................................................... 130

5.2 TUTELA AO DIREITO DE COMUNICAÇÃO DO DEFICIENTE AUDITIVO. ............. 133

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 140

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INTRODUÇÃO

Um dos desdobramentos lógicos da pós-modernidade, do

neoconstitucionalismo e do reconhecimento da força normativa e supremacia da

Constituição é a valoração dos direitos fundamentais e da importância do ser

humano como elemento essencial do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, após a consagração de tal desdobramento, torna-se

imprescindível o enfrentamento da nova problemática constitucional, qual seja: a

concretização desses direitos, principalmente os sociais, que são potencialmente

capazes de elidir as desigualdades, equilibrando as disparidades que tanto

separam os homens do seu semelhante.

Nesse sentido, Bobbio (2004, p. 23), em seu livro “A Era dos Direitos”,

lavrou com pena de ouro o seguinte: “O problema fundamental em relação aos

direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-lo, mas o de protegê-los. Trata-

se de um problema não filosófico, mas político”.

Por tal razão, as balizas do pensamento constitucional da respectiva

dissertação circunscrevem as consequências teóricas e práticas da aplicação dos

direitos fundamentais, principalmente no cenário brasileiro, analisando os meios

de aplicação e os casos de inércia estatal e a consequência disso.

Afinal, a quem deve competir o múnus público de concretizar os direitos? É

dever do Estado? Do Município? Da União? Do Judiciário? Qual papel e postura o

Poder Judiciário deve ter perante os casos de ineficiência de serviço público e de

inércia do Poder Legislativo? E de qual matriz ontológica a jurisprudência pátria

reveste a teoria da reserva do possível? Ela pode servir de manto limitador ao

exercício dos direitos fundamentais?

Por outro aspecto, os direitos sociais são exigíveis no Judiciário? Uma pessoa

do povo tem capacidade postulatória para reivindicar direito social? O Poder

Judiciário tem poderes para emendar lei orçamentária? Já que não há despesa sem

contingenciamento orçamentário? O judiciário não estaria usurpando funções

assinaladas pela Constituição Federal a outros Poderes?

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Esses questionamentos serão as válvulas impulsionadoras desta

dissertação, centrada no prisma constitucional brasileiro, cujo problema

teleológico reside na concretização dos direitos sociais, mormente o direito à

saúde e à educação, que tanto aflige o povo brasileiro, visto que nosso serviço

público nesses setores é tão deficitário.

Logo, com apanágio no exposto, pretende-se analisar os conflitos verticais

entre o cidadão e o Estado, fundados nos direitos sociais, bem como o papel do

Poder Judiciário nessa intermediação conflituosa e quase sempre litigiosa.

Ademais, a presente dissertação visa contribuir para o desenvolvimento de

uma abordagem teórica e constitucionalmente correta acerca da concretização

dos direitos sociais, direitos estes classificados como direitos de segunda

dimensão/geração, cuja consequência prática atinge tantos brasileiros,

principalmente aqueles menos favorecidos.

Para tanto, a preocupação doutrinária desta dissertação se limita ao fator

interventor do Poder Judiciário na instrumentalização e concretização das políticas

públicas e na densificação dos direitos sociais, quando a inércia e a omissão do

Poder Público restarem comprovadas, principalmente em relação ao Poder

Executivo e Legislativo. Na verdade, defende-se uma postura interventora do

Poder Judiciário, mas por meio de uma conotação subsidiária, ou seja, com o

objetivo teleológico de amparar o cidadão que não obteve o tratamento correto por

intermédio dos meios competentes.

Portanto, nos casos de omissão e de inércia dos Poderes Executivo e

Legislativo, torna-se imprescindível a intervenção do Poder Judiciário,

principalmente por meio do manto da inafastabilidade do poder jurisdicional,

defendendo e tutelando os direitos fundamentais constitucionalmente

consagrados, permitindo que o cidadão possa obter do Estado tudo aquilo que lhe

é de direito.

Com base nisso e para isso, adota-se, como ponto de partida, objeto do

primeiro capítulo, a implosão do projeto positivista e a efetividade dos direitos

humanos, principalmente abordando o jusnaturalismo e a origem do positivismo

jurídico, assim como a ascensão do pós-positivismo.

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Especificam-se, no segundo capítulo, a transformação do Estado em

Estado Constitucional e o surgimento do ativismo judicial, a judicialização da

política e a efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os plasmados na

Constituição Federal.

No terceiro capítulo, observa-se os dilemas da administração pública, a

partir do estudo da vinculação entre administração pública e direitos sociais, da

dificuldade de implementação e do entrenchment dos direitos sociais, como

também da densificação dos direitos sociais pela jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal (STF).

Por fim, concretiza-se, no quarto capítulo, a teoria da reserva do possível e

o mínimo existencial, bem como a análise de caso envolvendo o Município de

Campina Grande-PB versus União Federal, em que se invocou a reserva do

possível em prol da efetivação dos direitos fundamentais, encerrando-se com a

reflexão da reserva do possível e a autonomia do ente federado, da análise de

precedentes julgados pela Supremo Tribunal Federal, envolvendo a eficácia e a

aplicação dos direitos sociais, e o julgamento de caso concreto sobre a gratuidade

do acesso à educação pelas universidades públicas.

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CAPÍTULO 1 – A IMPLOSÃO DO LEGALISMO JURÍDICO E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

1.1 AS BASES DO DIREITO: O JUSNATURALISMO

A boa doutrina de Lima (1951, p. 5) informa que é comum a escola jurídica

ocidental estabelecer um fluxo de ideia sobre a dissemelhança de conceito entre o

direito positivo e o direito natural, já amplamente trabalhada pela filosofia grega e

latina, afirmando ser novel o termo “direito positivo” em face de sua concepção se

encontrar nas penas laureadas dos escribas latinos medievais.

De forma muito concisa, podemos definir o Jusnaturalismo como sendo uma

dogmática do direito que preconiza a sua seara natural, podendo ser calcada em

três vertentes específicas: a) a primeira vertente circunscreve a legitimidade divina

no Direito, ou seja, a lei é estabelecida de acordo com a vontade de Deus e apenas

revelada aos homens; b) a segunda vertente descreve o sentido natural da

legislação, na acepção antropológica e instintiva dos seres humanos; c) por

derradeiro, a terceira vertente se relaciona aos cânones da razão, que fomenta uma

ressonância entre o texto legal e os valores morais da sociedade.

Em que pesem essas três vertentes, torna-se inexorável demonstrar que

todas partem da premissa da existência de uma lei anterior e superior que antecede

e que funda o próprio Estado.

A etimologia da expressão “Estado” advém do latim status, elucidando a

premissa básica de estrutura política vigente na sociedade. Singularmente, de

maneira bastante resumida, pode-se afirmar que a palavra Estado consubstancia

uma nação politicamente organizada, por meio de três elementos constitutivos:

povo, território e governo (LIMA, 1951).

A corrente jusnaturalista do Direito preconiza um direito natural inerente à

própria condição humana, estando presente em quaisquer desdobramentos de sua

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ortodoxia, inclusive perante a complexidade social. Assim sendo, qualquer

objurgação desses preceitos, será considerada, pela corrente jusnaturalista, como

ilegítima, para os cidadãos, o direito de resistência a ser exercido.

Evidencie-se que a vertente do jusnaturalismo que defende a existência de

leis anteriores ao próprio Estado, ou seja, superior ao direito positivo, teve início já

nos textos dogmáticos da Grécia Antiga. Isto porque a filosofia grega também

tinha como aspecto teleológico a relativização das leis humanas. Tanto é assim

que os Sofistas protagonizaram a proliferação de ideais e pensamentos acerca da

relatividade das coisas. Ao assumir essa posição diante da evidência dos fatos e

valores, respingou, no âmbito do pensamento dual sobre o que é justo ou injusto,

a relativização da justiça.

Os teólogos da idade média oferecem outra concepção do direito natural.

Para Santo Tomás de Aquino, que encampou posição de muita importância na

Igreja, há um perfeito aumento entre a tríade fundamental das leis: a lei eterna,

que seria razão divinal que rege o universo e o comportamento humano; a lei

natural, resultante da lei eterna que o homem conhece por meio de sua razão; e a

lei humana, criação individual do homem, legislação que é o instrumento para

ordenar a convivência (LIMA, 1951).

Para essa corrente, a fonte do direito natural é a vontade de Deus. Assim,

em qualquer lugar e em qualquer época, o direito natural é conhecido de todos e

busca assegurar o bem como a aplicação da justiça. Essa concepção admite a

supervalorização do direito natural perante as leis confeccionadas pelos homens,

que podem deixar de ser cumpridas quando julgadas como injustas. Consigna que

a lei humana, ainda que conduzida pelo governante ou pelo Estado, deve basear-

se na razão, pois, do contrário, tratar-se-ia de injusta. Não será lei se não visar ao

bem comum, se não for executada por quem tenha competência e se não for

corretamente promulgada (LIMA, 1951).

Para Reale (2002, p. 11), o Ius Naturale é constituído por alguns dogmas

que alicerçam a conduta, que se origina da razão, mas intrínseco na lei eterna ou

divina:

Santo Tomás de Aquino subordina a sua teoria de justiça ao conceito objetivo de lei, ou mais precisamente, de lex eterna, a qual ordena o cosmo de conformidade com a razão do legislador supremo, assim

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como, numa comunidade, a lex huaman representa a ordem dada por quem racionalmente a dirige de conformidade com o bem comum.

A esse respeito, Nader (2004, p. 365) ensina que “a ideia do Direito Natural

é o eixo em torno do qual gira toda a Filosofia do Direito. O jusfilósofo ou é

partidário dessa ideia ou é defensor de um monismo jurídico, visão que reduz o

direito apenas jurídica positiva”.

Deflui-se ainda que, o direito natural, tem como premissa a existência da

concepção geral do justo, livre de qualquer regra impositiva. O movimento do

jusnaturalismo, que é a lei da razão, se apresenta e se sobreleva a norma

antecessora e nestas circunstâncias, comprova-se que o direito justo antecede a

própria existência do Estado. Logo, as regras de direito positivo devem ser

fundamentadas em uma espécie de legislação superior, definida por meio da

nomenclatura de lei natural, que seria decorrente da natureza de todas as coisas e

do homem, entrelaçadas, nessa ótica, com a sua cultura, em um exercício

inexorável e simbiótico.

Nesse sentido, Yaguez (2010, p. 155) ensina que, em apertada síntese, o

direito natural se assenta em três pilares:

a) ser fundamento do direito positivo; b) inspirar o conteúdo dos direitos humanos, pois deve haver harmonia com o direito positivo; c) ser levado em conta quando da aplicação do direito positivo, da lei humana. Em síntese, essa ideia, de escola tradicional do direito natural, prega que a justiça deve ser feita em cada caso concreto, de acordo com valores naturalmente expostos no cenário social.

Essa concepção de justiça e de equidade que prevaleceu até o século XVI

padeceu de considerável mitigação, no século XVII, com a ascensão do pensamento

racionalista. Nesse contexto, o direito natural, aprioristicamente compreendido como

uma obra de origem divina, passa a ser considerado como objeto oriundo da razão

humana.

A esse respeito, Bittar e Almeida (2009, p. 95), explicam:

No debate entre o prevalecimento da natureza das leis (physis) e o prevalecimento da arbitrariedade das leis (nómos), os Sofistas optaram, em geral, pela segunda hipótese, sobretudo os partidários das teses históricas acerca da evolução humana; a lei (nómos) seria responsável pela libertação humana dos laços da barbárie. Isso

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porque, coerentemente com seus princípios, diziam ser o homem o princípio e a causa de si mesmo, e não a natureza. Ora, deliberar-se sobre qual será o conteúdo das leis é atividade preponderantemente humana, e nisso não há nenhuma intervenção da natureza, como admitido pela tradição literária e filosófica grega. A natureza (phýsis) faria com que as leis fossem idênticas em todas as partes, tendo-se em vista que o fogo arde em todas as partes da mesma forma, como posteriormente dirá Aristóteles. No entanto, pelo contrário, o que se vê é que homens de culturas diferentes vivem legislações e valores jurídicos diferentes, na medida em que se encontram em seu poder definir o que é justo e o que é injusto.

Como se percebe, o jusnaturalismo sempre teve como premissa a natureza

humana, otimizando os cânones da liberdade e igualdade dos homens. A tese

preconizada pelos sofistas era invocar esses preceitos para fazer prevalecer a

seara arbitrária e autoritária do Estado e do governo.

A ortodoxia do jusnaturalismo teve como invariável axiológica o conceito de

justiça como fator otimizante para a criação do Direito. Uma vez que, o fator

coercitivo do Direito deriva primordialmente da ressonância com os princípios de

justiça universais e não apenas de uma autoridade soberana.

Com efeito, Chorão (1986, p. 138) afirma que “a legalidade vigente é aferida

por critérios superiores de legitimidade jurídica e o Estado de Direito é verdadeiro

Estado de Justiça, sendo esta pautada pelos fins essenciais da pessoa humana”.

Os valores de justiça transcendem a relação jurídico-política com a vontade

divina, tornando-se autodeterminação humana, podendo, este último, de per se,

concretizar o direito natural, sem qualquer correlação com qualquer crença ou

vontade divina.

Ademais, Sócrates, Platão e Aristóteles, por um corte epistemológico,

estabeleceram uma distinção entre o conceito de justo, conforme a natureza, e o

conceito de justo, segundo a lei em sentido formal. Para essa vertente grega, o

justo conforme a sua natureza deriva do pensamento de cada ser humano,

consoante suas convicções pessoais e subjetivas. Assim, nesse plano, o direito

natural ostenta apenas o desiderato objetivo. Nader (2004) explica que essa

posição deu azo à concepção positivista, sob o auspício de que os sentidos dos

homens não resultam em um conhecimento inexoravelmente verdadeiro.

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Por conseguinte, de acordo com os valores modernos predominantes no

século XVI, assim como o avanço das ciências e da razão matemática e

geométrica, o jusnaturalismo sofreu profundas alterações, otimizando a razão

como um vetor interpretativo inexorável, principalmente no comportamento

humano.

Grócio (2005, p. 1625) define o Direito Natural “como mandamento da reta

razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação

qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional”1.

Essa mudança de paradigma, calcada pelo advento da revolução

copernicana na esfera do Direito, aponta um novo horizonte a ser cultivado pela

Ciência Jurídica, que tergiversa de estar consubstanciada a concepções mítico-

religiosas, para aprofundar seus fundamentos dogmáticos, principalmente por

meio de uma ótica da razão.

Portanto, nessa concepção, aduz Reale (2004) que o direito natural

depreende-se em apenas duas facetas. A primeira concepção, a antiga, tem como

ponto de partida a cidade-estado Grega e usa a natureza como fonte da lei que

tem a mesma força em toda parte e independente da diversidade das opiniões. E

a segunda, por sua vez, inaugura um novo conceito de direito natural que o fim de

todas as coisas não seria da suprema divindade e muito menos da natureza e sim

da razão.

Dentro desse contexto, estava criada a Escola Clássica do Direito Natural,

que teve diversos representantes, entre eles, Hugo Grócio, Samuel Pufendorf,

John Locke e Rousseau.

O Ius Natureles, sobretudo aquele perfilados pelos contratualistas acima

mencionados, teve em Rousseau seu principal tutor. Venosa (2004, p. 65) explica

que o “pensamento ensejou a justificação do arbítrio e da força, distanciando-se da

história, dando margem ao surgimento da chamada escola histórica, com Savigny e

outros seguidores, os quais investiram contra as abstrações do direito natural”.

Rousseau assimila o direito natural como algo decorrente de uma revolução,

acoimando de injusto o estado social, porque aniquilaria com a satisfação de

contentamento do estado primitivo do ser humano que vive na natureza. Em

1 De jure belli ac pacis, 1625, Prol., § 10, I, 1 I

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agrupamento de pessoas, o homem, ungido por ter vindo ao mundo livre, encontra-

se enclausurado. O direito positivo que normatiza hipóteses subjetivas para se

subsumir as hipóteses dos casos concretos, está em rota de colisão com o direito

natural, entendido pelo genial filósofo iluminista como algo decorrente da natureza,

sem amarras. Essa situação conduziria o “homem a fazer a apologia da revolução e

a criticar todas as formas de Estado” (MONTEJANO, 2005, p. 216-7).

Jean-Jacques Rousseau investiga uma saída e aposta no retorno ao estado

da natureza propriamente dito, qual seja, uma fattispecie de associação social cujo

principal pilar é a defesa do homem enquanto ser social, bem como o

estabelecimento de direitos e liberdades civis, por meio de um pacto social.

Desse modo, nessa vertente, a comunidade cívica proveniente desse pacto

social deve assegurar e observar liberdades básicas fundamentais a civilidade,

como a liberdade e a igualdade, tendo em vista serem pilares para formação

humana.

Ao estabelecer tais diretrizes, consagrou-se a inadmissibilidade de qualquer

tipo de submissão a outrem, devendo apenas os integrantes da sociedade se

curvarem ao talante do que seja de interesse comum ao pacto social anteriormente

celebrado.

Nesse passo, é que Rousseau criou algo como a vontade geral, que é

pressuposto material necessário para o surgimento da própria legislação. Assim, ao

estar se submetendo a vontade geral da sociedade e não a vontade de um cidadão

particular, estar-se-á garantindo a liberdade individual do cidadão.

Esse modelo teórico contratualista, formulado por Rousseau, estabeleceu

bases materiais para permitir um maior tipo de legitimidade ao legislador, tendo em

vista que, segundo a concepção contratualista, este último é apenas um instrumento

da vontade geral da sociedade.

Paralelamente, a concepção de vontade geral mitiga a liberdade individual de

cada cidadão, tendo em vista que cada ser individual abdica de sua liberdade

absoluta e incondicionada em prol do benefício e da vontade da nação, enquanto

sociedade.

Assim sendo, a vontade geral passa a ser substrato legitimador para

condução e direção da organização da sociedade.

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Destaque-se que Jean-Jacques Rousseau é estimado por muitos, inclusive

por Bittar, como o último jusnaturalista relevante de sua era, tendo em vista que

desenvolveu concepções políticas, sempre privilegiando a ordem natural e o

jusnaturalismo, principalmente otimizando os graus de justiça divina.

Essas concepções de Rousseau findaram por, posteriormente, inspirar a

Revolução Francesa (Bittar, 2001, p. 240)2. Entretanto, mesmo que não fosse a ideia

nuclear do destacado jusnaturalista, a versão contratualista do direito natural verteria

no positivismo jurídico que será adiante enfocado.

Outrossim, Chorão (2000, p. 138, apud VENOSA, 2004, p.187) verbera com

extrema clareza o antagonismo entre os jusnaturalistas e os positivistas, da seguinte

forma:

Para os jusnaturalistas, os valores são algo proposto aos homens e suscetíveis de justificação objetiva e metafísica. Para o positivismo, quando se reconhece a existência de valores, estes têm origem na iniciativa dos homens. Para o jusnaturalismo, o direito natural prevalece sobre o direito positivo sempre pela origem e pelo fundamento. Direito natural e positivismo. Teoria tridimensional que ocorrer um conflito entre ambos. Prevalecerá a lei ideal superior. No positivismo, exclui-se qualquer norma derivada da natureza, qualquer que seja seu entendimento, existindo somente o direito positivo.

Como visto, para o professor português Mário Emílio Bigotte Chorão, a ideia

de prevalência ou superposição do direito natural sobre o direito positivo não se

justificaria em face do império do direito positivo.

Assim, os direitos sociais passaram a ser construídos aos poucos, ora pela

legitimidade divina conferida a todos os seres, ora pelo aspecto antropológico

vigente em cada membro da sociedade, ora pela força da razão e até pelo

sentimento geral do justo ou injusto com a satisfação de contentamento do estado

primitivo do ser humano na natureza.

Por ser uma ciência social o direito parte de premissas jusnaturalistas com

sua ortodoxia própria da época para abrigar direitos sociais no âmbito do positivismo

jurídico, demarcando território entre os dois movimentos.

2 Metodologia da pesquisa jurídica

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1.2. DIFERENÇA ENTRE JUSNATURALISMO E POSITIVISMO JURÍDICO

Segundo Bobbio (1995, p. 15), a utilização da terminologia “direito positivo” é

relativamente contemporânea, posto que sua introdução na história do direito

surgiu apenas por meio dos textos legais latinos medievais.

A distinção entre “positivo” e “natural” refere-se à conotação da linguagem e

não propriamente ao direito em si mesmo. A grande celeuma que se instaurou refere

à problemática do que seria natural e o que seria fator cultural.

Santo Tomás de Aquino (2006), em sua Summa theologica, faz extensa

dissertação a respeito dos diferentes tipos de lei. Para o autor da idade média,

seriam quatro as espécies existentes de leis: a lei eterna; a lei natural; a lei

humana e a lei divina.

O desmembramento conceitual entre direito natural e positivo, encontra-se

exposto nas lições de Platão e Aristóteles. A passagem a seguir, do livro “Ética a

Nicômaco”, reflete a lição de Aristóteles (1997, p. 144-145):

Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra se funda em a lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda a parte o mesmo efeito e não depende do fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao contrário, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é, uma vez sancionada.

A respeito da distinção entre direito natural e direito positivo, na concepção

de Aristóteles, Bobbio (1995, p. 17) asseverou:

Dois são os critérios pelos quais Aristóteles distingue o direito natural e o positivo:

a) direito natural é aquele que tem em toda parte [...] a mesma eficácia [...], enquanto que o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto;

b) o direito natural prescreve cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existem independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja bondade é objetiva [...]. O direito positivo, ao contrário, é que aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou

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de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: correto e necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei.

Com efeito, percebe-se que essa distinção aristotélica entre direito natural e

direito positivo equivale àquela disciplinada pelo Direito Romano, mormente no

que tange ao jus gentium e o jus civile.

Como se sabe, o jus gentium e o jus civile verberam uma das distinções

mais indeléveis entre direito natural e o direito positivo. Segundo explica BOBBIO

(1995, p. 13), o jus gentium circunscreve à natureza, envolvendo, por

consequência, questões naturais. Por outro lado, o jus civile designa ao

estabelecimento das instituições da sociedade.

Como efeito, o direito positivo estaria adstrito a determinado povo, ao passo

que o direito natural teria conotação universal. Isto implica dizer que o direito

positivo teria origem social, ou seja, emanado pelo próprio povo, ao modo que o

direito natural teria origem natural, inerente a própria natureza.

Ainda demonstrando a diferenciação entre direito natural e direito positivo,

importante ressaltar que Bobbio (1995, p. 23-24) estabeleceu seis critérios de

diferenciação, a seguir elencados:

a) o primeiro se baseia na antítese universalidade/particularidade e contrapõe o direito natural, que vale em toda parte, ao positivo, que vale apenas em alguns lugares (Aristóteles, Inst. – 1ª definição);

b) o segundo se baseia na antítese imutabilidade/mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo, o positivo muda. (Inst. – 2ª definição – Paulo); esta característica nem sempre foi reconhecida: Aristóteles, por exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe a imutabilidade no tempo, sustentando que também o direito natural pode mudar no tempo;

c) o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, refere-se à fonte do direito e funda-se na antítese natura-potestas populus (Inst. – 1ª definição; Grócio);

d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na antítese ratio-voluntas felicidade: o direito natural é aquele que conhecemos através de nossa razão. (Este critério liga-se a uma concepção racionalista da ética, segundo a qual os deveres morais podem ser conhecidos racionalmente, e, de um modo mais geral, por uma concepção racionalista da filosofia) O direito positivo, ao contrário, é conhecido através de uma declaração de vontade alheia (promulgação);

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e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado) (Aristóteles, Grócio);

f)a última distinção refere-se ao critério de valoração das ações e é enunciado por Paulo: o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo que é útil.

Como se percebe, o período do racionalismo jurídico concebeu uma

sistematização completa da dogmática jurídica, a partir de bases racionais,

fundamentando em princípios da própria ortodoxia da razão, enaltecendo não o que

seria simplesmente bom, mas útil.

Por sua vez, em contrapartida, o direito natural aparecia como um conjunto de

direitos e deveres aplicados às relações entre os seres humanos de forma

antagônica à relação jurídica, que corresponde ao direito posto, o direito escrito ou

pelos costumes ou por uma decisão emanada por uma autoridade pública

competente.

Nessa quadra da história, o direito natural, até então uma disciplina moral,

ganhou certa autonomia e transformou-se numa insigne disciplina jurídica, autônoma

e dotada de todas as bases dogmáticas legais.

Todavia, tal contexto estabeleceu uma espécie de duplicação do sistema

jurídico, que mesmo com o advento do positivismo nunca se olvidou por completo a

existência e a observância dos pilares inerentes ao jusnaturalismo, nem contexto

dos direitos naturais.

Não obstante, importante mencionar que esse prisma fomentou, então, uma

separação dogmática entre direito e moral, onde o direito encontra-se em nítido

confronto com a moral. Inclusive, Hans Kelsen formulou a clássica distinção entre

direito e moral, sendo a última norma de caráter comportamental. Contudo, sem

preencher o caráter normativo, haja vista ser desprovida de sanção.

O advento do positivismo também acarretou uma nítida diferenciação entre

dever subjetivo e dever objetivo. Segundo Kelsen (1999), o corte epistemológico a

ser feito entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo, reside que, na primeira

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hipótese, existe apenas uma suposição pessoal do agente que ocorre, inexistindo

qualquer elemento concreto na seara, residindo apenas uma cogitação pessoal do

agente, enquanto, na segunda ótica, o dever reside apenas em um mero desejo

pessoal do autor, consubstanciando uma mera opinião pessoal de fazer ou não fazer

algo.

Veja-se que a autonomia do direito natural em face da moral e sua

superioridade diante do direito positivo marcou, propriamente, o início da filosofia do

direito como disciplina jurídica autônoma. Isso foi assim até as primeiras décadas do

século XIX. Depois, a disciplina sofreu um declínio que acompanha o declínio da

própria ideia de direito natural e de jusnaturalismo. Contudo, no final daquele século,

a disciplina reaparece e ganha força nas primeiras décadas do século XX. A reflexão

sobre o direito natural toma novos rumos e a noção readquire sua importância. Na

ciência dogmática do direito, porém, embora a ideia esteja até hoje sempre

presente, a dicotomia, com instrumento operacional, isto é, como técnica para

descrição e classificação de situações jurídicas normativamente recidiveis, perdeu

força.

O professor Ferraz Junior (1993, p. 161) explica, nesse sentido, que a

separação dogmática entre direito natural e direito positivo reside, mormente na

esfera hodierna, de modo fragilizado. Entretanto, em que pese o exposto, o

mencionado professor alerta que tal distinção ainda persiste:

sua importância mantém-se mais nas discussões sobre a política jurídica, na defesa dos direitos fundamentais do homem, como meio de argumentação contra a ingerência avassaladora do Estado na vida privada ou como freio às diferentes formas de totalitarismo. Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Esta promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas postas na Constituição, de algum modo ‘positivou-o’. E, depois, a proliferação dos direitos fundamentais, a princípio, conjunto de supremos direitos individuais e, posteriormente, de direitos sociais, políticos, econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológicos, direitos especiais das crianças, das mulheres etc. provocou, progressivamente, a sua trivialização.

Com efeito, podemos dizer que o constitucionalismo promulgou e positivou o

direito natural por meio de normas constitucionais estabelecidas por meio de uma

vontade política em um dado momento da sociedade. Ou seja, positivou-se o direito

natural. O que dantes era “natural” acabou sendo reconhecido como valor “positivo”,

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haja vista sua constitucionalização pelos textos constitucionais modernos e pelos

tratados internacionais que versem sobre direitos humanos.

Por conseguinte, a proliferação dos direitos fundamentais, a priori, a

valorização axiológica do seu caráter normativo, um vasto catálogo de direitos e

liberdades individuais, bem como o reconhecimento expresso da existência de

direitos coletivos, tanto quanto a ordem econômica e o meio ambiente, acarretou,

progressivamente, a sua trivialização, conforme concepção de Luhmann (1985).

Segundo Luhmann (1985, p. 67), algo se torna trivial quando deixa de possuir

uma característica diferencial em relação ao contexto social, ou seja, algo tão

comum que sua existência passa a ser vista como algo indiferente em face das

diferenças sociais.

Essa banalização dos direitos fundamentais, segundo Ferraz Júnior (2003),

foi precedida pela trivialização do próprio direito natural versus direito positivo.

Quando todo o direito passou a ser logicamente redutível a direitos naturais e, por

consequência, direitos fundamentais, a própria concepção de direitos fundamentais

passou a ser trivial, ou seja, sua supremacia lógico-jurídica fora sendo extirpada

conforme as indiferenças da dogmática jurídica vigente.

Diante o exposto, pode-se concluir que a taxionomia do direito positivo fora

enfraquecida por meio da classificação entre direitos fundamentais constitucionais e

demais direitos infraconstitucionais e, por conseguinte, por intermédio da

trivialização constitucional.

Não obstante, não podemos defender que essa dicotomia entre direito natural

e direito positivo esteja ultrapassada. Na verdade, o tema dos direitos naturais é

ainda hodiernamente relevante para fins dogmáticos da ciência jurídica, bem como

para a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, servindo de

parâmetro material para observância inclusive teleológica da existência e

manutenção do Estado.

Deve-se notar uma clarividente inversão sofrida no processo de definição de

direito natural e de direito positivo. Isto porque, até o século XVIII, o primeiro tinha

precedência, e o segundo definia-se negativamente. Ou seja, até o século XVIII,

predominava de forma inexorável o direito natural, algo imanente à natureza e

compulsório para o homem. O direito positivo era residual, não natural, outorgado

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por arbítrio e, portanto, sem permanência, mutável, de acordo com as condições

sociais vigentes. Com efeito, após o século XIX, cada vez mais, direito é posto, o

direito é estabelecido por autoridade do Estado ou pela sociedade; e o direito

natural, define-se negativamente como o direito que não é posto.

Essas reflexões, que formam o bloco substancial da teoria jusfilósifica acerca

do jusnaturalismo, verberam algumas ponderações fundamentais para própria

dogmática jurídica. A busca do direito natural e de seu fundamento é a procuração

do permanente, do universal e do comum a todos os homens na definição do direito

e da sociedade como um todo.

Ora, se por um lado, o positivismo jurídico é recheado por inequívocas

mutabilidades, inerentes a peculiaridade regional, o jusnaturalismo reflete o ideal

humano em busca de um mundo justo e isonômico, que como sabemos é uma

busca perene e inexorável decorrente da própria condição humana.

Não obstante, justamente por ter ideais mais abstratos e imensuráveis, o

jusnaturalismo e a concepção de direito natural encontra-se mais prazível em ser

relativizada, por meio da própria estrutura indeterminada de seus conceitos. E isso,

inexoravelmente, dificulta a concretização de seus primados, posto que a

globalização estabelece uma espécie de relativização universal de valores.

Por outro lado, a estruturação normativa objetiva e concreta do direito

positivo, torna sua implementação mais factível pelos operadores do direito, posto

que sua execução pode ser realizada por uma simples tarefa de subsunção entre o

fato e o direito positivo.

Portanto, apesar do abrandamento material da dicotomia direito positivo e

direito natural, o direito natural se encontra inequivocamente presente em nosso

sistema jurídico, sendo uma vertente inexorável da dogmática do direito,

principalmente por meio da revalorização jurídica dos princípios constitucionais e

dos fundamentos que legitimam a ordem constitucional vigente.

Também podemos perceber a sua implementação hermenêutica nas decisões

proferida em sede de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal

Federal, quando muitas vezes, a imperatividade da lei é sufragada por um valor

inexoravelmente constitucional a ser tutelado pela jurisdição constitucional.

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Todavia, como a existência dos princípios e do reconhecimento expresso de

valores materiais pelo Texto Constitucional são desdobramentos lógicos do

jusnaturalismo, a atividade hermenêutica do Poder Judiciário requer uma indelével

prudência, sob pena de se olvidar por completo a própria estrutura dogmática do

direito, tendo em vista a nítida proliferação de princípios constitucionais e de

conceitos jurídicos indeterminados, que ensejam, muitas vezes, em interpretações

jurídicas distintas e resultados variavelmente antagônicos, o que também contribuí

para uma espécie de relativização pós-moderna do direito.

Por fim, a dicotomia entre direito natural e direito positivo deve ser vista de

forma sintética pelo interprete do direito, para que ele nunca olvide os valores e os

princípios inerentes ao sistema jurídico natural na interpretação do direito positivo.

Para que não haja um abismo entre o que é justo e o que é de direito. Agindo dessa

forma, estar-se-á legitimando o bem comum e preservando a higidez da dogmática

jurídica-natural.

1.3. A ORIGEM E ASCENSÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO

Ferraz Júnior (1995, p. 31), afirma comentando o positivismo de Auguste

Comte que

O termo positivismo não é, sabidamente, unívoco. Ele designa tanto a doutrina de Auguste Comte, como também aquelas que se ligam à sua doutrina ou a ela se assemelham. Comte entende por “ciência positiva” coordination de faits. Devemos, segundo ele, reconhecer a impossibilidade de atingir as causas imanentes e criadoras dos fenômenos, aceitando os fatos e suas relações recíprocas como o único objeto possível da investigação científica. A physique sociale deveria neste sentido, tornasse uma estigmatização dos dogmas e dos pressupostos da filosofia do século XVIII. Comte afirma, que, numa ordem qualquer de fenômenos, a ação humana é sempre bastante limitada, isto é, a intensidade dos fenômenos pode ser perturbada, mas nunca a sua natureza. O estreitamento na margem de mutabilidade da natureza humana, que Comte recolhe do modelo da biologia anti-evolucionista, dá condições de possibilidade a uma sociologia. Supõe-se que o desenvolvimento humano é sempre o mesmo, apenas modificado na desigualdade da sua velocidade (vitesse de developpement). Em célebre disputa entre Lamarque e

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Cuvier, Comte colocou-se ao lado do último. Foi da biologia fixista que saiu o seu “princípio das condições de existência” garantia da positividade da Sociologia. A adoção da problemática da biologia positiva (...) implicou a recusa do método teológico e o predomínio da explicação causal. Daí a luta, na segunda metade do século XIX, contra a teologia nas ciências da natureza, e mais tarde, com Kelsen, na ciência do direito; daí o determinismo e a negação da liberdade da vontade. Todos os fenômenos vitais humanos deviam ser explicados a partir de suas causas sociológicas. (...) Todas essas teses de Comte foram base comum para o positivismo do século XIX. Daí surgiu, finalmente, a negação de toda metafísica, a preferência dada às ciências experimentais, a confiança exclusiva no conhecimento dos fatos etc.

Por conseguinte, a acepção da palavra “positivismo” revela uma guinada

cientifica inexorável do Século XIX e, nesse sentido, explica Streck (2010, p. 160):

Explicando melhor: o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o neopositivismo lógico também teve a denominação de “empirismo lógico”). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na medida em que se olha esse fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, onde predomina um exegetismo da legislação; e ao alemão, no interior do qual é possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos). No que tange às experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o direito romano exerceu na formação de seus respectivos direitos privados. Não em virtude do que comumente se pensa – de que os romanos “criaram as leis escritas” – mas sim em virtude do modo como o direito romano era estudado e ensinado. Isso que se chama de exegetismo tem sua origem aí; havia um texto específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito. Este texto era – no período pré-codificação – o Corpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. A ideia era simples, aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando” um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900).

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Diante o exposto, podemos conceituar o positivismo jurídico como um sistema

ou pensamento jurídico indubitavelmente oposto ao jusnaturalismo, a metafísica,

sociológica, histórica, antropológica, consagrando o sistema lógico-sistemático do

Direito, concedendo uma compreensão científica do Direito. Ou seja, como bem

ressaltou Streck (2010), na citação acima transcrita, o termo positivo refere-se

indubitavelmente aos fatos.

Uma das premissas estabelecidas pelo modelo positivista é o corte

epistemológico delineado por Kelsen (1998, p. 291-293), que afastou qualquer tipo

de influência meta-jurídica da dogmática jurídica, ao afirmar:

A Teoria Pura do Direito propõe-se a uma análise estrutural de seu objeto, e, portanto, expurga de seu interior a justiça, a sociologia, origens históricas, ordens sociais determinadas etc. A ela não se defere a tarefa de empreender todo esse estudo, mas de empreender uma sistematização estrutural do que é jurídico propriamente dito.

De forma muito concisa, podemos definir o direito positivo como o complexo

de princípios e regras com vigência jurídica o suficiente para disciplinar a regência

da sociedade, denominado de ius in civitate positum. Apenas para exemplificar, a

terminologia “direito positivo brasileiro”, refere-se, por consequência lógica, ao

complexo de regras e princípios inerentes ao Estado Brasileiro.

Como acima explanado, a priori, o movimento positivismo jurídico contrapõe-

se, como regra geral, ao jusnaturalismo. Com efeito, considerando que o

jusnaturalismo possuí várias épocas e diversas escolas jurídicas, o movimento

positivista também ostenta várias tendências e escolas que serão adiante

demonstradas.

Segundo ensina Venosa (2008, p. 53),

O ponto de partida do positivismo é, de fato, afirmar que direito é apenas aquele existente nas leis criadas pelo ser humano e postas pelo Estado. O positivismo nega a existência de regras fora do direito positivo, isto é, fora do direito imposto pelos homens. Os estudiosos positivistas só creem naquilo que pode ser objeto de observação e experiência. O método positivista é composto primordialmente de três fases: observação, formulação de hipótese e experimentação. Essa experimentação não provoca fenômenos sociais, mas deve ser vista mais como uma confirmação do ocorrido nos citados fenômenos.

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Pode-se afirmar, portanto, que o movimento positivismo refuta por completo a

existência de regras jurídicas fora do contexto inerente ao direito positivo, ou seja,

por fora do direito codificado pela sociedade, fruto de uma legislação

invariavelmente política.

Utilizando essa dicotomia do sistema codificado, o sistema positivo tem como

objetivo alcançar os ideais de justiça. Todavia, como assevera o jurista Telles (2010,

p. 5), “há leis que são contrárias ao bem comum, que são injustas, que não realizam

verdadeiramente um fim de paz social”.

A escola clássica do positivismo extirpa por completo do sistema jurídico a

hipótese de juízos de valor e de ilações sobre fatos, tendo em vista que, adota a

metodologia cientifica de juízos de constatação. Assim sendo, estabelece-se um

método único para interpretação da lei. Para essa escola clássica, a tarefa do juiz se

circunscreve a reproduzir o que a legislação preconiza, em outras palavras, como

afirma Montesquieu “o Juiz é a boca da lei”, em um exercício financeiro da

subsunção entre a lei e um juízo de constatação, ou seja, entre fatos.

Para Nader (2004, p. 377), o modelo positivista alcançou seu ápice no Século

XX e, atualmente, encontra-se em pleno declínio:

O positivismo jurídico, que atingiu o seu apogeu no início do Século XX, é atualmente uma teoria em franca decadência. Surgiu num período crítico da história do direito natural, durou enquanto foi novidade e entrou em declínio quando ficou conhecido em toda a sua extensão e consequências. Com a óptica das ciências da natureza, ao limitar o seu campo de observação e análise aos fatos concretos, o positivismo reduziu o significado humano. O ente complexo, que é o homem, foi abordado como prodígio da física, sujeito ao princípio da causalidade. Em relação à justiça, a atitude positivista é de um cepticismo absoluto. Por considerá-la um ideal irracional, acessível apenas pelas vias da emoção, o positivismo esquece a sua relação aos valores. A sua atenção converge apenas para o ser do Direito, para a lei, independentemente do seu conteúdo. Identificando o Direito com a lei, o positivismo é uma porta aberta aos regimes totalitários, seja na fórmula comunista, fascista ou nazista.

Não é demasiado lembrar que foi esse modelo de sistema jurídico que

legitimou movimentos cruéis e maléficos a humanidade, como o nazismo na

Alemanha, bem como, o comunismo na União Soviética, cujas premissas fulcrais

eram estabelecidas por meio de métodos positivistas.

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Com efeito, evidencie-se que adotar um sistema jurídico calcado

exclusivamente na letra fria da lei, sem qualquer tipo de ponderações e valores,

criamos uma espada que pode tender tanto para o lado bom, quanto para o lado

mau, estando sempre submetida ao crivo de circunstâncias peculiares de quem

interpreta a legislação e aplica ao caso concreto.

Por outro lado, como já se discorrido, a utilização de forma desarrazoada e

desproporcional de princípios inerentes ao direito natural enseja uma incerteza

jurídica gritante, beirando extremismo, tendo como principal consequência, o

enfraquecimento do direito positivo e das regras jurídicas.

Bobbio (1995, p. 15) distingue, terminologicamente, os termos “positivismo

jurídico” e “positivismo filosófico”, realizando um corte epistemológico em suas

origens:

A expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo.

A partir de tal corte epistemológico, Bobbio (1995) desenvolve um roteiro

histórico do positivismo filosófico perante a história do Direito, passando pela época

clássica até os tempos modernos, sempre em contraposição ao jusnaturalismo.

Tratando-se de positivismo jurídico e positivismo filosófico, Costa (1951,

p.3643) assevera:

O positivismo, porém, não inventou nem criou esse novo espírito filosófico. Ele é fruto do desenvolvimento das ciências. O novíssimo organon elaborado por Augusto Comte, visa descrever e sintetizar, num largo panorama, o estado geral das ciências no alvorecer do século XIX. O comtismo, porém, não se apresentaria apenas como uma síntese das ciências do início do século XIX. Destinada a servir de base a moral e a uma política que estivessem de acordo com o

3 COSTA, J. Cruz. Augusto Comte e as origens do Positivismo. Revista de História, Brasil, v. 2, n. 5, p. 81-103, mar. 1951. ISSN 2316-9141. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/34899>. Acesso em: 03 apr. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v2i5p81-103.

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grau de desenvolvimento das ciências, esta doutrina pretendia ainda alicerçar, no próprio poder que deriva da ciência, uma religião.

A respeito desse modelo de sistema jurídico Barroso (2011, p. 239) pontua

que

(i) a ciência é o único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológica ou metafísicas, que especulam acerca de causas e princípios abstratos, insuscetíveis de demonstração; (ii) o conhecimento científico é objetivo: funda-se na distinção entre sujeito e objeto e no método descritivo, para que seja preservado de opiniões, preferências ou preconceitos; (iii) o método científico emprego nas ciências naturais, baseado na observação e na experimentação, deve ser estendido a todos os campos de conhecimento, inclusive as ciências sociais.

Evidencie-se que sete características são destacadas por Barroso (2011, p.

240), quais sejam:

a) a identificação plena do direito com a lei; b) a completude do ordenamento jurídico (não admissão de lacunas); c) o não reconhecimento dos princípios constitucionais como normas jurídicas; d) problemática para justificar a existência dos conceitos indeterminados; e) a confusão conceitual entre vigência e validade da lei; f) o formalismo jurídico; g) o não enfrentamento da legitimidade da legislação.

No âmbito jurídico, o termo pós-positivismo tornou-se conhecido na década

de 1990, quando foi utilizado para designar uma terceira via construída com o

objetivo de superação da tradicional dicotomia entre jusnaturalismo e positivismo

jurídico.

Figueroa (2006) denomina, apoditicamente, os elementos que vinculam o

jusnaturalismo e o juspositivismo, cujos traços centrais seriam o dualismo entre

direito e moral e o objetualismo, com o problema central consistindo em saber se a

pretensão de correção é uma propriedade do conceito de direito.

Adotando como referencial teórico as obras de Ronald Dworkin e Robert

Alexy, essa concepção filosófica do direito tem como alvo principal as três teses do

positivismo metodológico (por sinal, as únicas com as quais concordam todos os

principais posjusitivistas): teoria jurídica descritiva; separação entre direito, moral e

política; e conceito factual de direito.

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33

No sistema constitucional brasileiro, essa acepção fora introduzida pela

primeira vez por Bonavides, na edição publicada em 1995 do seu ‘Curso de Direito

Constitucional”. Bonavides denominou de juspublicismo e pós-positivista “a

construção doutrinária da normatividade dos princípios” desenvolvida a partir do

“empenho da filosofia e da teoria geral do direito em buscarem um campo neutro

onde se possa superar a antinomia clássica direito natural/direito positivo”. Paulo

Bonavides se valeu do tempo do pós-positivismo para identificar os momentos

constituintes do século XX, nos quais se destacavam a imponência axiológica da

principiologia “convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o

edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais” (BONAVIDES, 2012, p. 105).

Outra referência sobre o tema no direito brasileiro é Barroso (2005), no qual a

ascensão dos valores, a essencialidade dos direitos fundamentais e, sobretudo, o

reconhecimento da normatividade dos princípios são apontados como

características marcantes da investida pós-positivista.

1.4. DA SUPERAÇÃO DO PROJETO POSITIVISTA E A ASCENSÃO DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

A superação do positivista é decorrência lógica da pós-modernidade e do

neoconstitucionalismo. Esses dois fenômenos ecoaram a necessidade de se

adequar os Textos Constitucionais à realidade pulsante nas ruas e aos anseios das

camadas sociais menos favorecidas, incorporando os valores tidos como

imprescindíveis para a sociedade.

Perceba-se que a conjunção desses fatores representa justamente uma

própria antinomia ao projeto positivista, haja vista que o próprio positivismo, ao

normatizar a razão iluminista, olvidou os valores sociais e morais do tecido social,

incorporando apenas os fatos.

Ademais, importante destacar que o positivismo jurídico entrou em declínio

nos tempos hodiernos, haja vista que a sua própria razão de ser, ou seja, a busca

pela razão, na verdade, consiste em uma utopia, impossível de ser alcançada.

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Nesse sentido, Barroso (2010, p. 8-11) ensina que o declínio do projeto

positivista se iniciou em meados do século XIX. O mencionado autor ainda elenca

dois fatores primordiais para o declínio do positivismo. O primeiro fator seria inerente

aos preceitos religiosos, filosóficos e políticos cominados por Karl Marx, que,

basicamente, ensinava que a razão não é algo inerente à liberdade individual, mas

está atrelada à conjuntura econômica e social. Portanto, o indivíduo não era livre o

suficiente para ser “senhor de sua razão”, estando essa última atrelada a sua classe

social e de sua posição econômica e política.

Por conseguinte, o segundo fator do declínio do positivismo teria ocorrido com

Freud, principalmente quando o mencionado autor fez a descoberta de que o

homem não é senhor absoluto da própria vontade, de seus desejos, de seus

instintos. De forma muito concisa, pode-se dizer que o ser humano nem sempre

calca suas posições e atitudes com base na razão. Freud explica que o

inconsciente, muitas vezes, faz impor a decisão humana sobre determinadas

situações e assuntos.

Diante desses dois fatores epistemológicos, o positivismo entrou em declínio.

Ora, se o seu objetivo era utilizar uma única metodologia para criar um método

puramente descritivo, percebeu-se que a situação é terminantemente inversa, ou

seja, o intérprete não pode descrever um método puramente descritivo, nem o direito

pode prescrever todas as situações sociais. O que a norma deve perseguir é um

dever-ser, para que a sociedade molde sua conduta a ela.

Assim sendo, a norma jurídica passa a ter uma função de criação para o

intérprete do Direito, e não apenas de subsunção. Por conseguinte, por meio do

corte epistemológico com as demais ciências sociais, o ordenamento jurídico passou

a ser desprovido de qualquer fator social ou valores culturalmente predominantes,

não possuindo o condão de representar o verdadeiro anseio da sociedade, inclusive

com os vetores do regime democrático. Por tal razão, o valor exegético do

ordenamento jurídico acabou fomentando a implantação do nazismo e do fascismo

na Europa. Como ensina Barroso (2010), esses dois movimentos políticos, em que

pesem todas as atrocidades que cometeram, acabaram por ter substrato de validade

nos Textos Constitucionais vigentes, criados sob o prisma do positivismo jurídico.

Doravante, com o termino da Segunda Grande Guerra Mundial, os preceitos

do positivismo jurídico foram devidamente suplantados pelo apogeu do

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neoconstitucionalismo, principalmente por meio do fenômeno da materialização da

constituição e a ideologia constitucional, com a incorporação pelo Texto

Constitucional dos valores éticos e morais imprescindíveis para a sociedade,

principalmente, sob o prisma simbiótico entre democracia e direito e facticidade e

validade.

Barroso (2010, p. 27) ensina, nessa quadra da histórica, que o apogeu do

neoconstitucionalismo abriu caminho, sobretudo, para uma reconstrução do Direito

Constitucional na Europa e na América Latina, provocando ponderações acerca da

Dogmática jurídica, bem como sua função social e sua atividade hermenêutica,

principalmente sob nos seguintes aspectos: a) reconhecimento normativo dos

princípios; b) nova interpretação constitucional; c) valoração dos direitos

fundamentais; d) reformulação da teoria da separação dos poderes; e) distinção

entre regras e princípios.

Cunha Júnior (2011) explica que o neoconstitucionalismo, consubstancia-se

como uma mudança de paradigma entre Estado Legislativo de Direito e Estado

Constitucional, consolidando a força normativa da Constituição e a supremacia

constitucional, bem como a supervalorização dos direitos fundamentais

assegurados.

Por sua vez, para Soares (2013), o neoconstitucionalismo modificou a forma

de eficácia das normas constitucionais, deixando as respectivas normas

constitucionais de terem eficácia meramente retórica, passando as mesmas a terem

eficácia direta, imediata e coercitivas, tendo, inclusive, um vetor dirigente, tanto em

relação ao Poder Executivo, como ao Legislativo, que é o caso das normas de

eficácia limitada.

Por conseguinte, as Constituições Modernas, inspiradas sob o prisma do

neoconstitucionalismo, passam a incorporar valores materiais e políticos

imprescindíveis ao tecido social, que, muitas vezes, assumem feição de princípio ou

de conceitos jurídicos indeterminados, ambos dotados de uma inexorável carga

axiológica, consubstanciando-se em vetores otimizantes para a interpretação

constitucional.

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Barroso (2001, p. 37) ensina que os princípios constitucionais possuem três

importantes acepções: “condensar valores, dar unidade ao sistema e condicionar a

atividade” do intérprete. Senão, vejamos nas palavras do próprio autor:

O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. […] A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. […] O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade. Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.

Por sua vez, Agra (2012) afirma que o neoconstitucionalismo representou o

fim de modelos político-institucionais, em que o poder estabelecido não tinha

nenhum comprometimento com a concretização dos dispositivos estabelecidos na

Constituição, podendo implementar livremente as políticas públicas em nome do

princípio da soberania popular. Assim, o Texto Constitucional ganha força normativa

e se transforma em mandamento vinculante para o legislador ordinário, já que

cristaliza a vontade popular.

O neoconstitucionalismo faz com que os critérios de validade sejam materiais

(extrassistêmicos) e formais (intrassistêmicos). Ele não se compadece apenas com

regras de reconhecimento formal, em que os anseios da população são relegados

por formalidades jurídicas. Defende a adoção de critérios também materiais, em que

haja um parâmetro substancial para a aferição das normas. Representa uma

limitação ao procedimentalismo jurídico, calcado seja na democracia, seja no agir

comunicativo, ao mesmo tempo em que impulsiona um substancialismo alicerçado

nos direitos fundamentais.

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Com apanágio em tudo que fora exposto, pode-se dizer que a principal

característica desse novo modelo constitucional é a concretização dos direitos

fundamentais, mormente aqueles de cunho social que dependem de políticas

públicas efetivas por parte do Poder Executivo e que alcançam as camadas menos

favorecidas da sociedade.

Certamente, a história comprova que o surgimento do Estado e o

desenvolvimento do fenômeno do “constitucionalismo” consubstanciam um paralelo

inexorável, encampando uma carga axiológica reveladora de grandes conquistas da

humanidade na luta contra as arbitrariedades do Leviatã, objetivando a concessão

de direitos fundamentais à subsistência humana.

O termo constitucionalismo, por sua vez, denota várias acepções e

transmudações. Certamente, a retrospectiva histórica evidencia uma inexorável

evolução do termo “constitucionalismo” na vanguarda da luta por direitos

fundamentais pela sociedade. Zagrebelsky (1988) ensina que, inicialmente, o

constitucionalismo carrega o escopo de limitar o poder arbitrário do Estado.

Posteriormente, é caracterizado pelo surgimento das primeiras declarações de

direitos humanos. Hodiernamente, o constitucionalismo é adstrito à evolução

histórico-constitucional de determinado Estado, sofrendo fortes influências pelo

fenômeno da globalização.

Para Canotilho (1999), não há um único constitucionalismo, mas diversos

movimentos constitucionais. Dessa forma, de modo propulsor, já se define o

constitucionalismo como uma espécie de movimento político socialmente difundido.

Ensina Ferreira Filho (1993) que o constitucionalismo significa um movimento

político e jurídico, cujo escopo maior implica em estabelecer um pacto constitucional,

por meio da instituição de um governo moderado e limitado, submetido ao crivo de

uma Constituição escrita.

Diante do exposto, podemos conceituar o constitucionalismo como um

movimento de reivindicação política, cujo escopo inicial consubstancia a limitação do

poder estatal, angariando uma repactuação constitucional, por meio da criação de

um novo Texto Constitucional em consonância com os anseios sociais e políticos de

determinada sociedade.

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O marco cronológico do constitucionalismo é dúbio, principalmente por sua

diversidade política. Contudo, parte majoritária da doutrina imputa sua origem ao

movimento político hebreu, tendo suas notas iniciais na Antiguidade Clássica.

Nesse sentido, ensina Tavares (2010) que é errôneo supor o surgimento do

constitucionalismo apenas com o advento das revoluções modernas, que

instauraram a democracia e afastaram os regimes absolutistas até então existentes.

Obviamente, não se tratava de movimentos constitucionais semelhantes ao

constitucionalismo moderno, ou ao constitucionalismo pós-moderno, mas já

significam uma forma rudimentar de constitucionalismo, embrionária, de limitação ao

poder absoluto do Estado Teocrático, mediante a instituição da Lei do Senhor

(LOEWENSTEIN, 1976).

Nesse capítulo da história, o poder do Estado era legitimado por fatores

divinos. Assim, os atos reais eram verdadeiras reproduções da vontade divina e não

poderiam ser questionados por nenhum tipo de autoridade ou manifestação, sob

pena de usurpação à vontade real ou conspiração contra o Senhor. Assim sendo, o

que soberano constituía uma espécie de encarnação de Deus e era enviado à terra

para exercer a missão sagrada de comandar o povo, por intermédio das balizas

divinas.

É na Inglaterra que surgem as primeiras manifestações do constitucionalismo,

durante a Idade Média. Identifica-se explicitamente o constitucionalismo, em meados

do Século XII, por meio da implementação da Magna Charta Libertatum, também em

fase posterior, durante o Século XVII, por meio do embate clássico entre o Rei e o

Parlamento Inglês, por meio da criação da Petition of Rights, de 1628, as

Revoluções de 1648 e 1688 e a Bill of Rights, de 1689.

O resultado desses movimentos constitucionais foi o sepultamento do antigo

regime e a formação de uma Monarquia Constitucional na Inglaterra. E isso

consubstancia um dos marcos históricos do constitucionalismo, ao passo que, pelo

pioneirismo na história, houve uma ruptura da fonte legitimadora do poder estatal.

Assim, uma das primeiras conquistas do constitucionalismo inglês foi a

transmudação da legitimação do Poder do Estado para um Texto Constitucional e

não calcado em uma suposta vontade divina. Consagrou-se, então, a premissa de

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que até mesmo o Rei estava submetido aos ditames constitucionais, abolindo a

primazia do poder absoluto e ilimitado.

Nesse sentido, ensina Miranda (1990, p. 124):

o que distingue, sobretudo, a Revolução Inglesa de 1688 da Revolução Francesa está em que aquela se insere numa linha de continuidade, ao passo que a francesa tenta reconstruir a arquitetura toda do Estado desde o começo. A Revolução Inglesa, na linha das primeiras cartas de direitos, não pretende senão confirmar, consagrar, reforçar direitos, garantias e privilégios. A Revolução Francesa destrói o que vem a encontrar para estabelecer outros, de novo. Na Inglaterra, é a realeza que ataca o Parlamento que, em nome da tradição, defende e se defende; na França, o Rei remete-se ao papel de quem, sem forças nem convicção para resistir, tenta obter um adiamento numa liquidação inevitável.

Dessa forma, a transposição de regimes, isto é, da Monarquia Absolutista

para Monarquia Constitucional, fora calcada na própria ideia de progressividade do

antigo regime inglês. Não houve, por assim dizer, uma ruptura constitucional com o

antigo regime, mas apenas uma readequação ao quadro histórico vivido.

Contudo, tal fenômeno não pode menosprezar o valor histórico da Revolução

Gloriosa. Até porque, diferentemente do que ocorreu na França, a Inglaterra não

tinha o escopo de romper bruscamente com o antigo regime e fundar um regime

totalmente revolucionário – o que se pretendia era adequar o sistema às novas

exigências sociais, principalmente por parte das camadas menos favorecidas.

Justamente por isso, não se pode olvidar que um dos frutos da Revolução Sem

Sangue foi o surgimento de um Texto Constitucional escrito.

Doravante, a função de limitação do poder estatal passou a ser ineficiente

para os anseios sociais. Surgiu, então, de modo dialético, a necessidade de que o

constitucionalismo passe a exigir uma nova definição acerca do papel do Estado, ou

seja, uma espécie de repactuação constitucional. Portanto, é nesse ponto da história

que emerge a noção de constitucionalismo moderno, consagrando a primazia dos

textos constitucionais escritos, dotando-os de uma maior legitimação e controle por

parte da sociedade.

Segundo Tavares (2010, p. 32),

O instrumento idealizado para a realização das modernas concepções do constitucionalismo foi traduzido na consubstanciação escrita das normas constitucionais. Com a consagração de textos

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escritos, adota-se um modelo que, obviamente, caracteriza-se: a) pela publicidade, permitindo o amplo conhecimento da estrutura do poder e garantia de direitos; b) pela clareza, por ser um documento unificado, que afasta as incertezas e dúvidas sobre os direitos e os limites do poder; c) pela segurança, justamente por proporcionar a clareza necessária à compreensão do poder.

A exigência de que o texto constitucional seja escrito propicia certa

publicidade aos cidadãos, uma vez que garante o acesso à informação por parte de

toda a sociedade e não apenas de uma classe social, possibilitando um maior

controle da atuação estatal por meio dos serviços públicos.

Outra vertente básica do constitucionalismo moderno é a de que as normas

constitucionais não podem ter uma notação dúbia, evitando-se que pairem

incertezas sobre sua potencialidade e seu efetivo alcance. Busca-se evitar os

casuísmos hermenêuticos, por meio de interpretações lacunosas e dúbias que

otimizam o arbítrio e a baixa eficácia dos preceitos constitucionais, muitas vezes,

deixando as normas constitucionais ao talante da vontade política de determinado

Estado.

Nesta senda, explica Dimoulis e Lunardi (2011) que o modelo de constituição

escrita fora adotado por grande parte dos países europeus e americanos,

geralmente após uma grave e violenta ruptura como o antigo regime, monarquistas e

autoritários. Foi nesse cenário que os Estados Unidos elaboraram sua Constituição

em 1787 e a França, por sua vez, em 1791.

Assim sendo, os séculos XVII e XVIII foram cruciais e consagraram a

ascensão política da classe burguesa por meio das revoluções liberais, o marco do

constitucionalismo liberal. Um dos principais estandartes era o sepultamento do

absolutismo e a eliminação dos privilégios da nobreza. Outra questão crucial era o

combate perene ao estado de insegurança compartilhado pelos que não faziam

parte do poder político real, isto é, a burguesia. Nesse sentido, os pequenos

comerciantes e os membros do terceiro estado ficavam ao talante das incursões

reais, sem dispor de nenhuma espécie de segurança jurídica que os tutelasse.

Buscava-se, desse modo, frear as interferências arbitrárias em suas atividades

pessoais, em sua vida familiar, no exercício de suas profissões, bem como de seu

patrimônio.

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Com a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, houve

uma ruptura da relação de subordinação que havia entre as treze colônias e a Coroa

Inglesa e o fim das arbitrariedades praticadas pela Coroa Britânica em face dos

colonos americanos, envolvendo, principalmente, a alta carga tributária explorada.

Influenciada pelo jusnaturalismo, uma de suas principais características foi

estabelecer expressamente que o cidadão detinha direitos inalienáveis, inerentes a

sua própria personalidade, e que, caso estes viessem a ser turbados, a população

possuía o direito subjetivo de exigir a substituição do governo tirano por outro que

respeitasse tais direitos naturais. Consagrava-se, de modo propulsor, o direito à

resistência e o princípio da soberania popular, assegurando a autodeterminação dos

povos.

Para Agra (2012), a declaração de independência não fora elaborada como

uma declaração de direitos. Ela foi um texto jurídico com o escopo central de

justificar a separação das colônias do jugo inglês. Para alcançar seu intento, ela

listou, de forma geral, arbitrariedades praticadas pelo governo britânico contra os

colonos e as afrontas que essas ações impingiam aos direitos naturais. Contudo,

não expressou uma lista dos direitos básicos que foram desrespeitados pela Grã-

Bretanha, mas elencou, de forma genérica, alguns direitos vilipendiados pelas

arbitrariedades cometidas.

A Revolução Francesa (1789-1799) representa o marco histórico da

passagem da Idade Média para a Idade Moderna, momento em que um movimento

político liderado pela burguesia, principalmente, pelos girondinos e pelos jakobinos,

suplantou o absolutismo e os privilégios da nobreza. Sua deflagração ocorreu

efetivamente com a queda da Bastilha, em 1789, consagrando o início do Estado

Moderno.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia

Nacional Constituinte da França, em 26 de agosto de 1789, inaugurou a nova matriz

do constitucionalismo, amparada na Constituição, na separação dos poderes e nos

direitos fundamentais.

Uma das principais postulações políticas era a criação de uma constituição

escrita, através de uma assembleia constituinte, consubstanciando a ideia de

formação de uma nova ordem que respeitasse determinados direitos fundamentais,

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sepultando o antigo regime. Tal movimento exigia também que os impostos fossem

isonomicamente repartidos entre as três classes sociais (os clérigos, os nobres e os

burgueses) e que se estabelecessem regras acerca do serviço público, beneficiando

a vida de todos os seus usuários e não apenas dos Clérigos e dos Nobres.

Nesse sentido, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão foi

incorporada ao preâmbulo do Texto Constitucional Francês, consubstanciando o que

hodiernamente se denomina de bloco de constitucionalidade. Ou seja, devido ao

aspecto material de seu texto, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão

passou a ter conotação de norma constitucional, por estar em consonância material

com o exposto na Constituição, gozando de imutabilidade relativa, supralegalidade e

supremacia.

Ensina Dallari (2010) que é bem expresso o fato de que, visando ir além da

afirmação de valores morais e pretendendo dar caráter de norma superior aos

preceitos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em

1789, documento em que se definiam os fundamentos e os pontos básicos de uma

nova organização política, a Assembleia Nacional Francesa tenha decidido colocar

aquela Declaração como preâmbulo da primeira Constituição da França, de 1791.

Tal acontecimento configurou um marco histórico, que impulsionou

movimentos sociais em vários outros países, que angariassem o mesmo escopo,

acarretando uma espécie de corrida constitucional que se alastrou por toda a

Europa.

As Revoluções Americanas e Francesas foram propulsoras na

constitucionalização dos direitos humanos. Surgia, então, a noção de Estado Liberal,

o qual concedia aos cidadãos direitos fundamentais de primeira dimensão, por meio

do constitucionalismo caracterizado pela inércia, ou seja, por uma não intervenção

estatal na vida dos cidadãos. Consagrava-se a ideia de liberdades clássicas e de

direitos individuais, impulsionados pelo novo modelo capitalista econômico e de

produção, no qual a economia estava desvinculada do Estado.

Dessa forma, um dos talantes do constitucionalismo liberal era a consagração

da autonomia individual, calcada pelo liberalismo econômico. Assim, exigia-se uma

obrigação de não fazer do Estado, caracterizado pela inércia na intervenção

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econômica e social, angariando, desse modo, que cada cidadão pudesse

desenvolver suas próprias potencialidades concomitantes com o bem comum.

O Estado, então, garantia aos cidadãos liberdades fundamentais e direitos

individuais básicos que consubstanciavam as liberdades clássicas, como a de

consciência, de culto, da inviolabilidade de domicílio, de reunião. O destinatário

desses direitos é o homem, em seu aspecto individual, e não apenas a coletividade,

característica inexorável do liberalismo econômico.

A postura inerte do Estado com os problemas sociais, mormente com a

desigualdade, bem como as pressões populares decorrentes do processo de

industrialização em massa e o agravamento das disparidades no tecido social,

impuseram ao Estado uma postura ativa no papel da Justiça Social.

Corre que a própria noção de liberdade sufragava a noção de “igualdade”,

uma vez que ela acarreta suas próprias crises, na medida em que o Estado Liberal

tem uma função inexoravelmente inerte, ou seja, de não intervenção, quando a

Constituição se limita a tratar apenas de organização do Estado, garantindo a

separação dos poderes e direitos de primeira dimensão. Assim sendo, tornou-se

necessário o desenvolvimento de tal premissa constitucional, criando-se

mecanismos que atenuem as desigualdades sociais proporcionadas pelo

liberalismo.

Para Agra (2012), surgiu, então, a ideia de Estado Social, na segunda fase do

constitucionalismo, quando o Estado passa a ostentar uma função inexoravelmente

interventiva nos setores econômicos e sociais. Dessa forma, supera-se o modelo do

liberalismo econômico, passando a intervir diretamente no tecido social, para tentar

estabelecer uma isonomia material, por meio do serviço público e dos direitos

prestacionais positivos de segunda dimensão (à assistência social, à saúde, à

educação, dentre outros).

Todavia, a própria noção de igualdade pode levar à falta de liberdade. Ou

seja, por uma conduta intervencionista demasiada do Estado, objetivando

proporcionar determinada isonomia material, esta pode ser considerada uma

espécie de mitigação de determinadas liberdades, isto é, a busca pela igualdade

material pode engendrar a própria noção de liberdade de determinada parte da

sociedade.

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Dessa forma, surge, então, a terceira fase do constitucionalismo, quando da

instituição da primazia da fraternidade. Por meio da necessidade de que a

Constituição comporte direitos que vão além da relação cidadão-cidadão ou

cidadão-Estado, a titularidade desses direitos passa a ser difusa, coletiva,

transindividual. Assim, o destinatário desses direitos passa a ser toda a sociedade e

não apenas determinadas camadas sociais. Instituem-se, então, os direitos

chamados coletivos e difusos, como meio ambiente etc.

Com a consagração do Estado Democrático de Direito, após a Segunda

Grande Guerra Mundial, surge o denominado constitucionalismo do pós-guerra.

Procurava-se atender à necessidade de reformulação da teoria das fontes do Estado

e da própria noção de Constituição. Esse constitucionalismo emergente supera o

paradigma do positivismo jurídico e consagra a existência de um movimento teórico

jurídico-político em que se buscava a limitação das atividades do poder estatal, por

meio da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da

cidadania. Assim, o sistema consagra uma facticidade lógica entre direito e

democracia, expurgando o corte epistemológico do positivismo normativista

desenvolvido por Kelsen durante o Século XIX. Tem início, então, o denominado

neoconstitucionalismo.

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CAPÍTULO 2 – O PAPEL DO JUDICIÁRIO DIANTE DA INÉRCIA ESTATAL

2.1. DA CONCEPÇÃO DE ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Bobbio (1994) aponta o surgimento da organização estatal como um produto

derivado da própria razão humana. Nas palavras do próprio autor:

O Estado é concebido como produto da razão, ou como sociedade racional, única na qual o homem poderá ter uma vida conforme à razão, isto é, conforme a sua natureza. O pensamento político moderno, de Hobbes a Hegel, caracteriza-se pela constante tendência – ainda que no interior de diferentes soluções – a considerar o Estado ou sociedade política, em relação ao estado de natureza (ou sociedade natural), como o momento supremo e definitivo na vida comum e coletiva do homem, ser racional; como o resultado mais perfeito ou menos imperfeito daquele processo de racionalização dos instintos ou das paixões ou dos interesses, mediante o qual o reino da força desregrada se transforma no reino da liberdade regulada (BOBBIO, 1982, p.19).

Ainda segundo Bobbio (1982, p 20):

ocorre mediante a utilização constante de um modelo dicotômico, que contrapõe o Estado enquanto momento positivo à sociedade pré-estatal ou antiestatal, degradada a momento negativo.

Hodiernamente, o contexto do Estado apresenta-se em vertentes distintas. A

primeira vertente, mais remota, consubstancia-se no Estado Patrimonialista, onde

existe uma inexorável confusão patrimonial entre bens do Estado e de seus

gestores. A segunda vertente diz respeito ao Estado Burocrático, e a terceira

corresponde ao Estado Gerencial.

Pereira (2001) expõe que o Estado Burocrático se consubstancia como

Estado interventor, usualmente reconhecido como centralizador. Dentro dessa

concepção, entende-se o Estado como um instrumento de inovação estrutural,

responsável pelas implementações econômicas, sociais e tecnológicas no tecido

social, concebido como uma instituição puramente racional, capaz de corrigir os

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desvios promovidos pelo setor privado, inclusive intervindo na esfera econômica da

sociedade.4

Ainda leciona o mencionado autor que, nesse tipo de Estado, o serviço

público mais importante é o da administração da Justiça, exercido por monopólio

pelo Poder Judiciário. Assim sendo, observa-se que a matriz da eficiência não era

vista de forma essencial. O princípio da eficiência, afirma Pereira (2001), só passou

a ser visto de forma categórica pelo Estado, em razão do apogeu do Estado Social,

a partir do Século XX, com a implementação e a consolidação do Welfare State,

quando o Estado passou a assumir um papel imprescindível nos serviços sociais e

na esfera econômica.5

Por sua vez, segundo Mafra (2005, p. 1):

O Estado marcado com uma administração gerencial é aquele que tem como objetivos principais atender a duas exigências do mundo atual: adaptar-se à revisão das formas de atuação do Estado, que são empreendidas nos cenários de cada país; e atender às exigências das democracias de massa contemporâneas.

Com efeito, a adoção do modelo de Estado Gerencial pela nossa Constituição

Federal de 1988 exige uma revalorização jurídica e política por parte dos mais

variados setores da Administração Pública dos nossos entes federais, fomentando

um protagonismo único do Poder Executivo na concretização de políticas públicas,

principalmente dos direitos fundamentais.

Passível de registro que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10

de dezembro de 1948, da III Sessão Ordinária da Assembleia Geral das Nações

Unidas, da qual o Brasil é signatário, assim dispões no seu artigo 25:

Artigo XXV § 1º Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em casos de

4 Por isso: Pereira (2001, p. 232) afirma que: “Além da clássica tarefa política e administrativa, a nova burocracia passava a ter uma função econômica essencial: a coordenação das grandes empresas produtoras de bens e serviços, fossem elas estatais ou privadas”. 5 A necessidade de uma administração pública gerencial, portanto, decorrente de problemas não só de crescimento e da decorrente diferenciação de estruturas e complexidade crescente da pauta de problemas a serem enfrentados, mas também de legitimação da burocracia perante as demandas da cidadania.

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desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios subsistência e circunstâncias fora de seu controle.

Exsurge, cristalinamente, que o art. 196 da Constituição da República

Federativa do Brasil teve inspiração na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

inclusive emoldurando a saúde como direito de todos e dever do Estado,

assegurando mediante políticas sociais que até então se encontra no âmbito

programático, prometendo políticas sociais e econômicas, que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Inversamente, o vasto catálogo dos direitos fundamentais e sociais exige do

Administrador Público políticas públicas efetivas concretizadoras de tais

mandamentos constitucionais, principalmente aqueles destinados à camada social

hipossuficiente que não possuem condições financeiras e econômicas para buscar

serviços alternativos senão o fornecido gratuitamente pelo Estado.

Para assegurar a gratuidade desses serviços a todos os brasileiros, o

constituinte originário estabeleceu no art. 194, do Título VIII, que trata da Ordem

Social – Seguridade Social, que os recursos deverão partir da seguridade social

definida como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e

da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à

assistência social”.

A seguridade social tutela, a todos os brasileiros, três serviços essenciais com

o intuito da preservação da dignidade da pessoa humana, quais sejam: a

previdência, a assistência social e a saúde. Desses serviços – autônomos entre si –

a saúde se destaca por sua abrangência.

Enquanto que a Previdência implantou o sistema contributivo e retributivo, só

admitindo a possibilidade de ser aposentar com os mesmos vencimentos se o

contribuinte tiver recolhido o número mínimo de contribuição, decorrente de cálculos

atuariais (cf. Lei 8.213/91), não tendo, o pobre na forma da lei, direito aos benefícios

previdenciários pelo simples fato da sua condição social a assistência social, ao

revés, só ampara os brasileiros comprovadamente hipossuficientes.

O art. 203, da CR/88, estabelece que

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a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

De uma leitura atenta do texto legal, observa-se que brasileiros

hipossuficientes têm direito de ser tutelado por esse segmento autônomo da

seguridade social, mas os abastados e bem aquinhoados, não.

Já a saúde, de que trata o art. 194, da Constituição Federal, tem um sentido

mais abrangente e protetivo tendo em vista que é conferido a todos – sem exceção –

o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive aos que são detentores de

posse.

E o Sistema Único de Saúde do Brasil, inspirado no sistema Inglês National

Health Service (Serviço Nacional de Saúde), é um dos maiores sistemas de saúde

pública no mundo, que assegura acesso universal, igualitário e integral à população,

que abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos6.

Por derradeiro, apesar dos serviços de Previdência, Assistência Social e

Saúde serem públicos, é possível a iniciativa privada atuar nestes segmentos, como

as previdências privadas, as casas de caridade (que fazem assistência social) e os

planos de saúde que cobram, supletivamente aos mais aquinhoados, a saúde.

2.2. EXPANSÃO JUDICIAL E A CONSAGRAÇÃO DA REVISÃO JUDICIAL

Como exposto, a priori, durante a década de 1960, houve uma intensificação

dos movimentos sociais com o escopo de garantir uma maior representatividade

6 Disponível em: <http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2013/agosto/28/cartilha-entendendo-o-sus-2007.pdf> Acesso em: 17 de abril de 2017.

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junto aos poderes constituídos do Estado, bem como, respeito aos direitos

fundamentais constitucionalmente reconhecidos.

Nesse desiderato, houve uma mudança radical de paradigma do cenário

político e social, mormente no que concernia às desigualdades sociais. Consolidou-

se a mutação do Estado Liberal ao Estado Social (Welfare State). Assim sendo, o

Estado e o constitucionalismo passaram a ter como fator conjugador teleológico a

tutela da isonomia material, densificando esse apanágio em um vasto e amplo

catálogo de direitos sociais.

O aumento progressivo da litigiosidade e a expansão do Poder Judiciário

foram resultantes lógicos disso, passando este último a ter a prerrogativa inexorável

de socorrer o cidadão perante a ineficiência das políticas públicas e a inércia

legislativa e executiva, concretizando os direitos fundamentais, principalmente os de

caráter social, garantidos pelo texto constitucional.

Vallinder e Tate (1995) ressaltam que a expansão judicial está intimamente

interligada à queda do comunismo no Leste Europeu e ao fim da União Soviética.

Tais autores ensinam que o sepultamento do socialismo e a ascensão do

capitalismo foram inexoráveis para o desenvolvimento da revisão judicial e o

consequente poder judicial, oriundo da própria jurisprudência dos tribunais nos

Estados Unidos. Por outro lado, há também quem entenda que a judicialização da

política atenda exclusivamente aos interesses econômicos globais.7

Como se percebe, a expansão do Poder Judiciário se caracteriza por um

papel decisório na concretização dos direitos fundamentais, sobretudo nos casos de

omissão do Poder Executivo e do Poder Legislativo, bem como por meio da

“Revisão Judicial”, que da possibilidade de certos atos administrativos do Poder

Executivo serem revistos pelo Poder Judiciário, mediante o controle de legalidade.

Carvalho (2004, p. 127) pontua seis motivos para o aparecimento da

judicialização da política no Brasil:

7 Conforme afirma Santos (2001, p. 127): "A reforma judicial é um componente essencial do novo modelo de desenvolvimento e a base para uma boa governação, devendo, por isso, ser a prioridade do Estado não intervencionista. A administração da justiça é essencialmente um serviço prestado pelo Estado à comunidade, de maneira a preservar a paz social e facilitar o desenvolvimento econômico por meio da resolução de conflitos" Conclui o autor: "De todos os consensos liberais globais, o do primado do Estado de Direito e do sistema judicial é, de longe, o mais complexo e intrigante" (SANTOS, 2001, p. 127).

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i) um sistema político democrático; ii) o princípio da separação de Poderes; iii) o exercício de direitos políticos; iv) o uso dos tribunais, em alguma medida, pelos grupos de interesse; v) o uso dos tribunais pela oposição; e vi) a inefetividade das instituições majoritárias.

A primeira condição política para a expansão judicial é a consolidação do

regime democrático. Tal pressuposto é inerente ao regime democrático consolidado,

consubstanciando-se a pluralidade de ideais como fonte inexorável para o

desenvolvimento do ambiente político, sendo pressuposto básico para qualquer tipo

de expansão judicial o desenvolvimento político e democrático da sociedade, por

meio do aperfeiçoamento das instituições democráticas e da consciência cívica dos

cidadãos.

Isto porque não há expansão judicial ou, muito menos, revisão judicial em

governos autoritários, nos quais o Poder Judiciário e seus membros não possuem a

liberdade e a independência funcional necessária para exercerem de forma coerente

suas funções, bem como de controlar os desmandos do Poder Executivo.

A segunda condição política para a expansão judicial é a separação dos

poderes, como textualizado e constitucionalizado pelo Texto Constitucional de 1988.

O princípio da separação dos poderes conforme fora constitucionalizado pela Carta

Magna, além de estabelecer competências básicas aos três poderes republicanos,

zela pela harmonia e independência de cada um deles, permitindo, por meio de um

vetor teleológico, que os três poderes possam ser protagonistas no dever de

concretizar os mandamentos constitucionais e os direitos fundamentais. Para

Ackerman (1993), o princípio da separação dos poderes deve ser interpretado em

consonância com a pós-modernidade, tendo um sentido teleológico.

A terceira condição política de possibilidade para a expansão judicial é a

existência de direitos políticos, depreendendo-se no exercício da cidadania passiva

(capacidade de ser votado) e da cidadania ativa (direito de votar). Contudo, Tate

(1995) adverte que não é condição suficiente, pois há casos contrários, como Israel,

em que a expansão judicial independe de uma carta formal de direitos políticos.

Contudo, a cidadania, de fato, tem encontrado suporte fático e normativo nos

tribunais, principalmente, acerca da participação política da sociedade no orçamento

público, bem como, por meio de plebiscito e referendo, de audiências públicas sobre

os mais variados assuntos, como também por meio da garantia, pelo Pode

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Judiciário, do direito de manifestação pública, seja a favor do governo, seja em

protesto sobre decisões políticas que foram tomadas.

A quarta condição política para a expansão judicial diz respeito a provocação

judicial dos tribunais pelos grupos de interesse, principalmente os grupos

minoritários, de modo a que direitos básicos sejam garantidos por meio da prestação

jurisdicional, por meio do controle de constitucionalidade.

Esses grupos, historicamente, não foram contemplados por políticas

direcionadas aos seus integrantes, tendo em vista a ausência de interesses

econômicos e sociais centrais, que, por sua vez, estruturam o sistema político

vigente.

A quinta condição política para a expansão judicial se refere aos partidos de

oposição, principalmente, quando a oposição não tem a maioria no parlamento e

recorrem ao Judiciário para frear as alterações realizadas pela base do governo,

utilizando-se, portanto, dos tribunais para obstaculizar e até mesmo inviabilizar

determinadas manobras do governo.

Por sua vez, a sexta condição política para a expansão judicial alude a

ineficiência das instituições majoritárias, tratando-se de um pressuposto negativo, se

refere à incapacidade das instituições democráticas em atender aos anseios sociais

(VALLINDER; TATE, 1995, p. 29).

Vallinder e Tate (1995, p. 35) explica que existem dois modelos de

judicialização da política: a “from without”, que seria a reação do Poder Judiciário à

provocação de um particular (tal modalidade de judicialização ostenta o escopo de

revisar uma decisão tomada pelo Poder Público, tendo como norte a Constituição

Federal, por meio de um controle jurisdicional de constitucionalidade); e a “from

within”, que é o manejo das ações judiciais na administração pública.

Dessa forma, segundo Carvalho (2004), é possível perceber a problemática

em conceituar, caracterizar e estabelecer alcance do processo de judicialização da

política. No que tange às causas geradoras da expansão judicial, a doutrina aponta

para o colapso do socialismo, a hegemonia americana, a evolução da jurisprudência

constitucional, as guerras mundiais, os direitos humanos, o neoliberalismo, o

ativismo dos juízes, dentre outras causas.

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Logo, percebe-se o amplo espaço no cenário político e no imaginário social

ocupado pelos Tribunais Constitucionais que, a partir da Segunda Grande Guerra

Mundial, lapidou-se um prisma de uma jurisdição constitucional calcada em uma

forte carga de legitimidade, por meio da concretização dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, em julgamento de caso concreto, juízes e Tribunais se

“acotovelam” entre tecnicismos jurídicos e sentimentos ideológicos em desprestígio

do jurisdicionado.

Conforme se observa no Recurso Extraordinário 858075, de origem no

Estado do Rio de Janeiro, cujo agravante foi o Ministério Público Federal em face da

União e do Munícipio de Nova Iguaçu/RJ. Tal recurso de repercussão geral, com

relatoria do Ministro Marco Aurélio, destacando o controle judicial e o princípio da

separação de poderes, garantiu a possibilidade de o Poder Judiciário determinar aos

municípios e à União a aplicação de recursos mínimos na área da saúde.

Em um breve relato do caso, tem-se que o Ministério Público Federal, em

ação civil pública, pleiteou o cumprimento das normas previstas no artigo 77 do Ato

das disposições Constitucionais Transitórias, bem como, nos artigos 160, parágrafo

único, inciso II e 198, §§ 2º e 3º, ambos da Constituição Federal, que discorrem a

respeito da aplicação de recursos orçamentários mínimos nas ações e serviços

públicos de saúde. Na sentença de primeiro grau, o magistrado julgou parcialmente

procedente o pedido e determinou que o Município de Nova Iguaçu incluísse no

orçamento e depositasse no Fundo Municipal de Saúde quantias para serem

utilizadas nas ações e serviços de saúde; determinou também que a União

acompanhasse e condicionasse a entrega de recursos relacionados à partilha de

receitas tributárias (Art. 159, I, “b”, CF).

Dessa sentença, a União apresentou apelação, que, por sua vez, foi provida

pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, reformando a sentença do juízo a quo,

que versava sobre a ausência de Lei Complementar, que indique a maneira pela

qual deveriam ser atendidos as normas constitucionais referentes à vinculação de

receitas orçamentarias, e, portanto, assentou que o Poder Judiciário não poderia

elaborar uma regra para esse caso concreto sem que violasse o princípio da

separação dos poderes, disposto no artigo 2º da Constituição Federal.

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E, dessa decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, surgiu o

Recurso Extraordinário em comento, que por unanimidade, o Plenário do Supremo

Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral da matéria,

indicando que o Poder Judiciário pode impor a administração pública a aplicação de

medidas que garantam os direitos fundamentais a saúde.

Nessa perspectiva, pode-se ressalvar também o Agravo Regimental no

Recurso Extraordinário 1014959, de relatoria do Ministro Edson Fachin, em que o

agravante foi o Município de Aracajú e o agravado o Ministério Público do Estado de

Sergipe. O caso em comento, trata-se da existência de superlotação e

clandestinidade em cemitérios públicos, de modo a ocasionar riscos à saúde pública

e falta de condições de higiene. Na sentença de primeiro grau, foi determinado que o

Município deverá construir uma nova necrópole. Dessa decisão, o Município interpôs

recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE), sob a

arguição de interferência do Poder Judiciário no Poder Executivo e falta de recursos

públicos. O TJSE decidiu, por unanimidade, por conhecer e não prover o recurso.

Insatisfeito com o acórdão proferido pelo TJSE, o Município interpôs recurso

ao STF, que foi negado em decisão monocrática, do qual surgiu o agravo regimental

em comento, que, em sessão virtual, os Ministros da Segunda Turma do STF

acordaram, por unanimidade, em negar o provimento a esse agravo regimental,

indicando ser firme o entendimento de que o Poder Judiciário pode determinar a

implementação de políticas públicas que asseguram direitos constitucionais, sem

que violem o princípio da separação dos poderes.

Se, por um lado, o Poder Judiciário avança no sentido de suprir as lacunas

deixadas e não preenchidas de forma adrede pelos Poderes Executivo e Legislativo,

respectivamente, por outro, insensível ao clamor social, passa a repetir a “mantra”

do jurista e filósofo dinamarquês Ross (2003, p. 199) de que “o poder não é

conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram, mas para

ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais

pressupostos”.

2.3. O ATIVISMO JUDICIAL E A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS

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Kelsen (1928) foi o primeiro a utilizar o discurso de concretização dos direitos

fundamentais, como fonte legitimadora para a má postura mais ativa e

intervencionista do Poder Judiciário, por intermédio dos tribunais constitucionais e do

judicial review.

O Poder Judiciário brasileiro, nos últimos anos, tem ocupado papel de

destaque acerca da concretização das políticas públicas e dos direitos sociais,

principalmente em razão da ineficiência das políticas públicas fomentadas pelo

Poder Executivo e pela inércia do Legislativo em fiscalizar questões importantes

envolvendo direitos sociais.

Paula (2010) ressalta vários doutrinadores que procuram enfatizar duas linhas

de debate envolvendo os temas de ativismo judicial e direitos fundamentais. A

primeira, refere-se à nova reformulação da teoria da separação dos poderes e, a

segunda, seria a intervenção do Poder Judiciário para a concretização dos direitos

individuais e sociais, contidos, apodicticamente, nos arts. 5º e 6º do Texto

Constitucional.

O grande debate que fomenta o diálogo constitucionalista é o superpoder que

vem se tornando o Poder Judiciário, funcionando como válvula de escape para

solucionar todas as questões envolvendo políticas públicas e direitos sociais. A

substituição do legislador e do Executivo pela vontade do Juiz é vista com cautela,

principalmente, sob o ângulo da separação dos poderes e do regime democrático.

Com efeito, Paula (2010) alerta para os constantes conflitos normativos e

decisões contra legem que exsurgem com a massificação dos conflitos, sobretudo

envolvendo uma relação vertical entre o cidadão e o Estado, acerca do conflito entre

uma decisão judicial e um direito posto.

Como se percebe, a revalorização jurídica do Direito, calcada pelo viés do

neoconstitucionalismo, bem como a expansão judicial, modificou drasticamente a

postura dos juízes e do papel do Poder Judiciário nos Estados Constitucionais,

alterando significativamente o cenário jurídico dos diversos Estados que adotavam o

modelo constitucional do welfare states.

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Tal fenômeno, além de implicar na denominada judicialização moderna,

possibilitou a expansão e o desenvolvimento das instituições sociais e democráticas,

mormente como protagonistas da concretização e efetivação dos direitos individuais

e coletivos, aproximando o Poder Judiciário aos proclames sociais e aos anseios

populares (PAULA, 2010).

No que tange ao cenário brasileiro, podemos vislumbrar um ativismo judicial

mais calcado sob o prisma de concretização dos direitos fundamentais,

principalmente, aqueles que não foram regulamentados pelo Poder Legislativo, ou

seja, os de eficácia limitada, assim como os que, em razão da ineficiência das

políticas públicas, não são concretamente efetivados pelo Poder Executivo. Nessa

perspectiva, percebe-se que, no Brasil, a jurisdição constitucional se mostra calcada

sob o manto da razoabilidade e da proporcionalidade, na medida em que objetiva

resguardar a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais.

Sob o ângulo da concretização dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal

Federal Brasileiro tem tomado decisões importantes, como, por exemplo: células-

tronco, união homoafetiva, a liberdade de expressão e a questão de infidelidade

partidária.

2.4. A EXPANSÃO JUDICIAL NO BRASIL E O SUBJETIVISMO DAS DECISÕES

A Carta Magna de 1988 tem proporcionado o maior elastério de tempo de

estabilidade política e institucional da história republicana deste país, quebrando

uma tradição de sequenciais de golpes de Estado e um período de instabilidade

institucional histórico. Nesse sentido, ensina Barroso (2005) que, sob a égide da

Constituição de 1988, o Direito Constitucional alcançou o seu píncaro em menos de

uma década. Barroso (op. Cit.) adverte que uma Constituição deve simbolizar,

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conquistar e movimentar o intelecto das pessoas para novas conquistas, por meio

do acordar de um sentimento constitucional.8

Foi a partir da promulgação da Constituição analítica de 1988 que houve, por

bem, um grande aumento de litigiosidade judicial e a expansão judicial, em razão da

consagração do princípio da universalidade de jurisdição e o vasto catálogo de

direitos sociais trazidos pelo Texto Constitucional, como também com a criação e

transformação do Estado brasileiro em um Estado Democrático Social de Direito.

Assim, o Poder Judiciário passa a ser provocado pela sociedade (cidadãos e

entidades de classes, partidos políticos), para intervir diretamente na esfera social,

seja para tutelar o cidadão, em uma relação vertical com o Estado, seja para

protegê-lo contra seu próprio semelhante, em uma relação horizontal.

Interessante notar que, com a expansão judicial, o Poder Judiciário brasileiro

também passa a ser órgão revisor dos atos administrativos, das políticas públicas do

Poder Executivo, no exercício inexorável de controle de legalidade e

constitucionalidade dos atos do Poder Público.

Isto ocorre, porque os séculos XX e XXI tentam conferir um caráter

plurifuncional à função jurisdicional do Estado, marcando um novo modo de se

interpretar o direito. Isto implica dizer que, a atividade jurisdicional deixa de ser

invariavelmente a aplicação do direito ao caso concreto, ou seja, o exercício

inexorável da subsunção, em que, segundo as lições de Cappelleti (1993), o Juiz

que se limita a dizer o direito, passa, mormente no século XXI, a uma atividade

criativa e axiológica9.

8 Nas palavras de Barroso (2005): “A Carta de 1988 tem propiciado o mais longo período de estabilidade institucional da história republicana do país. E não foram tempos banais. Ao longo da sua vigência, destituiu-se por impeachment um Presidente da República, houve um grave escândalo envolvendo a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantes no esquema de poder da República, foi eleito um Presidente de oposição e do Partido dos Trabalhadores, surgiram denúncias estridentes envolvendo esquemas de financiamento eleitoral e de vantagens para parlamentares, em meio a outros episódios. Em nenhum desses eventos houve a cogitação de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Nessa matéria, percorremos em pouco tempo todos os ciclos do atraso”. 9 “Significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise linguística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da política e da ética, da sociologia e da psicologia” (CAPPELLETTI, 1993, p. 35).

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Tanto é verdade que, em contraposição à teoria kelseniana, surge a teoria do

pensamento do possível, idealizada por Peter Häberle, alargando o espeque da

interpretação constitucional dentro do contexto da sociedade aberta “offene

Gesellschaf”, de que fazem parte os tentáculos do governo, bem como, as empresas

públicas e privadas e a sociedade em geral, não se podendo estabelecer um rol

taxativo de seus integrantes ou fixo com números clausus de intérpretes da

Constituição (HARBELE, 1997).

O que ensina Harbele (1997, p. 31) e tenta instituir é uma forma de

democratizar a noção de interpretação constitucional, objetivando alcançar a melhor

interpretação possível que esteja em sintonia e respaldo com a realidade fática de

determinada sociedade pluralista, pois “a vinculação judicial à lei a independência

pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta

a Constituição na esfera pública e na realidade”.

A densidade normativa das normas constitucionais, os princípios

constitucionais agasalhados pelo Constituição, assim como os valores por ela

positivados, permitem uma atividade hermenêutica axiológica, na aplicação do

direito. Inversamente, as cláusulas gerais, os conceitos jurídicos indeterminados e

as normas programáticas e o vasto leque de direitos sociais constitucionalizados

permitem que a sociedade civil possa reivindicar tais ilações, por meio de

provocação do Poder Judiciário.

Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal acaba rompendo o paradigma

de uma postura tradicional do que se denominava de legislador negativo e passa a

atuar também, ainda que de forma temporária, como legislador positivo, na medida

em que regula determinada situação, mormente a falta de criação por parte do

Poder Legislativo de norma regulamentadora. Explica o Ministro Gilmar Mendes, do

Supremo Tribunal Federal, que se trata de uma verdadeira sentença de perfil aditivo,

aplicada em contextos de eventuais faltas, lacunas ou omissões do próprio

legislador. Ou, às vezes, em certo estado de necessidade.10

Ocorre que, atrelado ao desenvolvimento e a expansão judicial, adveio um

subjetivismo acintoso das decisões judiciais, proporcionando, inclusive, decisões

10 MENDES, Gilmar F. Poder Judiciário. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: HTTP://conjur.estadao.com.br/static/text/60520,1>. Acesso em: 18 out. 2007.

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discrepantes, envolvendo casos semelhantes.11 Tal fenômeno enseja um estado

latente de insegurança jurídica permissivo ao regime democrático, além de extirpar o

cânone da isonomia, na medida em que são proferidas decisões conflitantes em

casos similares.

Sabe-se que, após sete constituições e as oscilações de governantes que

inspiravam medo, o Brasil fez a última constituição analítica, impondo ao Supremo

Tribunal Federal a tarefa de “guardião” da Lex Mater.

Por ser analítica o constituinte originário conferiu ao Supremo Tribunal

Federal o poder de processar e julgar matérias que afetam diretamente o texto da lei

maior, mas não foi só. Ainda conferiu poderes para processar e julgar os detentores

de foro privilegiado, de convocar audiências públicas com a instituição do Amicus

Curie visando discutir matéria sensíveis e de interesse da sociedade como é o caso

do aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direito dos homoafetivos, quotas raciais

e etc.

O STF é a terceira e última instância de julgamento e com direito de

estabelecer repercussão geral visando a edição de súmula vinculante para o Poder

Executivo e Judiciário.

Por estas premissas, ínsitas no texto constitucional, o Supremo Tribunal

Federal, é, sem medo de errar, a Corte que mais tem poderes de todos os país

aonde se respira o estado social de direito.

11 Exemplo disso foi o caso Jader Barbalho, calcado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 631102.

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CAPÍTULO 3 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

3.1. DA VINCULAÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DIREITOS SOCIAIS

Entre o lapso temporal do aparecimento dos direitos sociais aos tempos

hodiernos, houve uma mutação inexorável por parte da sociedade, por meio de

vetores importantes, como, por exemplo, a industrialização, a urbanização, os

avanços tecnológicos e a globalização. Essa mudança orgânica do Estado, bem

como a falência do liberalismo econômico, fez surgir uma nova fase do

constitucionalismo.

Tavares (2010) conceitua os direitos sociais como direitos fundamentais de

segunda dimensão, que determinam a Administração Pública uma atuação positiva,

marcada pela implementação da isonomia material e uma tutela aos

hipossuficientes.

O art. 6º da Constituição Federal, refere-se, de forma bastante exemplificativa,

quais são os direitos sociais por excelência, o direito à saúde, ao trabalho, ao lazer,

à previdência social, à assistência aos desamparados etc.

Nesse sentido, cite-se:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

Explica Ferreira (1989) que o espeque dos direitos sociais não pode ser

interpretado de forma taxativa, ou seja, de lista fechada, sendo o seu rol de caráter

meramente exemplificativo, em que o legislador constituinte apenas condensou o

mínimo necessário indisponível para o bem-estar social.

De forma bastante concisa, podemos conceituar os direitos sociais como um

desdobramento lógico dos direitos humanos. Na verdade, os direitos sociais

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implicam um requisito concretizador dos direitos fundamentais, ao passo que

fomentam a relação vertical entre o cidadão e o Estado, exigindo-se uma postura

prestacional dos entes estatais na sociedade. Outrossim, utilizando as lições de

Alexy (2008, p. 487), deve-se falar em direitos sociais como o conjunto de direitos

sem os quais as liberdades públicas significam meras “fórmulas vazias”. Por outro

lado, ensina Stein que “a liberdade é apenas real quando se possuem as condições

da mesma, os bens materiais e espirituais para tantos pressupostos da

autodeterminação”.

Silva (2010, p. 289-290) entende os direitos sociais como sendo aquelas:

Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.

De forma subliminar, o insigne constitucionalista parte da premissa aristotélica

da distribuição de direitos iguais aos iguais, dosando-o na medida de suas

desigualdades e nivelando-o pelo grau de fragilidade com o escopo de evitar

abismos colossais do tecido social.

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes alerta que

Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, enquanto o Estado tem que dispor de um determinado valor para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos universalmente, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos. Dessa forma, em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela

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política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc (MENDES, 2011. p. 668).

A conceituação acima transcrita aborda justamente a principal diferença entre

os direitos sociais e as liberdades individuais: enquanto, no que tange às liberdades

individuais, a titularidade circunscreve apenas ao ser humano de forma

individualizada; os direitos sociais comportam uma dimensão coletiva, abrangendo

toda a coletividade indistintamente, com condições mínimas de subsistência

garantidas pelo Estado, permitindo que cada cidadão possa desenvolver suas

potencialidades. Como se percebe, a projeção dos direitos sociais é direcionada à

sociedade e não ao indivíduo propriamente dito.

Portanto, a liberdade individual e a autonomia da vontade, pedras de toque do

liberalismo econômico, são substituídas pelo manto da invariável axiologia da

igualdade dos direitos sociais. Como se percebe, o surgimento dos direitos sociais

representa o apogeu do Estado Social, principalmente da expansão do Estado e do

aperfeiçoamento de suas funções, passando o Estado a ter um papel interventor da

sociedade, impelindo a atuar diretamente na ordem econômica e social, deixando de

ter um papel meramente absenteísta.

Obstante ao que se pode pensar, o apogeu dos direitos sociais não

representa o fim da liberdade individual e da autonomia da vontade, mas se

consubstancia como um vetor otimizador de tais prerrogativas, na medida em que,

por meio da intervenção estatal, possibilita a otimização da qualidade de vida dos

cidadãos, outorgando aos mesmos, condições de possibilidades para

desenvolverem sua personalidade da melhor forma possível, densificando a

pluralidade social.

Nesse sentido, ensina Miranda (2000, p. 386):

E aqui sobressaem, em geral, directamente, as incumbências de promover o aumento do bem-estar social e econômico e da qualidade de vida das pessoas, em especial, das mais desfavorecidas, de operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, de eliminar progressivamente as diferenças econômicas e sociais entre a cidade e o campo e de eliminar os latifúndios e reordenar o minifúndio.

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Igualmente, Agra12 assevera:

Essa prestação por parte do Estado não significa uma mitigação da liberdade, num incremento da burocracia ou em uma perda da autonomia individual. Eles não são ontologicamente contrários aos direitos individuais. Devem ser concebidos em interação com as prerrogativas de primeira dimensão, em razão de que sem determinados requisitos materiais eles não podem ter uma ampla eficácia empírica. Configura-se como uma evolução dos direitos de primeira dimensão, englobando com os liames da obrigatoriedade os entes estatais.

Independente de qualquer concepção ideológica de Estado que se adote, seja

pela vertente liberal, seja pela acepção social, modernamente, os direitos sociais

são caracterizados pela função de proteção aos setores sociais mais carentes,

objetivando condensar uma sociedade mais justa e solidária, concretizando o

corolário da isonomia material.

Justamente por ter esse caráter programático no contexto constitucional de

cada Estado, tutelando as camadas sociais hipossuficientes e contribuindo para uma

distribuição de políticas pública mais equânimes, os direitos sociais não são

passíveis de sofrer qualquer tipo de retrocesso por parte da organização política

vigente.

Como se sabe, o sistema jurídico não é um todo e que se encerra

individualmente, muito menos prepondera o corte epistemológico do positivismo

jurídico proposto por Hans Kelsen. Assim, impõe-se uma constante necessidade de

adequação às evoluções sociais, evitando-se qualquer lacuna ontológica ou

axiológica no sistema jurídico. Por conta do exposto, os direitos sociais devem ser

vistos, segundo Jardim (2012), em living constitution, como direito vivente, que de

acordo com Cavino (2001, p. 162), algo que acompanha o desenvolvimento do

contexto social. Outrossim, outros direitos sociais, como os dos trabalhadores e de

seguridade social, possuem eficácia imediata, consubstanciando o que a doutrina

constitucionalista denomina de self-executing.

Para Strauss (2010), a doutrina do living constitution significa um Texto

Constitucional variável de acordo com a evolução social, que acompanha as

mudanças sociais, adaptando-se à nova realidade social, sem necessariamente ser

12 Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/walber-de-moura-agra-direitos-sociais.html> Acesso em: 15 de maio de 2017.

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flexível. Em contraponto, Ackerman (2007) critica bastante a respectiva teoria, tendo

em vista que o termo “living constitution” não é um slogan conveniente para

transformar uma imperfeita constituição em algo melhor que ela é.

Enquanto o esforço de tornar a Constituição americana é algo maravilhoso, é uma tentação sempre presente, o problema com essa estridente aspiração é óbvia: existem várias visões competitivas do constitucionalismo democrático liberal, e a Constituição não deveria ser sequestrada por nenhuma delas (ACKERMAN, 2007, p. 1737).

Em relação às normas self-executing, Pontes de Miranda (1970, p. 45) explica

que:

quando uma regra se basta por si mesma, para sua incidência, diz-se bastante em si, self executing, self enforcing, self acting. Quando, porém, precisa das regras jurídicas de regulamentação, porque sem a criação de novas regras jurídicas que as complementem ou suplementem não poderiam incidir e ser aplicadas, dizem-se não-bastantes em si.

Assim, necessário se faz a adoção de medidas de auto-execução ou de auto-

agir dando início ao processo legislativo que culmine, após a discussão e aprovação,

em edição de leis claras e precisas para que as lacunas das normas não se

transformem em manto mitigador de direitos sociais.

3.2. DIFICULDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Na doutrina constitucionalista, existem vários autores advogando argumentos

fático-jurídicos que objurgam a concretização e a eficácia imediata dos direitos

sociais. A principal argumentação consiste em defender que, como os direitos

sociais estabelecem uma prestação afirmativa por parte do ente estatal, essa

intervenção acaba estiolando os preceitos da liberdade individual do cidadão,

suprindo a autonomia da vontade e o livre-arbítrio, estimulando um suposto retorno

ao Estado absolutista.

No ponto, AGRA (2012, p. 277) explica que:

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Essa linha argumentativa clássica se mostra desarrazoada porque parte da falsa premissa de que a intervenção estatal suprimiria a liberdade clássica. Ensina o mencionado autor que toda e qualquer prerrogativa humana necessita de intervenção estatal, constituindo mesmo um requisito para sua concretização, pois, sem esses requisitos materiais, sua efetivação seria impossível.

A segunda corrente doutrinária defende que as normatizações dos direitos

sociais não possuem um caráter universal, variando conforme as peculiaridades de

cada civilização. Por essa razão, ensina Leite (2001, p. 269) que o particularismo

que circunscreve os direitos sociais suplanta uma política universal de

desenvolvimento dos direitos sociais como expressão da dignidade da pessoa

humana.

A última corrente doutrinária que aponta as dificuldades para a concretização

dos direitos sociais defende a tese de que estes direitos humanos não são

categorias de normas jurídicas, mas apenas combinações abstratas e de caráter

meramente moral, ou seja, desprovidos de qualquer teor coercitivo ou sancionatório.

Analisando o contexto social brasileiro pelas decisões proferidas pelo STF,

percebe-se que a falta de concretização dos direitos sociais não se deve à falta de

estrutura normativa ou ao nosso sistema constitucional vigente, mas sim à vontade

política por parte de nossos governantes em concretizar os mandamentos

constitucionais, principalmente por meio de um processo mais isonômico de

distribuição de renda.

Por outro lado, o Brasil não tem tradição política para se deixar que os nossos

governantes sponte sua, reserve recursos para o cumprimento dos mais

requisitados direitos sociais e é por isso que se propugna o destacamento de

percentuais fixos da Receita Corrente Líquida para o seu cumprimento efetivo, sob

pena de estabelecimento das implicações de ordem civis e penais.

3.3. ENTRENCHMENT DOS DIREITOS SOCIAIS

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Agra (2012, p. 302) conceitua o entrenchment, ou entrincheiramento, como

uma tutela jurídica da densidade suficiente dos direitos socais, evitando que os

mesmos possam ter sua concretização obnubilada por questões políticas ou

administrativas.

O entrenchment dos direitos fundamentais pode ser desmembrado em três

vertentes consoante o nível de proteção estabelecido. A teoria do não retrocesso

terá eficácia máxima quando seus mandamentos e desdobramentos partirem

diretamente do Texto Constitucional. Por sua vez, apresentará eficácia mínima

quando seus desdobramentos ficarem circunscritos a garantir apenas condições

mínimas de direitos fundamentais. Por outro lado, terá eficácia intermediária, quando

sua matriz axiológica estiver ligada ao princípio da proteção da confiança ou à

necessidade de fundamentação constitucional dos atos legislativos que restrinjam

tais direitos.

Com efeito, o entrechment do núcleo essencial dos direitos sociais funciona

como um vetor constitucional que mantém uma condição de efetivação constante

dos direitos fundamentais no sistema jurídico constitucional, evitando que tais

conquistas sejam estioladas por decisões políticas temporárias e sem respaldo no

Texto Constitucional.

Nesse sentido ensina Tavares (2005, p. 492):

Realmente, aflora no discurso constitucional da atualidade a preocupação em discutir e demarcar a forma de atuação da jurisdição constitucional e, além dela, sua forma de composição. Nessa teorização prepondera uma vertente de preocupação legitimadora, que procurada indicar os elementos de Justiça Constitucional a partir de uma abordagem que lhe assegure caráter democrático.

Como se percebe, a teoria do entrincheiramento configura-se como um

congelamento da eficácia máxima dos direitos sociais dentro do sistema

constitucional, consolidando condições mínimas para que o tecido social possa

desenvolver suas aptidões e viver de acordo com o bem comum. Portanto,

evidencia-se que seu fator teleológico é concretizar os valores constitucionais

estabelecidos.

Assim sendo, seu fator teleológico consubstancia-se em caráter de eficácia ao

mandamento constitucional, fomentando a força normativa da Constituição Federal e

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garantindo a supremacia do Texto Constitucional perante a legislação

infraconstitucional, o que enseja que as normas constitucionais deixem de ter um

papel meramente lírico e possam ter eficácia prática interessante ao tecido social.

3.4. DENSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS PELA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Texto Constitucional de 1988 é o primeiro diploma constitucional brasileiro

a consagrar o direito fundamental de proteção à saúde. Textos constitucionais

pretéritos possuíam apenas disposições esparsas sobre a questão em apreço,

como, por exemplo, a Constituição do Império de 1824, faz referência à proteção

dos “socorros públicos” (art. 179, XXXI).

Hodiernamente, o Texto Constitucional vigente não apenas consagra

expressamente a proteção aos direitos sociais, como também não estabelece

dissemelhança entre direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I do Título II)

e os direitos sociais (Capítulo II do Título II), ao estabelecer que os direitos e

garantias fundamentais têm aplicação e eficácia imediata plena (art. 5º, §1º

Constituição Federal).

O direito de proteção à saúde está previsto no art. 196 da Constituição

Federal como: a) direito de todos; b) dever do Estado; c) garantido mediante

políticas sociais e econômicas; d) que visem à redução do risco de doenças e de

outros agravos; e) regido pelo princípio do acesso universal e igualitário; f) com

ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

Nesse sentido, cite-se o texto constitucional (1988):

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

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regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

O legislador constituinte originário entendeu por bem estabelecer um modelo

básico de organização e procedimento para o direito básico de proteção à saúde.

Estabelecendo que a saúde é direitos de todos e dever do Estado e assegurando

políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença.

Evidencie-se que, embora o constituinte originário, no art. 196, tenha

garantido a todos os cidadãos o direito à saúde, ele impôs uma ligação direta desse

direito fundamental com a educação social e econômica que vise a diminuição de

chagas.

Vê-se ainda que o art. 197 do texto constitucional asseverou que as ações e

serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e

constituem um sistema único, organizado de forma descentralizada, com direção em

cada esfera do governo, voltado ao atendimento integral, com prioridade para

atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços essenciais, assegurando-se a

participação da sociedade, nos termos expressos do art. 198 da Constituição da

República Federativa do Brasil, que assim dispõe:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

§ 1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda Constitucional nº29, de 2000)

I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento); (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)

II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos

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de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do § 2º; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)

II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

IV - (revogado). (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)

§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)

§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 63, de 2010) Regulamento

§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006).

Observa-se que, logo após o artigo antecedente estabelecer que o sistema

único deve ser integrado em uma rede pública regionalizada e hierarquizada, o art.

198, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estabelece como

seria a organização desse sistema, como a descentralização com comando único

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em cada ente federado, atendimento ilimitado com foco para a prevenção, sem

perder o foco na prevenção e a participação da sociedade.

O art. 198 da Lex Magna, ainda aponta a fonte de custeio que seria com

recursos orçamentário da seguridade social e também de todos os três entes da

federação como a União, os Estados e os Município.

Nota-se, do texto constitucional acima transcrito, que, os percentuais de 15%

(quinze por cento) a serem extraídos das receitas correntes líquidas (RCL) dos entes

federados, não são exclusivos para a aplicação em saúde, mas, neste ponto, seriam

para pagar a folha de pessoal dos que trabalham com esse direito social, como é o

caso dos agentes de combates as endemias, os agentes comunitários de saúde (art.

198, § 4º, CR/88) e tudo isso sem falar nos médicos etc.

Pela própria dicção constitucional, logo se observa que 15% da receita

corrente líquida é muito pouco para cobrir a densa folha de pessoal e para abastecer

as farmácias, equipar laboratórios, ambulatório e toda uma estrutura física que se

deve utilizar para retirar das filas e corredores dos hospitais públicos os que mais

precisam.

Por conseguinte, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil,

compete ao Sistema Único de Saúde – SUS, entre outras atribuições:

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015)

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

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VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Um dos reflexos do entrincheiramento na Constituição Federal é o

estabelecimento de recursos minguados com saúde. Por conta disso, tais direitos

sociais são densificados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Enquanto não se chega a um consenso sobre a efetividade desses direitos

sociais, o judiciário vem entendendo que o direito a saúde e a educação devem ser

financiados pelo ente federado, independentemente de ter ou não orçamento.

Em uma perscrutação feita nos sites dos tribunais, com mais de dois mil

acessos, se estabeleceu cruzamento de diversas expressões relacionadas a

medicamentos e saúde, logo se identifica que, as evidências práticas sobre

judicialização das políticas sociais no Brasil, apontam que o ingrediente principal do

item acionado são, de fato, os medicamentos.

Na subdivisão da judicialização de fármacos, se encontra as ações judiciais

para a aquisição de medicamentos de alto valor monetário e até mesmo os que

ainda não foram incorporados a lista do SUS e, por conseguinte, não aprovado pela

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Ressalte-se que decisões dos juízes e Tribunais têm, de fato, desequilibrado

as finanças públicas, mas tudo isso ocorre por culpa in vigilando e in elegendo dos

administradores dos entes federados, porque, ao passo em que se consolida e se

firma a jurisprudência no sentido de concessão de medicamentos, cirurgias etc, o

Poder Legislativo não estabelece regras claras, objetivas, rígidas e diretas para o

custeio desses direitos e o Executivo assiste quase que inerte as suas previsões

orçamentárias serem transformadas em “coxas de retalho”, que o judiciário vem

recrudescendo a cada julgamento.

Se por um lado, a saúde e a educação, são direitos sociais de segunda

dimensão decorrentes de conquistas dos movimentos constitucionalistas e sempre

têm prevalência em julgamento de caso concreto, por outro, de quando em vez, se

observa que esses direitos são suscetíveis de casuísmo hermenêutico por parte do

poder judiciário, que geram incertezas sobre a sua concretização em face inércia

estatal em adotar políticas públicas exequíveis.

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Nos julgamentos do Recurso Extraordinário nº 661.288 e na Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.330, o Plenário do Supremo Tribunal Federal

assentou, respectivamente, o seguinte: a) é inconstitucional a lei que regulamente o

“cartão cidadão” para permitir o acesso do cidadão aos serviços públicos municipais,

como, por exemplo, educação, saúde, esporte e lazer, tendo em vista que o

programa foi instituído somente para abranger os munícipes, extirpando o caráter

universal dos serviços públicos; b) a educação, escolar ou formal, é direito social

que a todos deve alcançar, sendo, portanto, um direito fundamental e indisponível

dos indivíduos.

Destaque-se que o Recurso Extraordinário nº 661.288, cujo relator foi o

Ministro Dias Toffoli e as partes foram o Município de Guararema e a Câmara

Municipal de Guararema, enquanto agravantes, e o Procurador-Geral de Justiça do

Estado de São Paulo, enquanto agravado, se refere a um agravo contra decisão que

não acolheu recursos extraordinários, em razão da sua intempestividade, propostos

pelo Município de Guararema e pela Câmara Municipal de Guararema em face do

acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Ora, os recursos extraordinários, não admitidos e que foram interpostos no

agravo em comento, versam sobre ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº

2.600, de 8 de julho de 2009, e do Decreto nº 2.716, de 28 de dezembro de 2009, do

Munícipio de Guararema-SP, que estabelecia o “cartão cidadão” como documento

indispensável e obrigatório para acesso aos serviços públicos da municipalidade, de

tal forma que, se o cidadão não possuísse o “cartão cidadão”, não poderia gozar de

direitos constitucionalmente garantidos, como saúde, educação, assistência social,

dentre outros.

Para os agravantes, considerar Lei nº 2.600/2009, e o Decreto nº 2.716/2009,

como sendo inconstitucionais demonstra patente violação aos artigos 5º, II; 34, VII;

37; 84, IV; 165, §9º, II; e 167, I, II e V, todos da Constituição Federal; bem como,

viola a premissa constitucional relativa a autonomia municipal, a dignidade da

pessoa humana e a proporcionalidade.

Da analise desse Recurso, os Ministros da Primeira Turma do STF,

acordaram, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, por unanimidade, em não

acolher o agravo proposto pela Câmara Municipal de Guararema; por maioria de

votos, em conhecer o recurso interposto pelo Município de Guararema e, por

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unanimidade, em a ele negar provimento, por entender que o programa do “cartão

cidadão” foi criado com intendo excludente e segregatório, uma vez que, restringiu,

por exemplo, o acesso aos serviços públicos de saúde ao porte de um cartão;

excluindo, portanto, do gozo desses serviços, os cidadãos que não moravam no

munícipio de Guararema ou que, morando, não possuíam o cartão.

Para o STF, o Município, ao sancionar a Lei 2.600/2009 e o Decreto

2.716/2009, infringiu a natureza universal e igualitária que a Constituição Federal de

1988 atribuiu aos serviços de saúde (art. 196, CF/88), bem como, violou os artigos

205 e 206 também da Constituição, que versam a respeito da educação, indicando-a

como direito de todos e dever do Estado (Art. 205, CF/88) e instituindo os princípios

norteadores para o ensino, dentre os quais, “a igualdade de condições para o

acesso e permanência na escola” (Art. 206, I, CF/88)).

Já a ADI 3.330, como a própria nomenclatura da ação demonstra, trata-se de

uma ação direta de inconstitucionalidade, sob relatoria do Ministro Ayres Britto, cujas

partes requerentes foram: Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino

(CONFENEN), Democratas e Federação Nacional dos Auditores-Fiscais da

Previdência Social (FENAFISP), esta foi considerada sem deter legitimidade ativa e,

portanto, participou do processo na qualidade de amicus curiae; e as partes

requeridas foram: o Presidente da República, CONECTAS Direitos Humanos e

Centro de Direitos Humanos (CDH).

Nessa ADI, foi analisada a Medida Provisória nº 213/2004, convertida na Lei

nº 11.096/2005, que instituiu o Programa Universidade Para Todos (Prouni). De

modo resumido, pode-se depreender que a tese defendida pelos requerentes arguiu

que a União não possui competência legislativa para discorre a respeito de

educação por meio de normas especificas, no caso, a MP nº 213/2004, bem como,

argumentou que em alguns dispositivos, a matéria explanada é reservada à lei

complementar. Os requerentes ainda imputaram que a MP censurada desrespeitou

alguns princípios, tais como: legalidade, igualdade, autonomia universitária,

pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.

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Nesse sentido, o STF, em sessão presidida pelo Ministro Ayres Britto, julgou,

por maioria de votos13, pela improcedência a ADI. Tendo em vista que a Lei nº

11.096/2005, decorrente da MP 213/2004, não atuou em área material reservada à

lei complementar, já que, apenas determinou um “critério de contabilidade

compensatória da aplicação financeira em gratuidade por parte das instituições

educacionais” (ADI 3.330, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 3-5-2012,

Plenário, DJE de 22-3-2013).

Quanto ao argumento de desrespeito a princípios constitucionais, entendeu-

se por sua inexistência, pois, embora, o Prouni se operacionalize através da

concessão de bolsas de estudo a alunos de baixa renda, ele não os vincula

forçosamente, antes o aluno, que cumpra os requisitos do programa, poderá,

voluntariamente, por ato de adesão, requerer a sua participação. Inexistindo

qualquer violação aos princípios da autonomia universitária (Art. 207, CF/88) e da

livre iniciativa (Art. 170, CF/88).

Evidencie-se que a evocação dessa jurisprudência (ADI 3.330), acentuou o

dever do Estado de garantir a educação, enquanto direito fundamental e indisponível

dos cidadãos, através de meios que viabilizem o seu exercício (Art. 205, CF/88). Por

consequência, a omissão da administração importa em afronta à Constituição,

conforme entendimento já firmado no STF, no julgamento do RE 594.01814 e da AI

658.491-AgR15, de relatoria, respectivamente, dos Ministros Eros Grau e Dias Toffoli.

Observa-se que esse entendimento do STF não é recente, ainda no ano 2012

foi apreciado o AI 550.53016, sob a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, que

defendeu a consolidação da jurisprudência do Supremo no sentido de que o

“Município não pode furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo

do direito à saúde por todos os cidadãos” (AI 550.530 AgR, rel. min. Joaquim

Barbosa, j. 26-6-2012, 2ª T, DJE de 16-8-2012). Sendo dever solidário da União, do

Estado e do Município providenciar os meios para garantir os direitos fundamentais,

13 Vencido apenas o voto do Ministro Marco Aurélio e impedida a Ministra Cármen Lúcia (ADI 3.330, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 3-5-2012, Plenário, DJE de 22-3-2013). 14 RE 594.018-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23-6-2009, Segunda Turma, DJE de 7-8-2009. 15 AI 658.491-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 20-3-2012, Primeira Turma, DJE de 7-5-2012. 16 As partes que compõem essa lide são: Autarquia Municipal de Saúde – MAS (agravante) e Ministério Público do Estado do Paraná (agravado).

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independentemente de ter ou não recurso, já que, mais importante do que a

limitação de gastos em percentuais é a tutela dos direitos sociais mundialmente

protegido.

Como visto, apesar da composição do STF da época já ter firmado

posicionamento a respeito de afirmar o direito fundamental a saúde e a educação,

logo se percebe, através das interposições recursivas de folego, que a espada de

Dâmocle ainda pairava na cabeça do recorrido que vindicava o direito a saúde e a

educação.

Nesse sentido, no julgamento do Recurso Extraordinário ARE 727.86417, o

Plenário do Supremo Tribunal Federal assegurou o direito subjetivo do paciente em

ser atendido em rede hospitalar privada, nos casos de urgência e de inexistência de

leitos nas unidades hospitalares públicas. Sublinhando o dever estatal de assistência

à saúde e de proteção à vida, resultante da norma constitucional e da obrigação

jurídico-constitucional dos entes públicos.

No ARE, em analise, interposto pelo Estado do Paraná em face do Ministério

Público do Estado do Paraná, o agravante, recorreu de decisão unânime, proferida

pelo Tribunal de Justiça local, que sustentava a garantia do direito constitucional à

vida e à saúde diante da inércia governamental. Dentre as alegações defendidas

pelo agravante, tem-se a ideia de que, em face da omissão constitucional, o pedido

formulado pelo Ministério Público Estadual seria juridicamente impossível de ser

atendido, já que diante do princípio da reserva do possível, existem outros serviços a

serem custeados pelo Estado.

Ora, o pedido do Ministério Público Estadual visava compelir o Estado a

custear serviços hospitalares de instituições privadas para os usuários do Sistema

Único de Saúde (SUS), em virtude da omissão do Estado, que deixou de empregar

medidas essenciais à efetivação concreta dos pressupostos constitucionais, quando,

por ausência de leitos hospitalares na rede pública de saúde, privou os cidadãos do

atendimento médico.

Assim, o Tribunal de Justiça local acatou o pleito ministerial, rechaçando

todos os argumentos agitados pelo Estado do Paraná, salientando que, ao avaliar os

17 ARE 727.864, rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-9-2014, DJE de 17-9-2014.

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valores vida e patrimônio, deve-se prevalecer medidas que salvaguardem,

primeiramente, a vida humana e sua dignidade. Ressaltando que o internamento em

leitos de hospitais privados deve ser uma diligência excepcional, porém

indispensável a garantia da saúde. E os argumentos de prejuízo ao erário, ônus

demasiado e de apreciação da reserva do possível devem ser afastados18.

Dessa decisão, o Estado do Paraná interpôs recurso extraordinário que foi

inadmitido pelo Presidente da Corte e dessa decisão foi interposto o agravo, visando

destrancar a interposição recursiva.

No ARE 727.864, sob a relatoria Ministro Celso de Melo, o Supremo Tribunal

Federal, consignou que o menosprezo da Constituição, por inatividade do Estado,

retrata um dos mais complexos aspectos da patologia constitucional, porque

configura incabível desconsideração da soberania da Lei Fundamental do Estado,

por parte das entidades governamentais.

O STF esclareceu, ainda, que o princípio da reserva do possível não pode ser

requerido pelo Estado, com o objetivo de se omitir, dolosamente, da execução de

seus deveres constitucionais, especialmente quando, esse ato governamental

negativo, for capaz de ocasionar nulificação ou extinção de direitos fundamentais.

Em outras palavras, a maldizente teoria da reserva do possível e do mínimo

existencial são usadas como substrato justificador ou mitigador do inadimplemento

dos deveres estatais na efetivação de políticas públicas constitucionais inerentes ao

Poder Executivo.

Por estas judiciosas razões, o STF, por intermédio do Ministro Celso de Melo,

conheceu o agravo, em face da tempestividade, para, em sessão da segunda

turma19, sob Presidência do Ministro Teori Zavascki, por unanimidade, negar

provimento ao recurso de agravo. Concretizando o entendimento pela ortodoxia do

Poder Judiciário na efetivação das políticas públicas voltadas ao Poder Executivo,

garantidas pelo Constituição e, injustificadamente, não materializadas pela

Administração Pública.

18 Apelação Cível nº 824.239-9, Rel. Juíza Subst. 2º Grau ASTRID MARANHÃO DE CARVALHO RUTHES 19 Os Ministros presentes nessa sessão de julgamento foram: Celso de Mello, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, além do presidente o Ministro Teori Zavascki.

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Em 2009, o STF enfrentou direito de terceira dimensão, visando tutelar a

saúde pública e o meio ambiente, por intermédio da Ação de Descumprimento de

Preceito Fundamental (ADPF) 101, com relatoria da Ministra Cármem Lúcia,

ajuizada pelo Presidente da República em face de diversas decisões judiciais de

primeiro grau20, que conferiam a possibilidade de importação de pneumáticos

usados21.

Dentre os argumentos utilizados para motivar a ADPF, tem-se que as

sentenças judiciais, que permitiam a importação de pneus usados, violaram

disposições fundamentais do direito à saúde e meio ambiente ecologicamente

equilibrado, uma que feriram: a) ao preceito constitucional de livre iniciativa e da

liberdade de comércio (Art. 170, IV, parágrafo único, da CF); b) ao princípio da

isonomia (Art. 5º, CF), porque o Poder Público estaria possibilitando a importação de

pneus remoldados oriundos de países participantes do Mercosul; c) os atos

normativos proibitivos da importação, que abarcam os pneus usados; d) a

Resolução CONAMA nº 258/99, com redação estabelecida pela Resolução

CONAMA nº 301/2002, que revogou o impedimento de importação de pneus usados,

20 Sendo intimados para compor o polo passivo dessa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental: o Presidente do Superior Tribunal Federal; os Tribunais Regionais Federais da 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões; Juízes Federais das 2ª, 3ª, 5ª, 7ª, 8ª, 11ª, 14ª, 15ª, 16ª 17ª, 18ª, 20ª, 22ª, 24ª, 28ª e 29ª Varas Federais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro; Juiz Federal da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo; Juiz Federal da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Espírito Santo; Juiz Federal da 12ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais; Juízes Federais das 2ª, 4ª, 6ª e 7ª Varas Federais da Seção Judiciária do Paraná; Juiz Federal da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará; Juiz Federal da Vara Federal Ambiental de Curitiba; Pneus Hauer do Brasil LTDA; Associação Brasileira da Indústria de Pneus Remoldados – ABIP; Associação Nacional da Indústria de Pneumático – ANIP; Pneuback Indústria e Comércio de Pneus LTDA; Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; Tal Remoldagem de Pneus LTDA; Bs Colway Pneus LTDA; Conectas Direitos Humanos; Justiça Global; Associação de Proteção do Meio Ambiente de Cianorte – APROMAC; Associação Brasileira do Segmento de Reforma de Pneus – ABR; Associação de Defesa da Concorrência Legal e dos Consumidores Brasileiros – ADCL; Líder Remoldagem e Comércio de Pneus LTDA; RIBOR – Importação, Exportação, Compercio e Representações LTDA. Evidenciando-se que a CONECTAS Direitos Humanos e a Associação de Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte (APROMAC) foram admitidas pelo STF como Amicus Curiae. 21 Entendendo-se que o pneu usado, segundo o Acórdão da ADPF 101, seria tanto o “pneu inservível – aqueles que apresentam danos irreparáveis em sua estrutura, não se prestando a recapagem, recauchutagem e remoldagem”, como também o “pneu reformado – aqueles que foram submetidos a processo de recapagem (processo pelo qual o pneu usado é reformado pela substituição de sua banda de rodagem e dos ombros), e remoldagem (processo pelo qual o pneu usado é reformado pela substituição de sua banca de rodagem, dos ombros e de toda a superfície de seus flancos)” (ADPF 101, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 24-6-2009, Plenário, DJE de 4-6-2012).

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na medida em que teria previsto o destino de pneus importados reformados; dentre

outros.

Para o Requerente dessa ação, a proibição da importação de pneus usados é

de essencial importância para a tutela da saúde pública e a defesa do meio

ambiente, uma vez que, ainda não existe meio eficiente de extinção integral de

resíduos identificados por pneumáticos que não demonstre risco ao meio ambiente,

visto que a incineração, emite gases tóxicos que oferecem relevantes danos à saúde

humana e ao meio ambiente, o aterro não é permitido, pois pode ocasionar o

desencarceramento de resíduos líquidos e sólidos perniciosos ao ecossistema e a

vida humana, bem como, o acumulo de pneus ao ar livre, que pode causar incêndios

(provocando a emissão de gases tóxicos na atmosfera) ou ser criadouro de

mosquitos transmissores de doenças).

Evidencie-se que foram formulados pelo Arguente da ADPF, em comento,

três pedidos, a saber: a) o reconhecimento do dano à disposição fundamental

materializado no direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, no teor dos artigos

196 e 225 da Constituição Federal; b) a declaração de inconstitucionalidade das

decisões judiciais que permitiram a importação de pneumáticos usados, com efeito

ex tunc, até mesmo sobre ações judiciais com trânsito em julgado e; c) a declaração

de constitucionalidade do art. 27, da Portaria DECEX n. 8, de 14.05.1991; do

Decreto n. 875, de 19.7.1993, que ratificou a Convenção da Basiléia; do art. 4°, da

Resolução n. 23, de 12.12.1996; do art. 1°, da Resolução CONAMA n. 235. de

7.1.1998, do art. 1°, da Portaria SECEX n. 8. de 25.9.2000; do art. 1· da Portaria

SECEX n. 2, de 8.3.2002, do art. 47-A no Decreto n. 3.179, de 21.9.1999 e seu 2°,

incluido pelo Decreto 4592, de 11.2.2003; do art. 39, da Portaria SECEX n. 17, de

1.12.2003; e do art. 40, da Portaria SECEX n. 14, de 17.11.2004 com efeitos ex

tunc.

Ora, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes, os

Ministros do STF acordaram, por maioria dos votos22, em dar provimento parcial à

arguição de descumprimento de preceito fundamental, discordando dos pedidos do

Arguente, apenas em relação a incidência dos efeitos pretéritos referentes as

decisões judiciais com trânsito em julgado, que devem ser excluídas dos efeitos do

presente acórdão, ressalvando que não se incluiu nessa exceção, decisões em que

22 Os Ministros Cezar Peluso e Menezes Direito estavam ausentes nesse julgamento.

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no dispositivo apresente determinação pronunciada de maneira ilimitada para o

futuro.

Com tal decisão, percebe-se que em homenagem a efetivação dos direitos

fundamentais, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental, fazendo cessar todas as decisões

proferidas em desfavor do meio ambiente e da saúde pública.

Destaque-se também, em relação ao dever estatal de assistência à saúde e

de proteção à vida, o julgamento do STA 223-AgR, cuja a relatora originária foi a

Ministra Ellen Gracie e o relator do acórdão foi o Ministro Celso de Mello.

Ora, o Agravo regimental na suspensão de tutela antecipada nº 223 foi

proposto por Marcos José Silva de Oliveira, representado por Patrícia Silva de

Oliveira, em face do Estado de Pernambuco, que recorreu da decisão que

suspendeu a execução da decisão que antecipou a tutela proferida no Agravo de

Instrumento nº 0157690-9, em tramitação diante do Tribunal de Justiça do Estado de

Pernambuco (TJPE).

Eis um breve relato dos fatos que culminaram na STA 223-AgR:

a. no dia 03 de dezembro de 2006, o agravante ficou tetraplégico, em

decorrência de disparo de arma de fogo proveniente de um assalto em

via pública. E, portanto, pleiteou23 a caracterização da responsabilidade

civil subjetiva do Estado de Pernambuco, com base no artigo 37, §6º,

da Constituição Federal, por omissão do dever constitucional zelar pela

segurança pública;

b. no dia 14 de agosto de 2007, o magistrado de primeiro grau, indeferiu o

pedido de antecipação de tutela, sob o fundamento de que existe a

necessidade de averiguar os limites de responsabilidade do Estado

pelo fornecimento de serviço de segurança pública a seu ofício;

c. no dia 20 de agosto de 2007, o ora agravante apresentou Agravo de

Instrumento nº 0157690-9 diante do TJPE;

23 Por meio da Ação de Indenização por Danos Morais e Materiais, processo nº 001.2007.043289-0, que tramita diante da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Recife/PE.

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d. no dia 11 de outubro de 2007, o Tribunal, por meio do Desembargador

João Bosco Gouveia de Melo, julgou parcialmente o agravo de

instrumento retro, dando provimento para que o Estado de

Pernambuco custeie a totalidade de despesas necessárias para a

realização de cirurgia de implantação de marcapasso diafragmático;

e. no dia 06 de março de 2008, o magistrado a quo, em cumprimento da

decisão do TJPB, despachou determinando a transferência do

montante depositado judicialmente pelo Estado de Pernambuco;

f. no dia 10 de março de 2008, o Estado de Pernambuco impetrou,

perante o STF, o pedido de suspenção de tutela antecipada, deferido

por ato da presidência dessa Corte. No mesmo dia, o Desembargador

Francisco Bandeira de Melo, substituindo o Desembargador João

Bosco Gouveia de Melo, também suspendeu, a título cautelar, o

despacho de transferência do valor constante em conta judicial

determinado pelo Juízo da 3ª Vara da Fazenda Estadual.

g. no dia 12 de março de 2008, o Estado de Pernambuco formulou pedido

arguindo o reexame a matéria pleiteada, que foi indeferida, no dia 17

de março de 2008, em tal decisão, requereu-se, do ora agravante,

juntada de documentos aptos a provar, minuciosamente, a

inexequibilidade de tratamento alternativo disponibilizado pelo Sistema

Único de Saúde (SUS), bem como, a carência de profissional

habilitado, residente no Brasil, capaz de implantar o marca-passo e o

registro do procedimento e do aparelho solicitados no órgão de

controle norte-americano competente.

h. e, por fim, para terminar esse pequeno resumo, em observância aos

requerimentos apontados no item anterior, o interessado apresentou

novo pedido de reconsideração e o Agravo Regimental, em comento.

Nesse Agravo Regimental, arguiu-se pela: prejudicialidade da suspenção da

determinação de liberação da quantia depositada em conta judicial pelo Estado de

Pernambuco; existência de tratamento similar fornecido pelo SUS; ausência de

médico capacitado para executar o procedimento cirúrgico no Brasil; impossibilidade

de oferecimento de garantias de êxito na cirurgia; emergência da intervenção

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cirúrgica; demonstração que o aparelho a ser implantado está registrado no U.S.

Food and Drug Administration; e garantia de contraprestação.

No julgamento dessa STA 223-AgR, em Sessão Plenária, com Presidência da

Ministra Ellen Gracie, os Ministros acordaram, por maioria de votos24, em dar

provimento ao recurso de agravo, vencido apenas o voto da Ministra Ellen Gracie

(Relatora). Ficando o Ministro Celso de Mello responsável por lavrar o acórdão, que,

por sua vez, afirmou o dever estatal de assistência à saúde e de proteção à vida,

resultante de norma constitucional e da obrigação jurídico-constitucional dos entes

públicos.

Demonstrando que a inércia governamental, ante a falha do Poder Público em

proporcionar segurança, por meio da promoção de atitudes acertadas de segurança

pública em prol da sociedade, comprometeu a eficácia de preceitos normativos

constitucionais, quais sejam: a inviolabilidade do direito à vida (Art. 5º, CF), a tutela

ao direito à saúde (Art. 196, CF) e o reconhecimento do direito à segurança pública

(Art. 144, CF).

O Ministro Celso de Mello, em seu voto, ressaltou que a teoria da reserva do

possível não pode ser utilizada como substrato justificador do inadimplemento dos

deveres estatais na efetivação de políticas públicas constitucionais inerentes ao

Poder Executivo, salvo em caso de equitativo motivo objetivamente aferível. Além de

indicar a intervenção jurisdicional como meio de implementar políticas públicas

asseveradas pela Constituição e, injustificadamente, não concretizadas pela

Administração Pública; firmando-se, dessa forma, a ortodoxia do Poder Judiciário na

concretização das políticas públicas imputadas, a priori, ao Poder Executivo.

Isto posto, surge um embate entre o ativismo judicial por meio da imposição,

ao Poder Executivo, de efetividade dos direitos sociais e o argumento da

impossibilidade orçamentária para tanto, sob o manto da reserva do possível.

A respeito do qual defendemos, desde já, uma solução jurídica com base na

razoabilidade, nos termos descritos por Nogueira (2006, p. 220), que sugere a

razoabilidade por meio de uma "avaliação isenta de contradição e arbítrio"

(razoabilidade formal ou lógica), além de consistente na "observação criteriosa e

24 Os Ministros Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito estavam ausentes nesse julgamento.

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bem pautada dos objetos do conhecimento submetidos ao caso concreto"

(razoabilidade experimental ou empírica), tendo em vista que "a razoabilidade

jurídica reflete a atuação do Juiz em um cenário social pós-moderno, devendo estar

incorporada na cultura jurídica do povo" (NOGUEIRA, 2006, p. 510).

Ademais, a proporcionalidade e razoabilidade, afeiçoa-se um tema de índole

axiológico decorrente da ideia de justiça e tudo se antecede a positivação da norma

jurídica, de matiz constitucional, servindo de esteio para se extrair a boa

interpretação para todo o arcabouço jurídico, quando do inevitável confronto entre

valores constitucionalizados.

O filósofo alemão Larenz (1997, p. 63-66), em seu livro Metodologia da

Ciência do Direito, traz a discussão a denominada “jurisprudência dos interesses”,

doutrina do positivismo jurídico do século XX, desenvolvida pelo jurista alemão

Philipp Heck, aonde se defendia que a lei escrita deve ser interpretada para

expressar aos interesses para qual foi efetivamente concebida.

Segundo Larenz (1997, p. 65-66), a denominada “jurisprudência dos

interesses”,

Significa isto que os preceitos legislativos - que também para HECK constituem essencialmente o Direito - «não visam apenas delimitar interesses, mas são, em si próprios, produtos de interesses» (GA, pág. 17). As leis são «as resultantes dos interesses de ordem material, nacional, religiosa e ética, que, em cada comunidade jurídica, se contrapõem uns aos outros e lutam pelo seu reconhecimento». Na tomada de consciência disto, garante-nos HECK, reside «o cerne da Jurisprudência dos interesses», sendo também daí que ele extrai a sua fundamental exigência metodológica de «conhecer com rigor histórico, os interesses reais que causaram a lei e de tomar em conta, na decisão de cada caso, esses interesses» (GA, pág. 60). Deste modo, também para HECK, como para JHERING, o legislador como pessoa vem a ser substituído pelas forças sociais, aqui chamadas «interesses» (o que é justamente uma forma de sublimação), que, através dele, obtiveram prevalência na lei. O centro de gravidade desloca-se da decisão pessoal do legislador e da sua vontade entendida psicologicamente, primeiro para os motivos e, depois, para os «factores causais» motivantes. A interpretação, reclama HECK, deve remontar, por sobre as concepções do legislador, «aos interesses que foram causais para a lei». O legislador aparece simplesmente como um «transformador», não sendo já para HECK nada mais do que a «designação englobante dos interesses causais>>>> (GA, págs. 8 e 64) - fórmula que STOLL também viria a fazer sua.

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Larenz (1997) afirma que apesar dos defeitos da fundamentação teórica que a

jurisprudência dos interesses traz é de se enaltecer que atingiu as suas finalidades

práticas, que a ela o importava.

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CAPÍTULO 4 – DO DISCURSO ENGENHOSO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA MITIGAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

4.1. RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL

Muito se tem falado e discutido sobre a teoria alemã da reserva do possível,

com o instituto maldito de arrefecer a interpretação das normas constitucionais,

bastando que o ente federado comprove que não teria condições financeiras de

custear a saúde e pronto: estaria livre desse ônus.

Visando descortinar essa pujante preocupação, objeto de intensa

perscrutação dos mais diversificados trabalhos científicos, passamos, então, a fazer

uma comedida análise doutrinária e jurisprudencial sobre o tão festejado tema.

Andreas Krell apud Sarlet (2008, p. 29) afirma que a teoria da reserva do

possível surgiu de uma decisão do Tribunal Constitucional Alemão, em julgamento

de um caso concreto – isso ainda no ano de 1970 – no qual se digladiava a decisão

administrativa do Governo Central, de limitação de vagas nas Universidades

Públicas, e o art. 12 da Lei Fundamental Alemã, que preconiza: “todos os alemães

têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de

formação”.

Para solucionar o caso em apreço, a Corte alemã desenvolveu a teoria da

“Reserva do Possível” que, logo em seguida, fora epitetada de “teoria da restrição”

ou de “numerus clausulus”.

Visando encontrar um ponto de equilíbrio, o Tribunal Constitucional Alemão,

identificou, entre as partes, um ponto de convergência e outro de distensão.

O de convergência seria a própria vaga nas universidades públicas, visto que,

enquanto uma parte reivindicava uma vaga, a outra afirma que essa vaga existia,

mas em número finito, de modo que os interessados deveriam entrar em processo

de concorrência pública, com vistas a ocupar as vagas oferecidas.

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Já o ponto de distensão, entre vários outros argumentos desferidos pelo

Governo Alemão, encontrava-se as limitações financeiras para custear todos os

direitos sociais, tendo em vista que, além da educação, o governo também iria se

preocupar com a saúde e as condições de bem-estar do povo Alemão.

Como assevera os professores Krell e Fabbris (2002, p. 61),

vários autores brasileiros tentam se valer da doutrina constitucional alemã para inviabilizar um maior controle das políticas sociais por parte dos tribunais. Essa posição é discutível e, na verdade, não corresponde às exigências de um Direito Constitucional Comparado produtivo e cientificamente coerente.

Para Lima e Melo (2011), a toria da Reserva do Possível é um instituto falido.

Tendo em vista que, primeiro, foi importado para um pais que tem dimensões

continental, populacional, econômica e cultural absolutamente dissemelhante e,

segundo, porque o “transporte” de uma tese de educação para saúde, esta como

condição sine qua non para a própria vida, sendo, no mínimo, desarrazoado.

Nesse sentido, cite-se a conceituação dos dois autores:

O Princípio da Reserva do Possível consiste em uma falácia decorrente de um Direito Constitucional Comparado equivocado, na medida em que a situação social brasileira não pode ser comparada àquela dos países membros da União Europeia (máxima do Princípio da Igualdade Material). Devemos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social com milhões de cidadãos socialmente excluídos, um grande contingente de pessoas que não acha uma vaga nos hospitais mal equipados da rede pública, crianças e jovens fora da escola, deficiência alimentar, subnutrição e morte (LIMA; MELO, 2011, p.1).

Lima e Melo (2011) lembram que sistema jurídico alemão se volta para uma

população bem menor que a nossa, enquanto os brasileiros são milhões vivendo

abaixo da linha da pobreza, ressaltando que nem todos são atendidos em termos de

direitos sociais, pois falta vaga nos hospitais, equipamentos (e aqueles em uso,

muitas vezes, mal funcionam), crianças e jovens estão fora da escola, carecendo de

alimentos, o que corrobora com a existência de subnutrição e morte.

Na mesma linha de raciocínio, o jurista Cunha Junior (apud LIMA; MELO, 2011,

p.1), afirma que

nem a reserva do possível, nem a reserva de competência orçamentária do legislador pode ser invocado como óbices, no direito brasileiro, ao reconhecimento e à efetivação de direitos sociais originários a prestações. O Princípio da Reserva do Possível

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demonstra um limite à validade dos direitos fundamentais e direitos sociais.

Conforme pontua o Ministro Celso de Melo, durante o Julgamento do Recurso

Extraordinário de nº 711775-SC,

Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246-MC/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”, e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas. Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, ‘Comentários à Constituição de 1988’, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Sensível a resolução do caso concreto, o Ministro desfere ácidas críticas a omissão

propositada do Poder Público em não efetivar as regras do art. 196 da CR/88. Ei-la:

Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recuperação –, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República.

O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias

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governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, ‘Poder Constituinte e Poder Popular’, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) –, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.

Firme no que defendia, o Ministro apela para a abolição do lirismo jurídico

contido nos textos de lei, pois a norma não seria um quadro a ser adornado por

penas de ouro, mas um pacto que o gestor deve cumprir.

Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar, por relevante, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante. (STF - RE: 711775 SC, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 22/10/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-241 DIVULG 06-12-2013 PUBLIC 09-12-2013).

Com efeito, durante os primeiros passos da década de 70, no século XX, a

doutrina constitucionalista alemã começou a debater a temática da concretização

dos direitos sociais e o custo financeiro dessa tarefa ao Estado Social. Dentre eles,

destacaram-se Peter Haberle, que desenvolveu a doutrina da “reserva das caixas

financeiras”, aduzindo que a efetivação dos direitos sociais se encontra

umbilicalmente interligada à competência financeira e orçamentária do estatal, não

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medindo uma contraprestação financeira do Erário Público; e W. Martesn, quando

explicou que os direitos subjetivos sociais não podem ser outorgados de forma

ilimitada, mas com certas restrições, encontrando óbice na capacidade financeira do

Estado (CANOTILHO, 2008, p. 106-107).

Até então, tal tema tem ostentado grande importância e fomentado o debate

doutrinário, haja vista a expansão das demandas judiciais, nas quais o Estado

encontra-se coagido, por meio de uma ordem judicial, a concretizar direitos sociais,

inclusive os que estão fora do orçamento público ou, até mesmo, sem uma fonte de

custeio prévio (BITTENCOURT; GRAÇA, 2008).

Nessa perspectiva, Canotilho (2008, p. 108) afirma que a reserva do possível,

a efetividade dos direitos sociais, se caracteriza pelos seguintes requisitos:

a) pela gradatividade ou gradualidade na sua realização; b) pela dependência financeira do orçamento público; c) pela tendencial liberdade de conformação pelo legislador em relação às políticas públicas a serem assumidas (as políticas de realização destes direitos); d) pela insuscetibilidade de controle jurisdicional dos programas político-legislativos, a não ser quando estes se mostram em clara contradição com as normas constitucionais ou quando manifestamente desarrazoados.

Não obstante, explica de Barcellos (2002, p. 245-246):

A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

Sendo importante mencionar o conceito trazido pelo Ministro Celso de Mello,

na Decisão Monocrática da Medida Cautelar em Arguição de descumprimento de

preceito Fundamental nº 45 (ADPF 45), que indica que os regulamentos

determinados pela teoria da reserva do possível, ao procedimento oneroso de

implementação dos direitos de segunda geração, configuram um binômio que

abrange: a razoabilidade de pleito individual-social deduzida em face do Estado e a

realidade financeira do Estado, em dispor de verbas capazes de efetivar as

prestações positivas dele requeridas. Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello

afirma que a teoria da reserva do possível não pode ser arguida pelo Estado, sob o

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pretexto de eximisse do cumprimento de seus deveres constitucionais,

especialmente quando, do ato governamental, resultar violação de direitos

fundamentais.

Percebe-se, portanto, que a reserva do possível significa um paradoxo,

porque da mesma forma que representa um conceito limitador jurídico-fático ao

exercício dos direitos fundamentais, também funciona como uma garantia da

máxima eficácia e efetividade destes direitos, porque garante, a partir de uma

política universal de controle, que toda sociedade possa se beneficiar desses

direitos prestacionais do Estado, impedindo que um particular, de forma individual,

possa prejudicar toda a coletividade, exercendo desproporcionalmente um direito

social, salvaguardando uma parcela mínima dos direitos fundamentais.

Tendo em vista que, os recursos públicos são extremamente escassos e

limitados, bem como, devem obedecer aos parâmetros orçamentários, e os gastos

públicos não se resumem apenas ao aspecto concretizador dos direitos sociais,

tornando-se imprescindível a implantação de condições mínimas de

desdobramentos da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial)

(COMPARATO, 2010).

Portanto, a faceta mínima dos direitos sociais é denominada de “mínimo

existencial”, que, conforme Canotilho (1999, p. 203),

Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights) na ausência do qual o estado português deve se considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas.

A esse respeito, Barcellos (2002, p. 246) ensina que

A meta central das Constituições modernas e da Carta de 1988 em particular, pode se resumida (...) na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições da própria dignidade (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.

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Em contrapartida, ainda permanece a busca incessante sobre a plausividade

jurídica do que se convencionou por mínimo existencial. Ora, que Estado é esse que

descura da obrigação do controle de política de natalidade, de orientação

educacional e de contingenciamento populacional, mas restringe o acesso a saúde e

a educação por vias oblíquas?

Sem exercício de lógica e inteligência logo se deduz que o Estado brasileiro

se apresenta multifacetado, porque, se, de um lado, o país é subscritor de

convenções e pactos internacionais sobre direitos humanos, constituindo normas

“supralegais, segundo o STF, por outro – vias processuais –, no trato da relação

vertical entre Estado e cidadão, se omite e mais: se opõe a efetivação dos direitos

fundamentais com toda uma carga ideológica mitigatória.

Mesmo com a engenhosidade suscitadas nas defesas dos entes federados,

como é o caso de importação de teorias – reserva do possível e intangibilidade do

mínimo existencial –, da eleição de normas programáticas, do princípio da

separação dos poderes, o que se verifica até o presente momento é que, o poder

judiciário tem se agigantado e se transformado em vetor de inclusão social ao

rechaçar.

4.2. ANÁLISE DE CASO: PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE VERSUS UNIÃO FEDERAL, EM QUE SE INVOCOU A RESERVA DO POSSÍVEL EM PROL DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

O presente estudo de caso refere-se ao caso no qual o Município de Campina

Grande, Paraíba, foi impelido a assumir perante a União, no dia 31 de janeiro de

2000, um débito de R$ 24.158.467,15 (vinte e quatro milhões, cento e cinquenta e

oito mil, quatrocentos e sessenta e sete reais e quinze centavos).

Evidencie-se que em 15 de dezembro 1999, o citado município celebrou com

a União, tendo o Banco do Brasil S.A. como órgão interveniente, o “Contrato de

Confissão, Consolidação e Refinanciamento de Dívidas”, por meio do qual o

Governo Federal assumiu diversas dívidas do Município, com instituições bancárias

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internacionais, que totalizavam o montante de R$ 24.158.467,15 (vinte e quatro

milhões, cento e cinquenta e oito mil, quatrocentos e sessenta e sete reais e quinze

centavos).

De acordo com o disposto no contrato administrativo lavrado, a dívida seria

paga em 360 (trezentas e sessenta) prestações mensais e sucessivas, vencendo-se

a primeira em 10 de janeiro de 2000 e as demais no mesmo dia dos meses

subsequentes.

Celebrado o Contrato, tiveram início, em 10 de janeiro de 2000, os

pagamentos por parte do Município, cujas parcelas eram calculadas, mês a mês,

mediante a aplicação da Tabela Price sobre o saldo devedor.

Em 26 de abril de 2000, foi celebrado um Termo Aditivo ao referido Contrato,

por meio do qual a União assumiu uma nova dívida do Município, no valor de R$

1.143.984,80 (um milhão, cento e quarenta e três mil, novecentos e oitenta e quatro

reais e oitenta centavos).

E, finalmente, em 04 de maio de 2000, foi celebrado um Segundo Termo

Aditivo ao referido Contrato, por meio do qual o Município optou pela redução da

taxa de juros de 9% a.a. para 6% a.a., comprometendo-se a amortizar 20% do saldo

da dívida em um prazo de trinta meses.

Em março de 2007, o Município solicitou ao Banco do Brasil um extrato do

financiamento, para saber o quanto ainda era devido. Tal não foi a sua surpresa,

quando recebeu uma planilha que demonstrava que, decorridos pouco mais de sete

anos dos trinta de vigência contratual, apesar de já ter desembolsado mais de R$

25.700.000,00 (vinte e cinco milhões e setecentos mil reais), o Município de

Campina Grande continuava, em 2007, com um saldo devedor de mais de R$

53.000.000,00 (cinquenta e três milhões de reais).

Como a dívida, nos termos em que estava sendo calculada pela União e pelo

Banco do Brasil, era impagável. Em 17 de maio de 2007, o Município ajuizou uma

Ação Cautelar contra a União e o Banco do Brasil, seguida de uma Ação Ordinária,

com o objetivo de questionar o valor do saldo devedor do referido contrato.

A referida ação ordinária foi julgada parcialmente procedente pelo MM. Juízo

da 6ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Campina Grande, tendo sido

reformada a sentença pelo Eg. TRF da 5ª Região, que julgou os pedidos

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improcedentes. O Município, então, interpôs um Recurso Especial, que foi admitido

pela Vice-Presidência desse Eg. Tribunal, estando o referido Recurso, atualmente,

em tramitação perante o C.STJ.

Em um primeiro momento, em virtude de decisão proferida nos autos da

referida ação cautelar pelo MM. Juízo da 6ª Vara Federal da Subseção Judiciária da

Paraíba; em um segundo momento, em virtude de decisão proferida pelo Emérito

Magistrado da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, nos autos de

um Mandado de Segurança impetrado; por fim, em virtude de decisão exarada pelo

Superior Tribunal de Justiça.

No dia 30 de abril de 2013, o Relator do Recurso Especial interposto pelo

Município entendeu por bem negar seguimento ao mesmo, tendo, no dia 29 de maio

daquele ano, tornado sem efeito a medida liminar concedida nos autos da Ação

Cautelar nº 17.817/PB e negado seguimento à mesma.

Tendo sido notificados da referida decisão, a União e o Banco do Brasil

corrigiram o saldo devedor do contrato, segundo critérios desconhecidos pelo

Município de Campina Grande, tendo chegado a um valor de R$ 117.029.432,19

(cento e dezessete milhões vinte e nove mil, quatrocentos e trinta e dois reais e

dezenove centavos), dos quais R$ 51.568.247,51 (cinquenta e um milhões,

quinhentos e sessenta e oito mil, duzentos e quarenta e sete reais e cinquenta e um

centavos), referem-se às parcelas não pagas no período entre 2007 e 2013.

Ato contínuo, a União e o Banco do Brasil transferiram das contas bancárias

municipais para a conta do Tesouro Nacional R$ 1.854.899,81 (hum milhão,

oitocentos e cinquenta e quadro reais e oitenta e um centavos), no dia 29 de maio

de 2013, e outros R$ 249.774,43 (duzentos e quarenta e nove mil, setecentos e

setenta e quadro reais e quarenta e três centavos), no dia 04 de junho de 2013.

No dia 20 de junho de 2013, a União efetuou um novo bloqueio nas contas

municipais, agora no valor de R$ 776.679,55 (setecentos e setenta e seis mil,

seiscentos e setenta e nove reais e cinquenta e cinco centavos).

Em menos de um mês, foram sequestrados e transferidos, automaticamente,

das contas públicas municipais para a conta do Tesouro Nacional, nada menos do

que R$ 2.881.353,79 (dois milhões, oitocentos e oitenta e um mil, trezentos e

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cinquenta e três reais e setenta e nove centavos – R$ 1.854.899,81 + R$ 249.774,43

+ R$ 776.679,55).

Como o valor bloqueado correspondia a mais de 1/3 da receita do FPM do

mês de maio, que foi de R$ 6.293.884,85 (seis milhões, duzentos e noventa e três

mil, oitocentos e oitenta e quatro reais e oitenta e cinco centavos), a continuidade da

prestação de serviços públicos municipais essenciais como saúde, educação e

assistência social pela Edilidade restou inviabilizada, razão pela qual não restou

outra alternativa ao Município, senão ajuizar uma ação ordinária de obrigação de

fazer e não fazer com o intuito de regularizar e ordenar a retomada dos pagamentos

das parcelas do referido contrato, de forma a que as finanças municipais não fossem

levadas a um colapso, mercê da nova ordem jurídica estabelecida após a subscrição

do último contrato.

Desse modo, por meio da ação de obrigação de fazer e não fazer, o Município

requereu, em suma, que: (i) o montante relativo ao período de 2007 a 2013, que foi

calculado, unilateralmente, pela União e o Banco do Brasil em R$ 51.568.247,51,

fosse retirado do saldo devedor do contrato e liquidado nos termos do artigo 811,

parágrafo único do Código de Processo Civil, que determina que os prejuízos

sofridos pelo União em ações cautelares devem ser liquidados nos autos da própria

ação cautelar; (ii) a nova parcela a ser paga pelo Município doravante fosse

calculada sem tal montante; e (iii) que da Receita Líquida Real – RLR está

literalmente dividida nos seguintes percentuais, a saber: 25% (vinte e cinco por

cento) da RRL deve ser investido pelo Município em Educação, por força do que

dispõe o art. 212 da CR/88; 15% (quinze por cento) deve ser investido na Saúde, por

força do que dispõe o art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da

CR/88; e mais 5% (cinco por cento) deve ser destinado para a Câmara dos

Vereadores, por força do que dispõe o art. 29-A, III, da CR/88.

Foi argumentado que, além dos compromissos constitucionais, é preciso

lembrar que a Administração Pública é feita de pessoas, sem as quais a máquina

pública não se move e os serviços públicos não são prestados.

Atualmente, 49% (quarenta e nove por cento) da RLR do Município vai para o

pagamento da folha de pessoal, sem a qual os demais serviços públicos não podem

ser prestados ou executados. Note-se, ainda, que, além de ser imprescindível, o

gasto com a folha tem natureza alimentícia, estando o percentual de 49% dentro do

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limite estabelecido no art. 20, III, b, da Lei Complementar 101/2000 e 1% para

precatório judicial (cf. impõe o art. 97, II, “a” da CR/88, alterado pela Emenda

Constitucional 62, de 09 de novembro de 2009).

Dessa forma, na prática, essas despesas – obrigatórias segundo a

Constituição – consomem 95% (Noventa e Quatro por Cento) da RLR do Município,

remanescendo 5% (cinco por cento) para o pagamento de todas as demais

despesas municipais como INSS, FGTS e PASEP, etc.

Note-se, que a situação é tão absurda que, caso o Município seja obrigado a

continuar sendo saqueado em 17% da RLR com o pagamento do Contrato de

Financiamento, o Ente municipal deve escolher: ou deixar de pagar a folha ou deixar

de investir em saúde ou deixar de investir em educação ou deixar de repassar o

duodécimo à Câmara. Ou seja, ou se cumpriria um contrato de 2000, feito em uma

outra ordem jurídica ou a Constituição Federal com os novos comandos.

Devidamente comprovado, a reserva do possível foi usada, nesse caso, não

para mitigar direitos, mas para afirmar os direitos sócias a saúde e a educação e não

como mando limitador dessas conquistas dos movimentos constitucionais.

Antes de apreciar o pedido de antecipação de tutela formulado pelo

Município, o MM. Juízo a quo entendeu por bem conceder um prazo de 72 horas

para que a União e o Banco do Brasil – órgão interveniente e arrecadador - se

manifestassem.

Em sua manifestação, a União defendeu a tese de que a execução das

garantias contratuais não tem limite algum, razão pela qual ela poderia executá-las

imediata e integralmente, até o que o saldo devedor do contrato fosse quitado.

Por meio da decisão interlocutória, o MM. Juízo rechaçou essa tese da União,

reconhecendo que “a execução das garantias não pode englobar ilimitadamente

todas as receitas do Município, mas deve respeitar sua capacidade de

endividamento, assim entendida como um percentual incidente sobre a Receita

Líquida Real. Portanto, em vista da inadimplência, deve ater-se a aplicar o limite

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mensal de 1/12 um doze avo) de 17% (dezessete por cento) da sua Receita Líquida

Real – RLR”25.

E, quanto aos demais pedidos formulados pela Edilidade, em especial o que

se referia à retirada do montante referente às parcelas de 2007 a 2013 do saldo

devedor e a determinação de sua liquidação nos autos da ação cautelar, o Juízo a

quo entendeu por extinguir a ação sem julgamento de mérito com relação a tais

pedidos, por entender que “falece a este juízo competência para apreciar a maior

parte dos pedidos deduzidos pelo município, autor na presente ação, pois, se assim

o fizer, estará usurpando a competência do Superior Tribunal de Justiça – STJ”26

Após a primeira decisão, em 20 de junho de 2013, a União e o Banco do

Brasil efetuaram novo bloqueio nas contas municipais, no valor de R$ 776.679,55

(setecentos e setenta e seis mil, seiscentos e setenta e nove reais e cinquenta e

cinco centavos), totalizando, assim, R$ 2.881.353,79 (dois milhões, oitocentos e

oitenta e um mil, trezentos e cinquenta e três reais e setenta e nove centavos) em

bloqueios levados a cabo em menos de 30 dias (R$ 1.854.899,81 + R$ 249.774,43 +

R$ 776.679,55).

Em virtude desse novo bloqueio, o Município apresentou, perante o MM.

Juízo, um pedido de reconsideração, requerendo que: (i) os Agravados – A União e

o Banco do Brasil – fossem impedidos de efetuar novos bloqueios nas contas

municipais; (ii) que os Agravados fossem obrigados a devolver aos cofres públicos

municipais os valores que excederam a R$ 195.555,46 nos meses de maio e junho,

valor este igual a 17% de 6% da RLR utilizada pela União para efetuar os bloqueios,

e (iii) que a exordial da ação originária fosse recebida em sua integralidade, de

forma a que os demais pedidos pudessem ser apreciados e deferidos, em especial

os relativos à sujeição do período de 2007 a 2013 ao regime previsto no art. 811 do

CPC e no art. 100 da CF/88.

Em sede de reconsideração, o Juízo a quo impediu as Agravadas de efetuar

novos bloqueios por um prazo de 30 dias, tendo, contudo, indeferido os demais

25 Ação Ordinária nº 0001195-25.2013.4.05.8201, em curso da 4ª Vara Federal em Campina Grande – Estado da Paraíba. 26 Ação Ordinária nº 0001195-25.2013.4.05.8201, em curso da 4ª Vara Federal em Campina Grande – Estado da Paraíba.

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pedidos, por entender haver litispendência entre tais pedidos e os formulados em

outros processos, ajuizados anteriormente pelo Agravante contra os Agravados.

Ao analisar o recurso de agravo de instrumento interposto, o Eminente

Desembargador Federal Elío Siqueira (convocado), considerando a jurisprudência

pátria, que estabelece limites para os bloqueios de contas e de repasses do FPM,

principalmente, quando estes bloqueios impedem que as respectivas edilidades

possam concretizar os serviços públicos essenciais, levando em consideração ainda

que os adimplementos contratuais por parte dos entes públicos devem respeitar a

autonomia de cada ente, sobretudo no que tange à consecução dos serviços

públicos, concedeu parcialmente provimento ao agravo para determinar que o valor

das parcelas seja limitado em 17% de 5% da RLR do Município de Campina Grande,

para que os descontos não respingassem nos percentuais constitucionais.

Eis a parte final decisão27: “Nesse sentido, para que seja preservada a

autonomia do Município/Agravante e para que este possa manter o funcionamento

adequado básico, entendo que merece acolhida, em parte, o pleito formulado, haja

vista que a manutenção do bloqueio, da forma como determinou a decisão

agravada, pode causar danos irreparáveis aos munícipes (...) Com essas breves

considerações, portanto, DEFIRO, EM PARTE, o pedido formulado pelo Agravante,

apenas para que o valor das parcelas seja limitado a 17% de 5% da RRL do

Município. Dê-se ciência desta decisão ao MM. Juiz a quo que, se assim houver por

bem, poderá oferecer, a tempo e modo, as ‘informações’ que reputar interessantes

para o julgamento deste Agravo.(...) Intime(m)-se o(a)(s) Agravado(a)(o)(s) para, em

querendo, apresentar(em) a contraminuta, no prazo da Lei. Expedientes. Cautelas.

P.I. Recife(PE), 18 de julho de 2013 – Desembargador Federal Élio Siqueira (Relator

Convocado)”

Observa-se que, ao se deparar com a ordem de bloqueio de 17% sobre a

Receita Líquida Real, índice este ajustado no ano de 2000, logo se verificou que o

ordenamento constitucional foi alterada para fatiar em percentuais 25% (vinte e

cinco por cento) da RCL para Educação, 15% (quinze por cento) para a saúde, 5%

(cinco por cento) para o duodécimo da Câmara dos Vereadores, 49% (quarenta e

nove por cento) para pagamento da folha de pessoal e 1% para precatório judicial

27 Agravo de Instrumento nº 133362-PB (0006994-14.2013.4.05.0000)

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96

(cf. impõe o art. 97, II, “a” da CR/88, alterado pela Emenda Constitucional 62, de 09

de novembro de 2009).

Ora, ressalta-se mais uma vez que, na prática, essas despesas – obrigatórias,

segundo a Constituição – consomem 95% (Noventa e Quatro por Cento) da RCL do

Município, remanescendo 5% (cinco por cento) para o pagamento de todas as

demais despesas municipais.

Portanto, visando preservar as políticas públicas deveria ser aplicado o

percentual de 17% (dezessete por cento) sobre 5% (cinco por cento) da RCL, já que,

os demais percentuais, por força da nova ordem jurídica, encontram-se devidamente

comprometido.

Entretanto, caso o Município deixasse de investir os percentuais mínimos em

educação e saúde, o atual Prefeito teria as suas contas rejeitadas pelo Tribunal de

Contas do Estado, sofrendo as graves consequências previstas na conhecida “Lei

da Ficha Limpa”.

Tendo em vista que, caso o Prefeito deixasse de repassar à Câmara

Municipal o duodécimo em sua integralidade, estaria sujeito a ser processado por

crime de responsabilidade, nos termos do art. 29-A, §2º, da CR/88.

Percebe-se, assim, que nenhuma dessas alternativas é minimamente

aceitável.

Porquanto, restou-se claro que, em que pese o fato do percentual de 17% da

RCL estar previsto no Contrato de Financiamento e na MP 1.891-10/1999, existem

obrigações de natureza alimentar e outras previstas na própria Constituição da

República que devem, evidentemente, prevalecer sobre o pagamento das parcelas

do referido Contrato.

Ora, sendo direto: o que o município faria? Cumprir um contrato, feito em

outra realidade econômica/jurídica com flagrante onerosidade excessiva ou a

constituição federal?

Como solucionar essa questão?

Em Direito, sabe-se que situações excepcionais devem ser tratadas de forma

excepcional. Esta foi uma dessas situações, que demandava um tratamento

totalmente diferenciado, cuja solução não estaria na interpretação da letra fria do

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Contrato de Financiamento, devendo ser buscada no ordenamento jurídico como um

todo, no qual o Contrato está inserido, e, especialmente, à luz de princípios maiores

como os do interesse público, da razoabilidade e da proporcionalidade.

A saída encontrada pelo Município e proposta por meio da ação originária foi

dar, ao período de 2006 a 2014, no qual os pagamentos não foram feitos com base

em decisões judiciais, um tratamento específico, permitindo, assim, que, a partir da

revogação da última decisão judicial que suspendia a exigibilidade das mesmas, o

pagamento das prestações do Contrato fosse retomado com base no saldo devedor

de 2006, o que levaria a uma prestação muito menor do que R$ 158.545,09, ou

aplicar, em homenagem à teoria da reserva do possível, os 17% sobre os 5% da

RLR.

Diante desse confronto – o contrato com a nova ordem constitucional –

buscou a Edilidade, excepcionalmente, invocar a reserva do possível, como forma

de solucionar o litigio, sugerindo a aplicação dos 17% previstos no contrato, aos

valores remanescentes da RCL que não estão reservados em lei. Ou seja, 17%

sobre 5% que não estão reservadas às políticas sociais do ente municipal.

O pleito foi acatado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para baixar

uma prestação mensal de R$5.600.000,00 (cinco milhões e seiscentos mil reais),

para pouco mais de R$83.000,00 (oitenta e três mil reais).

Isto posto, a reserva do possível foi usada não como manto mitigador dos

direitos sociais, como usado a exaustão pelos tribunais superiores, mas, ao revés,

como forma de preservar os percentuais constitucionais que, em tese, seriam para

custear a saúde, educação etc.

4.3. RESERVA DO POSSÍVEL E AUTONOMIA DO ENTE FEDERADO

O artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

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I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Evidencie-se que esse artigo pode ser dividido em três partes

contextualizadas: a primeira, discorre sobre os princípios fundamentais dos Estados

e de seu governo; a segunda, define os fundamentos da república e, dentre eles,

observa-se “a dignidade da pessoa humana”; e, a terceira, estabelece as bases do

regime adotado.

Segundo Silva (2012, p. 34)

o valor normativo [desse] artigo consiste na definição de vários princípios conformadores do ordenamento constitucional brasileiro, dos quais decorre a previsão de outros princípios de grau secundário referente a cada uma das instituições definitivamente estabelecidas no dispositivo: a Federação, que gera o princípio da autonomia das entidades-membros (v. art. 34, I, II e VII, Título III, e a República, com seus princípios (v. art. 34, VII, “a”, “b” e “d”) e a organização de seus Poderes constante do Título IV; e o regime político com seus valores traduzidos na declaração dos direitos fundamentais da pessoa humana, arrolado no título II [grifos nossos].

Extrai-se ainda da fonte acima mencionada que

o artigo definido ‘a’ na expressão ‘a República Federativa do Brasil’ que inicia o articulado da Constituição, tem função sintática de referência histórica. Exprime um juízo de preexistência que denota que a Constituição não instituiu a República Federativa, mas a tem como um signo do passado e como tal a recebe e pereniza (SILVA, 2012, p. 34).

Ora, dessa “perenização” vislumbrada por Silva (2012) se faz a seguinte

inferência: o Brasil é uma república e também uma federação formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal com autonomia

administrativa e financeira.

O vocábulo “autonomia” possui várias acepções e significados, mas, dentro

do contexto em lume, consubstancia o significado de quem tem a faculdade de se

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governar por si mesmo.28 Por sua vez, Cosetta (2001, p. 106) leciona que “a

autonomia é prerrogativa política conferida pela Constituição da República

Federativa do Brasil a entidades estatais internas para formalizar o seu autogoverno

e prover sua Administração conforme a Lex Mater”.

Por esta razão, a Constituição assegurou a autonomia dos entes federados,

garantindo que o interesse local não será olvidado por incursões de outros entes

(MEIRELLES, 2007). A autonomia municipal é condição sine qua non para a

preservação do federalismo pátrio. Tanto é verdade que sempre esteve implícito no

sistema federativo brasileiro, acarretando o que, doutrinariamente, se denomina de

federalismo de terceiro grau.

Nesse sentido, a Constituição de 1988, plasmou o princípio da autonomia dos

municípios na Ordem Jurídica brasileira, emoldurando no Título III, Capítulo I, da

Organização Político-Administrativa, art. 18, cuja disposição é a seguinte:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. § 1º Brasília é a Capital Federal. § 2º Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar. § 3º Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar. § 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 15, de 1996) Vide art. 96 – ADCT

Com efeito, deve ser advertido que, hodiernamente, o Município assume

todas as vertentes de um ente federado, seja na organização dos serviços públicos

de interesse locais, seja na tutela ambiental de sua área, proporcionando o bem-

estar aos seus habitantes (MEIRELLES, 2007).

28 Segundo o dicionário Aurélio Buarque de Holanda (2001): “1.Faculdade de se governar por si mesmo; 2.Direito ou faculdade de se reger (uma nação) por leis próprias; 3. Condição pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta”.

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Portanto, os Municípios são entes federados de terceiro grau, uma vez que a

Constituição outorgou aos mencionados entes sua respectiva autonomia municipal,

nos três aspectos: político, administrativo e financeiro.

Em relação ao aspecto financeiro, que se enquadra a teoria da reserva do

possível, deve-se estabelecer um limite para os gastos com a concretização dos

direitos sociais e as implementações de políticas públicas, sob pena de não se

respeitar a autonomia financeira do Município, impedindo que o mesmo execute

seus serviços públicos essenciais e arque com suas despesas básicas.

4.4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E DO MÍNIMO EXISTENCIAL

Como mencionado no subitem 4.1, deste capítulo, a teoria da reserva do

possível foi incorporada ao repertorio jurisprudencial brasileiro por intermédio de um

voto do Ministro Carlos Britto, nos autos da Ação Cautelar 2.442-1 -RS, em que

o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul da comarca de Getúlio Vargas ingressou com Ação Civil Pública n. 050/1.07.0002799-2 contra o Estado do Rio Grande do Sul e contra a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, visando à implantação, naquela comarca, de atendimento em caráter de plantão 24 horas, nos sete dias da semana.

O magistrado de 1º grau deu ganho de causa ao Ministério Público para

assegurar, em nome da dignidade da pessoa humana, a implantação de

atendimento da Defensoria Pública em regime de plantão de 24h.

Entretanto, embora o Estado do Rio Grande do Sul tenha interposto apelação

ao Tribunal de Justiça Local, seu apelo não foi provido. Conduzindo o Estado, a

apresentar recurso extraordinário, que, por sua vez, foi inadmitido. E, por isso,

protocolou no Supremo Tribunal Federal, uma ação cautelar visando imprimir efeito

suspensivo a decisão de primeiro grau em face da agressão a economia, pautado no

argumento da teoria da reserva do possível e da interferência do poder judiciário

sobre o poder executivo.

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101

A respeito da teoria da reserva do possível, o constitucionalista português

José Joaquim Gomes Canotilho, voraz crítico dessa teoria, taxando-a de “reserva

dos cofres cheios”, afirma:

rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica (CANOTILHO, 2004, p. 481).

Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal tem discutido a temática com a

perspectiva de que, uma vez provada a ausência de recursos por parte do ente

federado, deve ser aplicada a reserva do possível. Entretanto, de todas as decisões

do STF, até então catalogadas neste trabalho, a Corte passou longe de mitigar

direitos a saúde e a educação com esteio na reserva do possível, senão vejamos.

No julgamento do Agravo nos autos do Recurso Extraordinário – ARE

745745/MG, em que o Município de Belo Horizonte foi o agravante e o Ministério

Público do Estado de Minas Gerais, o agravado, o Plenário do Supremo Tribunal

Federal, sob relatoria do ministro Celso de Mello, assentou que a manutenção de

rede de assistência da criança e do adolescente é dever do Estado, resultante

diretamente de norma constitucional. Nesse sentido, reconheceu-se a omissão

inconstitucional do Município em manter a rede de assistência à saúde da criança e

do adolescente. Inversamente, consignou-se que o Município não pode invocar a

teoria da reserva do possível, tendo em vista, o núcleo básico que qualifica a mínima

existência.

Demonstrando a essencialidade do direito à saúde, através da legitimação da

atuação do Poder Judiciário para intervir nos casos, em que o Poder Executivo,

anomalamente, ostenta uma postura omissa em relação as políticas públicas

relevantes. Com efeito, atestou-se o papel do Poder Judiciário na afirmação das

políticas públicas, consignadas pela Constituição Federal de 1988, no tocante as

hipóteses em que os entes políticos, injustificadamente, deixam que cumprir os

preceitos fundamentais tutelados pela constituição.

Nesse sentido, pontuou o Ministro Celso de Mello que a matéria central a ser

observada é averiguar se se revela possível ao Poder Judiciário, sem afrontar ao

axioma da separação de poderes, impor ao ente público, quando este permanecer

inerte ao cumprimento de políticas públicas protegidas pela constituição, a adoção

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de diligências destinadas a garantir o acesso e o gozo de direitos abalados pela

inadimplência governamental de deveres jurídico-constitucionais.

Assim, consignou-se a atividade fiscalizatória judicial, com apanágio nos

preceitos constitucionais da proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo

existencial, vedação da proteção insuficiente e vedação de excesso.

Ora, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manteve incólume o acórdão

proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas, que garantiu a interferência

do Poder Judiciário para instrumentalizar a respectiva política pública de saúde,

garantindo ao cidadão o acesso ao serviço médico necessário.

Corroborando com esse entendimento, tem-se o acórdão proferido pelo STF,

em julgamento do Recurso Extraordinário 581.352, sob relatoria do Ministro celso de

Mello, em que o Estado do Amazonas (agravante) recorreu da decisão que

conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário pleiteado pelo Ministério

Público estadual (agravado).

Do julgamento desse Recurso Extraordinário, a Segunda Turma do STF, sob

presidência da Ministra Cármen Lúcia, acordou, por unanimidade, em negar

provimento ao agravo regimental, mantendo a decisão que determinava que o

Estado do Amazonas, não apenas prestasse os serviços de saúde, como também,

ampliasse a assistência da maternidade infantil.

No entendimento do Ministro/Relator Celso de Mello, caracteriza-se

incontestável a legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizar ação civil pública

pretendendo tutelar direitos coletivos revestidos relevância social. No caso em

comento, o Ministério Público objetivava resgatar o desrespeito a direitos

fundamentais de parturientes e neonatos, que estão recebendo atendimento

hospitalar irregular, decorrente de omissão do Estado e falta de estrutura na rede

pública de saúde. Portanto, cumpre assegurar o direito à saúde, marcadamente

expresso no artigo 196, da Constituição Federal de 1988.

Ora, mantendo parecer nesse mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello,

enquanto relator do Recurso Extraordinário 655.452, cujo o agravante foi o Ministério

Público do Estado de Minas Gerais em face do, então agravado, Munícipio de Piau,

entendeu por dá provimento ao recurso, reformando o acórdão proferido pelo

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que havia decidido pela

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impossibilidade pelo Poder Judiciário de, em face do princípio da separação dos

poderes, determinar a construção de cheche no Município de Piau.

Para o Ministro Celso de Mello, garantir o direito de crianças de até cinco

anos de idade serem atendidas e matriculadas em creche e em pré-escola, próximas

de sua moradias ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, é preceito

assegurado no artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal, que protege o direito

de educação infantil às crianças. Sendo, portanto, dever legal-constitucional do

Município a criação de políticas públicas no sentido de concretizar tal mandamento

constitucional.

Em que, no caso em apreço, atestando-se a inércia e a omissão do Município,

torna-se imprescindível a intervenção do Poder Judiciário para se preservar os

direitos constitucionais objurgados, principalmente dos hipossuficientes.

Reafirmando-se a compreensão consolidada de que o ente público não deve evocar

a formula da reserva do possível para justificar o inadimplemento de efetivação de

políticas públicas básicas por parte do Poder Executivo, retirando o caráter cogente

dos direitos fundamentais.

Restando, ao Poder Judiciário, a competência do controle jurisdicional de

legitimidade das omissões incorridas pelo Poder Público, tendo em vista, a

necessidade de observância de parâmetros constitucionais, como a proibição do

retrocesso social, proteção ao mínimo existencial e a vedação da proteção

insuficiente.

Pode-se perceber que o preenchimento das lacunas institucionais decorrentes

das necessidades institucionais, calcadas em decisões afirmativas dos magistrados

e tribunais brasileiros resultam em uma auspiciosa e inovadora criação

jurisprudencial do direito, a ensejar desmedidos freios e contra pesos, vigilância do

Poder Judiciário, que se justifica pela carência de atenta observação das balizas

constitucionais mínimas.

4.5. DO JULGAMENTO DE CASO CONCRETO SOBRE A GRATUIDADE DO ACESSO A EDUCAÇÃO PELAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

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No dia 26 de abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar ao

Recurso Extraordinário 597854, da Universidade Federal do Goiás, conclui pela

possibilidade das universidades públicas cobrarem por cursos de pós-graduação lato

sensu e isso depois de ter julgado inconstitucional taxa de matrícula por instituição

de ensino superior nos autos do RE 567801/MG e também no julgamento do RE

500171, por manifesta violação ao artigo 206, inciso IV, da CR/88.

Passível de registro que alguns juízes da Corte, como foi o caso dos Ministros

Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes ainda sustentaram a ideia

inovadora das cobranças de taxas se estenderem aos cursos de pós-graduação

stricto sensu, como é o caso de mestrados e doutorados, em estabelecimentos

oficiais de ensino.

Relatam os autos, que o estudante Tiago Macedo dos Santos foi classificado

no processo seletivo promovido pela Universidade Federal do Goiás, para o

preenchimento de vagas no curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional para

o biênio 2007/2008. E, depois da publicação e homologação dos resultados da

seleção, o Agravado foi à secretária do programa de pós-graduação, com o intuito

de proceder a sua matrícula. Todavia, como pré-requisito da matrícula, foi requerido

o preenchimento de uma ficha de inscrição padronizado, o recolhimento de uma taxa

no valor de R$50,00 (cinquenta reais) e a adesão a um contrato de prestação de

serviços educacionais, que previa o pagamento de mensalidades. Evidenciando que

sem à adesão contratual, os estudantes selecionados perderiam direito à vaga.

Assim, diante da imposição feita pela Universidade Federal do Goiás, o Sr.

Tiago Macedo dos Santos impetrou mandado de segurança na 3ª Vara Federal de

Goiânia (processo nº 2007.35.00.009372-9), no dia 18 de maio de 2007, pleiteando,

em medida liminar, a suspensão da cobrança de mensalidades até o provimento

final da demanda e, no mérito, dentre outros pedidos, a concessão da segurança em

definitivo a fim de afastar a cobrança de mensalidade, por considera-la ilegal.

No dia 28 de maio de 2007, o Juiz Carlos Humberto de Sousa, denegou a

liminar (fls. 23 dos autos), argumentando, sem muitas delongas, que os precedentes

judiciais recorrentes seguem o entendimento da gratuidade dos cursos de

graduação, enquanto que de cursos de pós-graduação, a exemplo do mestrado e

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doutorado, a receita seja necessária para cobrir as despesas do custo operacional,

que correm por conta da própria instituição de ensino. E, portanto, denegou a

liminar.

Dessa decisão, foi interposto agravo de instrumento ao Tribunal Regional

Federal da 1ª Região, cuja relatoria foi do Desembargador Federal Souza Prudente,

que, após as contrarrazões apresentadas pela Universidade Federal de Goiás,

assim decidiu pelo deferimento do pedido de antecipação da tutela recursal, sob a

marca de efeito suspensivo, para cessar a cobrança das mensalidades referentes ao

curso de pós-graduação frequentado pelo ora agravado até a decisão definitiva do

pleito.

Meses após a concessão da tutela recursal, que reformava a decisão de

primeiro grau o Juiz da 3ª Vara Federal de Goiânia, na linha do que já tinha decidido,

constatou-se a ausência do direito líquido e certo do impetrante, julgando-se

improcedente o pleito inicial para denegar a segurança (fls. 100/104 dos autos).

Irresignado, o autor interpôs recurso de apelação ao Tribunal Regional

Federal da 1ª Região, visando reforma a sentença a quo e em maio de 2008, o

recurso de apelação nº 2007.3500.009372-9/GO, foi julgado procedente por

contrariar o art. 206, IV, da CR/88.

A Universidade Federal de Goiás, insatisfeita com a decisão do TRF-1º

Região, interpôs embargos declaratórios com o objetivo de prequestionar matéria de

recurso especial e extraordinário por transgressão aos artigos 205; 206, I; 208, VII; e

213, § 3", todos da Constituição Federal.

Após a rejeição dos embargos a Universidade Federal interpôs recurso

extraordinário para o Supremo Tribunal Federal que foi admitido pela Presidência da

Corte.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que as universidades públicas

poderiam sim sobrar mensalidades em curso de pós-graduação lato sensu, apesar

do voto discordante do Ministro Marcos Aurélio, que alertava que a Corte não

poderia fazer as vezes de legislador ao estabelecer a distinção entre “as esferas e

os graus de ensino que a Constituição Federal não prevê. Destacou ainda que o

inciso IV do artigo 206 da CF garante a gratuidade do ensino público nos

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estabelecimentos oficiais e que, em sua avaliação, isso é um princípio inafastável” e

que as universidades oficiais são efetivamente públicas e não “hibridas”.

A decisão do STF, abre espaço, pelo seu grau de subjetividade e de lacunas,

para se erigir diversas teses jurídicas capazes de inserir, neste contexto de cobrança

de mensalidade por estabelecimentos oficiais de ensino, que são custeadas com

recursos públicos, registre-se, dos cursos de mestrado e doutorado, ficando, os

cursos de graduação, a um passo de também seguir nesta mesma linha.

4.6 DA DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO A PACIENTES PORTADORES DE DOENÇAS RARAS

Segundo informação do Ministério da Saúde do Brasil (2016), as ações

judiciais impactam em R$ 7.000.000.000,00 (sete bilhões de reais) no Sistema Único

de Saúde29, fato que motivou o Governo Federal a promover Congressos e

Palestras em todo o Brasil sobre a gestão do SUS e as demandas de saúde na

esfera federal, estadual, distrital e municipal.

O Ministério da Saúde (2016) ainda informa que

em seis anos, os custos do governo federal destinados ao cumprimento de decisões judiciais somam R$ 3,9 bilhões. Um aumento de 727% nos gastos da União no cumprimento de ações para aquisição de medicamentos, equipamentos, insumos, realização de cirurgias e depósitos judiciais. Só neste ano30 já foram desembolsados R$ 730,6 milhões30.

Diante do acentuado valor, o Ministério da Saúde (2016) provocou a

assinatura de um termo de cooperação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

com o objetivo de oferecer

subsídios técnicos para qualificar as decisões judiciais com base em evidências científicas nas ações relacionadas à saúde no Brasil. Os Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (NATS) estarão

29 Informação fornecida no PORTAL DA SAÚDE, 2016. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/25275-ministro-da-saude-fala-sobre-impacto-de-acoes-judiciais-no-sus> Acesso em: 17/04/2017. 30 Dados do dia 24.08.2016

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disponíveis para subsidiar os magistrados e também será dado acesso às bases para análise de evidências científicas. O CNJ ainda deve disponibilizar aos magistrados banco de dados com as notas técnicas e pareceres técnico-científicos consolidados emitidos pelos NAT-JUS, TJ-MG, NATS, Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec)30.

Em pesquisa feita pela Associação da Industria Farmacêutica de Pesquisa,

Relatório Anual de Atividades (INTERFARMA, 2016, p. 35)31, constata-se que o

orçamento do Ministério da Saúde cresceu em 3% neste ano de 2017, um

percentual menor do que 2016 que foi de 24,5% e que, por sua vez, foi maior do que

12,6%, do ano de 2015.

Pelos índices colhidos por entidades públicas e privadas, logo se observa que

os orçamentos com saúde pública nas três esferas de poder, passaram a ser uma

peça com desfecho imprevisível com inegável lesão à economia pública e tudo isso

por ausência de políticas públicas previamente definidas.

Dois casos que estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal, com

três votos emitidos, sendo o primeiro do relator Marcos Auréilio, o segundo do

Ministro Luis Roberto Barroso e o terceiro do Ministro Edson Fachin, tendo, o

saudoso Ministro Teori Zavaski pedido vistas, traz a discussão a obrigatoriedade de

o Estado fornecer medicamentos de alto custo a pacientes portadores de doenças

raras, mas sem o prévio registro na ANVISA.

Os fatos, levado a Suprema Corte, remete-nos a uma reflexão sobre até onde

se encontra o respeito à dignidade da pessoa humana e o direito à vida, quando se

trata de concessão de medicamentos de alto custo e em fase de experimento, aos

portadores de doenças raras em face das peculiaridades dos casos e das limitações

financeiras do ente financiador.

Os dois recursos extraordinários tiveram repercussão geral reconhecida pelo

Ministro Relator Marcos Aurélio, sendo o primeiro – RE 566471, originário do Estado

do Rio Grande do Norte, e o segundo – RE 657718, do Estado de Minas Gerais.

No Recurso Extraordinário 566471, interposto pelo Estado do Rio Grande do

Norte (apelante) em face de Carmelita Anunciada de Souza (apelada), o apelante se

31 INTERFARMA, 2016. Disponível em: <https://www.interfarma.org.br/public/files/biblioteca/109-relatario-anual-de-atividades-site.pdf> Acesso em: 17/04/2017.

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negou a doar um fármaco denominado de Sildenafil 50mg (citrato de sildenafila), a

uma senhora carente portadora de miocardiopatia isquêmica e hipertensão arterial

pulmonar, doença essa, que causa acúmulo de muco nos pulmões e em outras

regiões do corpo humano.

O Procurador do Rio Grande do Norte argumentou que, uma vez sendo

concedido o direito ao fármaco do alto custo, além de não existir um programa de

Dispensação de Medicamentos por parte do ente estadual, o valor estrangularia o

orçamento em execução, causando grave lesão à ordem jurídica tendo em vista a

ausência de previsão de reembolso ou mesmo rateio por parte da União,

exatamente porque, a droga não consta na relação do Ministério da Saúde, motivo

pelo qual estariam malversados os artigos 2º, 5º, 6º, 196 e 198, parágrafos 1º e 2º,

da CR/88.

No mérito, o Estado do Rio Grande do Norte, suscitou a teoria da reserva do

possível em face da limitação de recursos “pois o Estado está destinando os

recursos previstos para fazer face às políticas universais de saúde ao cumprimento

das decisões judiciais que determinam o fornecimento individualizado de

medicamentos extremamente caros”32.

A recorrida, a Senhora Carmelita Anunciada de Souza, não apresentou as

contrarrazões ao recurso extraordinário e o STF, no dia 15 de novembro de 2007,

concluiu repercussão geral da temática.

Como foi reconhecida a repercussão geral, vários Estados da Federação,

Distrito e vários institutos, associações e conselhos foram admitidos como terceiros

interessados para fins de sustentação oral perante aquela corte, senão vejamos:

Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS); Defensoria Pública-Geral

da União; União; Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (ABRAM);

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Estado do Acre; Estado de

Alagoas; Estado do Amapá; Estado do Amazonas; Estado da Bahia; Distrito Federal;

Estado do Espírito Santo; Estado de Goiás; Estado de Mato Grosso do Sul; Estado

de Minas Gerais; Estado do Pará; Estado da Paraíba; Estado do Paraná; Estado de

Pernambuco; Estado do Piauí; Estado do Rio de Janeiro; Estado do Rio Grande do

32 Fls. 142, do RE 566471 - STF

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Norte; Estado de Rondônia; Estado de Santa Catarina; Estado de São Paulo; Estado

de Sergipe; Defensor Público-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

O Ministério Público Federal emitiu parecer pelo conhecimento do Recurso

Extraordinário, mas que a interposição recursiva fosse improvida.

Sete anos após o reconhecimento de repercussão geral, o Procurador do

Estado do Rio Grande do Norte atravessa uma petição nos autos informando que a

interposição recursiva perdeu o objeto, tendo em vista que o fármaco Sildenafil

50mg (citrato de sildenafila), para os portadores de miocardiopatia isquêmica e

hipertensão arterial pulmonar, passou a ser fornecido pelo Sistema Único de Saúde.

Mesmo assim, o voto do Ministro Marcos Aurélio enfocou que os direitos

fundamentais estão associados a evolução das Constituições do início do século

XVIII ao início do século XX, dentre os quais, a saúde encampa o livre acesso aos

produtos farmacológicos que tardam, minimizam e aparecem como lenitivo para as

dores dos que mais sofrem e esse direito não pode estar ao sabor do estado de

humor da autoridade pública. Argumentou, ainda, que pouco importa se a droga

estava ou não na lista de distribuição do SUS – Sistema Único de Saúde e

registrado na ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pois basta apenas

que o medicamento seja prescrito por autoridade médica competente para garantir o

direito a seu fornecimento.

Relata o Ministro Marcos Aurélio que, a sentença do Juiz de primeiro grau, foi

no sentido de conceder o medicamento e que a decisão foi mantida pelo Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Evidenciou, na parte do relatório, que da

decisão do TJRN, o Procurador Estadual interpôs recurso extraordinário, de modo

que, ao chegar no STF, foi distribuído para ele e, em face da peculiaridade do caso,

reconheceu a repercussão geral, a fim de que o STF analise as argumentações dos

entes federados que gravitam em torno da ausência de recurso financeiro, da teoria

da “reserva do possível”, vedação de fornecimento de medicamentos sem

comprovação científica e proibição de medicamento que não sejam distribuídos pelo

SUS e sem registro na ANVISA.

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Já o Recurso Extraordinário nº 65771833, também de relatoria do Ministro

Marco Aurélio, tem como apelante Alcirene de Oliveira e apelado o Estado de Minas

Gerais34, que se negou a fornecer o medicamento cloridrato de cinacalcete sem

registro na ANVISA.

Neste caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) confirmou a

sentença do juiz de primeiro grau para, com base no art. 6º e 196 da CR/88,

reconhecer que existe uma primazia do direito coletivo sobre o direito individual e,

caso o medicamento fosse fornecido, o administrador público poderia responder por

“crime de descaminho”.

O ponto de tensão se estabeleceu quando os portadores de

mucopolssacarídose Tipo VI (MPS VI), que é o nível mais agudo da síndrome

“Síndrome de Maroteaux-Lamy”, procuraram o órgão do Ministério Público, para

solicitar que o Estado e o Município adquirissem o medicamento de alto curso,

denominado N-acetylgalactosamine 4-sulfatose (rhASB) 1mg/ml.

De um lado, a vida como condição sine qua non para obtenção dos demais

direitos sociais e, do outro, os entes públicos, que invocam tanto tese de ausência

de recursos para custear os medicamentos, usando a teoria mitigadora da reserva

possível, como também a teses de que o medicamento solicitado ainda não tem

uma comprovação científica a respeito da eficácia do tratamento com o fármaco;

destacando que a droga exigida pelo Poder Judiciário não está regulamentada pela

ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária e, portanto, de acordo com o

art. 12, da Lei Federal n.º 6.360/1976, “nenhum dos produtos de que trata esta Lei,

inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao

consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.”

33 Informação fornecida no site do STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275> Acesso em: 17/04/2017. 34 Tendo em vista a repercussão geral do RE 657718, consta como assistentes: a União, o Estado do Acre, o Estado de Alagoas, o Estado de Roraima, o Estado de Santa Catarina, o Estado de Sergipe, o Estado de São Paulo, o Estado do Tocantins, o Estado do Amazonas, o Estado do Amapá, o Estado da Bahia, o Estado do Ceará, Distrito Federal, o Estado do Espírito Santo, o Estado de Goiás, o Estado do Maranhão, o Estado de Mato Grosso, o Estado de Mato Grosso do Sul, o Estado do Pará, o Estado da Paraíba, o Estado de Pernambuco, o Estado do Piauí, o Estado do Paraná, o Estado do Rio de Janeiro, o Estado do Rio Grande do Norte, o Estado do Rio Grande do Sul e o Estado de Rondônia.

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No dia 15 de setembro de 2016, o Ministro/relator Marcos Aurélio, proferiu

voto no sentido de negar provimento ao recurso, mas entendeu que o Estado pode

ser obrigado a fornecer o fármaco de alto custo, não fornecidos pelo SUS e

registrado na ANVISA, por questões burocráticas, desde que seja comprovado a

imprescindibilidade do fármaco ao paciente e que, o mesmo, comprove a sua

incapacidade financeira e de sua família também. Após esse voto do Ministro/relator,

o Ministro Luís Roberto Barroso pediu vistas dos autos.

Na sessão do STF do dia 28 de setembro de 2016, quando do voto vista do

Ministro Luís Roberto Barroso, o Ministro Marcos Aurélio manteve seu voto com a

ressalva de que o reconhecimento, pelo Estado, do direito individual ao fornecimento

de fármaco dispendioso, não inserido em Programa de Medicamentos de

Dispensação em Caráter Excepcional ou em Política Nacional de Medicamentos,

depende da comprovação de imprescindibilidade, impedimento de permuta do

remédio e da incapacidade financeira do doente, considerando a ausência de

espontaneidade dos familiares em custeá-lo.

Quanto ao voto vista do Ministro Luís Roberto Barroso, tem-se que as

políticas públicas não podem ser judicializadas e que seria necessário

“desjudicializar” o debate sobre direitos sociais, evitando, assim, milhares de

demandas judiciais nesse sentido.

Para o Ministro Barroso, a Lei nº 12.401/2011, que dispõe sobre a assistência

terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de

Saúde (SUS), e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC),

criada pela lei federal nº 12.401, de 28 de abril de 2011, têm como premissa estudar

fármacos e terapias que devem integrar a lista do SUS, observando, além do

aspecto técnico, o critério de custo-benefício.

No que diz respeito, a inafastabilidade da jurisdição, o Ministro Luís Roberto

Barroso entende que, antes de provocar o poder judiciário, no sentido de efetivar as

políticas públicas, o paciente deveria provar que formulou pedido pela via

administrativa e que o Estado não lhe socorreu.

Ressalte-se, entretanto, que ao fazer análise do caso concreto, o Ministro não

observou e nem sentiu a via crucis que o paciente poderia passar no âmbito do

processo administrativo – isso desde a negativa de receber um pedido formal até o

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prazo de quinze dias para a resposta do órgão e, sem considerar, a elaboração do

próprio pedido formal; ocasionando mais uma barreira para o paciente, que agoniza

e se deblatera em busca de transpor burocracia para salvar a sua própria vida.

Tratando-se das drogas farmacológicas não incorporadas pelo SUS, o

Ministro Barroso entendeu que o Estado não é obrigado, em regra, a fornecê-lo,

sustentando que não existe sistema de saúde capaz de aguentar um modelo em que

todos os medicamentos devam ser fornecidos a todas as pessoas pelo Poder

Público, sem considerar o impacto financeiro que tais fornecimentos acarretam.

Diante das peculiaridades do caso, o Ministro Luiz Roberto Barroso formulou

como proposta de repercussão geral a ideia de que o Estado não pode ser

compelido a disponibilizar fármacos que ainda estejam em fase experimentais, cuja

eficácia e segurança não foram comprovadas. No tocante a medicamentos com

comprovada eficácia e segurança, embora não registrados na ANVISA, defende o

Ministro Barroso, que o Estado poderá ser constrangido a fornecê-los mediante o

desarrazoado prazo da ANVISA em apreciar o pedido de registro, prazo esse que

seria superior a 365 dias, além do preenchimento três requisitos, a saber: 1. a

existência de pedido de registro do fármaco no Brasil; 2. a comprovação de registro

do fármaco em agências de regulação no exterior; e 3. a ausência de droga

terapêutica substituta com registro no Brasil.

Nessa perspectiva, o Ministro Luís Roberto Barroso discorreu sobre a

necessidade de existir comunicação entre o Poder Judiciário e entes com expertise

técnica na área de saúde, como as câmaras e núcleos de apoio técnico,

profissionais do SUS e CONITEC.

Observa-se, sem esforço de lógica e inteligência, que uma vez, se sagrando

vencedor o voto divergente do Ministro Luís Roberto Barroso, o Brasil daria muitos

passos atrás, no tocante a efetivação da saúde como conquista social, tendo em

vista que, o mesmo poder judiciário que vem conferindo direito de percepção de

medicamentos, é o mesmo que importa teorias e cria ambiência ao casuísmo

hermenêutico que pode erigir pilares mitigatórios da efetivação dos direitos

fundamentais.

Após o voto-vista do Ministro Luiz Roberto Barroso, o Ministro Edson Fachin

se pronunciou partindo da premissa que existe, sim, um direito subjetivo às políticas

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públicas de assistência à saúde, constituindo em grave transgressão a direito

individual e sua omissão, de modo que as tutelas de efetivação de dispensas de

terapêutico ou tratamento que não foi incorporado ao SUS devem ser,

preferivelmente, ajuizadas em ações coletivas, de maneira a cooperar para que

ocorra uma maior eficácia ao comando de universalidade que impera no direito à

saúde.

O Ministro Fachin discorreu sobre a excepcionalidade ao direito prestacional

individual, de modo que a ampla produção de provas, demonstre a materialização

negativa por parte do Estado de fornecer o fármaco pela rede pública da saúde, em

decorrência de ausência de política pública, bem como, evidencie que existem

terapêuticos eficazes e seguros, com base nos desdobramentos da medicina

firmada em evidências.

Com isso, o Ministro Fachin propõe que o Poder Judiciário, antes de deferir

prestação de serviço à saúde, observe cinco requisitos cumulativos, a saber:

incapacidade financeira; comprovação que a não incorporação do fármaco não foi

resultado de determinação expressa dos órgãos competentes; falta de medicamento

substituto fornecido pelo SUS; demonstração de eficácia do terapêutico pleiteado; e

propositura da ação judicial em face da União.

No que diz respeito ao fornecimento de medicamentos que não foram

registrados pela ANVISA, em resposta ao RE 657718, o Ministro Fachin votou pelo

provimento, a fim de impor fornecido imediato do fármaco pleiteado, já que durante

os cincos anos de tramitação do Recurso Extraordinário perante o Supremo Tribunal

Federal, a droga havia sido incluído na lista do SUS e que ao “normatizar as regras

de segurança, qualidade e eficácia, a Anvisa garante a participação de empresas e

consumidores no mercado de medicamentos em condições mais equilibradas” 23.

Assim como os Ministros Marcos Aurélio e Luís Roberto Barroso, o Ministro

Edson Fachin apresentou alguns pontos cardeais, não cumulativos, para se encarar

a repercussão geral, quais sejam: a) controle de legalidade; b) controle de

motivação; c) controle da instrução de provas no âmbito da política pública

regulatória e; d) controle da razoabilidade de prazo de resposta por parte da agência

regulatória.

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E em observância da segurança jurídica, o Ministro Fachin recomendou a

manutenção da decisão recorrida até ulterior decisão do Supremo Tribunal Federal,

sobre as interposições recursivas sub analise. Após os três votos emitidos, o então

Ministro Teori Zavascki pediu vistas e o Supremo Tribunal Federal (STF) sobrestou a

apreciação conjunta dos Recursos Extraordinários (REs) 566471 e 657718.

O mais grave é que, apesar do fármaco ser de acentuado valor monetário, os

portadores dessas doenças raras sobrevivem – comprovadamente – por intermédio

dele e quando não são medicados pela droga vão a óbito, independentemente da

droga está ou não na lista do SUS.

Deflui-se, então, que a alegativa renitente de que as disposições do art. 196 e

ss da Constituição Federal são normas programáticas e, por isso, não ter força

normativa, já foi superada e a reserva do possível – usada apenas para mitigar a

efetividade dos direitos fundamentais – não vem, dia a dia, empolgando o poder

judiciário.

No começo da implementação da teoria da reserva do possível, até que o

judiciário alentou uma perspectiva aos representantes dos entes federados de uma

reflexão sobre a proliferação de decisões de concessão de provimentos

antecipados, em face da “escassez de recursos” públicos para atender aos mais

carentes, no entanto, essa teoria – que seja bem-vinda – poderia ser usada, no caso

do Município de Campina Grande, em prol da afirmação dos direitos fundamentais e

não para negar.

Isto posto, judiciário foi vacilante ao sugerir que se aplicasse o mínimo

existencial criando um espaço para, uma vez demonstrado que não tem recursos,

ficaria isento de custear a saúde pública. Ou seja, pela exceção levantada pelo STF,

quando os entes públicos se modernizarem e passarem a mostrar ao judiciário, em

número, que não têm recursos para custear a saúde, a Suprema Corte facultará a

efetivação desses direitos sociais.

O que se extrai dessas decisões do STF é que não existe uma preocupação

na exequibilidade de seus julgados, tendo em vista que, uma vez decidido pelo não

cumprimento dessa obrigação estatal, em face da ausência de recursos, não há

estabelecimento de mecanismos de controle – mesmo que fosse por intermédio do

Ministério Público - visando identificar se, daquele dia em diante, o ente público não

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contratará mais cantores com cachês altos e muito menos se aventurará em farras

de diárias e outras atividades correlatas.

Bastava uma simples expedição de recomendação ao Ministério Público

Estadual para se fazer um acompanhamento, de pelo menos, um por ano, nas

finanças públicas do ente “anistiado” pela “falta de recursos”. De modo que, ou os

entes federados permanecerão sofrendo com as imprevisões das decisões do Poder

Judiciário, transformando as reservas orçamentárias em execução, em verdadeiras

“coxas de retalho”, ou se fará uma política pública desses direitos com o objetivo de

estabelecer, por vontade política, a afirmação dos direitos fundamentais sem a

necessidade de transcursos de pedidos formais de medicamentos pela via

administrativa para, logo após, garimpar um advogado para se ajuizar uma ação

judicial. Ou seja, sem a necessidade de se criar mais uma barreira na relação

vertical entre Estado e o cidadão.

Destaque-se que diante da expansão mundial do Poder Judiciário, o Poder

Executivo aqui no Brasil, através do Ministério da Saúde, vitimado pelo fatiamento

das suas receitas para o custeio de medicamentos e tratamento de saúde, ao invés

de enviar ao Poder Legislativo projeto de lei estabelecendo percentuais das suas

receitas para atender as políticas públicas e dar efetividade aos direitos sociais, de

forma sui generis, procurou o CNJ com a alegativa de subsidiar os juízes nas

demandas judiciais.

Sensível a suplica do Poder Executivo e tentando, com isso, arrefecer a

escalada exponencial das ações que suplicam por tratamento de saúde ou

medicamentos, no dia 06 de abril de 2010, o Conselho Nacional de Justiça expediu

a resolução nº 107/2017, para instituir o Fórum Nacional do Judiciário para

monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde.

O reflexo dessa moção do CNJ foi refletido de forma relâmpago no Tribunal

de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que, com esteio nessa recomendação do

CNJ e visando diminuir do números de ações relacionadas ao tratamento de saúde

e distribuição de medicamentos – segundo sitio do CNJ a redução alcançou mais 30

mil ações, em cinco anos – criou o Comitê Estadual de Saúde do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), composto pelo Ministério Público

Estadual, Secretaria de Saúde do Estado, Tribunal de Justiça, Procuradoria

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Regional da União, Defensoria Pública, Procuradoria Geral do Estado, Federação

das Associações de Municípios e Conselho Regional de Medicina.

A criação do Comitê Estadual de Saúde do Tribunal de Justiça do Estado do

Rio Grande do Sul (TJRS), inspirou o Conselho Nacional de Justiça -CNJ – a editar

a Recomendação nº 36, de 12 de julho de 2011, Ato nº 0003257-77.2011.2.00.0000,

com o intento de estimular os Tribunais a adotarem medidas visando subsidiar os

magistrados e demais operadores do direito, com vistas a assegurar maior eficiência

na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde suplementar.

A recomendação do CNJ, confere aos Tribunais a possibilidade de

estabelecer convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico, sem ônus para as

Cortes, compostos por médicos e farmacêuticos, indicados pelos Comitês

Executivos Estaduais, para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor

quanto a apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes, observadas

as peculiaridades regionais.

Ora, apesar dos serviços de saúde, educação e assistência social serem

públicos e de obrigação efetiva do Estado, sabe-se que o constituinte originário

conferiu a iniciativa privada a possibilidade de prestar os mesmos serviços através

dos planos de saúde que custeiam até medicamentos, das escolas e universidades

privadas e das entidades religiosas que fazem a assistência social.

Diante dessa possibilidade é de se pensar em institucionalização do sistema

híbrido de políticas públicas visando suplementar a ausência do estado na política

de afirmação dos direitos sociais.

O Ministério da Saúde apresentou, a nível nacional, o custo da judicialização

até o ano de 2015 e quanto está previsto para ser gasto, no âmbito dos Governos

dos Municípios, Estados e União, no ano de 2016. Eis a subida vertiginosa dos

custos da judicialização, com os seguintes gráficos:

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Assim ao ver a cada dia se avolumarem o número de ações judiciais

vindicando o cumprimento do direito à saúde, a educação e assistência social, resta

ao Estado a perspectiva de institucionalizar o Sistema Híbrido de Saúde Pública com

a institucionalização de Câmeras de Compensação, aonde os planos de saúde

passem a bancar os medicamentos e tratamentos dos seus segurados – mesmo

com estímulos de pequenas compensações financeiras – e que, um pequeno

percentual da exportação e comercialização das nossas riquezas minerais, sejam

destinados a custear os direitos sociais sob pena de assistirem sine die ao

fatiamento da economia pública - cada vez mais acentuado - pelo Poder Judiciário

que está autorizado por lei até mesmo a bloquear e sequestrar as contas públicas e

sem falar nos consectários penais e civis para quem viola princípios e texto de lei

federal.

Observa-se, nos gráficos acima, a nível nacional, os gastos que o Ministério

da Saúde teve com a saúde, provenientes de ações judiciais nos anos de 2010 a

2015, bem como, a previsão de aumento desses gastos no ano de 2016.

Destaque-se, entretanto, a nível local/municipal, por meio da análise do

Relatório sintético de pagamentos por demanda judicial, emitido pela Gerência de

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Finanças da Secretaria Municipal de Saúde, do Município de Campina Grande/PB,

que existe a necessidade de se refletir a respeito do impacto que as decisões surtem

no orçamento de um município com 406.000 Habitantes

Assim, ao ver a cada dia se avolumarem as ações judiciais vindicando o

cumprimento do direito à saúde e a educação resta ao Estado a perspectiva de

institucionalizar o Sistema Híbrido de Saúde Pública, com câmera de compensação,

aonde os planos de saúde passem a bancar os medicamentos e tratamentos dos

seus segurados – mesmo com estímulos de pequenas compensações financeiras –

e que, um pequeno percentual da exportação e comercialização das nossas

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riquezas minerais, sejam destinados a custear os direitos sociais sob pena de

assistirem sine die ao fatiamento da economia pública – cada vez mais acentuado –

pelo Poder Judiciário, que está autorizado por lei, até mesmo a bloquear e

sequestrar as contas públicas, sem mencionar os consectários penais e civis para

quem violar princípios e texto de lei federal.

4.7 DA DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS NÃO CADASTRADO NA LISTA DO SUS/ANVISA

Uma grave situação vivenciada pelos tribunais brasileiros ocorre quando o

tribunal se deparada com casos que envolvem pedido de fornecimento de

medicamentos não cadastrados na denominada “lista do SUS”. Para agravar ainda

mais essa situação, têm-se os casos de fármacos em fase de experimentos

científicos, que, por vezes, os portadores de doenças raras precisam para

sobreviver; todavia, pelas regras do SUS, sua distribuição é vedada.

Conforme o artigo 19 – T, da Lei Federal 8.080, de 19 de setembro de 1990,

estabelece:

Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011) I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011) II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

É bem verdade que, por traz de disposições como esta, existe toda uma

carga científica de exposições de motivos para não se gerar efeitos colaterais

inimagináveis nos seres humanos, principalmente, quando se observa que os

fármacos ainda estão em fase de experimentos científicos, daí a precisão da Lei no

sentido de vedar, em toda a esfera da gestão do SUS, o ressarcimento ou

reembolso de medicamentos, produtos e procedimentos clínicos ou cirúrgicos em

fase de experimentos.

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A lei ainda proíbe a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o

reembolso de medicamentos e produtos, nacional ou importado, sem o devido

registro na ANVISA. Destaque-se que o problema se acentua ainda mais, quando se

verifica o fastio e o desinteresse dos poderes constituídos em dar início ao processo

legislativo de regulamentação dos direitos sociais, dentre esses, a saúde.

O Supremo Tribunal Federal, nos autos do ARE 831915 Agr – RR, chegou a

reconhecer que, mesmo após a edição da Lei 8.080/90, não assiste fundamento a

arguição do Estado agravante em afirmar que não está obrigado a fornecer o

medicamento que não esteja cadastrado na lista do SUS, conforme decisão da

Corte, sob a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, que assim ementou:

Consolidou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que, embora o art. 196 da Constituição de 1988 traga norma de caráter programático, o Estado não pode furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida, de medicamento que não esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas, é dever solidário da União, do estado e do município fornecê-lo. Nesse sentido, AI 396.973 (rel. min. Celso de Mello, DJ 30.04.2003), RE 297.276 (rel. min. Cezar Peluso, DJ 17.11.2004) e AI 468.961 (rel. min. Celso de Mello, DJ 05.05.2004).

Na decisão do ARE 831915 Agr – RR, o Ministro relator Luiz Fux, invoca outro

precedente da Primeira Turma do STF que, julgando o RE 831.385-AgR, relatado

pelo Ministro Roberto Barroso, assim pacificou:

Em quarto lugar, esta Corte tem se orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade. Dessa orientação não divergiu o acórdão recorrido. De fato, assim concluiu o Tribunal de origem: […]. Nesse sentido, veja-se trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na STA 175- AgR: ‘[…] em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso.

Apesar do STF ter pacificado decisões como as supramencionadas, ressalte-

se o posicionamento o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 26 de abril de

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2017, sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, nos autos do Recurso

Especial nº 1.657.156 - RJ (2017/0025629-7), interposto pelo Estado do Rio de

Janeiro, contra a decisão do Tribunal de Justiça, que decidiu:

AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. DIREITO À SAÚDE. PACIENTE PORTADORA DE GLAUCOMA. HIPOSSUFICIÊNCIA COMPROVADA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE CONDENOU O ESTADO E O MUNICÍPIO DE NILÓPOLIS AO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. Inconformismo do Estado apelante, ora agravante, contra a decisão monocrática que manteve a condenação dos réus ao fornecimento dos medicamentos pleiteados, objetivando rediscutir a matéria. A saúde é direito fundamental assegurado constitucionalmente a todo cidadão, devendo os poderes públicos fornecer assistência médica e farmacêutica aos que dela necessitarem, cumprindo fielmente o que foi imposto pela Constituição da República e pela Lei nº. 8.080/90, que implantou o Sistema Único de Saúde. Ademais, não há que se falar em violação dos artigos 19-M, I, 19-P, 19-Q e 19-R da Lei nº 8.080/90, visto que se cuida de orientação para dispensação de medicamento, como ação de assistência terapêutica integral, que não inviabiliza a assistência por medicamento orientado pelo médico da paciente e, por consequência, não afronta o texto constitucional e não significa contrariedade à Súmula Vinculante 10 do STF. Desprovimento do recurso.

Na interposição do recurso especial, o Estado do Rio de Janeiro invoca, em

sede de preliminar, vários artigos do Código de Processo Civil supostamente

agredidos, como é o caso dos artigos 480 a 482 do CPC/1973 ou 948 a 950 do

CPC/2015.

O Ministro Relator entendeu que o Recurso Especial afetaria vários recursos

aportados no STJ, como era o caso do REsp 1.102.457/RJ, e outros tantos em

trâmite nos tribunais do todo o país e em diversas Varas Federais e Estaduais. Por

esta razão – sistemática de recursos especiais repetitivos –, deveria ser julgado com

os efeitos do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015, “considerando a multiplicidade de

recursos a respeito do tema em foco”.

O STJ demarcou a controvérsia em dois pontos cardeais, sendo o primeiro,

que os medicamentos não estavam contemplados na Portaria n. 2.577/2006 do

Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais), e o segundo, que a

Portaria n. 2.577/2006 já tinha sido ab-rogada pela Portaria 2.982, de 26 de

novembro de 2009.

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O recorrente era o Estado do Rio de Janeiro e a recorrida era Fatima Theresa

Esteves dos Santos de Oliveira, através da defensoria pública do Estado do Rio de

Janeiro.

A decisão do STJ foi assentada na seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. PROPOSTA DE AFETAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDADE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS AO PROGRAMA DE MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS DO SUS. 1. Delimitação da controvérsia: obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria n. 2.982/2009 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais). 2. Recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 (art. 256-I do RISTJ, incluído pela Emenda Regimental 24, de 28/09/2016) (...) Nesse sentido, e nos termos do art. 1.037 do CPC/2015, devem ser observadas as seguintes providências: (i) suspensão, em todo o território nacional, dos processos pendentes, individuais e coletivos, que versem sobre a questão ora afetada (art. 1.037, inciso II, do novel Código de Processo Civil); (ii) Comunicação aos senhores Ministros integrantes da Primeira Seção e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça; (iii) Após decorridos todos os prazos acima estipulados, abra-se vista ao Ministério Público Federal, pelo prazo de 15 (quinze) dias (art. 1.038, inciso III e § 1º, do CPC/2015). É como voto. (STJ - ProAfR no REsp: 1657156 RJ 2017/0025629-7, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 26/04/2017, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 03/05/2017).

Com essa decisão, criou-se uma ambiência própria para se oficializar a

negativa do Estado na implantação dos direitos sociais por intermédio de mais

obstáculos – além dos que já foram criados – para se cadastrar medicamentos na

ANVISA e, por consequência, na lista do SUS.

Se, por um lado, o art. 1037, inciso II, do CPC/2015, impõe que os processos

que tratam de medicamentos fora da lista do SUS devem ser suspensos, por outro,

o art. 314 também do CPC/2015 abre uma minúscula luz no fim do túnel:

Art. 314. Durante a suspensão é vedado praticar qualquer ato processual, podendo o juiz, todavia, determinar a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, salvo no caso de arguição de impedimento e de suspeição.

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A excepcionalidade do art. 314, quando confere a possibilidade da realização

de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, pode poupar milhares de vidas

humanas.

Em laboriosa pesquisa no site do STF, com cruzamento de expressões como

“saúde e medicamento”, “saúde e hipossuficiente” e “saúde e cirurgia”, do ano de

2000 até a presente data, logo se evidencia que o bem mais judicializado é

medicamento.

Os argumentos suscitados pela parte recorrente de que as regras do art. 196

da CR/88 são programáticas e de eficácia contida, está na defesa de apenas quatro

recursos, que são: ARE 727864 – PR, RE 393175-RS, RE 271286 – RS e ARE

639337-SP.

A reserva do possível e o mínimo existencial foi argumentado em apenas dez

recursos: ARE745745 – MG, ARE 727864-PR, RE 581352-AM, RE 642536-AP,

ARE 639337-SP, SL 47-PE, STA 175 – CE, STA 223 – PE e dois que estão em

repercussão geral RE 566471-RN e 657718-MG.

Já a teoria da separação dos poderes está contida em vinte e cinco recursos:

RE 858075 – RJ, 1014959 -SE, ARE 947823-RS, ARE 831915-RR, ARE 894085 –

SP, ARE 839629-DF, ARE 886710 – SE, ARE 903216 – DF, ARE 892114 – MG, RE

696077 – RS, ARE 879204 – RJ, ARE 859350 – SC, ARE 814878 – PE, AI 810864 –

RS, ARE 803281 – RS, RE 820910 – CE, ARE 801676 -PE, RE 429903 -RJ, RE

762242 – RJ, AI 809018 – SC, SL 47 – PE, STA 175 – CE, RE 463210 – SP, ADPF

5400-DF e RE 259508 – RS.

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CAPÍTULO 5 - DA FUNÇÃO ATÍPICA DO JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS.

Pela concepção clássica da tripartição dos poderes, o judiciário apenas julga,

o legislativo apenas legisla e o executivo apenas administra.

Em face da expansão do Poder Judiciário como fenômeno mundial, o

judiciário se tornou a única porta a se bater quando o tecido social padece dos

efeitos da ausência de cumprimento dos seus direitos, quer pela inafastabilidade da

jurisdição, quer pelo controle da legalidade.

As decisões incisivas forçando o Executivo a cumprir metas em saúde e

educação, em face da sua propositada omissão, evidenciou o judiciário, no tocante

ao cumprimento das políticas sociais, como instrumento de inclusão, apesar das

imprecisões e permissividades dos seus julgados, até porque, o judiciário, a

princípio, não tem a expertise na relação vertical com o tecido social e também não

tem meio eficiente de filtrar demandas de cunhos políticos e aventureiros.

Por intermédio da ARE 639337 Agr/SP, o Supremo Tribunal Federal, apreciou

um pleito do Ministério Público do Estado de São Paulo, de relatoria do Ministro

CELSO DE MELO, cujo fundamento seria a obtenção de decisão judicial favorável a

crianças de até cinco anos de idade, a ser recebida em creches nas unidades

próximas as suas residências ou trabalho dos seus responsáveis.

O Município de São Paulo interpôs recurso extraordinário argumentando que

a matéria é administrativa e que não compete ao Poder Judiciário substituir o

Executivo; que a edilidade não teria recursos para arcar com a despesa gerada pelo

Poder Judiciário, invocando a reserva do possível e da intangibilidade do mínimo

existencial, interferência de um poder sobre o outro, além de outros argumentos que

foram, por obvio, rechaçados pelo Ministro Relator com os seguintes e judiciosos

argumentos:

CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR

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CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. (STF - ARE: 639337 SP, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 21/06/2011, Data de Publicação: DJe-123 DIVULG 28/06/2011 PUBLIC 29/06/2011).

Para refutar os argumentos traçados pelo Município de São Paulo, o Ministro

Celso de Melo, assim se posicionou:

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas asseguram, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

Também fez duras críticas à política municipal de ensino afirmando que a

gestão não poderá se demitir do mandato imposto pela Constituição da República

Federativa do Brasil, disposto no art. 208, IV, da Lex Mater:

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A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

No seu voto, condutor do acórdão, o Ministro Celso de Melo rechaçou ainda a

reserva do possível, taxando-a de “escolhas trágicas”:

A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança.

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Assim, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal, negou provimento ao

recurso de agravo para indeferir a subida do Recurso Extraordinário, deixando

bastante evidente que, para o Corte Constitucional, direitos sociais não podem ser

taxados de norma condecorativas, apesar da omissão propositada dos poderes

legislativo e executivo.

5.1 DA RATIO DO DISCURSO DE PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM FACE DAS CONVENÇÕES E PACTOS INTERNACIONAIS “SUPRALEGALIDADE”

O modelo lírico e até ideológico da supralegalidade parece que se incorporou

ao modus faciendi do legislador brasileiro. E o caso mais perceptível está na edição

do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção

Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo

Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.

É do conhecimento mediano que os tratados e convenções internacionais,

dos quais o Brasil é signatário, gozam de status de “supralegalidade”, fato

devidamente reconhecido pelo STF, nos autos da ADIN 5240, cuja emenda foi assim

publicada:

Tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos humanos, uma vez ratificados e internalizados, ao mesmo passo em que criam diretamente direitos para os indivíduos, operam a supressão de efeitos de outros atos estatais infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena efetivação. (ADI 5240, Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em 20.8.2015, DJe de 1.2.2016).

Mercê desse reconhecimento, que motivou o cancelamento da súmula 619,

que dispunha sobre prisão do depositário infiel, o STF entendeu que existe, sim,

uma hierarquia das regras estabelecidas em tratados internacionais sobre direitos

humanos, dos quais o Brasil é signatário, com as normas estabelecidas no próprio

texto constitucional.

Para se ratificar essa atenção especial que o Estado brasileiro assumiria com

a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu

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Protocolo Facultativo, o art. 2º do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 foi

assim redigido:

Art. 1o A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, apensos por cópia ao presente Decreto, serão executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contém.

Feitas estas considerações, é de se observar que, dezenas de centenas de

pessoas com deficiências físicas procuram o poder judiciário em busca de receber

direitos elementares.

No 27 de outubro de 2015, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do ARE

903216 AgR/DF, cuja relatora foi a Ministra Rosa Weber, apreciou um pedido de

destrancamento do recurso extraordinário, que foi indeferido. E, visando reformar a

decisão da Presidência do Tribunal, o Agravante, no caso o Distrito Federal, interpôs

o agravo ao Supremo.

Trata-se de uma ação civil pública com pedido de obrigação de fazer, em

que o Ministério Público do Distrito Federal obteve sentença favorável no primeiro

grau, no sentido de impor que o poder público fizesse reformas e adaptações nas

escolas públicas, como forma de amparar e inserir os alunos com necessidades

especiais na educação.

O Tribunal confirmou a decisão e o Distrito Federal, por intermédio dos seus

procuradores, interpôs o recurso extraordinário alegando o princípio da separação

dos poderes.

Ao que, a primeira turma do STF, seguiu o voto da relatora para nega a

interposição do agravo, nos seguintes termos:

DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. REFORMA E ADAPTAÇÃO DE ESCOLA PÚBLICA. ALUNOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS. DIREITO À EDUCAÇÃO. OMISSÃO CARACTERIZADA. CONTROLE JUDICIAL DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. EXCEPCIONALIDADE. LIMITES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.CONSONÂNCIA DA DECISÃO RECORRIDA COM A JURISPRUDÊNCIA CRISTALIZADA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO QUE NÃO MERECE TRÂNSITO. REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA. PROCEDIMENTO VEDADO NA INSTÂNCIA EXTRAORDINÁRIA. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 13.02.2015. 1. O entendimento adotado pela Corte de origem, nos moldes do assinalado na decisão

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agravada, não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal. Entender de modo diverso demandaria a reelaboração da moldura fática delineada no acórdão de origem, o que torna oblíqua e reflexa eventual ofensa, insuscetível, como tal, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. 2. As razões do agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. 3. Agravo regimental conhecido e não provido.

Pelos extratos das movimentações processuais dos autos dos processos

originários, logo se chega à conclusão que, apesar do recurso extraordinário não

imprimir efeito suspensivo, o direto vindicado pelo Ministério Público e concedido

pelo Poder Judiciário, ainda não foi concretizado.

Em situação igual, também conta as sucessivas decisões que gerou o ARE

839629 AgR/DF, que teve o mesmo desfecho. Neste caso, o Ministério Público

ajuizou ação civil pública com pedido e obrigação de fazer para que o Distrito

Federal oferecesse monitor a alunos, da rede pública municipal, portadores de

necessidades especiais.

O julgamento desse agravo ocorreu no dia 02 de fevereiro de 2016 e a

Segunda Turma do STF, também rechaçou a interposição recursiva nos seguintes

termos:

Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Direito Constitucional. Ação civil pública. Criança com necessidade educacional especial. Acompanhamento por monitor. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Legislação local. Ofensa reflexa. Fatos e provas. Reexame. Impossibilidade. Precedentes. 1. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos poderes, inserto no art. 2º da Constituição Federal. 2. O recurso extraordinário não se presta para o exame de matéria ínsita ao plano normativo local, tampouco ao reexame dos fatos e das provas dos autos. Incidência das Súmulas nºs 280 e 279/STF. 3. Agravo regimental não provido.

Pelos julgamentos de casos envolvendo a educação de pessoas portadores

de deficiência e de necessidades especiais, nas duas turmas do STF, pode-se

observar o desapego dos poderes públicos com a dignidade da pessoa humana,

esta, registre-se, com o status de supralegalidade, até porque, o Brasil incorporou a

Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu

Protocolo Facultativo, através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.

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Passível de registro que o artigo 2º do Decreto presidencial nº 6.949/2009

dispõe que

Art. 2º. São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão dos referidos diplomas internacionais ou que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, nos termos do art. 49, I, da Constituição.

Ou seja, o direito encontra-se em pleno vigor, mas, na prática, de eficácia

silente. Destacando que, apesar da falsa ideia de que se trata de documento adstrito

aos direitos das pessoas com deficiência, vai além e acaba por prescrever tópicos

que devem ser levados em consideração na hora de descrevermos o que seria o

mínimo existencial, a saber, o direito à vida, o acesso à justiça, a garantia de

liberdade e segurança, mobilidade humana, liberdade de expressão, opinião e

privacidade, educação, saúde, trabalho e emprego, além de participação na vida

política, pública, cultural e social, incluindo-se a recreação, o lazer e o esporte.

Assim sendo, torna-se imprescindível que sejam reconhecidos direitos

fundamentais mínimos à população, para que o Estado possa garantir a existência

digna de seus membros, ultrapassando a sua subsistência, permitindo que cada um

possa desenvolver suas aptidões e potencialidade em consonância com seus

direitos de personalidade. Ou seja, “a reserva do possível só se justifica na medida

em que o Estado garanta a existência digna indistintamente a todos os integrantes

da sociedade” (CUNHA JUNIOR, 2008, p. 395).

5.2 TUTELA AO DIREITO DE COMUNICAÇÃO DO DEFICIENTE AUDITIVO.

Sabe-se que a comunicação é um direito social dos mais discutidos e

questionados, mas no vasto acervo do tecido social, encontra-se cidadãos que não

se comunicam por ausência de conhecimento de meios educacionais e, por isso,

ficam a margem da sociedade em estado de vulnerabilidade.

Ciente dessa lacuna da rede pública, o Ministério Público Federal ajuizou

ação civil pública com o objetivo de o Judiciário compelir o Distrito Federal a

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contratar professores de libras, visando atender aos deficientes auditivos, que

almejavam o acesso à educação, como meio de inclusão social.

A sentença da Justiça Federal foi favorável ao pleito ministerial, mas o Distrito

Federal interpôs recurso de apelação que foi improvido, mas impulsionados pelos

argumentos de reserva do possível e da interferência de um poder sobre o outro, a

edilidade interpôs recurso extraordinário que foi inadmitido.

Insatisfeito, o Distrito Federal agravou da decisão ao Supremo Tribunal

Federal de inadmissibilidade, visando destrancar o Recurso Extraordinário, cuja

relatoria coube ao Ministro Gilmar Mendes, que assim relatou no Agravo Regimental

de nº 860.979-DF:

Trata-se de agravo regimental contra decisão que negou provimento a recurso extraordinário com agravo, aos seguintes fundamentos: (i) o princípio da separação dos poderes não inviabiliza, por si só, a atuação do Poder Judiciário, quando diante do inadimplemento do Estado de políticas públicas constitucionalmente previstas; (ii) inoponibilidade da cláusula da reserva do possível na hipótese, tendo em conta o núcleo de intangibilidade dos direitos fundamentais tutelados; e, (iii) a constitucionalidade e convencionalidade das políticas públicas de inserção dos portadores de necessidades especiais na sociedade. No agravo regimental, sustenta-se, em síntese, que não há jurisprudência pacífica no âmbito do STF sobre a temática. Alega-se, ainda, que a decisão agravada viola a separação dos poderes, uma vez que “as escolhas políticas sobre alocação de recursos públicos e definição de políticas públicas prioritárias devem ser realizadas pelos representantes eleitos pelo povo” (fls. 257). É o relatório.

No seu voto, o Ministro Gilmar Mendes rechaça o agravo por questões de

ordem processual, motivo pelo qual o recurso extraordinário não deve ser

recebimento, mas faz duras afirmações de ordem a imantar e a preservar os direitos

sociais, nos seguintes termos:

Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Constitucional. Educação de deficientes auditivos. Professores especializados em Libras. 3. Inadimplemento estatal de políticas públicas com previsão constitucional. Intervenção excepcional do Judiciário. Possibilidade. Precedentes. 4. Cláusula da reserva do possível. Inoponibilidade. Núcleo de intangibilidade dos direitos fundamentais. 5. Constitucionalidade e convencionalidade das políticas públicas de inserção dos portadores de necessidades especiais na sociedade. Precedentes. 6. Ausência de argumentos suficientes a infirmar a decisão recorrida. 7. Agravo regimental a que se nega provimento.

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No voto, eleva a patamares superiores a constitucionalidade da

supralegalidade do direito do deficiente auditivo, porém registra nas entrelinhas que,

embora o poder judiciário não seja um órgão de inclusão social, sente-se coagido a

intervir, porque não se enxerga uma moção volitiva por parte dos detentores de

poder.

No mesmo sentido, o STF julgou o ARE 845247 SP 0005340-

90.2011.8.26.0663, sob a relatoria Ministro Ricardo Lewandowski, plasmando a

seguinte recomendação:

Direito Constitucional. Educação de deficientes auditivos. Professores especializados em Líbras. 3. Inadimplemento estatal de políticas públicas com previsão constitucional. Intervenção excepcional do Judiciário. Possibilidade. Precedentes. 4. Cláusula da reserva do possível. Inoponibilidade. Núcleo de intangibilidade dos direitos fundamentais. 5. Constitucionalidade e convencionalidade das políticas públicas de inserção dos portadores de necessidades especiais na sociedade. Precedentes. 6. Ausência de argumentos suficientes a infirmar a decisão recorrida. 7. Agravo regimental a que se nega provimento.

Assim, como a saúde, a educação constitui um outro gargalo da

administração pública e os noticiários estão recheados de flagrantes de fraude e

corrupção com recursos destinados à educação.

As decisões judiciais para a educação são pouco cumpridas, conforme se

observa nos extratos de movimentação processual das ações que chegaram de

forma obtusa ao STF, em que se registra envio de cópia da decisão para se apurar

o crime de desobediência, mas, querendo ou não, e com raras e honrosas

exceções de alguns detentores de poder de boa vontade, o judiciário ainda é a

única porta que se bate para efetivação dos direitos sociais.

Poder-se-ia pensar também em um sistema híbrido para a educação,

levando-se em consideração a renda mensal convivente aonde o(a) aluno(a) de

família abastada seja obrigado a contribuir com valores suportáveis para as

Universidades Públicas, fomentando o surgimento de vagas para os que estão

abaixo da linha de pobreza, impedindo um fenômeno, já identificado pelo Ministério

da Educação, de que os alunos de famílias pobres estão estudando em instituições

de ensino superior privadas, sendo, na sua grande maioria, financiados pelo Fundo

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de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior – FIES e os alunos provenientes

de famílias afortunadas, ocupando vagas nas Universidades Públicas.

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CONCLUSÃO

Com apanágio, em tudo que fora exposto ao longo dessa dissertação,

percebe-se que os direitos fundamentais representam conquistas histórias do

constitucionalismo, principalmente como forma de combate aos meios de

desigualdade social.

Essas conquistas e esses direitos, a partir do momento em que foram

reconhecidos pelo Texto Constitucional como imprescindíveis ao tecido social e ao

bem comum, passaram a fazer parte do núcleo essencial da Constituição. Por essa

razão, passam a ter status de supremacia, supralegalidade e imutabilidade relativa,

bem como, caráter vinculatório em relação aos poderes legislativo, executivo e

judiciário.

Com efeito, incumbe ao Estado o dever de concretizar tais direitos, de zelar

pela sua prestação de forma satisfatória, seja por meio de políticas públicas, seja por

meio do seu papel fiscalizador.

Ocorre que, constando-se as omissões do Poder Executivo e Legislativo em

realizar tais funções, o Poder Judiciário, otimizado pelo fenômeno da expansão da

atividade jurisdicional, encontra-se proferindo decisões, de modo a forçar e impor o

Poder Executivo a cumprir os mandamentos constitucionais, sobretudo no que tange

aos gastos com educação e com saúde.

Esse fenômeno de expansão judicial deve ser visto com cautela, tendo em

vista a imperiosidade do regime democrático. Ideal seria que o Poder Executivo

cumprisse seu papel, concretizando as políticas públicas e prestando serviços

públicos à sociedade de forma satisfatória. Contudo, tendo em vista que tal preceito

não consubstancia a realidade brasileira, o Poder Judiciário, com apanágio no

preceito da inafastabilidade de controle jurisdicional, vem perfilhando caminhos

obtusos, ao passo de garantir direitos inerentes ao núcleo essencial da Constituição,

que representam condições mínimas que o Estado deve promover aos seus

cidadãos.

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Diante de tudo que fora exposto, torna-se imprescindível realizar um paralelo

entre a reserva do possível e o núcleo essencial dos direitos fundamentais,

mormente o mínimo existencial, para que seja traçada uma política administrativa

coerente e proporcional, de modo que o Estado possa ter uma parcela de

contribuição satisfatória acerca dos serviços públicos e possa atender aos

proclames da sociedade.

Por outro lado, torna-se importante também estabelecer limites ao aspecto

positivo desse dever do Estado com a sociedade, sob pena de se vilipendiar

preceitos básicos, como a autonomia do ente político e as finanças públicas, de

modo a desequilibrar toda a atividade estatal em detrimento do interesse privado de

determinado particular.

Por essa razão, mostra-se imprescindível estabelecer esse paralelo,

conjugando tais premissas ao ponto de refletir o caminho para o consenso sobre a

concretização dos direitos fundamentais no cenário brasileiro.

A alegativa renitente de que as disposições do art. 196 e ss da Constituição

Federal são normas programáticas e, por isso, não ter força normativa, já foi

superada e a reserva do possível – usada apenas para mitigar a efetividade dos

direitos fundamentais – não vem, dia a dia, empolgando o poder judiciário.

No começo da implementação da teoria da reserva do possível, até que o

judiciário alentou uma perspectiva aos representantes dos entes federados de uma

reflexão sobre a proliferação de decisões de concessão de provimentos

antecipados, em face da “escassez de recursos” públicos para atender aos mais

carentes, no entanto, essa teoria poderia ser usada, no caso do Município de

Campina Grande, em prol da afirmação dos direitos fundamentais e não para negar.

Evidencie-se que judiciário foi vacilante ao afirmar que se aplicar o mínimo

existencial criando uma ambiência para, uma vez demonstrado que não tem

recursos, ficaria isento de custear a saúde pública. Ou seja, pela exceção levantada

pelo STF, quando os entes públicos se modernizarem e passarem a mostrar ao

judiciário, em número, que não é têm recursos para custear a saúde, a Suprema

Corte facultará a efetivação desses direitos sociais.

O que se extrai dessas decisões do STF é que não existe uma preocupação

na exequibilidade de seus julgados, tendo em vista que, uma vez decidido pelo não

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cumprimento dessa obrigação estatal, em face da ausência de recursos, não há

estabelecimento de mecanismos de controle – mesmo que fosse por intermédio do

Ministério Público – visando identificar se, daquele dia em diante, o ente público não

contratará mais cantores com cachês altos e muito menos se aventurará em farras

de diárias e outras atividades correlatas.

Desta feita, ou os entes federados permanecerão sofrendo com as

imprevisões das decisões do Poder Judiciário, transformando as reservas

orçamentárias em execução, em verdadeiras “coxas de retalho” ou se fará uma

política pública desses direitos com o objetivo de estabelecer, por vontade política, a

afirmação dos direitos fundamentais.

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