universidade federal do rio grande do norte … · 2015-12-23 · em face da primazia dos direitos...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ CAMPUS CAICÓ CURSO DE GRADUÇÃO EM DIREITO TRABALHO DE CURSO UMA (RE)LEITURA CONSTITUCIONAL DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES DE FURTO, DESCAMINHO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA JOÃO PAULO PEREIRA DE ARAÚJO CAICÓ 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

CAMPUS CAICÓ

CURSO DE GRADUÇÃO EM DIREITO

TRABALHO DE CURSO

UMA (RE)LEITURA CONSTITUCIONAL DA APLICAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES DE FURTO,

DESCAMINHO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

JOÃO PAULO PEREIRA DE ARAÚJO

CAICÓ

2015

1

JOÃO PAULO PEREIRA DE ARAÚJO

UMA (RE)LEITURA CONSTITUCIONAL DA APLICAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES DE FURTO,

DESCAMINHO E APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

Artigo científico apresentado ao departamento

do curso de Direito da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte / CERES, para

obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Esp. Saulo de Medeiros

Torres.

CAICÓ-RN

2015

2

3

Uma (re)leitura constitucional da aplicação do princípio da Insignificância nos

crimes de furto, descaminho e apropriação indébita previdenciária.

João Paulo Pereira de Araújo1

RESUMO

Este artigo analisa as recentes decisões dos tribunais superiores brasileiros sobre o princípio

da insignificância e procura apontar algumas inconsistências no tratamento no uso de tal

princípio, a partir de uma (re)leitura constitucional. Tendo em vista que houve a fixação de

critérios objetivos para a aplicação do princípio da bagatela nos crimes de descaminho e

apropriação indébita previdenciária, é preciso também a definição para os crimes

patrimoniais, sobretudo o crime de furto.

PALAVRAS CHAVE: princípio da insignificância; Direito penal; Crimes contra o

patrimônio; Descaminho; Jurisprudência.

1. INTRODUÇÃO

A concepção de que o Direito Penal não deve se ocupar de toda e qualquer lesão social

não é novidade. Aliás, dando continuidade ao vetusto brocardo romano, minima non curat

praetor, o princípio da insignificância ou bagatela tem sido adotado no Brasil pela doutrina e

jurisprudência. A questão que se coloca na atualidade não parece dizer tanto respeito ao

reconhecimento ou não da vigência do princípio da insignificância, mas sim a algo muito mais

concreto, ainda que igualmente importante: à melhor e mais adequada forma de aplicá-lo.

Recentemente, decisões dos mais importantes tribunais brasileiros sobre a aplicação

do princípio da insignificância no direito penal, mas especificamente em relação a alguns

crimes em espécie, têm gerado aparentes inconsistências no sistema jurídico nacional.

Pela leitura de votos dos atuais ministros da Suprema Corte, percebe-se ser

meridianamente clara a situação de constrangimento gerada pela incongruência da

jurisprudência brasileira a respeito do tema.

1 Concluinte do Curso de Direito da UFRN/CERES-Caicó. Artigo apresentado como trabalho de conclusão do

curso, sob a orientação do Prof. Esp. Saulo de Medeiros Torres.

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Além da divergência entre os dois principais tribunais do país, há severa divergência

entre os próprios ministros do STF que clamam, avidamente, por uma solução definitiva do

plenário da Corte.

Em 02 de junho de 2015, a 11ª Turma do TRF3 decidiu pela aplicação do princípio da

insignificância em um caso de crime de apropriação indébita previdenciária. Os

desembargadores federais entenderam que é possível a aplicação do princípio da

insignificância, pois o objeto material do delito, que é apenas o valor do tributo não recolhido,

seria de apenas R$ 9.934,03. Dentre os argumentos utilizados, basearam-se os

desembargadores no entendimento do STF segundo o qual o princípio da insignificância é

aplicável quando o valor do imposto que não foi recolhido corresponde ao valor que o próprio

Estado, sujeito passivo do crime, manifesta desinteresse em sua cobrança, no caso, o valor de

R$ 20.000,00, nos termos da Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012.

Anteriormente, a mais alta corte do País já havia sedimentado o entendimento de que

no crime de descaminho, para a avaliação da insignificância, deve-se ter como parâmetro o

patamar de R$ 20.000,00, previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, atualizado pelas Portarias

nº 75 e nº 130/2012 do Ministério da Fazenda.

Diante desse quadro, inevitavelmente surgem algumas questões: porque o tratamento

desigual pelo mesmo sistema jurídico penal? É possível vincular a esfera penal à esfera

administrativa? Como justificar razoavelmente a aplicação do princípio da insignificância a

valores próximos a 20 mil reais num país em que a maioria das pessoas ganha um salário

mínimo e no qual os clientes dos crimes contra o patrimônio em sua maioria praticam crimes

de pequeno valor?

Urge advertir que a continuação dessa incoerência contribuirá, inevitavelmente, para a

seletividade “negativa” do direito penal, ou seja, para aumentar na sociedade a ideia tão

propagada de que o direito penal brasileiro pune apenas as pessoas das classes econômicas

desfavorecidas.

O método de pesquisa utilizado foi o dedutivo, isto é, partiu-se de um conceito geral

para um específico. Realizaram-se pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais. O trabalho

inicialmente procura apresentar sinteticamente as bases constitucionais do direito, a

conceituação de princípio, distinguindo princípios expressos e implícitos. Em seguida, faz-se

uma análise do princípio da insignificância, seu conceito e natureza jurídica.

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Num segundo momento, discorre-se sobre o princípio da insignificância cotejando-se

arestos de tribunais superiores. A partir da análise jurisprudencial e a constatação de

inconsistências na aplicação do princípio que o torna mais um instrumento de seletividade do

Direito Penal, sobretudo por utilizar critérios distintos nos crimes de descaminho e

apropriação indébita previdenciária por um lado, e nos crimes como furto, por outro,

apresenta-se uma possível solução para o problema, buscando, através de uma (re)leitura

constitucional, lançar luzes sobre as sombras do atual cenário no qual se encontra a aplicação

da bagatela no sistema jurídico brasileiro, sobretudo na jurisprudência dos tribunais

superiores.

2. O DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL

O Brasil atual é um estado constitucional e democrático de direito cujo centro de todo

o seu sistema jurídico é a constituição federal de 1988. Vive-se hoje um processo de

constitucionalização do direito (NOVELINO, 2015).

Diante desse fato inequívoco, torna-se despiciendo apresentar as razões pelas quais se

faz imprescindível proceder a uma (re)leitura constitucional do princípio da insignificância.

Isso porque os princípios do direito penal de uma nação devem ser parte da sua política de

Estado em geral.

Tudo isso tem um significado muito importante, pois o direito penal deve ser pensado

à luz da Constituição, seus valores, seus princípios e suas normas. Os institutos do direito

penal devem ser objeto de (re)leitura mais de acordo aos postulados democráticos e

garantistas da constituição de 1988.

Adverte, Aury Lopes Jr. (2012, p.73), ser comum em matéria penal “levantarem-se

vozes proclamando que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados)

frente à supremacia do interesse público”. Na verdade, o direito penal deve ser lido à luz da

constituição e não ao contrário. Os direitos fundamentais esculpidos na Constituição jamais

devem ser interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código

penal, ensina o professor gaúcho.

Em face da primazia dos direitos e garantias fundamentais na constituição, surge um

conflito complexo e decisivo: a liberdade individual e o poder de intervenção do Estado.

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Ora, se a liberdade individual, decorrência necessária do direito à vida e da própria

dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e nos

tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado democrático de direito,

avulta imprescindível que o ius puniendi, o poder de punir, a intervenção estatal na liberdade

individual, seja legitimado e justificado. É nesse sentido a precisa declaração de Juarez

Tavares (2003, p.162): “o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta

legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção.”

O que se pretende é que o direito penal passe por uma constitucionalização, ou seja,

seja (re)lido à luz dos valores esculpidos nas normas constitucionais. É nesse sentido que a

aplicação do princípio da insignificância deve ser estudado no direito pátrio.

3. PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS

A ideia de princípio ou o seu conceito, independentemente do campo do saber, designa

a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um

pensamento chave, por um referencial normativo, do qual todas as demais ideias,

pensamentos e normas derivam, reconduzem-se e se subordinam (MELLO, 2004).

Os princípios são norteadores de todo o sistema normativo, sejam eles positivados ou

não. Isso porque os princípios podem estar previstos expressamente em textos normativos, a

exemplo do princípio da legalidade, ou outros que, embora não positivados, são de

observância obrigatória, razão pela qual são denominados princípios gerais do direito.

Sejam os princípios expressos ou implícitos, positivados ou não, entende-se,

contemporaneamente, o seu caráter normativo. São concebidos como normas com alto nível

de generalidade e informadores de todo o ordenamento jurídico (NOVELINO, 2015).

Os princípios no universo jurídico passaram por um gradual processo que os elevou ao

centro do sistema jurídico. Segundo o grande constitucionalista, Paulo Bonavides (1998,

p.234), na atual fase pós-positivista, as constituições acentuam a “hegemonia axiológica dos

princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico

dos novos sistemas constitucionais”.

Devido aos limites deste trabalho, no entanto, prescindir-se-á desse longo itinerário

para assinalar que os princípios exercem atualmente a primazia sobre todo o ordenamento

jurídico, limitando, por meio dos valores por eles selecionados, a atividade legislativa,

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somente permitindo, no caso específico do direito penal, por exemplo, a criação normativa

que não lhes seja ofensiva.

Os princípios desempenham, dentre outros, funções hermenêuticas importantíssimas

no direito. É com base nos princípios, suas dimensões e relações, que deve ser feita a

interpretação das normas jurídicas. Os princípios terminam conduzindo o aplicador do direito

a buscar a solução que compatibilize princípios que estão em oposição, e nessa linha, chegar à

norma que harmonize a unidade do ordenamento com o modelo jurídico de Estado.

É possível que um tipo penal incriminador ou um tipo de pena sejam afastados da

ordem jurídica por confrontar um princípio, desde que não justificados por outro princípio

fundamental. A norma incriminadora, pelos menos, deve ser interpretada de modo a manter a

ordem jurídica íntegra, diante da solução jurídica mais adequada ao caso concreto, com base

na orientação teleológica do ordenamento de acordo com os valores condensados nos

princípios. Como bem assinala Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2004, p.103):

O telos do subsistema penal é dado com base nos princípios. São os princípios

protetivos da liberdade, e não o instituto da pena, que fazem o direito penal um

subsistema único e distinto de qualquer outro ramo do direito. Em outras palavras,

se o princípio carece de concretização, não é ele aplicado de forma direta e imediata;

ele se revela no texto das demais regras jurídicas, e se expressa por intermédio da lei

e da sentença. Um princípio, na verdade, é a concretização de um valor porque traz

um indício de consequência jurídica, e não a consequência jurídica propriamente

dita. E a lei, bem como a decisão judicial, será amiúde a revelação da consequência

jurídica indicada pelo princípio.

3.1 Direito penal, princípios e constituição

O direito penal é o ramo mais sensível do direito, pois lida como o conflito que existe

entre liberdade individual e ius puniendi do Estado. Enquanto o crime representa o mais grave

ataque praticado pelo indivíduo contra os mais preciosos bens jurídicos protegidos pelo

Estado, a sanção penal é a mais incisiva e onerosa forma de interferência do Estado na

liberdade individual (GRECO, 2011).

Por essa razão, o direito penal e seus respectivos princípios devem ser compatíveis

com os princípios e garantias constitucionais, de modo que um sistema jurídico penal

necessariamente faça referência aos preceitos constitucionais.

A constituição define os princípios fundamentais do modelo jurídico-político do

Estado e limita os bens jurídicos dignos de proteção. Mas não só. Ela define também os

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princípios gerais do subsistema jurídico-penal, que se encontram no texto constitucional e são

concretizados pela parte geral do código penal, com a finalidade de disciplinar e ordenar os

preceitos primário e secundário da infração penal. São os princípios penais constitucionais –

expressos ou implícitos – que caracterizam e legitimam o direito penal como subsistema

autônomo dentro da ordem constitucional (MELLO, 2004).

3.2 Princípios penais expressos

É possível enunciar os seguintes princípios de Direito Penal Constitucional,

insculpidos expressamente no art. 5º da Constituição Federal: legalidade (art. 5º, XXXIX);

intranscendência (art. 5º, inc. XLV); individualização da pena (art. 5º, inc. XLVI) e

humanidade (5º, XLVII). Pode-se dizer que há, também, os princípios da irretroatividade da

lei e o princípio da taxatividade, também expressos no art. 5º, inc. XXXIX da Carta Magna.

Segundo Mello (2004), os princípios de Direito Penal expressos na Constituição

traduzem de maneira inequívoca a evolução histórica do pensamento jurídico-penal, e,

permitem, pela compreensão dos mesmos, uma primeira leitura das feições que caracterizam

o subsistema jurídico-penal. Estes princípios expressos são aqueles que podem assumir a

forma de proposição jurídica, condensados numa regra imediatamente aplicável, e, por essa

razão, a observância e a adequação das demais regras jurídicas presentes no subsistema torna-

se mais fácil e evidente.

Ainda que tenham estrutura de proposição jurídica (como o princípio da reserva legal

e o princípio da intranscendência), não se pode negar-lhes o caráter de princípios

fundamentais, não apenas pelo seu grau de importância, fundamentalidade e hierarquia, mas

também, como sustenta o ex-ministro do STF, Eros Roberto Grau (1991, p. 112-112):

Os princípios comportam uma série infinita de aplicações, ou, em outras palavras,

uma série indeterminada de facti species expressamente presentes nas demais regras

jurídico-penais, e comparecem, de forma evidente, no texto normativo subordinado

e representam uma força interpretativa evidente nas referidas normas.

3.3 Princípios implícitos

Há no ordenamento jurídico-penal alguns princípios que, embora não enunciados

expressamente, desempenham papel decisivo no processo de aplicação do direito. O principal

problema que surge é identificá-los como densificações e concretizações de outros princípios

constitucionais estruturantes da ordem jurídica (QUEIROZ, 2001).

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Embora não expressos, faz-se mister reconhecer que os mesmos estão inegavelmente

presentes na ordem jurídica. Citando os ensinamentos de Eros Grau sobre os princípios gerais

de direito não explícitos, mas cuja aplicação aos princípios não expressos de Direito Penal

também é pertinente:

Os princípios gerais de direito, são, assim, efetivamente descoberto no

interior de determinado ordenamento. E o são justamente porque neste

mesmo ordenamento – isto é, no interior dele – já se encontravam, em estado

de latência.

Não se trata, portanto, de princípios que o aplicador do direito ou o intérprete

possa resgatar fora do ordenamento, em uma ordem suprapositiva ou no

Direito Natural. Insista-se: eles não são descobertos em um ideal de ‘Direito

justo’ ou em uma ideia de Direito (GRAU, 1991, p.130).

A doutrina aponta para diversos princípios implícitos, mas alguns deles destacam-se

pela sua constante referência na doutrina. Seriam a culpabilidade, a lesividade, a intervenção

mínima.

4. DA TIPICIDADE PENAL: FORMAL E MATERIAL

Prescindindo da problemática acerca da teoria do delito e conceito do crime,

majoritariamente se entende que para haver crime é preciso que o agente tenha praticado uma

ação típica, ilícita e culpável (GRECO, 2011).

O fato típico, primeiro elemento do conceito analítico de crime, é composto pela

conduta do agente, dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva; pelo resultado, bem como pelo

nexo de causalidade entre aquela e esta. Mas isso só não basta. A conduta do agente deve

também se amoldar a um modelo abstrato previsto na lei, denominado tipo.

Tipicidade significa, assim, a subsunção perfeita da conduta pratica pelo agente ao

modelo abstrato previsto na lei penal. Nas palavras do ilustre professor, Damásio de Jesus

(2013, p. 300), a tipicidade, num conceito preliminar, é “a correspondência entre o fato

praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal

incriminadora”.

Ora, a adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal (tipo)

faz surgir a tipicidade formal legal. Essa adequação deve ser perfeita, sob pena de o fato ser

considerado atípico formalmente. Para Luiz Flávio Gomes (2015, p.213), a tipicidade formal

“é a adequação de um fato a uma lei penal”.

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Uma vez verificada a tipicidade formal, é preciso também conferir se a conduta

imputada também é típica do ponto de vista material. A tipicidade material está alicerçada

sobre a noção de lesividade social. Mesmo sendo formalmente típica uma conduta que não

porte um grau relevante de nocividade para a vida em sociedade será materialmente atípica

(GRECO, 2011).

É justamente nesse ponto que se encaixa o princípio da insignificância. Em virtude do

conceito de tipicidade material, excluem-se dos tipos penais aqueles fatos reconhecidos como

de bagatela, nos quais tem aplicação o princípio da insignificância.

5. DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E GARANTISTA DO DIREITO PENAL

A despeito de conceituações divergentes, predomina atualmente no Estado

constitucional e democrático de direito que o direito penal não tutela tudo em uma sociedade:

há uma seletividade em sua atuação. O direito não protege, por exemplo, a moral ou a ética, a

religião ou a obediência divina, os valores culturais enquanto tais ou os interesses ou

estratégias governamentais ou supranacionais, também não tutela a ordem natural ou a norma

em si. O direito penal protege os bens jurídicos mais relevantes da pessoa humana. Nas

palavras de Luiz Flávio Gomes (2009, p. 228-229):

Uma das fundamentais missões (finalidades) do direito penal, a latere de

configurar um sistema de tutela do indivíduo diante das agressões de outros

indivíduos ou sobretudo diante da intervenção estatal, é a de proteger os bens

jurídicos mais relevantes da pessoa para possibilitar o desenvolvimento de

sua personalidade e sua realização ética, assim como a vida em comunidade.

Trata-se do núcleo essencial daquilo que a doutrina penalista denomina princípio da

exclusiva proteção de bens jurídicos que, ao lado de outros princípios fundamentais, quais

sejam, da materialidade do fato, da ofensividade do fato, da legalidade do fato, da

culpabilidade do agente etc., delimitam o ius puniendi, o direito de punir do Estado.

O fundamento nuclear da ideia de que o direito penal somente deve proteger os bens

jurídicos mais relevantes reside no princípio da dignidade da pessoa humana, valor máximo

do Estado constitucional e democrático de direito, erigido como princípio matriz da

constituição de 1988. A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da

ordem política supõe a proibição de restringir seus direitos quando isso não seja

imprescindível.

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5.1 Do caráter fragmentário do direito penal

Na dogmática penal, um dos seus preceitos fundamentais é o de que o direito penal

possui natureza fragmentária. Isso significa basicamente duas coisas: que não protege todos os

bens jurídicos, mas apenas os mais relevantes; também não protege os bens mais relevantes de

qualquer ofensa, mas somente daquelas consideradas concretas ou reais, graves,

transcendentais e intoleráveis.

As precisas lições de Gomes e Bianchini (2015, p. 59) põem luz sobre o caráter

fragmentário do direito penal:

É necessário que o direito penal apenas se ocupe de ataques (ofensas) intoleráveis

(geradoras de lesões ou perigo de lesão) a bens jurídicos relevantes. O direito penal,

por conta do caráter fragmentário que ostenta, somente tutelará e sancionará

condutas revestidas de especial gravidade, isto é, condutas que perturbem de forma

intolerável o Estado de direito e necessitem da atuação do direito penal. E somente

quando dirigidas à tutela de bens jurídicos relevantes.

5.2 Do caráter subsidiário do direito penal

Outro dogma da ortodoxia penal consubstancia-se na posição de subsidiariedade do

direito penal frente aos demais sistemas de controle social formal ou informal. Se outros

setores do ordenamento jurídico se apresentam como suficientes e, portanto, como mais

idôneos para a tutela de um determinado bem jurídico, não se deve utilizar o direito penal para

atender essa finalidade.

O célebre penalista Claus Roxin (1997, apud GRECO, 2011, p.65) assim explicou o

caráter subsidiário do direito penal:

A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o direito penal, senão que

nessa missão coopera todo o instrumental do ordenamento jurídico. O direito penal

é, inclusive, a última dentre as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer

dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do

problema - como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc.

por isso se denomina a pena como a ultima ratio da política social e se define sua

missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.

Em suma, costuma-se dizer que o direito penal é a ultima ratio, pois deve atuar de

modo fragmentário e subsidiário como o último instrumento de que o direito deve se valer

para a proteção de bens jurídicos. Isso é o que caracteriza o princípio da intervenção mínima,

que constitui a base do chamado direito penal mínimo. Assim leciona Bittencourt (2006, p.17):

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O princípio da intervenção mínima, também conhecido como última ratio,

orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a

criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário

para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção

revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é

inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem

jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas

que devem ser empregadas e não as penais.

Mas não só. Além de ser aplicado apenas como ultima ratio, o direito penal no atual

estágio do Estado constitucional e democrático de Direito deve também ser aplicado de forma

garantista, ou seja, com respeito às regras e princípios legais, constitucionais e internacionais,

afastando o arbítrio e as incertezas da punição criminal, tanto na criação de delitos, quanto na

cominação e na aplicação das penas.

Segundo o jurista Luigi Ferrajoli, maior expoente do garantismo penal, que também é

minimalista, e cujo pensamento pode ser assim resumido: mínima intervenção penal com as

máximas garantias:

O garantismo é o sistema penal em que a pena, excluindo a incerteza e a

imprevisibilidade de sua intervenção, ou seja, que se prende a um ideal de

racionalidade, condicionado exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da

liberdade do cidadão contra o arbítrio punitivo (FERRAJOLI, 1997, apud GOMES;

BIANCHINI, 2015, p. 60).

6. DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Um corolário do princípio da intervenção mínima do direito penal é o princípio da

insignificância ou bagatela cuja origem, segundo defendem majoritariamente os mais notórios

penalistas pátrios, é o vetusto brocardo latino de minimis non curat praetor. No entanto,

segundo leciona Fernando Capez (2011, p. 29) e Luís Regis Prado (2011, p. 1820), foi Claus

Roxin, célebre penalista alemão, quem introduziu a bagatela no direito penal contemporâneo

no ano de 1964.

De todo modo, é indiscutível que o princípio da insignificância é criação doutrinária e

pretoriana e tem sido aprimorado ao longo dos anos, sobretudo pelos tribunais superiores.

Desse modo, pode-se afirmar que constitui um princípio penal implícito, conforme já

classificação já abordada. Segundo ensinamento do penalista Rogério Greco (2011, p.61):

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O princípio da insignificância ou bagatela, uma criação doutrinária que

posteriormente foi consolidada pela jurisprudência, afasta a relevância penal

de comportamentos que, embora sejam adequados à descrição típica, não

afetam significativamente o bem jurídico protegido pela norma.

O penalista Paulo Queiroz (2001, p. 30), por sua vez, assim descreve o princípio:

Por meio do princípio da insignificância (ou bagatela), o juiz, à vista da

desproporção entre ação (crime) e a reação (castigo), fará um juízo

(valorativo) acerca da tipicidade material da conduta, recusando curso a

comportamentos que, embora formalmente típicos (criminalizados) não o

sejam materialmente, dada a sua irrelevância.

Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 71) afirma que: "Com relação a insignificância

(crime de bagatela), sustenta-se que o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funciona

como ultima ratio, no sistema punitivo, não se deve ocupar de bagatelas".

Segundo Ivan Luiz da Silva (2011, p. 83):

O legislador penal, em sua função legiferante, descreve abstratamente a conduta

típica procurando colocar em seu arcabouço o maior número possível de atos

humanos. Todavia, a imperfeição da técnica legislativa faz que condutas sem

relevância jurídica alguma para o Direito Penal sejam consideradas formalmente

típicas, quando deveriam ser excluídas da incidência da lei criminal já que os fatos

sociais visados pelo legislador penal são aqueles posam causar danos significativos

aos bens jurídicos penalmente tutelados.

Por outro lado, há autores que criticam o princípio da insignificância. Maurício Antônio

ribeiro Lopes (2000, p.77) apontou os principais argumentos dos críticos:

a) Pelo fato de o princípio da insignificância não encontrar previsão legislativa, sendo

apenas criação doutrinária, muitos autores e julgados o contestam, afirmando que seu

reconhecimento traria profunda insegurança jurídica.

b) Previsão legislativa de condutas imbuídas de um desvalor de resultado. O Código

Penal Brasileiro prevê, em alguns casos (como art. 155, §2º e art. 170), figuras

privilegiadas ou causas de diminuição de pena, considerando como fundamento o

pequeno valor da coisa ou do prejuízo da vítima. Alguns autores entendem, então, que

o princípio da insignificância estaria implicitamente impedido de ser invocado,

considerando lesão de pequeno valor como sinônimo de insignificante.

c) Ausência de resposta jurídica às lesões de direitos: Há quem veja na aplicação do

princípio da insignificância uma ausência de resposta jurídica a violações de direitos, e

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que eventual inexistência de resposta do Estado poderia quebrar a harmonia social ao

provocar uma busca pessoal por justiça.

6.1 Natureza jurídica do princípio da insignificância

Tanto a doutrina mais abalizada quanto o Supremo Tribunal Federal, no paradigmático

julgamento do HC 84.412, consolidaram o entendimento segundo o qual a aplicação do

princípio da insignificância implica no reconhecimento da atipicidade da conduta do agente

(GOMES; BIANCHINI, 2009).

Em termos gerais, esta concepção dominante, ao aportar juízos político-criminais aos

institutos da teoria geral do delito, assume que a categoria “tipicidade” não apenas serve para

subsumir um fato a um preceito legal, servindo, também, para realizar um verdadeiro juízo de

valoração sobre a conduta praticada, relativo ao bem jurídico tutelado pelo tipo. É nisso que

consiste o que se tem chamado de “tipicidade material”: trata-se do reconhecimento de uma

dimensão do tipo objetivo dotada de conteúdo valorativo, a qual exige que toda avaliação

acerca da tipicidade de uma conduta seja feita também sob a ótica da relevância da lesão

praticada contra o bem jurídico protegido pela norma.

Neste grande contexto é que surge o princípio da insignificância, precisamente para

garantir que, nas situações em que a conduta objetivamente praticada pelo agente não afeta de

forma relevante um bem jurídico, seja então afastada sua tipicidade penal material, com o que

está de acordo a grande maioria dos teóricos e dos operadores do Direito brasileiros (GRECO,

2011).

Dessa forma, em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção

mínima do Estado em matéria penal, o princípio da insignificância qualifica-se como fator de

descaracterização material da tipicidade penal. Ou seja, com a aplicação de tal princípio,

afasta-se ou se exclui a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter

material (GOMES; BIANCHINI, 2009).

Em suma, poder-se-ia afirmar que não há crime quando o agente pratica fato cuja

lesividade é insignificante. Isso significa que o Direito Penal somente deve agir até onde seja

necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas. Decorre daí o

princípio da insignificância, que pode ser conceituado como sendo aquele que permite afastar

a tipicidade material de fatos causadores de danos de pouca ou nenhuma importância.

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6.2 Requisitos para a aplicação do princípio da insignificância

Como já foi sublinhado, por não haver ainda uma disciplina legal, uma vez que se

constitui num princípio penal implícito, o princípio da insignificância tem provocado acesas

discussões doutrinárias e jurisprudenciais em relação à sua aplicação. Durante vários anos

inexistia um critério objetivo para a aplicação do princípio da insignificância, gerando

insegurança jurídica.

De acordo com Luís Flávio Gomes e Alice Bianchini (2015), em 2004, depois de

vários julgados, com o desiderato de instituir critérios objetivos para a aplicação do princípio,

o Pretório Excelso, no HC 84.412-SP, de relatoria do Ministro Celso de Melo, decidiu que

constituem condições para o reconhecimento do princípio da insignificância: mínima

ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; grau reduzido de

reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Desde então, esses quatro vetores passaram a ser analisados pelo magistrado, à luz do

caso concreto, na aferição do relevo material da tipicidade penal e a consequente aplicação do

princípio da insignificância. Tais critérios, no entanto, foram alvo de críticas por parte da

doutrina, sobretudo por sua vaguidade, uma vez que todos são abertos, deixando uma margem

enorme para a subjetividade de cada julgador: enquanto uns interpretam com maior

amplitude, outros procedem de forma diametralmente oposta. (GOMES, 2015; GRECO,

2011).

6.3 A aplicação do princípio da insignificância no direito penal brasileiro.

Com a fixação dos quatro critérios mencionados, o STF e outros tribunais passaram a

aplicar a bagatela aos crimes patrimoniais e assemelhados com base nos parâmetros adotados.

Entretanto, deve-se reconhecer que são critérios pouco precisos, vagos, abrangentes, que

buscam abrigar toda uma gama de casos concretos heterogêneos seja quanto ao bem

protegido, seja quanto ao modo de agir. A ausência de parâmetros mais definidos resultou na

aplicação díspar do princípio, que ora se alarga, ora se comprime, em uma sequência aleatória

de decisões que reflete a dificuldade de trabalhar com um instituto ainda em construção.

Alguns pesquisadores, após breve análise da jurisprudência sobre o tema, descobriram

a falta de consenso sobre inúmeras questões. No campo dos crimes contra a administração

pública, há decisões que afastam o reconhecimento da insignificância e outras que o admitem

expressamente. No tocante à aplicação da bagatela em crimes contra a fé pública, por outro

16

lado, há julgados que afastam a bagatela em qualquer hipótese se o delito for de falsificação

de moeda, diante da periculosidade sistêmica do comportamento. Outros, porém, admitem a

insignificância na falsidade diante de algumas circunstâncias. Também se discute a

possibilidade de aplicação da insignificância a casos com violência ou ameaça: a maioria dos

julgados reconhece a tipicidade mesmo se constatado o pequeno valor do bem lesionado, no

entanto o próprio STF já aplicou a insignificância a crime de lesões corporais dolosas,

divergindo da tendência apontada (BOTINI, 2001).

Ainda se nota controvérsia sobre a verificação da bagatela em casos de crimes

praticados em concurso de agentes, nos casos em que o réu é reincidente ou apresenta maus

antecedentes, ou nos crimes praticados contra a administração pública.

Por todos esses dados, as bases sobre as quais se construiu e se aplica a jurisprudência

da insignificância não são precisas, e os precedentes não raro conflitam entre si em diversos

aspectos, como assinalado. Mas isso não impediu a adoção do princípio em âmbitos cada vez

mais abrangentes e diversos. Do estreito campo dos crimes patrimoniais, o princípio passou a

ser admitido para crimes ambientais, contra direitos trabalhistas, telecomunicações, dentre

outros delitos nos quais a magnitude da lesão pode ser aferida como elemento de

materialidade típica (GOMES; BIANCHINI, 2015).

Em suma, atualmente há decisões nesse imenso país nas quais não se aplica o

princípio da insignificância se o acusado é reincidente, mesmo que o objeto do crime seja uma

galinha no valor de R$ 30,00 (trinta reais). Por outro lado, há decisões em que se têm

aplicado.

Paradigmático é o seguinte caso que chegou ao STJ. Trata-se de um processo no qual

o STJ decidiu que devem ser analisadas também particularidades do caso, como a

expressividade da lesão, o valor do objeto furtado e o que significava para a vítima ou se

houve violência. Foi o que decidiu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao trancar ação

penal aberta contra homem que furtou chocolate e já tinha uma condenação transitada em

julgado (BOTINI, 2001).

A 6ª Turma seguiu o voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior. Seguindo

orientação do Supremo Tribunal Federal, ele afirmou que, em casos com este, deve ser

aplicado o princípio da ponderação entre o dano causado pelo crime e a pena que será imposta

ao réu depois.

17

O réu foi preso em flagrante pelo furto de uma barra de chocolate em um

supermercado em São Paulo. O chocolate custava R$ 28 (vinte e oito reais) e foi

imediatamente devolvido, mas, por conta de sua outra condenação também por furto, o

homem acabou condenado.

Em Habeas Corpus, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que o caso não

deveria ser trancado. O tribunal entendeu que aplicar o princípio da insignificância ao caso de

réu reincidente seria como estimular a prática criminosa. Mas o ministro Sebastião Reis

Júnior discordou. Para ele, nem a reincidência nem a reiteração criminosa, tampouco a

habitualidade delitiva, são suficientes, por si sós e isoladamente, para afastar a aplicação do

denominado princípio da insignificância. Seu voto foi seguido à unanimidade (BOTINI,

2001).

Em que pese tal polêmica e indefinição jurisprudencial, a conclusão a que se chega é

que ainda há muita subjetividade e imprecisão na aplicação do princípio da insignificância aos

crimes patrimoniais, sobretudo o crime de furto.O mesmo não ocorre, porém, em relação aos

crimes de descaminho e apropriação indébita previdenciária.

7. APLICAÇÃO ATUAL DA BAGATELA NO CRIME DE DESCAMINHO.

Houve nos últimos anos uma celeuma jurisprudencial entre os tribunais superiores,

notadamente o STF e o STJ, sobre a aplicação do princípio da insignificância no delito de

descaminho.

No STJ, a 5ª e a 6ª turmas divergiam sobre a aplicação do referido princípio no crime

de descaminho. A questão foi resolvida em Recurso Especial, nº 1.112.748 que tramitou sobre

a forma de recurso repetitivo. Em decisão histórica, realizada em Novembro de 2014, o

tribunal decidiu que o princípio da insignificância só é aplicável ao crime de descaminho -

previsto no artigo 334 do Código Penal - quando o valor dos tributos não pagos for inferior a

R$ 10 mil, seguindo assim o entendimento do Supremo Tribunal Federal (GOMES;

BIANCHINI, 2015).

Com essa decisão do STJ, aparentemente a celeuma estava elucidada. Mas não foi isso

que ocorreu. O limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) foi instituído pela Lei 11.033/04 (que

alterou a Lei 10.522/02) como valor mínimo para a Fazenda Nacional executar dívidas fiscais.

Ocorre que, posteriormente, a portaria 75/2012, do Ministério da Fazenda, elevou esse valor

para R$ 20.000,00 (vinte mil reais). A partir disso, alguns tribunais, como o TRF-4, adotaram

18

o entendimento segundo o qual se a administração fazendária decidiu não executar débitos

abaixo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), esse também deveria ser o limite para a aplicação do

direito penal aos casos de descaminho (BOTINI, 2011).

Novamente a celeuma veio à tona agora sob nova roupagem. De acordo com

entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, esse limite de R$10.000,00 (dez

mil reais) não pode ser alterado por portaria do ministro da Fazenda, mas apenas por lei.

Por outro lado, no STF, tanto a 1ª quanto a 2ª turmas têm decidido atualmente que é o

caso de reconhecimento do princípio da insignificância sempre que, além de preencher os

requisitos subjetivos necessários - quais sejam, o denunciado não seja pessoa dedicada à

atividade criminosa e contumaz na prática do ilícito -, o patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil

reais), previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, atualizado pelas Portarias 75 e 130/2012 do

Ministério da Fazenda (BOTINI, 2011).

8. APLICAÇÃO ATUAL DA BAGATELA NO CRIME DE APROPRIAÇÃO

INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

De lege lata, o art. 168-A, §3 do Código Penal, no crime de apropriação indébita

previdenciária, faculta ao juiz perdoar ou aplicar somente pena pecuniária quando, primário e

portador de bons antecedentes, o agente: “(...) II. Se apropria de valor incapaz de movimentar

a máquina administrativa no sentido de receber o montante devido”.

Ao comentar essa disposição legal, o professor, Rogério Sanches Cunha (2014, p.340)

leciona que:

Deve-se preferir a consideração da insignificância sobre o perdão judicial, pois, se

de um lado, é certo que o legislador facultou ao juiz (até o valor de R$20 mil, de

acordo com a portaria 75 do MF) a concessão de perdão judicial ou aplicação só da

multa, de outro, não menos correto é que, pela mesma portaria, a dívida ativa até

esse montante não deve ser executada. Ora, se esse valor é insignificante para o fim

de ajuizamento da execução fiscal, como muito mais razão é irrelevante para fins

penais.

Em julgado paradigmático, o ministro Gilson Dipp do STJ considerou que a

jurisprudência já é pacífica no sentido de que o princípio da insignificância se aplica a

situações em que os débitos tributários envolvidos não passem de R$ 10 mil. No caso, ele

considerou a hipótese do crime de bagatela, em decorrência do artigo 20 da Lei 10.522/02,

19

conforme ficou decidido pela Terceira Seção do STJ ao julgar o REsp 1.112.748, no regime

dos recursos repetitivos (BOTINI, 2011).

Ainda segundo o ministro, com o advento da Lei 11.457/07, que incluiu os débitos

relativos à contribuição previdenciária na dívida ativa da União, o mesmo raciocínio aplicado

ao delito de descaminho, quanto à incidência do princípio da insignificância, deve ser adotado

para o crime de não recolhimento das contribuições para a previdência social.

Em recentíssimo julgado, como já citado acima, mais precisamente em 02 de junho de

2015, a 11ª Turma do TRF3 decidiu pela aplicação do princípio da insignificância em um

caso de crime de apropriação indébita previdenciária. Os desembargadores federais

entenderam que é possível a aplicação do princípio da insignificância, pois o objeto material

do delito que é apenas o valor do tributo não recolhido, seria, no caso concreto, de apenas R$

9.934,03.

Na argumentação, citaram o entendimento do Supremo Tribunal Federal segundo o

qual o princípio da insignificância é aplicável quando o valor do imposto que não foi

recolhido corresponde ao valor que o próprio Estado, sujeito passivo do crime, manifesta

desinteresse em sua cobrança, no caso, o valor de R$ 20.000,00, nos termos da Portaria MF nº

75, de 22 de março de 2012 (BOTINI, 2011).

Com isso chegamos a mais uma conclusão. Assim como no crime de descaminho, no

delito de apropriação indébita previdenciária será aplicado o princípio da insignificância

quando o valor não ultrapassar R$ 20 mil.

9. UMA (RE) LEITURA CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA

INSIGNIFICÂNCIA

Na atual aplicação da bagatela pelos tribunais superiores há uma afronta direta a

alguns princípios constitucionais tais como a dignidade humana, intervenção mínima,

lesividade, fragmentariedade e proporcionalidade. Entretanto, por razões práticas, este

trabalho aprofundará apenas o princípio da isonomia.

9.1 Todos são iguais perante a lei

A constituição Federal, como visto alhures, definiu como um dos pilares fundamentais

do Estado Brasileiro o princípio da isonomia ou igualdade: “Todos são iguais perante a lei,

sem distinção de qualquer natureza, garantindo-lhes aos brasileiros e aos estrangeiros

20

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade (...)” (art 5º, caput, CF/88, grifo nosso).

José Afonso da Silva (2004) dispõe em seu consagrado livro que o princípio da

igualdade não tem tido tantas discussões como o princípio da liberdade uma vez que, a

isonomia constituiu o signo fundamental da democracia. Por não admitir privilégios e

distinções permitidos em um Estado liberal, o princípio acaba distoando diretamente dos

interesses da burguesia que visa o domínio de classes.

Prescindindo de uma análise aprofundada do princípio da isonomia, cujo conteúdo

constitucional, segundo Marcelo Novelino (2015), impõe o dever jurídico de igual tratamento

a indivíduos, grupos, coisas ou situações que pertençam à mesma categoria essencial, com o

reconhecimento definitivo da força normativa da constituição e da vinculação do legislador

aos direitos fundamentais, prevalece hoje o entendimento de que o princípio da igualdade se

dirige não apenas aos poderes encarregados da aplicação da lei, mas também ao legislador no

momento da criação do direito.

É neste ponto que fazemos eco às críticas de Nilo Batista (2005), para quem o sistema

penal é apresentado à sociedade como sendo igualitário, ou seja, atinge igualmente todas as

pessoas, em razão de sua conduta, mas na verdade verifica-se na prática que o seu

funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas.

Constata-se, a par disso, que a aplicação do princípio da insignificância atualmente

tem contribuído para aumentar a sensação de que o sistema penal tem sido bastante seletivo,

do ponto de vista negativo, levando ao cárcere apenas um determinado grupo social, os mais

vulneráveis, violando flagrantemente o princípio constitucional da isonomia.

É certo que a seletividade está presente no sistema penal brasileiro, sendo a sua

característica estrutural mais importante, já que é através dela que se faz possível a escolha de

quais condutas, nos níveis abstrato e concreto serão punidas, como já abordado no início deste

trabalho.

Em nível abstrato, a chamada “seletividade primária” fica evidente quando o

legislador seleciona as condutas sociais que não serão aceitas e as tipifica como crime. A

nível concreto, a “seletividade secundária” é percebida quando as agências policiais, com

auxílio e grande influência das agências comunicativas, decidem que acontecimentos devem

21

ser investigados para que, posteriormente, a agência judicial decida a respeito da necessidade

ou não da punição (BATISTA, 2005).

Ocorre que, ao selecionar determinados indivíduos, o sistema penal acaba por criar de

um figurino social do criminoso que, como tal, deve ser combatido a todo custo e excluído do

meio social, já que, ao violar o contrato social com o cometimento de um crime, ele perde o

seu status de cidadão, o que acarreta a possibilidade de supressão de suas garantias

constitucionais e processuais, como o direito à isonomia e à presunção de inocência.

Quando atribui rótulos, o sistema penal age segundo o que Jakobs, célebre penalista

alemão, chamou de “Direito Penal do Inimigo”, já que o indivíduo é punido pelo que ele

representa e não pelo crime que eventualmente possa ter cometido, atentando flagrantemente

contra o princípio da presunção de inocência e gerando uma inversão completa do ônus da

prova, já que o acusado é que passa a ter que provar que não cometeu crime, e não o oposto,

como deveria ser (GOMES; Bianchini, 2015).

Para ilustrar esse preocupante cenário, o ministro do STF, Luix Fux, em recente

pronunciamento, exclamou que às vezes, a justiça brasileira prende por R$ 500,00

(quinhentos reais) e libera R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Isso porque o sistema jurídico

atualmente permite tratamento diferenciado à aplicação do princípio da insignificância nos

crimes patrimoniais como furto de um lado, e para crimes como descaminho e apropriação

indébita previdenciária, de outro (BOTINI, 2011).

Como já foi ressaltado, atualmente a jurisprudência majoritária dos tribunais

superiores inclina-se a não aplicação do princípio da insignificância quando o acusado é

reincidente, mesmo que seja de furto de objeto de pequeno valor. Entretanto, aos poucos

surgiram decisões contrárias a esse entendimento.

Uma das funções do princípio da lesividade é a de impedir que o agente seja punido

por aquilo que ele é, e não pelo que fez. Busca-se, assim, impedir que seja erigido um

autêntico direito penal do autor. O prestigiado professor argentino Raúl Zaffaroni (1996, apud

GRECO, 2011, p.53) categoricamente afirma que:

Seja qual for a perspectiva a partir de que se queira fundamentar o direito

penal do autor (culpabilidade de autor ou periculosidade), o certo é que um

direito que reconheça, mas que também respeite, a autonomia moral da

pessoa jamais pode penalizar o ser de uma pessoa, mas somente o seu agir,

já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana.

22

O instituto da reincidência por si só é carregado de críticas pelo fato de o agente que

cometeu nova conduta típica já ter sido punido pelo ato praticado anteriormente e, de certa

forma, sofrer outras reprimendas pelo simples fato de ser reincidente. Além de todos os

prejuízos que a lei penal traz ao reincidente, a despeito de afrontar o princípio da legalidade, a

jurisprudência pátria tem entendido que não cabe a aplicação do princípio da insignificância

quando o agente é reincidente.

Data máxima vênia, essa posição pretoriana é, por demais, equivocada. No direito

penal do fato analisa-se o fato praticado pelo agente, e não o agente do fato. Na conceituação

de Roxin (1997, apud GRECO, 2011, p.383):

Por direito penal do fato se entende uma regulação legal, em virtude da qual

a punibilidade se vincula a uma ação concreta descrita tipicamente e a

sanção representa somente a resposta ao fato individual, e não a toda a

condução de vida do autor ou aos perigos que no futuro se esperam do

mesmo. Ao contrário, se tratará de um direito penal do autor quando a pena

se vincule à personalidade do autor e seja a sua antissocialidade e o grau da

mesma que determinem a sanção.

Não se descuida, porém, da preocupação daqueles que pleiteiam pelo tratamento

diferenciado para dos denominados “delinquentes habituais”, que praticam reiteradas

criminosas. Segundo tal entendimento, o criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de

pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas

irrelevantes, pois crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas

relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de

vida.

Argumentam que o princípio da insignificância não pode ser acolhido para resguardar

e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta

ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto.

Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido

a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito

penal.

Mas como conciliar esse tratamento diferenciado com os princípios constitucionais do

direito penal?

23

Só o fato de o réu ser reincidente não deve afastar a aplicação do princípio da

insignificância. É imprescindível que sejam analisadas também as particularidades do caso

concreto, como a expressividade da lesão, o valor do objeto furtado e o que significava para a

vítima ou se houve violência. Em recentes decisões, a 6ª turma do Superior Tribunal de

Justiça decidiu trancar ação penal aberta contra homem que furtou chocolate e já tinha uma

condenação transitada em julgado. Argumentou-se que, em casos com este, deve ser aplicado

o princípio da ponderação entre o dano causado pelo crime e a pena que será imposta ao réu

depois.

9.2 Sobre alguns problemas dogmáticos

Está consolidado no direito brasileiro o entendimento segundo o qual a aplicação do

princípio da insignificância implica no reconhecimento da atipicidade da conduta do agente,

conforme já abordado. Em termos gerais, esta concepção dominante, ao aportar juízos

político-criminais aos institutos da teoria geral do delito, assume que a categoria tipicidade

não apenas serve para subsumir um fato a um preceito legal, servindo, também, para realizar

um verdadeiro juízo de valoração sobre a conduta praticada, relativo ao bem jurídico tutelado

pelo tipo (BIANCHINI et al., 2009).

É precisamente nisso que consiste o que se tem chamado de “tipicidade material”:

trata-se do reconhecimento de uma dimensão do tipo objetivo dotada de conteúdo valorativo,

a qual exige que toda avaliação acerca da tipicidade de uma conduta seja feita também sob a

ótica da relevância da lesão praticada contra o bem jurídico protegido pela norma.

Neste grande contexto, como visto, é que surge o princípio da insignificância,

precisamente para garantir que, nas situações em que a conduta objetivamente praticada pelo

agente não afeta de forma relevante um bem jurídico, seja então afastada sua tipicidade penal

material.

Ora, sabe-se que todo crime pressupõe uma ação típica, antijurídica e culpável. Sabe-

se também que, para ser típica, a ação deve preencher todos os elementos, objetivos e

subjetivos, formais e materiais, do tipo e, para ser culpável, deve-se poder fazer por ela

responsável o autor, no sentido de se poder lhe reprovar pessoalmente pela conduta típica e

antijurídica praticada.

Neste sentido, ensina o professor Juarez Cirino dos Santos (2006, p. 274) que

24

A culpabilidade consiste em um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é

reprovado), que tem por objeto a prática da conduta típica e antijurídica, e por

fundamento a capacidade do sujeito concreto de saber o que faz, de poder saber que

o que faz está proibido e de poder não praticar a conduta naquelas circunstâncias

(normalidade das circunstâncias). Afirmada a culpabilidade, fundamento da pena, a

sanção penal já pode, em regra, ser aplicada e será quantificada em conformidade,

primeiramente, com as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP.

Não é isso, contudo, que tem ocorrido. Na aplicação da bagatela, há uma tendência a

confundir o juízo de tipicidade com juízo sobre a culpabilidade, e até mesmo com a medida da

pena, que tem por pressuposto já a conduta que se possa dizer típica, antijurídica e culpável.

Para exemplificar, os fatos de o réu ser foragido da Justiça, ter condenação anterior, ser

processado por outros delitos ou mostrar descomprometimento com os valores tutelados pelo

Direito são considerações estranhas ao juízo de tipicidade, não tendo impacto algum no juízo

acerca de ser ou não objetivamente insignificante a lesão ao bem jurídico (no caso) do

patrimônio. O mesmo vale para os fatos de a prática de vários delitos: nada dizem com a

tipicidade material do furto. Tais considerações se ligam, pelo contrário, ao autor concreto

que praticou o crime e pertencem, pois, ao juízo de culpabilidade e à medida da pena, quando

muito (SANTOS, 2006).

De acordo com Heloisa Estellita e Yuri Corrêa da Luz (2011, p.2), ocorre assim um

verdadeiro “processo de pessoalização do princípio da insignificância, que condiciona a

aplicação deste instituto à verificação de uma série de circunstâncias subjetivas e pessoais do

autor”. Tal processo não apenas se mostra inconsistente do ponto de vista sistemático, como

também, e principalmente, gera graves consequências político-criminais para todos aqueles

pleiteiam a guarida do instituto em sua defesa.

No plano sistemático, a inconsistência decorre da incompatibilidade de tal

“pessoalização” com a concepção adotada pela doutrina majoritária, e acolhida pelo STF, em

relação ao princípio da insignificância. Como apontado, este instituto é amplamente visto

como circunstância que afasta a tipicidade da conduta. Um comportamento penalmente

insignificante é, portanto, um comportamento atípico para todos os efeitos, sendo possível até

mesmo que um promotor, ao reconhecer este fato, deixe de promover a denúncia sobre o caso.

Se este é um ponto partilhado por todos, então, consequentemente, apenas elementos

pertinentes à análise da tipicidade é que deveriam ser levados em conta para se dizer se

estamos ou não diante de um comportamento penalmente insignificante (ESTELLITA; LUZ,

2011).

25

Dito de outro modo: para analisar se a um caso se aplica o referido princípio, deve-se

apenas e tão somente analisar aquilo que é pertinente ao juízo de tipicidade, vale dizer: a

possibilidade de subsunção do fato à norma (tipicidade formal), bem como a relevância do

desvalor da ação e do desvalor do resultado presente na conduta (tipicidade material). Nestes

termos, tudo aquilo que exceder este âmbito deve fazer parte de outra ordem de

considerações, não mais sobre a insignificância da conduta, mas sim sobre as características

pessoais de seu autor. E se não se leva em conta estes diferentes níveis sistemáticos, trazendo

para o bojo da análise sobre a insignificância de uma conduta considerações sobre o passado

de seu autor, sobre os processos que ele responde, sobre eventuais condenações por ele

sofridas etc., acabam-se gerando graves incongruências, tomando-se este instituto como um

juízo de tipicidade, sem que, contudo, ele seja condicionado exclusivamente às exigências

próprias desta categoria.

Se este problema de coerência interna já é em si preocupante, mais graves ainda se

mostram os problemas político-criminais derivados deste processo de “pessoalização” do

princípio da insignificância. Isso porque, mais do que um simples problema teórico, motivado

por preocupações puristas com uma correta aplicação dos conceitos da teoria do delito, o

fenômeno expresso nos julgados acima referidos acaba implicando em uma sensível restrição

do âmbito de aplicação deste princípio. Afinal, se do que se trata não é apenas de analisar se

uma conduta atingiu ou não um bem jurídico de modo relevante, mas sim e também de avaliar

se seu agente já cometeu outros delitos, ou mesmo se responde a outros processos sem

trânsito em julgado, então as condições jurídicas para que se reconheça a insignificância penal

em um caso concreto aumentam drasticamente insignificante (ESTELLITA; LUZ, 2011).

Por meio desta transformação do “princípio da insignificância do ato” em uma espécie

de “princípio da insignificância do próprio autor”, uma série de condutas objetivamente

insignificantes (como o furto de um fósforo) passa a ser objeto da mais gravosa forma de

intervenção estatal, como se a reincidência em um ato insignificante pudesse torná-lo

instantaneamente algo relevante para o Direito Penal.

10. UMA SOLUÇÃO PARA O SISTEMA

Postas essas premissas, é imperioso encontrar respostas para as contradições do

sistema jurídico em relação à aplicação jurisprudencial do princípio da insignificância. É

preciso que sejam resolvidas algumas questões abertas.

26

No tocante ao crime de descaminho e apropriação indébita previdenciária, questiona-

se: é possível haver uma vinculação do princípio da insignificância ao valor da dívida mínima

executável pela autoridade administrativa?

Esse entendimento dos tribunais superiores é fruto de uma opção de política

administrativo-fiscal, movida por interesses do Estado conectados à conveniência, à

economicidade e à eficácia administrativas. A questão que surge é: deve haver a subordinação

do exercício da jurisdição penal à iniciativa de uma autoridade fazendária?

A aplicação da insignificância a crimes tributários de até R$ 20 mil - ou mesmo R$10

mil - não contrasta com os parâmetros adotados pelos tribunais em relação à “criminalidade

de rua”, se o STJ já se negou a considerar insignificante o furto de uma colher avaliada em R$

4,00 só porque um muro foi escalado para a prática do crime?

Recentemente bradou o ministro Luis Roberto Barroso que não faz muito sentido

condenar por cem reais e absolver por vinte mil reais. Isso porque houve um caso que chegou

ao Plenário do STF de um furto de um par de chinelos, no valor de dezesseis reais, de um réu

que não era primário. Já tinha roubado roupa no varal e já tinha dois antecedentes de

miudezas. A jurisprudência das Turmas do STF é de que, em caso de reincidência, não se

reconhece a insignificância. No caso, o cidadão foi condenado a um ano e dois meses em

regime semiaberto. Portanto, ele tem que entrar no sistema. E o dia em que ele entra no

sistema, dependendo de onde ele entre, ele já tem que escolher a qual facção vai pertencer. E

quando ele sair, três meses depois, vai ser uma pessoa muito mais perigosa. Por conseguinte,

é essa a reflexão que deve ser feita (BOTINI, 2011).

Não se defende aqui que se deve endossar uma conduta que é reprovável. Questiona-

se, na verdade, qual das opções é a melhor para a sociedade brasileira hodierna: não punir um

fato que é punível, aplicando o princípio da insignificância, ou produzir um delinquente muito

pior do que o autor do crime de bagatela.

Além disso, como explicar a um cidadão de bem que um homem muito pobre está

preso porque furtou uma galinha no valor de R$ 30,00 e não teve direito ao princípio da

insignificância por ser reincidente noutro furto, enquanto pessoas de boas condições

financeiras não serão sequer processadas quando deixaram de recolher valores próximos a R$

20 mil?

27

Não é contraditório e aberrante considerar uma conduta atípica de um agente que deixa

de recolher aos cofres públicos, por exemplo, R$ 19 mil num país em que reina a precariedade

dos serviços básicos de saúde, educação e segurança?

A análise para a aplicação da insignificância não pode ocorrer unicamente sob a ótica

da conveniência da administração tributária, pois o bem jurídico tutelado no crime de

descaminho não é apenas o erário. Outros valores estão envolvidos, como o prestígio da

administração pública, a regulação da balança comercial e a proteção à indústria nacional.

Além disso, a opção da Fazenda de deixar de executar dívidas inferiores ao limite

estabelecido não significa que o Estado tenha perdoado o débito fiscal, o qual poderá ser

cobrado administrativamente.

Não há a declaração de extinção da dívida pelo Estado, mas unicamente uma opção de

não cobrar a dívida. Como, então, estabelecer para fins penais um valor considerado em sede

executivo-fiscal, com base apenas no custo benefício da operação, se não houve, de fato, a

renúncia do tributo pelo estado?

Urge a realização desse debate pelo Supremo Tribunal Federal, cuja postura e altivez

tem levado o Poder Judiciário brasileiro a solucionar conflitos muito mais complexos como os

casos de aborto, união homoafetiva etc. Essa reflexão, que não é juridicamente singela nem

moralmente barata deve ser feita para solucionar ou, quiçá, minimizar as incongruências do

sistema jurídico nacional.

De lege ferenda, uma vez que já foi fixado um valor objetivo para a aplicação do

princípio da insignificância nos crimes de descaminho e apropriação indébita previdenciária,

deverá a jurisprudência ou o próprio legislador definir também critérios para a aplicação da

bagatela, quais sejam, valores objetivos para os demais crimes, tais como o furto e o

estelionato, crimes contra o patrimônio de alta incidência no sistema penal brasileiro, bem

como a aplicação de tal princípio nos casos de reincidência ou maus antecedentes.

É imperiosa uma urgente reformulação do sistema penal brasileiro de modo a corrigir

as graves distorções que tem prevalecido, sobretudo na jurisprudência dos tribunais

superiores, relativos ao princípio da insignificância. Não é possível, num país com tanta

desigualdade social, que haja tratamento distinto para aqueles que não recolhem aos cofres

públicos valores até 20 mil e sejam punidos aqueles que causam pequenos danos patrimoniais.

28

O que se pretende é o estabelecimento de critérios mais equitativos na aplicação do princípio

da insignificância.

11. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese a existência de corrente minoritária mais radical da doutrina que entende

ser merecedor da proteção do direito penal todo e qualquer bem, desde que haja previsão legal

para tanto, não se cogitando, em qualquer caso, do se real valor, o princípio da insignificância

é um instituto consolidado no sistema jurídico brasileiro.

Defendido inicialmente por Claus Roxin, tal princípio tem por finalidade auxiliar o

intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito da incidência da lei

aquelas situações consideradas como de bagatela.

Ocorre que a aplicação da bagatela tem suscitado muitas controvérsias e contradições

que revelam ser tal princípio ainda um tema em construção no Brasil. São naturais – dado o

pouco tempo que os magistrados usam o princípio – as dificuldades na aplicação de um

princípio que ocupa cada vez mais espaço na jurisprudência, mas ainda é pouco levado em

consideração nos bancos das academias.

Há, pois, contradições graves no sistema jurídico penal que precisam ser sanadas sob o

risco de tão importante postulado jurídico ser abandonado pelo seu mau uso.

Com o desiderato precípuo de apontar as sombras, mas já trazendo algumas luzes

sobre o problema, buscou-se na constituição federal caminhos viáveis para a solução dos

principais problemas que envolvem a aplicação do princípio da insignificância no direito

pátrio.

É certo que a aplicação da bagatela não poderá ocorrer em toda e qualquer infração

penal. Entretanto, há situações nas quais a sua não aplicação conduziria a conclusões

absurdas, movendo-se a pesada mão do Estado, por meio do direito penal, para punir condutas

que não devem merecer a atenção do ramo mais violento do direito em virtude de sua

inexpressividade.

29

A ( re)reading of the constitutional jurisprudential principle of insignificance in the

crimes of theft , Social Security appropriation and embezzlement.

Abstract: His article looks at the most recent decisions of the Brazilian higher courts on the

principle of insignificance and tries to point out current inconsistencies in the use of this

principle , from a ( re) reading constitutional . Given that there was the fixing of objective

criteria for the application of the principle of trifle in smuggling crimes and pension

embezzlement, one must also the setting for the property crimes , particularly the crime of

theft .

30

Key words: principle of insignificance; Tort law; Crimes against property; embezzlement;

Jurisprudence.

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