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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL - MESTRADO UMA ANÁLISE ECONÔMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES EM FACE DA NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL Nathalie de Paula Carvalho Fortaleza-CE Março, 2010

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  • FUNDAO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO CONSTITUCIONAL - MESTRADO

    UMA ANLISE ECONMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES EM FACE DA

    NECESSIDADE DE COMPROVAO DE REGULARIDADE FISCAL

    Nathalie de Paula Carvalho

    Fortaleza-CE Maro, 2010

  • 2

    NATHALIE DE PAULA CARVALHO

    UMA ANLISE ECONMICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES EM FACE DA

    NECESSIDADE DE COMPROVAO DE REGULARIDADE FISCAL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao Mestrado/Doutorado em Direito da Universidade de Fortaleza como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientao do Prof. Dr. Rosendo Freitas de Amorim.

    Fortaleza - Cear

    2010

  • 3

    __________________________________________________________________ C331a Carvalho, Nathalie de Paula.

    Uma anlise econmica dos direitos fundamentais dos contribuintes em face da necessidade de comprovao de regularidade fiscal / Nathalie de Paula Carvalho. - 2010.

    154 f. Dissertao (mestrado) Universidade de Fortaleza, 2010. Orientao: Prof. Dr. Rosendo Freitas de Amorim. 1.Direitos fundamentais. 2. Direito tributrio. 3. Responsabilidade fiscal. 4. Administrao pblica. I. Ttulo. CDU 342.7 ___________________________________________________________________

  • 4

    NATHALIE DE PAULA CARVALHO

    UMA ANLISE ECONMICA DOS DIREITOS

    FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES EM FACE DA NECESSIDADE DE COMPROVAO DE REGULARIDADE

    FISCAL

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________________ Prof. Dr. Rosendo Freitas de Amorim

    Orientador da Universidade de Fortaleza

    ______________________________________________________ Prof. Dr. Jos Jlio da Ponte Neto

    Examinador da Universidade de Fortaleza

    _______________________________________________________ Prof. Dr. Joo Luis Nogueira Matias

    Examinador da Universidade Federal do Cear

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, que sempre me apoiaram em tudo que fao, pelo amor, pela dedicao,

    pelo carinho e pela valorizao do meu trabalho.

    Ao Prof. Dr. Rosendo Freitas de Amorim pela valiosa orientao e pelas palavras de

    carinho, de apoio e gentileza.

    Ao Prof. Dr. Jos Jlio da Ponte Neto pela gentileza em est presente a esta banca,

    pela dedicao e pelo carinho sempre oferecidos aos seus alunos.

    Ao Prof. Dr. Joo Lus Nogueira Matias pela gentileza em est presente a esta banca e

    pela considerao que sempre demonstrou em relao ao meu trabalho.

    Aos Professores e funcionrios do Programa de Ps-graduao em Direito

    Mestrado/Doutorado da Universidade de Fortaleza que nos dedicam ateno e presteza no

    exerccio do trabalho dirio na Secretaria e nos Gabinetes, em especial Profa. Dra. Gina

    Pompeu e ao Prof. Dr. Martnio MontAlverne Barreto Lima.

    Aos colegas do Programa de Ps-graduao em Direito Mestrado/Doutorado da

    Universidade de Fortaleza.

  • 6

    RESUMO

    A atividade tributria proveniente do Estado Fiscal limitada pelos dispositivos que esto inseridos na Constituio Federal de 1988, oportunidade em que se destacam os direitos fundamentais dos contribuintes e os princpios tributrios aplicveis. Trata-se da constitucionalizao do Direito Tributrio. O dever de pagar tributos uma realidade inconteste, haja vista ser o principal meio de financiamento estatal. Este interesse arrecadatrio por vezes sobreposto aos direitos fundamentais dos contribuintes quando o exerccio destes condicionado comprovao de regularidade fiscal. As dificuldades que se encontram nos meandros da estrutura administrativa fazendria, em especial no mbito federal, representam outra ordem de obstculos ao respeito a estes ditames, que, segundo o art. 5, 1 do texto constitucional, por revestirem a qualificao de fundamentais, deveriam ter eficcia imediata. Os abusos por parte dos agentes pblicos so constantes e, para coibir estas aes ou omisses que causem danos aos contribuintes, urge a implementao de uma sistemtica responsabilizao do ente estatal que envolva a pessoa jurdica de direito pblico, mas no somente isso: demonstra-se necessria a efetivao da ao regressiva a que se refere o art. 37, 6 da Constituio Federal, de modo a atingir diretamente o causador do dano. Este, portanto, o objeto desta dissertao, que buscar reconstruir uma Teoria Constitucional Tributria que seja capaz de conciliar a arrecadao fiscal e o exerccio dos direitos fundamentais dos contribuintes. Os objetivos do presente estudo propor uma interpretao do instituto da regularidade fiscal, de modo a se coadunar com o agressivo sistema de mercado que ladeia a ordem econmica e as atividades cotidianas dos contribuintes. A Anlise Econmica do Direito Tributrio, inserida neste contexto, vem se mostrando uma ferramenta til, com seus aparatos prticos e tericos, para demonstrar a importncia do intrprete/aplicador do Direito se sensibilizar com a realidade econmica e financeira em que esto imersos os seus destinatrios, sejam os contribuintes individuais ou as empresas. Nesta dissertao, sero apresentadas algumas reflexes sobre o exerccio dos direitos fundamentais dos contribuintes em face da imposio de comprovao da regularidade fiscal, apresentando-se uma concepo mais prxima da vida real, tendo em vista a insero contextual da sociedade em um sistema de mercado, de modo a preponderar os ditames inscritos na Ordem Econmica Constitucional, e no o mero interesse fazendrio, que se revela cego e averso aos direitos fundamentais, sendo esta a concluso que se pretende alcanar. Palavras-chave: Direitos fundamentais dos contribuintes. Regularidade fiscal. Anlise Econmica. Direito Tributrio. Responsabilidade. Administrao Pblica.

  • 7

    ABSTRACT The activity from the State Tax Committee is limited by the devices that are inserted in the Constitution of 1988, during which stand out the fundamental rights of taxpayers and tax principles apply. This is the constitutionalization of the Tax Law. The duty to pay taxes is an undisputed fact, due to be the primary means of funding. This interest revenue collection is sometimes superimposed on the fundamental rights of taxpayers when the exercise of these is subject to proof of tax regulations. The difficulties encountered in the intricacies of treasury management structure, particularly at the federal level, are another order of the obstacles to these dictates, which, according to art. 5, 1 of the constitutional text, to be constituted by the fundamental skills they should have immediate effect. The abuses by public officials are listed, and to deter such actions or omissions that cause damage to taxpayers, it is urgent to implement a systematic accountability of the government entity that involves the legal entity of public law, but not only that: it was shown necessary to effect the action backward referred to in art. 37, 6 of the Federal Constitution, in order to achieve directly caused the damage. This, then, is the object of this thesis, which will attempt to rebuild a Constitutional Theory Tax that is able to reconcile the tax revenues and the exercise of fundamental rights of taxpayers. The objectives of this study is to propose an interpretation of the Institute of regular tax so as to be in line with the aggressive marketing system that runs alongside the economic order and the daily activities of taxpayers. The Economic Analysis of the Tax Law, placed in this context, is proving a useful tool, with its practical and theoretical apparatus to demonstrate the importance of the interpreter and enforcer of the law to raise the economic and financial reality in which they are immersed in their distribution, are individual taxpayers or businesses. This dissertation will present some reflections on the exercise of fundamental rights of taxpayers against the imposition of proof of compliance with taxes, presenting a design closer to real life in order to insert contextual society in a market system, in order to prevail the dictates placed on Constitutional Economic Order, not the mere states interest, which seems blind and averse to fundamental rights, this being the conclusion to be achieved. Keywords: Fundamental rights of taxpayers. Tax regulations. Economic Analysis. Tax Law. Responsibility. Public Administration.

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    SUMRIO INTRODUO.....

    1 A CIDADANIA FISCAL: UM PRESSUPOSTO PARA OS DIREITOS

    FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES..............................................................

    1.1 O constitucionalismo e a constitucionalizao do Direito....................................

    1.2 O movimento constitucional no Brasil..................................................................

    1.3 O Estado Fiscal e a constitucionalizao do Direito Tributrio............................

    2 A REGULARIDADE FISCAL...................................................................................

    2.1 As restries aos direitos fundamentais dos contribuintes em face da

    necessidade de comprovao de regularidade fiscal......................................................

    2.2 As sanes polticas..............................................................................................

    3 A ANLISE ECONMICA DO DIREITO TRIBUTRIO....................................

    3.1 O caso American Virginia................................................................................

    3.2 A Empresa Industrial Tcnica e a substituio das certides de regularidade

    fiscal por deciso judicial que reconheceu a suspenso dos crditos tributrios

    questionados por pela penhora sobre o

    faturamento.....................................................................................................................

    3.3 A Recuperao judicial da VASP Viao Area So Paulo S/A e da VARIG

    Viao Area Riograndense S/A: a dispensa de apresentao das certides de

    regularidade fiscal..........................................................................................................

    4 A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAO PBLICA POR DANOS

    CAUSADOS AOS CONTRIBUINTES........................................................................

    4.1 A responsabilidade pessoal dos agentes pblicos por danos causados aos

    contribuintes...................................................................................................................

    4.2 A efetivao da ao regressiva...........................................................................

    CONCLUSO...............................................................................................................

    REFERNCIAS.............................................................................................................

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    INTRODUO

    Fruto do instrumento da racionalidade humana, o Direito existe para substituir o poder

    pela razo nos relacionamentos entre o Estado e os cidados. Nesse diapaso, cabe ao Direito

    Tributrio um papel especial: fazer com que o poder de tributar seja exercido dentro de certos

    limites. Sendo o ente estatal titular do monoplio da fora e dotado de personalidade jurdica,

    deve estar autolimitado no plano material por uma ordem constitucional e no plano funcional

    pelo Direito Administrativo, o que se convencionou chamar de atividade administrativa

    gerencial. Mesmo sendo o ordenamento jurdico um sistema hierarquicamente organizado e

    axiologicamente estruturado, na prtica o que se verifica uma abstrao desses valores de

    contedo normativo e princpios lgicos em favor de meros interesses governamentais.

    O financiamento do Estado se d, em grande monta, pela tributao, um dever

    institucional reconhecido h tempos. Trata-se de um acordo em que a sociedade transfere ao

    Fisco o poder de retirar parcelas de suas riquezas que se relacionam com os fatos geradores e

    suas repercusses econmico-financeiras, com a incumbncia de angariar os recursos de que

    necessita. As limitaes esfera individual so uma realidade no Sistema Tributrio

    brasileiro, na medida em que so eleitos alguns episdios que culminam no surgimento de

    uma obrigao tributria, em primeiro lugar, depois na constituio de um crdito tributrio,

    sujeitando quem se insere nesta situao ao pagamento do referido tributo, agora lanado e

    existente no mundo jurdico, produzindo consequncias diretas e indiretas no exerccio de

    alguns direitos fundamentais dos contribuintes.

    A atividade de tributar do Estado envolve interesses em permanente tenso e, para

    mitigar esta constatao, urge a imposio de limitaes de ambos os lados. A tributao se

    manifesta por uma via de mo dupla: o canal de que dispe o Poder Pblico para a

    concretizao de direitos fundamentais e o financiamento de suas atividades como um todo;

    por outra banda, busca recursos dos particulares para tanto, retirando-lhes parcelas de suas

    conquistas para os cofres pblicos. Diante de uma realidade to delicada, exige-se um mnimo

    de tica no exerccio do poder de tributar por parte do Estado Fiscal, uma contenso que tem

    por pano de fundo o ordenamento jurdico que o legitima. O funcionamento desta estrutura

    amparado por princpios constitucionalmente consagrados, o que pode at ser apontado como

  • 10

    um estatuto do contribuinte insculpido na Constituio Federal quando trata do Sistema

    Tributrio Nacional.

    Um dos destaques deste arcabouo principiolgico a legalidade estrita que informa

    os procedimentos a serem adotados no exerccio do poder de tributar, em que a margem de

    discricionariedade por parte dos agentes fiscais mnima, seno inexistente, em situaes

    especficas. Mas o cotidiano demonstra que nem sempre este o norte da rotina

    administrativa fiscal, pois so comuns as situaes fticas em que os poderes conferidos aos

    responsveis pelo funcionamento da mquina fiscal so por eles mesmos extrapolados. Neste

    diapaso, os direitos fundamentais dos contribuintes so desconsiderados, violados e restam

    sem qualquer aplicabilidade, embora se encontrem embalsamados pelo movimento da

    constitucionalizao do Direito Tributrio, que tem como um de seus pilares a proteo do

    cidado-contribuinte e das empresas frente ao gigantismo do Estado Fiscal.

    Faz-se necessrio recorrer ao Poder Judicirio para conseguir uma correo desta

    distoro e, como se ainda no fosse suficiente, as ordens judiciais, singulares ou colegiadas,

    so simplesmente ignoradas pelos agentes que possuem atribuies para cumpri-las,

    pautando-se por discricionariedades que no esto autorizadas pela normatividade em vigor.

    Reduzem-se a afirmar que somente cumprem as determinaes dos seus superiores,

    sujeitando o contribuinte, desde j lesado em seus direitos fundamentais, ao alvedrio do

    humor dos atendentes, aguardando nos balces de atendimento por horas a fio. A principal

    consequncia desta dura realidade a causa de danos a estes mesmos contribuintes que, por

    meio dos tributos, pagam os vencimentos dos servidores que os desrespeitam. Ao Estado,

    cumpre a iniciativa de punir o servidor que, agindo com dolo ou culpa, ocasionou o dano, por

    via da ao regressiva, previso constitucional que resta sem qualquer implementao no

    plano prtico, reafirmando a impunidade dos agentes que descumprem seus deveres.

    Em uma sociedade complexa, pluralista e em latente processo de transformao, no

    h lugar para concepes de homogeneidade dos interesses polticos que levem ao sacrifcio

    os direitos fundamentais dos administrados, em especial, dos contribuintes. Dentre esses

    meios, um dos mais utilizados a exigncia de certides de regularidade fiscal como condio

    para a prtica de diferentes atos ou negcios, o que parece, primeira vista, ser legtimo, mas,

    em uma anlise mais refinada, no certo que os direitos fundamentais devam ser

    assegurados somente aos que estejam em dia com suas obrigaes tributrias.

  • 11

    As certides de regularidade fiscal so atestados fornecidos pelo Poder Pblico que

    indicam a situao dos contribuintes dentro das respectivas searas, seja nos planos federal,

    estadual ou municipal. O Cdigo Tributrio Nacional (CTN) regula o fornecimento destes

    documentos no Ttulo IV (Administrao Tributria) e no Captulo III (Certides Negativas).

    Algumas atividades dos contribuintes que representam tambm direitos fundamentais so

    por vezes condicionadas apresentao de certides negativas (art. 205 do CTN) ou positivas

    com efeito de negativa, quando se verifiquem as previses do art. 206 do CTN. Inmeras

    passagens da Constituio Federal e de leis infraconstitucionais possuem em seu mago

    limitaes deste jaez, consubstanciando o que se convencionou denominar de sanes

    polticas. Some-se a isso a burocracia que investe o aparato administrativo fiscal, em especial

    no plano federal j delimitando o escopo desta pesquisa agora com a nova roupagem dada

    pela lei no 11.457/07, criando a Receita Federal do Brasil (RFB), vulgarmente conhecida

    como Super-receita, que unificou a cobrana de tributos federais em um nico rgo. Para

    isso, deslocou-se a competncia do Instituto Nacional do Seguro Social de arrecadar as

    contribuies sociais para a RFB, concentrando a representao judicial destes institutos nas

    mos da Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN). As instrues normativas que surgiram a

    partir deste marco tambm promoveram algumas modificaes no fornecimento de certides,

    prevendo as denominadas certides conjuntas.

    O ponto nodal desta relao Estado/contribuinte a desproporo dos privilgios de

    que se investe o Estado Fiscal frente fragilidade dos contribuintes. A problemtica desta

    dissertao consiste em demonstrar, no plano federal, que os direitos fundamentais destes, em

    meio ao movimento de constitucionalizao do Direito Tributrio, merecem um tratamento

    mais prximo da realidade ftica, vale dizer, do contexto social, poltico, econmico em que

    se inserem e que este papel cabe, de maneira imediata, ao Poder Judicirio, que poder tomar

    frentes de deciso no sentido de incrementar a interpretao das previses normativas que se

    relacionam com a regularidade fiscal. Pela Anlise Econmica do Direito (AED), ser

    investigada a ineficincia econmica da tributao, como uma tentativa de inseri-la no

    espectro interdisciplinar, oportunidade em que sero visitados alguns conceitos econmicos,

    com vlidas contribuies para o Direito.

    A pesquisa realizada insere-se no tipo bibliogrfica, pautada pela consulta de livros,

    peridicos, revistas especializadas. Investe-se de natureza qualitativa por fundamentar a

    proposta defendida, utilizando-se de conceitos, de opinies e de teorias que foram buscados

  • 12

    nas doutrinas constitucional, tributria, administrativista e da Anlise Econmica do Direito.

    Possui finalidades descritivas, pois a preocupao base com a sobrevivncia dos

    contribuintes individuais e das empresas em face do Estado Fiscal. Apresentar-se-o algumas

    propostas para um realinhamento desta relao, destacando-se as posturas do Poder Judicirio

    que j apontam para o vis que se pretende defender.

    Estruturou-se a dissertao em quatro captulos: o primeiro trata dos direitos

    fundamentais dos contribuintes, marcados pelas tessituras da constitucionalizao do Direito

    Tributrio, investigando tambm as feies do Estado Fiscal de modo a encaix-los no

    sistema tributrio vigente e investigar quais so os reflexos na prtica; o segundo captulo foi

    dedicado regularidade fiscal propriamente dita, ao tratamento da matria pelas Instrues

    Normativas da Receita Federal do Brasil por meio de uma coletnea de diplomas normativos

    que condicionam o exerccio de inmeros direitos fundamentais dos contribuintes

    comprovao de regularidade fiscal, abordando-se tambm as sanes polticas, representao

    o centro da problematizao deste estudo; o terceiro captulo traz as contribuies da Anlise

    Econmica do Direito Tributrio para a matria tratada, apresentando alguns casos em que

    Poder Judicirio se utilizou ou poderia ter se utilizado na fundamentao de decises que

    se relacionam com a regularidade fiscal, oportunidade em que se investigou de perto como os

    tribunais ptrios vm encarando a matria, apresentando-se tambm uma anlise crtica sobre

    determinados posicionamentos; o quarto captulo alberga a responsabilidade civil do Estado

    por danos causados aos contribuintes tendo por principal meta demonstrar a necessidade de

    efetivao da ao regressiva a qual, embora prevista, no aplicada como deveria, tendo em

    vista a crescente arbitrariedade do fisco em preservar a impunidade de servidores que

    desrespeitam flagrantemente a ordem constitucional sem qualquer justificativa que se

    pretenda legtima. .

    As reflexes aqui expostas almejam demonstrar que os direitos fundamentais dos

    contribuintes esto inseridos em um terreno de formato manco, que no os investe da

    importncia pertinente. Merecem um tratamento diferenciado e, para isso, deve-se munir o

    Poder Judicirio de poderes modificadores da realidade e corretores dos equvocos dos

    legisladores, em homenagem efetivao dos ditames consectrios e inerentes aos direitos

    eleitos como pilares da relao entre o Estado e os contribuintes.

  • 13

    1 A CIDADANIA FISCAL: UM PRESSUPOSTO PARA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE

    A cidadania est inserta como um dos fundamentos do Estado Democrtico de Direito,

    na forma do art. 1, inciso II, da Constituio Federal de 1988. Os recursos pblicos so, em

    sua maioria, retirados da sociedade, ou seja, originrios do esforo social de produo e

    adquiridos em considervel monta por meio da tributao, que se reveste de suma importncia

    para a Administrao Pblica, sendo esta a forma usual para o financiamento dos gastos

    governamentais. No exerccio do poder de tributar, essencial e irrenuncivel (FONROUGE,

    1999, p.34), o Estado assume o papel de legislador ao atuar na criao de tributos autorizados

    constitucionalmente.

    Ricardo Lobo Torres (2001, p.251) concebe a ideia de cidadania como uma

    constelao de direitos e deveres do homem em comunidade. Para Thomas H. Marshall

    (1950), representa uma situao social que inclui trs tipos de direitos dos indivduos em

    relao ao Estado: os direitos civis, que incluem a liberdade de expresso, de organizao, de

    reunio, de locomoo e o resguardo de igual tratamento perante a lei; os direitos polticos,

    que visam a garantir a votao, a participao nas disputas em cargos de eleio; e os direitos

    socioeconmicos para a promoo do bem-estar coletivo.

    Baseando-se nestas premissas, uma questo sociolgica fundamental sobre a

    cidadania saber de que forma os vrios grupos so dela includos ou excludos.

    (JOHNSON, 1997, p.34). A poltica fiscal, nesse vis, representa um conjunto de medidas

    financeiras empregadas pelos governos para orientar o comando da conjuntura econmica,

    como sendo o estudo axiolgico e tcnico destas atuaes luz da teoria econmica e

    financeira, segundo a concepo de Aliomar Baleeiro (1969, p.42). Depreende-se que este o

    processo que deve anteceder a discriminao de espcies econmicas de renda e de capital,

    para sofrerem diferentes incidncias de tributao no intuito de instrumentalizar os seus

    objetivos. (BECKER, 1963, p.458).

  • 14

    A concepo de justia fiscal se constri com base na solidariedade, a qual est

    subjacente entre os princpios constitucionais tributrios1, apontados no art. 150 da CF/88: a

    isonomia, a universalidade, a capacidade contributiva, a essencialidade, a tributao

    preferencialmente direta, de carter pessoal e progressiva, a vedao ao confisco, etc. Para

    uma maior e mais efetiva proteo do sujeito passivo da relao tributria, bem como a

    preservao do pacto federativo, urge a implementao de medidas de aproximao entre o

    fisco e o contribuinte.

    Paradoxalmente, esta relao, na mesma via que promove, restringe os direitos

    fundamentais dos contribuintes. (MALERBI, 2000). Explica-se: para que o Estado fornea

    sade, moradia, assistncia social, etc., precisa buscar nos tributos os recursos necessrios

    para o atendimento destes fins, que so tambm direitos fundamentais. Utilizando-se do

    fundamento de concretizar seus deveres, o Poder Pblico interfere na esfera privada dos

    indivduos para o financiamento das suas tarefas, provocando efeitos patrimoniais e at

    mesmo comportamentais. (CAVALCANTE, 2004, p.28-33).

    Ruben de Azevedo Quaresma (2008, p.107) afirma que no basta a certido de

    nascimento ou o ttulo de eleitor para caracterizar um indivduo como detentor de cidadania,

    haja vista que este conceito precisa ser construdo a partir de uma vivncia vigilante,

    conjugada, consciente ao lado de uma participao organizativa e estrutural de todos,

    ressaltando ainda a necessidade do cumprimento das normas jurdicas por parte do Estado

    para assegurar a fruio dos direitos ditos fundamentais, em especial, os que assistem aos

    contribuintes, atingidos por uma tenso constante e inevitvel quando confrontados com as

    normas tributrias, no importando se seus efeitos so fiscais, parafiscais ou extrafiscais.

    Maria Luza Vianna Pessoa de Mendona (2004, p.243) acrescenta que:

    Tambm as obrigaes acessrias tm a potencialidade de restringir direitos, liberdades e garantias fundamentais, pois elas impem aos contribuintes os deveres de suportar fiscalizaes, exames ou inspees fiscais, alm de exigir deles a prtica de uma srie de tarefas ligadas administrao ou gesto de tributos, vinculando-os, sem qualquer compensao financeira, ao lanamento, a liquidao e cobrana de diversos tributos.

    1 Gerson dos Santos Sicca (2004, p.230) ressalta que, por limitarem a ao do Fisco e envolverem interesses arrecadatrios (pagamento da dvida pblica, constituio de um supervit primrio, etc.), os princpios constitucionais tributrios so alvo de uma duvidosa rigorosidade metodolgica quando de sua aplicao pelos tribunais, os quais sofrem com as presses exercidas pelos empresrios, pelo governo, pela mdia, por vezes priorizando o carter poltico e impossibilitando, por outra banda, uma eficcia positiva dos princpios tributrios.

  • 15

    Resgata-se a compreenso de Karl Larenz (1997, p.458) sobre a aplicao das leis, que

    faz meno interpretao que privilegia a concordncia material, do mundo dos fatos, de

    modo a evidenciar a ideia de unidade e bloco em que se insere o ordenamento jurdico.

    Assim, a lei no correria o perigo de carregar um texto sem aplicao prtica, mas sim se

    torna latente, viva, gerando efeitos positivos para a sociedade, sua principal destinatria, em

    vez de se esconder em uma anlise superficial e apegada literalidade. Nesse sentir, os

    direitos fundamentais dos contribuintes e os deveres do Estado, na esfera tributria em

    especial, devem ser arrigementados luz da ordem econmica e financeira.

    No dizer de Humberto vila (2008, p.145), urge existir um equilbrio na atividade

    fiscal para que possa ser extrado o mximo de efetividade possvel. E arremata mencionando

    que a atuao do poder de tributar e os efeitos concretos emanados das obrigaes tributrias

    no podem provocar restries excessivas aos direitos fundamentais, devendo existir, entre

    ambos, uma relao de concordncia objetiva e prtica, que se consubstancia em exigncias

    inerentes compreenso e aplicao do sistema tributrio brasileiro. (VILA, 2004, p.68).

    So, em outras palavras, os limites quantitativos e qualitativos que devem orbitar o Direito

    Tributrio.

    Vctor Faviero (2002) considera que a qualidade de cidado inerente pessoa

    humana que se qualifica como tal por meio da ordem tributria. Para esta materializao,

    evidencia-se o dever de contribuir, pautado por uma natureza tica e social coesa com a

    existncia do homem, anterior constituio da sociedade poltica e formulao do direito

    fiscal positivo. O resultado desta anlise a concepo de cidadania no campo da ordem

    tributria como um componente da sociedade, anterior prpria autoridade e, na mesma

    linha, fora do Direito imposta pelo Estado. Nesta tica, o poder soberano decorrente da

    constituio medido e delimitado pelos fins tico-sociais, indispensveis para a realizao

    integral do papel do contribuinte:

    Sendo atravs do Direito que se expressa em termos substantivos e formais, a ordem tributria vinculante dos cidados, a realizao da ordem jurdica tributria, em termos integrais, assenta, naturalmente, na existncia e aco de uma realidade unitria no mundo das instituies jurdicas, composta de dois elementos que formalmente se apresentam como subjectivamente individualizados e aparentemente opostos, mas que sendo oriundos de uma causa comum a sociedade politicamente organizada so tambm indissociveis entre si tanto na aco como na realizao: o contribuinte e o Estado. (FAVIERO, 2002, p.13).

  • 16

    Verifica-se a aplicao da tica nos ditames do Direito Tributrio (TIPKE, 2002,

    p.21), ao lado da moralidade na atividade desenvolvida pelos poderes pblicos. O tributo no

    deve ser entendido como uma mera obrigao do cidado, mas sim como o preo da

    cidadania (NOGUEIRA, 2009, online) e, por esta razo, a receita pblica derivada, a qual

    proveniente da arrecadao tributria, imprescindvel para o desenvolvimento, econmico,

    social e cultural do pas. Esta orientao tambm defendida por Marcos Rogrio Palmeira

    (2002). Paulo Caliendo (2009, p.06) considera que a tica uma condio do mundo, que d

    sentido comunicao e, apesar de no existir uma definio exata, perfeita e absoluta,

    fornece o sentido mnimo na linguagem, visto que est na base da ao e da vontade que

    forjam, por sua vez, a deciso da sociedade. A tica tributria verificada tanto a seara

    pblica como a privada. Esta se relaciona com a obrigao do cidado-contribuinte de pagar

    os tributos de acordo com a legislao vigente e atendendo, ao mesmo tempo, sua

    capacidade contributiva. Aquela, por seu turno, deve ser pautada pela segurana jurdica,

    representada por uma tributao exercida pelo Estado Fiscal marcada pela previsibilidade,

    evitando assim surpresas para o contribuinte. (NOGUEIRA, 2003).

    Em que pese a relatividade inerente ao conceito do vocbulo tica, Olinto A.

    Pergoraro (2001, p.13) a relaciona de forma ntima com a justia, afirmando que tributar e

    gastar de forma tica tributar e gastar conforme a justia tributria, levando o contribuinte a

    viver como cidado que luta por uma ordem tributria socialmente mais justa. Para a

    Filosofia, a tica significa o que bom para o indivduo e para a sociedade. Seu estudo

    contribui para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento entre o indivduo e a

    sociedade. Este o principal objetivo de uma teoria da tica. Os filsofos antigos adotaram

    diversas posies na sua definio, sobre como lidar com as prioridades em conflito dos

    indivduos versus o todo. A moral representa um conjunto de normas, de princpios, de

    preceitos, de costumes e de valores que norteiam o comportamento do indivduo no seu grupo

    social. Moral e tica no devem ser confundidas: enquanto a moral normativa, a tica

    terica, buscando explicar e justificar os costumes de uma determinada sociedade, bem como

    fornecer subsdios para a soluo de seus dilemas mais comuns. A tica pode ser apontada

    como o julgamento do carter moral de determinada pessoa. (LALANDE, 1999, p.349-350).

    Nesta mesma orientao, George Marmelstein (2008, p.18-19) encara os direitos

    fundamentais sob duas vertentes, uma de contedo tico (aspecto material) e outra de

    contedo normativo (aspecto formal). Pela primeira, ressaltam-se os valores bsicos para uma

  • 17

    vida digna em sociedade que esto intimamente ligados limitao do poder estatal. Por seu

    turno, a segunda enaltece o contedo normativo, afirmando que somente so direitos

    fundamentais aqueles valores que o poder constituinte reconheceu como merecedores de uma

    proteo normativa especial, ou seja, ocorreu uma positivao em termos constitucionais.

    De posse dessas breves consideraes, sem qualquer pretenso de esgotar a matria,

    pode-se apontar uma distino entre as nomenclaturas direitos do homem, direitos

    humanos e direitos fundamentais, por vezes tratadas como sinnimos. Os direitos do

    homem seriam aqueles valores ligados dignidade da pessoa humana em sua acepo mais

    ampla e que no so positivados. Os direitos humanos correspondem s mesmas premissas

    dos direitos do homem, mas que se encontram positivados no plano internacional por meio de

    tratados. Os direitos fundamentais2 seriam os valores ligados dignidade da pessoa humana e

    limitao do poder estatal positivados no direito interno nas normas constitucionais.

    Nesta pesquisa adota-se a compreenso proposta por Robert Alexy (2008) de que os

    direitos fundamentais so tratados como princpios jurdicos, que carregam em seu mago

    pautas valorativas eleitas pela sociedade como orientadoras das atividades estatais, que

    servem para ordenar a busca por um estgio ideal de convivncia entre os indivduos, que

    deles so titulares. Trata-se de um sistema qualificado como axiolgico e teleolgico.

    (CANARIS, 2002, p.77). Por serem normas-princpios, existe uma concorrncia e

    complementaridade em sua aplicao, o que no ocorre com as normas-regras, as quais se

    excluem mutuamente. So instrumentalizados pelo critrio do mandado de otimizao, pois o

    grau de satisfao de um depende da maior ou menor relevncia do outro. Sempre tem de ser

    levado em considerao o contexto ftico em que se est inserido.

    E como auxlio para esta mensurao, Alexy prope que se faa uma ponderao entre

    os meios e os fins, almejando-se alcanar um resultado timo, ou seja, aquele que promove ao

    mximo um fim, tornando os direitos envolvidos o mais eficaz possvel e, para isso, preciso

    2 A diviso dos direitos fundamentais em geraes teve sua origem em um curioso acontecimento, protagonizado por Karel Vasak, o qual, no ano de 1979, proferiu uma aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo-FR, e utilizou, pela primeira vez, a expresso geraes de direitos do homem, buscando, metaforicamente, demonstrar a evoluo destes direitos com base no lema da Revoluo francesa (libert, galit, fraternit). Em conversa com Antnio Augusto Canado Trindade em 2000, Karel Vasak revelou que o referido discurso foi, na verdade, improvisado, sem maiores complexidades. Embora despretensioso, logo ganhou fama, de modo que os mais variados juristas passaram a repeti-lo e at a desenvolv-lo. (MARMELSTEIN, 2009, online).

  • 18

    relacion-los nos planos de interpretao abstrato e concreto. Peter Hberle (2003, p.14)

    denomina esse processo interpretativo de condicionamento recproco. Nesse sentir, as

    relaes entre os direitos fundamentais so bidirecionais: um condio para a realizao do

    outro.

    Relevante se faz o papel dos aplicadores do Direito, principalmente os tribunais, que

    tm como atribuio a tarefa de criar as jurisprudncias, enriquecendo e delineando os

    contornos de prescries indeterminadas, como so os direitos fundamentais, superando e

    complementando a capacidade insuficiente de percepo do legislador. (HECK, 1961, p.39).

    As finalidades eleitas como fundamentais devem ser promovidas na maior medida possvel e

    o Direito Tributrio assim como os demais ramos no pode inviabiliz-las. Essa vem

    sendo a orientao adotada pelo Supremo Tribunal Federal3. Gilmar Ferreira Mendes (2004,

    p.15) sugere que o caminho a ser perseguido pelo intrprete do Direito deve se pautar pela

    identificao dos bens jurdicos protegidos, pela amplitude desta premissa e pela verificao

    das possveis restries. Por isso, essencial se mostra o exame do caso concreto para se

    descobrir qual a intensidade da proteo que merece ser conferida aos bens jurdicos

    envolvidos.

    A cidadania fiscal pode ser entendida como a relao jurdica existente entre o Fisco e

    o cidado-contribuinte, no sentido de compreender a existncia de direitos e de deveres de

    ambas as partes, assegurando-se por meio de um aparato administrativo avanado e capaz de,

    ao mesmo tempo, permitir a rentabilidade do sistema tributrio e uma melhor relao entre o

    fisco e o contribuinte. O contedo deste instrumento de arrecadao de verbas para o Estado

    a tributao deve ser construdo a partir dos direitos fundamentais dos contribuintes,

    protegendo-os contra uma atuao excessiva, desmedida e sem controle em nome do interesse

    pblico. O art. 150, inciso VI, do texto constitucional, ao versar sobre a proibio do confisco

    em matria tributria, representa uma limitao para toda e qualquer manifestao do poder

    de tributar que tenha aptido, pelo menos em potencial, de tornar ineficazes os direitos

    fundamentais dos contribuintes.

    Trata-se de uma via de mo dupla, na medida em que os tributos so pagos e o Estado,

    por intermdio dos seus servidores, cobra as prestaes dos sujeitos passivos, realiza os atos

    destinados ao controle e ao fiel adimplemento da legislao tributria: o dever de tributao

    3 Cf. Julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinrio no 413.782/SC.

  • 19

    um encargo dos cidados em prol dos seus interesses. (MENKE, 2008, p.23). A

    exteriorizao desta vontade se d pelos agentes que compem a estrutura da Administrao

    Pblica, por meio de atividades concretas e imediatas desenvolvidas sob o regime jurdico de

    direito pblico para a consecuo dos interesses coletivos. (FRANA, 2008, p.55-62). As

    diretrizes de ordem tributria que existem na Constituio Federal podem ser consideradas

    como um verdadeiro estatuto do contribuinte, na medida em que so postas como orientaes

    balizadoras da atividade fiscal. Sobre a importncia desta constatao, Roque Antnio

    Carrazza (2008, p.422) afirma que:

    O estatuto do contribuinte impe limitaes aos Poderes Pblicos, inibindo-os de desrespeitarem os direitos subjetivos das pessoas que devem pagar tributos. Inexistisse, e o legislador poderia, por meio de uma tributao atrabiliria, at espoliar pessoas. A Fazenda Pblica, mngua deste estatuto, no poderia ser impedida de fazer o mesmo. Evidentemente, h da parte do Estado o interesse de arrecadar os tributos de maneira simples, expedita e segura. Afinal de contas, por intermdio deste recolhimento que ele se instrumenta financeiramente a alcanar, com bom sucesso, os fins que lhe so assinalados pela Carta Constitucional ou pelas leis. Ocorre, porm que, em nome da comodidade e do aumento de arrecadao do Poder Pblico, no se pode fazer ouvidos moucos aos reclamos dos direitos subjetivos dos contribuintes, assegurados, como visto, pela prpria Constituio.

    Sugere-se o direito fundamental a uma boa administrao pblica (FREITAS,

    2009), como aquele aparato estatal que busca, como principal motor do seu funcionamento, a

    garantia do exerccio e do respeito aos direitos, tambm fundamentais, dos cidados-

    contribuinte e preza por uma atuao do poder pblico compromissada com esta misso. Para

    um adequado funcionamento desta relao, exige-se uma postura idnea, de ambos os lados.

    1.1 O constitucionalismo e a constitucionalizao do Direito

    As Constituies atuais so o resultado de um processo histrico (VILLALN, 1989)

    trilhado por movimentos revolucionrios materializados pela ideia de uma organizao de

    poderes poltico-estatais limitados, conectados com um conjunto de direitos fundamentais que

    se manifestam por meio de um documento escrito, dotado de supremacia sistmica entre os

    seus enunciados. Herbert Hart (1994) identifica que havia uma norma atributiva de mando nas

    formas mais rudimentares de agrupamentos humanos, embora os grupos sociais menos

    desenvolvidos possussem diferenciaes evolutivas no mbito normativo.

  • 20

    Em outras palavras, o termo constituio, do latim constitutio, constituere, pode ser

    entendido como um conjunto de preceitos estabelecidos pela soberania de um povo para servir

    de base sua organizao poltica e firmar os deveres dos componentes. V-se uma clara

    associao com a ideia geral do contrato social, ou seja, um acordo entre os membros de uma

    sociedade, pelo qual reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de

    regras, de um regime poltico ou de um governante, partindo do pressuposto de que os

    indivduos o iro respeitar. As teorias sobre o contrato social se difundiram nos sculos XVI e

    XVII como forma de explicar a origem legtima dos governos e, portanto, das obrigaes

    polticas dos governados ou sditos.

    Para uma adequada compreenso dessa transformao, necessrio se faz um resgate

    histrico para compreender o presente e projetar o futuro de uma sociedade, de modo a

    evidenciar a trajetria percorrida pelo Direito Constitucional, bem como direcionar as tarefas

    dos intrpretes. Gustavo Zagrebelsky (2005, p.25-26) aponta que:

    El actual derecho constitucional ha renunciado visiblemente a sus principales tareas. Em vez de intentar sntesis histrico-culturales de la poca constitucional presente, como base de elaboraciones abiertas ao porvenir, su mxima aspiracin es propornerse como prontuario de soluciones inevitablemente dirigidas al pasado. As, el derecho constitucional termina por configurarse como una continua bsqueda de medios de emergncia, perennemente retardatria y necesariamente instrumentalizable y instrumentalizada em sentido poltico. De este modo, el derecho constitucional se contenta continuamente con ser um subproducto de la historia y de la poltica, em vez de intentar convertise al menos en uma fuerza autnomamente constitutiva tanto de una como de outra. 4

    O Constitucionalismo eleva a constituio a uma categoria jurdico-poltica. J.J.

    Gomes Canotilho (2003, p.51) o define como uma teoria que ergue o princpio do governo

    limitado para a garantia dos direitos na organizao poltico-social de uma comunidade. Na

    sua anlise, considera os conceitos moderno e histrico de constituio: pelo primeiro,

    entende-se a ordenao sistemtica e racional da comunidade poltica atravs de um

    documento escrito cujo contedo so os direitos e as liberdades que fixam os limites do poder

    pblico; pelo segundo, a abordagem centrada no conjunto de regras e estruturas

    institucionais conformadoras de uma ordem jurdica em um sistema social. 4 O atual Direito Constitucional tem cedido s suas principais tarefas. Em vez de fazer uma sntese histrico-cultural da poca constitucional presente, como base de elaboraes abertas ao futuro, sua mxima aspirao propor um pronturio de solues inevitavelmente dirigidas ao passado. Assim, o direito constitucional termina por configurar-se em uma contnua busca de meios de emergncia, um pouco retardatria e necessariamente instrumentalizadora e instrumentalizada em sentido poltico. Deste modo, o direito constitucional se contenta continuamente em ser um subproduto da histria e da poltica, ao invs de converter-se ao menos em uma fora autonomamente constitutiva tanto de uma como de outra (traduo livre).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedadehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Indiv%C3%ADduo

  • 21

    O sistema constitucional, luz do Constitucionalismo, representa o novo ngulo

    tomado pela Constituio, agora conectada a uma moldura social, induzindo a um conjunto de

    foras e formatos polticos que unem a sociedade e o Estado, evitando, dessa forma, um

    esvaziamento do seu significado. Em sentido amplo, esse movimento est relacionado ao fato

    de todo Estado possuir uma Constituio em qualquer poca, independentemente do regime

    adotado; em sentido estrito, a tcnica jurdica de tutela das liberdades (sculo XVIII), que

    promoveu o exerccio dos direitos e garantias fundamentais, tendo como base as constituies

    escritas e sendo protegidos contra o arbtrio do Estado. Andr Ramos Tavares (2008, p.01)

    identifica quatro sentidos para o constitucionalismo:

    Numa primeira acepo, emprega-se a referncia ao movimento poltico-social com origens histricas bastante remotas que pretende, em especial, limitar o poder arbitrrio. Numa segunda acepo, identificado com a imposio de que hajam cartas constitucionais escritas. Tem-se utilizado, numa terceira concepo possvel, para indicar os propsitos mais latentes e atuais da funo e posio das constituies nas diversas sociedades. Numa vertente mais restrita, o constitucionalismo reduzido evoluo histrico-constitucional de um determinado Estado.

    Segundo Uadi Lamgo Bulos (2008, p.11), o movimento constitucionalista, inspirado

    pela doutrina liberal, possui quatro vertentes: a jurdica, uma vez que props a

    regulamentao do exerccio do poder por meio das constituies escritas, subordinando a

    sociedade aos atos governamentais; a sociolgica, por ter incentivado o povo a lutar contra a

    hegemonia do poder absoluto, para organiz-lo, para disciplin-lo e para conferir essa

    limitao pela movimentao social, de modo a impedir que os governantes faam valer seus

    prprios interesses na conduo do Estado; a poltica, por representar a defesa dos direitos e

    garantias fundamentais; e a ideolgica, que inspirou o estabelecimento de um governo de leis,

    abrangendo os setores econmicos, sociais, polticos e culturais.

    Com efeito, o constitucionalismo pregava que todos os Estados deveriam possuir

    constituies escritas, as quais seriam os instrumentos garantidores dos direitos e garantias

    fundamentais. Para Nicola Matteucci (1976, p.248), tal movimento representa ainda uma

    identificao direta com a diviso dos poderes. A evoluo do constitucionalismo se apresenta

    pelas seguintes fases: primitiva, antiga, medieval, moderna e contempornea.

    O constitucionalismo primitivo, que antecedeu a dicotomia entre a constituio formal

    e a material, tendo como base a observncia dos padres de comportamento dos povos

  • 22

    poca. Para Hermann Heller (1992, p.318), nessa etapa, tal fenmeno partia da premissa

    segundo a qual todas as entidades polticas sempre tiveram e tm uma constituio, podendo-

    se inferir que o texto escrito no se identifica necessariamente com a ideia de

    constitucionalismo, haja vista que organizaes polticas anteriores viveram luz de uma

    ordem constitucional que no era representada pela grafia, v.g. o estado teocrtico dos hebreus

    (LOEWENSTEIN, 1986, p.154), o qual era regido pelas convices da comunidade e pelos

    costumes nacionais que estabeleciam limites ao poder poltico por meio das imposies

    bblicas; tambm algumas etnias africanas (ELIAS, 1961, p.18), que conheceram um estgio

    de ordenao semelhante s monarquias, sem lastro em textos constitucionais escritos; e as

    cidades-estado gregas com a democracia direta, que representou o incio de uma

    racionalizao do poder com uma identidade plena entre os governantes e governados.

    O constitucionalismo antigo, no Baixo Imprio Romano, designava qualquer lei feita

    pelo imperador e era pautado por acordos de vontade, traduzidos em direitos e garantias

    fundamentais, sem respaldo em um texto escrito. O Parlamento era a fonte criadora desses

    direitos, no havendo subordinao a qualquer outro poder. Consagrava-se, nesse contexto, a

    irresponsabilidade governamental, uma vez que as autoridades (reis, dspotas, imperadores)

    no seguiam as pautas jurdicas, atribuindo, segundo informa J.J. Gomes Canotilho (1994,

    p.29), uma eficcia social zero ao constitucionalismo antigo.

    O constitucionalismo medieval foi marcado pelo feudalismo, no formato da

    subordinao entre suseranos e vassalos. Firmou-se a necessidade de se assegurar a igualdade

    entre os cidados e abrir caminho para um governo de leis, por meio de textos jurdicos. A

    Magna Carta Libertatum, de 15 de junho de 1215, outorgada por Joo Sem Terra, era o

    reflexo das necessidades sociais dessa poca e tinha como contedo o direito de petio, a

    instituio do jri, a proporcionalidade na aplicao das penas, a clusula do devido processo

    legal, o habeas corpus, o princpio do livre acesso justia, a liberdade religiosa. Outros

    escritos com funo semelhante podem ser mencionados: o Estatuto ou Nova Constituio de

    Merton, de 1236; a Petition of Rights, de 1628; o Habeas Corpus Act, de 1679; a Bill of

    Rights, de 1689; o Act of Settlement, de 1701. Predominava a concepo jusnaturalista de

    constituio, consubstanciada no pensamento de que as leis preexistem aos homens, alm de

    outros documentos que funcionavam como constituies no escritas, tais como os pactos, os

    forais, os contratos de colonizao. A autoridade dos governantes se fundava em um acordo

    de vontades com os sditos e o rbitro do seu fiel cumprimento era Deus.

  • 23

    No final do sculo XVIII surge o constitucionalismo moderno, que adquiriu

    consistncia com as declaraes de direitos e garantias fundamentais, conclamadas pelo

    movimento de independncia das treze colnias norte-americanas (1776) e pela Revoluo

    Francesa (1789). Os marcos principais que podem ser apontados so as constituies dos

    Estados Unidos da Amrica, de 14 de setembro de 1787, que instituiu o federalismo, o

    presidencialismo e a rgida separao dos poderes em substituio aos Articles of

    Confederation e a constituio da Frana, de 3 de setembro de 1791, que foi a pioneira na

    Europa e serviu de inspirao para os textos constitucionais franceses de 1814, 1830, 1875 e

    1946 e da Blgica de 1831, dentre outros pases. Falava-se na happy constitution (constituio

    feliz), a qual representava a transio da sociedade patriarcal e imperialista para uma que

    preconizava a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

    Rafael Jimnez Asensio (2005, p.19) aponta a apario do Estado Moderno como um

    pressuposto para o desenvolvimento do Direito Constitucional, na medida em que o considera

    como um substrato essencial a partir do qual se criaram as condies objetivas do

    Constitucionalismo e sua expresso racionalizada pelas constituies. A realidade anterior era

    marcada por uma disperso poltica, pois no havia uma autoridade nica e existiam vrios

    centros de poder. As estruturas foram se tornando lentamente mais articuladas e

    institucionalizadas no exerccio das atribuies correspondentes. A Reforma Protestante

    contribuiu significativamente para a formao do Estado Moderno, que passou a ter mais

    independncia para se autodeterminar, tendo em vista o rompimento com a unidade crist.

    Nesse contexto, o Estado Liberal preconizava a interveno mnima do Estado na

    sociedade para promover um maior desenvolvimento. Encarava o homem como um ser

    desenraizado, fora do contexto histrico, fundando-se na premissa antropolgica de que o

    indivduo era um tomo social e, nas palavras de Reinhold Zippelius (1997, p.35), a

    sociedade era um locus da livre concorrncia entre estes indivduos, que mantinham entre si

    relaes contratuais. Essa orientao era pautada pelo modelo econmico do laissez faire,

    laissez passer e na crena do poder da mo-invisvel do mercado para solucionar os

    problemas sociais, de forma que suas leis no deviam sofrer intervenes e a economia seria

    direcionada, por si mesma, para o melhor caminho. O papel do Estado era promover a

    segurana interna, externa e o direito de propriedade dos cidados. As outras necessidades

    eram transferidas para a sociedade civil, impulsionada pela energia do mercado.

  • 24

    Adam Smith (1983) foi um dos principais nomes da formao do Liberalismo clssico

    e fundamentou sua descrio da ordem econmica nos sentimentos morais, na busca da

    aprovao social, nas razes maiores da acumulao de riqueza e na conservao da fortuna

    material. Defendia que o papel do Estado estava restrito a trs funes principais: proteger a

    nao; promover a justia de modo a garantir a segurana dos cidados; e empreender obras

    sociais necessrias que a iniciativa privada no conseguisse concretizar. Considerou como

    causa da riqueza das naes o trabalho humano, a livre iniciativa de mercado (laissez faire,

    laissez passer), a especializao da mo-de-obra como instrumento da produtividade e a teoria

    do bem-estar econmico ou da mo invisvel.

    No se devem olvidar as contribuies de seu seguidor David Ricardo (2001), que

    trouxe como principal contribuio para a Teoria Econmica as teorias do valor, segundo a

    qual o preo de uma mercadoria determinado pela quantidade de trabalho nela incorporado;

    e da repartio, em que as leis regulamentadoras da diviso do produto consideravam a

    existncia de trs classes sociais distintas: os latifundirios, os operrios e os capitalistas,

    posicionando-se a favor dos ltimos.

    Os reflexos sociais do liberalismo econmico, dos excessos do capitalismo e da

    industrializao, regidos pelo laissez faire, laissez passer, eram demonstrados pela crescente

    explorao do homem pelo homem, o que ficou conhecido como questo social.

    (SARMENTO, 2003, p.375-414). As reaes se manifestaram pelo marxismo, pelo

    socialismo utpico e pela doutrina social da Igreja Catlica. O marxismo pregava que a

    dominao econmica da burguesia sobre o proletariado, cujos fundamentos eram a riqueza e

    o poder do dinheiro, s teria fim com a implantao do comunismo e a extino das classes

    sociais, oportunidade em que os trabalhadores tomariam o poder pela fora. (MARX, 1997,

    p.75).

    O socialismo utpico exerceu grande influncia sobre o desenvolvimento do Direito

    do Trabalho. Os seus tericos, tais como Charles Fourier, Louis Blanc e Robert Owen,

    acreditavam na possibilidade de convencimento da burguesia sobre a necessidade de reformas

    sociais. Por sua vez, a doutrina social da Igreja Catlica defendia a instituio de direitos

    mnimos para o trabalhador e uma atuao mais ativa do Estado para com os mais

    necessitados. Foram editados alguns documentos com esse contedo: a Encclica Rerum

    Novarum de 1891; o Quadragesimo anno de 1931; a Encclica Mater et Magistra de 1961, o

    Pacem in Terris de 1963; a Populorum Progressio de 1967 e a Humanae Vitae de 1969.

  • 25

    Em 1917 eclodiu a Revoluo Russa, sob a influncia das ideias marxistas. A partir

    deste acontecimento, ocorreu um rompimento da hegemonia absoluta da burguesia e, no

    incio do sculo XX, surgiu o Estado do Bem-Estar Social (BONAVIDES, 1996),

    assegurando direitos constitucionalmente consagrados para a garantia de condies mnimas

    para a populao, o que j existia nas Constituies do Mxico de 1917 e de Weimar na

    Alemanha em 1919. Segundo a lio de Eros Roberto Grau (2007, p.39):

    O mercado livre, sem amarras, impulsionava a formao de monoplios e oligoplios, prejudiciais livre concorrncia. Portanto, at para a preservao do prprio sistema capitalista, tornava-se necessrio que o Estado assumisse uma posio mais ativa no cenrio econmico para disciplinar e impor certos limites s foras presentes no mercado.

    No perodo entre as duas guerras mundiais, ocorreu a crise do capitalismo decorrente

    do colapso da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, surgiu no cenrio econmico John

    Maynard Keynes (1988), defendendo uma participao ativa do Estado no meio social, pela

    busca do pleno emprego. Tais ideias foram adotadas pelo presidente americano Franklin

    Delano Roosevelt, por meio do New Deal, que consistiu em programas implementados nos

    Estados Unidos, entre 1933 e 1937, com o objetivo de recuperar, reformar a economia norte-

    americana e assistir aos prejudicados pela Grande Depresso. A denominao dessa srie de

    programas foi inspirada pelo Square Deal, nome dado pelo anterior presidente, Theodore

    Roosevelt, sua poltica econmica.

    Assim, o Estado Liberal se transformou paulatinamente no Estado Social, que se

    preocupava com a liberdade e o bem-estar do cidado, por meio da positivao dos direitos

    fundamentais individuais, sociais e econmicos. J.J. Gomes Canotilho (1994) introduziu o

    conceito de constituio dirigente (COUTINHO, 2005) em substituio s constituies

    liberais, o qual foi posteriormente revisto pelo prprio autor com o fito de adapt-lo nova

    realidade, ditada pela globalizao e pela crise do Estado-Providncia.

    Destaca-se o papel desempenhado pelo controle de constitucionalidade, cujo objetivo

    impedir que uma norma contrria constituio permanea no ordenamento jurdico. Suas

    origens remontam ao constitucionalismo norte-americano, com a repercusso do caso

    Marbury x Madison5, relatado pelo presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos John

    5 O Caso Marbury X Madison ocorreu no ano de 1803, quando da sucesso presidencial dos Estados Unidos, em que o ento presidente Thomas Jefferson sucedeu John Adams. Diante de sua derrota, John Adams resolveu nomear o Juiz Federal Marbury, de inclinao republicana, para a comisso do cargo de juiz de Paz de Washington no Distrito de Colmbia. Ao assumir a Presidncia, Thomas Jefferson verificou que a comisso de nomeao no havia sido entregue a William Marbury, pelo que decidiu tornar sem efeito referido ato. Para

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Franklin_Delano_Roosevelthttp://pt.wikipedia.org/wiki/Franklin_Delano_Roosevelthttp://pt.wikipedia.org/wiki/Estados_Unidoshttp://pt.wikipedia.org/wiki/1933http://pt.wikipedia.org/wiki/1937http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Theodore_Roosevelthttp://pt.wikipedia.org/wiki/Theodore_Roosevelthttp://pt.shvoong.com/tags/norma/http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jeffersonhttp://pt.wikipedia.org/wiki/John_Adams

  • 26

    Marshall, em 1803, ao cuidar da eficcia dos preceitos constitucionais, e tem como base a

    supremacia da constituio escrita, na medida em que as normas infraconstitucionais tm que

    estar em perfeita sintonia com a Lei Fundamental. Na lio de Jorge Miranda (1988, p.274),

    trata-se de uma relao de carter normativo e valorativo. No Brasil, com as ideias de Rui

    Barbosa (1962), foi implementado o controle de constitucionalidade na Constituio de 1891,

    uma vez que a anterior no contemplava qualquer sistema dessa natureza. Pimenta Bueno

    (1978, p.69) defendia que s o poder elaborador da lei o competente para declarar o

    pensamento dela, tendo a funo de interpretar suas vontades e seus fins.

    Aps algum tempo, floresceu o ps-positivismo jurdico o constitucionalismo

    contemporneo que incluiu questes ticas no Direito e o afastou de uma dimenso

    puramente normativa. considerado por Lus Roberto Barroso (2007, p.208) o marco

    filosfico do novo direito constitucional, na medida em que busca ir alm da legalidade

    estrita, sem desprezar o direito posto, procurando empreender uma leitura moral do Direito

    sem recorrer s categorias metafsicas, haja vista ser formado por uma ligao entre valores,

    princpios e regras.

    Diante da dependncia em relao realidade social, no seria suficiente o sentido

    unvoco e objetivo da ordem vigente, haja vista que a ordenao sistemtica inclui valores

    em si e isso no vale apenas para a formao do sistema atravs da cincia e da

    jurisprudncia, mas tambm para as construes do legislador. (CANARIS, 2002, p.179).

    Ren David (1996, p.93) esclarece que a lei a melhor tcnica para enunciar orientaes

    claras, tendo em vista a complexidade das relaes sociais.

    Andr Ramos Tavares (2008, p.18), ao considerar a Constituio como um conjunto

    normativo fundamental que concede aos seus preceitos a caracterstica da superioridade

    absoluta, justifica a existncia de um sistema por meio do qual as normas se reconduzem a

    uma nica fonte de produo, procedimental e formal. Seguindo este raciocnio, Jorge

    Miranda (1990, p.12) assevera que no so apenas os indivduos que vivem subordinados a

    tanto, determinou ao seu Secretrio de Estado, James Madison, que assim procedesse. Diante disto, Marbury recorreu a Suprema Corte Norte-Americana no intuito de validar a sua nomeao. Em razo da existncia de dispositivo legal determinando a apreciao da matria pela Suprema Corte (seo 13 do Judicirio de 1789), o Juiz John Marshall apreciou o caso e concluiu que havia nulidade em qualquer disposio legal que contrariasse preceitos constitucionais, o que atualmente corresponde concepo de supremacia da Lei Maior.

  • 27

    normas jurdicas, igualmente o Estado e as demais instituies que exercem autoridade

    pblica devem obedincia ao Direito, conceituando o Direito Constitucional assim:

    O Direito Constitucional a parcela da ordem jurdica que rege o prprio Estado enquanto comunidade e enquanto poder. o conjunto de normas (disposies e princpios) que recortam o contexto jurdico correspondente comunidade poltica como um todo e a situam os indivduos e grupos uns em face dos outros e frente ao Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de formao e manifestao da vontade poltica, os rgos de que esta carece e os actos em que se concretiza. (MIRANDA, 1990, p.14).

    Na concepo de Willis Santiago Guerra Filho (2007, p. 51), pelo ps-positivismo

    ocorreu uma sntese dialtica entre o direito natural e o direito positivo. Consiste em conceber

    o ordenamento jurdico como um conjunto de regras e princpios, espcies do gnero norma

    jurdica, que no possuem hierarquia entre si, apenas diferentes meios de aplicao. Sobre o

    assunto, Paulo Bonavides (2008, p.462) afirma que:

    O carter poltico da Constituio avulta tambm quando se trata de fixar o carter normativo dos princpios constitucionais. Estes no so outra coisa seno princpios polticos introduzidos na Constituio. Adquiriram, graas a esta, uma juridicidade que, se por uma parte os limita, por outra, no quebranta de modo algum o elo axiolgico necessrio que os prendem s matrizes sociais donde brotaram, donde continuam, alis, a receber inspirao, calor e vida.

    As ideias dos poderes constituinte originrio, derivado e constitudos (SIEYS, 1988)

    j eram observadas. Imperavam as constituies rgidas e as clusulas ptreas, por intermdio

    de um processo legislativo cerimonioso para a modificao das disposies. Nesse panorama,

    a fora normativa da Constituio era elucidada, de modo a significar a sua supremacia, a

    efetividade plena de suas normas e o carter promocional do seu texto, com o objetivo de

    acompanhar a evoluo do Direito, refletindo no organismo social diretamente.

    Representa a atribuio de aplicabilidade e efetividade ao texto constitucional. J.J.

    Gomes Canotilho (2003, p.1150) se refere Constituio pela expresso lei-quadro, na

    medida em que o carter aberto e a estrutura de muitas normas da constituio obrigam

    mediao criativa e concretizadora dos intrpretes da constituio, comeando pelo legislador

    e pelos juzes. Daniel Sarmento (2008, p.53) registra que a ineficcia de alguns dispositivos

    da Constituio se d, em situaes peculiares, por conta do grau de indeterminao

    semntica de algumas normas, utilizao de recursos escassos ou formulao de polticas

    pblicas, e no pelo carter absentesta do Estado. Complementa seu pensamento,

    asseverando que:

  • 28

    Sem embargo, o certo que a falta de efetividade das normas constitucionais contribui decisivamente para comprometer a credibilidade da Constituio, e impedir a difuso de um genuno sentimento constitucional entre o povo. De fato, quando os textos constitucionais acenam no sentido de mudanas profundas e contemplam promessas generosas, mas seus comandos no logram nenhuma eficcia social, cria-se um profundo abismo entre o mundo do dever-ser e a realidade que constri a crena na Constituio como norma. Ela passa a ser vista pelos seus destinatrios como um repositrio de utopias e de proclamaes polticas, de pouca valia prtica. No imaginrio social d-se uma completa inverso de valores: mais do que a Constituio, vale a lei, e ainda mais do que esta, a portaria do Ministro.

    O constitucionalismo contemporneo, cenrio do ps-positivismo e da nova

    hermenutica constitucional, pauta-se por uma orientao principiolgica e inovadores

    arqutipos de compreenso a buscar a eficcia social dos seus ditames. Aponta-se a existncia

    de documentos constitucionais analticos. Para Uadi Lamgo Bulos (2008, p.23):

    Em verdade, as constituies contemporneas firmaram o compromisso entre o liberalismo capitalista e o intervencionismo estatal. Isso fez com que ocorresse um alargamento dos textos constitucionais, isentando os indivduos das coaes autoritrias em nome da democracia poltica, dos direitos econmicos, dos direitos dos trabalhadores. Da o contedo social das constituies de onde deriva a ideia de constituio dirigente, que encontra no Professor portugus Jos Joaquim Gomes Canotilho [1994] sua expresso maior. Assim, os textos constitucionais contemporneos deixaram de impor relaes coativas de convivncia e passaram a consagrar princpios socioeconmicos, vertidos em normas dependentes de regulamentao legislativa, no intuito de celebrarem compromissos e promessas genricas, difceis de serem realizadas na prtica.

    Com a emergncia do Estado Social, cuja principal contribuio foi desempenhar uma

    redefinio dos papis da Constituio, passou-se a consagrar os direitos sociais, econmicos,

    culturais e orientar as diretrizes dos Poderes Pblicos para a transformao da sociedade.

    Surge, assim, a constitucionalizao do Direito, ou seja, a influncia direta da Constituio

    Federal e dos seus postulados no ordenamento jurdico como um todo, incorporando ao seu

    texto inmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito, contrapondo-se ao

    Estado Liberal, em que o diploma constitucional se limitava a organizar o Estado e a garantir

    os direitos individuais. Transfere-se a Constituio e o seu contedo para o centro do

    ordenamento jurdico, no sendo apenas um sistema em si, dotado de unidade e harmonia,

    mas sim consistindo em um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito.

    Neste diapaso, a constitucionalizao tem como efeito prtico a proteo dos direitos

    fundamentais mediante o controle de constitucionalidade dos atos normativos a eles inerentes,

    devendo ser aplicados como normas jurdicas vinculativas, conforme sugesto de J.J.

    Gomes Canotilho (2003, p.378).

  • 29

    Alguns autores, tais como Clmerson Merlin Clve (1988), Paulo Ricardo Schier

    (1999), Anderson SantAna Pedra (2008) e Marcelo Neves (2007), denominam esse

    fenmeno de filtragem constitucional, na medida em que toda a ordem jurdica deve ser lida

    e apreendida sob a lente da Constituio, de modo a realizar os valores nela consagrados e

    sugerir uma reinterpretao dos seus institutos. Assim, surge a necessidade de uma nova

    interpretao constitucional, pautada pela legitimidade e vinculatividade dos seus ditames,

    pelo desenvolvimento de novos mecanismos de concretizao constitucional, enaltecendo o

    compromisso tico dos operadores do Direito. (SCHIER, 2005, p.110). Sobre o assunto, Lus

    Roberto Barroso (2007, p.217) considera que:

    A ideia de constitucionalizao do Direito aqui explorada est associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo contedo material e axiolgico se irradia, com fora normativa, por todo o sistema jurdico. Os valores, os fins pblicos e os comportamentos contemplados nos princpios e regras da Constituio passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalizao repercute sobre a atuao dos trs Poderes, inclusive e notadamente nas suas relaes com os particulares.

    Na lio de Andr Ramos Tavares (2006, p.134), quando se fala em

    constitucionalizao do direito, no se est apenas fazendo referncia supremacia formal da

    Constituio, mas sim admisso de que as leis e todos os atos devem conformao lei

    suprema. O vocbulo constitucionalizao possui trs acepes: (1) faz referncia ao

    advento da primeira constituio escrita; (2) representa o processo histrico-cultural que

    transforma em vnculo jurdico a relao entre os detentores do poder poltico e os que esto a

    ele sujeitos (GUASTINI, 2007, p.271); e (3) como processo de transformao de um

    ordenamento jurdico impregnado por normas constitucionais, caracterizado por uma

    Constituio invasora e expansiva.

    Esse fenmeno teve como marco temporal mais significativo a reconstitucionalizao

    da Europa, no perodo aps a Segunda Guerra mundial e, ao longo da segunda metade do

    sculo XX, passou a redefinir o lugar da Constituio e a influncia do direito constitucional

    sobre as instituies contemporneas, sendo estas entendidas como um modelo de ao ou

    padro de comportamento, um espao de ligao do indivduo com a sociedade, uma estrutura

    de socializao e estabilizao dos padres de conduta e das formas de comportamento.

    (ARANHA, 1999, p.131). Surgiu o que se convencionou chamar de Estado Constitucional de

    Direito, em que a lei posta em conformidade e subordinada a um patamar mais elevado,

    representado pela Constituio escrita (ZAGREBELSKI, 1992, p.39), promovendo a

  • 30

    formao de uma nova organizao poltica pela aproximao entre o constitucionalismo e a

    democracia.

    A principal referncia no desenvolvimento do Neoconstitucionalismo (ou novo direito

    constitucional) a Constituio alem (Lei Fundamental de Bonn), de 1949, com a criao do

    Tribunal Constitucional Federal, em 1951, propiciando tambm o incremento da seara

    cientfica do direito constitucional no mbito dos pases de tradio romano-germnica. Outro

    marco a Constituio da Itlia, de 1947, com a instalao da Corte Constituzionale, em

    1956. Portugal e Espanha seguiram os mesmo passos ao longo da dcada de 70, ao estabelecer

    a redemocratizao.

    No Brasil, o renascimento do direito constitucional se deu por ocasio da discusso

    prvia, da convocao, da elaborao e da promulgao da Constituio de 1988, permitindo

    a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritrio, intolerante e violento para um

    Estado Democrtico de Direito. A nova concepo reconhece a fora normativa

    constitucional, o fortalecimento da jurisdio constitucional e a insero dos princpios e

    valores constitucionais em todo o ordenamento jurdico, concebendo a Constituio como o

    topo hermenutico que conformar a interpretao jurdica do restante do sistema jurdico.

    (STRECK, 2004, p.225). Ressaltando a importncia desta realidade, Clmerson Merlin Clve

    (2001, p.207) aponta que uma Constituio democrtica uma fonte inesgotvel de

    argumentos que podem ser utilizados com o sentido de democratizar o direito, inclusive se

    for o caso, para o fim de negar a aplicao lei que viole um valor protegido pela Lei

    Fundamental.

    Ainda em territrio nacional, do ponto de vista filosfico, devem-se registrar a funo

    desempenhada pelas ideias do ps-positivismo, extrapolando a legalidade estrita, mas sem

    desprezar o direito posto, e o empreendimento de uma leitura moral do Direito. A

    interpretao e aplicao do ordenamento jurdico ho de ser inspiradas por um conjunto de

    preceitos ricos e heterogneos, que procuram abrigo neste paradigma para a implementao

    da constitucionalizao do Direito, da reabilitao da razo prtica e da argumentao

    jurdica, culminando com a formao de uma nova hermenutica constitucional.

    Marcelo Neves (2007, p.64) registra que a constitucionalizao do Direito significa

    analisar a Constituio como um acoplamento estrutural entre o Direito e a poltica, usando o

  • 31

    raciocnio de Niklas Luhmann (1980). Nesse sentido, a Lei Maior encarada como um

    subsistema do sistema jurdico, qual seja, o direito constitucional, sendo definido sob o ponto

    de vista operativo e no somente pelo ngulo do aspecto estrutural (conjunto de normas

    postas): ela inclui as comunicaes que, de um lado, fundamentam-se nas expectativas

    constitucionais vigentes e, de outro, servem de base para elas. (NEVES, 2007, p.68). Alerte-

    se que, em um primeiro momento, a ampliao da Constituio atravessou um momento de

    crise quanto sua juridicidade, oportunidade em que as suas normas foram divididas em

    autoaplicveis e no autoaplicveis, neutralizando os avanos das constituies sociais,

    consoante a doutrina de Ana Prata (1982, p.123):

    Todas as normas que excedessem o estatuto organizatrio do Estado e o elenco dos direitos assegurados aos cidados contra estes tinham um cariz perceptivo, traduzindo-se num conjunto de declaraes polticas de princpios sem fora vinculativa.

    Marcelo Neves (2007, p.92) e Daniel Sarmento (2008, p.53) registram uma crtica a

    essa realidade e a denominam de constitucionalizao simblica, criando-se a iluso de que

    o Estado est agindo para resolver os problemas sociais, sem materializar nenhum empenho

    em concretiz-los no mundo real. Por este vis, a Constituio vista como um instrumento

    ideolgico da burguesia, de modo a exprimir apenas a feio jurdica do compromisso do

    Estado com o indivduo que, nas palavras de Ferdinand Lassale (2001, p.17-25), se trata da

    constituio folha de papel (constituio escrita). Ressalta a necessidade de uma conexo

    com a constituio real e efetiva, cujo contedo a ambincia social. Sugeriu ainda que uma

    constituio escrita seria duradoura quando correspondesse constituio real e tivesse suas

    razes nos fatores reais do poder que regem um pas.

    Konrad Hesse (1991, p.24) reconhece que a constituio jurdica est condicionada

    pela realidade histrica, sendo fundamental para a pretenso de sua eficcia. No seu

    pensamento, o elemento normativo ordena e conforma a realidade poltica e social, logrando

    conferir-lhe forma e modificao. Fazendo uma releitura das ideias de Lassale, Hesse afirma

    que a constituio jurdica no significa um simples pedao de papel, pois no est

    desvinculada da realidade concreta a constituio real e com isso operando uma sntese

    entre o ser e o dever-ser.

    A fora normativa da constituio, segundo sua base terica, se manifesta pela

    verificao da vontade constitucional, haja vista que necessria a mobilizao da sociedade

  • 32

    para concretizar suas normas. Nesse contexto, busca-se uma soluo para os problemas

    jurdicos que estejam de acordo com uma eficcia tima da lei fundamental: deve-se dar

    primazia s solues hermenuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas

    constitucionais, possibilitem a atualizao normativa, garantindo, no mesmo p, sua eficcia e

    permanncia. (CANOTILHO, 2003, p.1226). Para Anderson SantAna Pedra (2008, p.42), o

    Direito Constitucional se destaca pela efetividade das suas normas e pelo respeito sua fora

    normativa, ou seja, deve-se encarar a Constituio como uma norma jurdica de eficcia

    imediata.

    Essa abordagem resvala no conceito de positividade ou positivao do Direito, como

    uma indicao de um sistema autodeterminado ou fechado operacionalmente e posto por

    decises, implicando na excluso de qualquer supradeterminao direta no mediatizada por

    critrios intrassistmicos e por outros meandros, tais como o social, a poltica, a economia, a

    cincia, etc. A Constituio a ordem normativo-jurdica essencial de uma comunidade e o

    Direito Constitucional direito positivo. Assim pensa J.J. Gomes Canotilho (2003, p.1176),

    ao afirmar que:

    A complexa articulao da textura aberta da constituio com a positividade constitucional sugere, desde logo, que a garantia da fora normativa da constituio no tarefa fcil, mas se o direito constitucional direito positivo, se a constituio vale como lei, ento as regras e os princpios constitucionais devem obter normatividade regulando jurdica e efectivamente as relaes da vida (P. Heck), dirigindo as condutas e dando segurana a expectativas de comportamentos (Luhmann).

    Paulo Bonavides (2008, p.95), analisando a questo da necessria unio entre as

    dimenses constitucionais polticas e jurdicas, ressalta a ausncia de uma frmula que venha

    combin-las ou concili-las: ora prepondera uma, ora a outra, no constitucionalismo clssico

    e individualista preponderou a primeira; no constitucionalismo social e contemporneo, a

    segunda. Assim, a relao entre os sistemas horizontal-funcional e no vertical-hierrquica.

    Nesse contexto, o setor jurdico precisa de critrios internos no apenas para a aplicao

    jurdica concreta, mas tambm para o estabelecimento de normas jurdicas gerais: a

    Constituio representa a forma pela qual o sistema jurdico reage prpria autonomia.

    (NEVES, 2007, p.70).

    A hierarquizao interna entre Constituio e lei infraconstitucional traduz uma

    condio j superada de reproduo autopoitica (MATURANA; VARELA, 1980) do Direito

  • 33

    moderno, servindo para o seu fechamento normativo e operacional. (MATURANA;

    VARELA, 2001). Em oposio, consequncia direta da constitucionalizao, encontra-se a

    alopoiese, fruto da reproduo de uma comunicao jurdica: a Constituio determina como

    e at que ponto o sistema jurdico pode reciclar-se sem perder sua autonomia operacional.

    (NEVES, 2007, p.71). Isso o que se denomina de processo de concretizao constitucional,

    mantendo-se uma circularidade entre a criao e a aplicao do Direito. Marcelo Neves (2007,

    p.73) diz que se trata da funo descarregante da Constituio que impede o bloqueio do

    sistema jurdico pelas diversas expectativas de comportamentos que circundam a

    complexidade da sociedade contempornea, reconhecida pela institucionalizao dos direitos

    fundamentais, afirmando ainda que, por intermdio destes, a Constituio pretende responder

    s exigncias do seu ambiente.

    A interpretao dos fenmenos polticos e jurdicos produto de uma determinada

    contextualizao histrica, envolvendo tambm as circunstncias do intrprete, processo que

    exige a identificao da posio dos atores em cena e das foras materiais atuantes, o que Karl

    Larenz (1997, p.285) denomina de pr-compreenso, tambm referenciada por Gilmar

    Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (2007, p.04), na

    medida em que o conceito e o objeto de uma constituio estaro condicionados por

    concepes prvias. Os fundamentos iniciais so os pr-conceitos, os pr-juzos, as pr-

    suposies. Surge a necessidade de racionalizar e controlar essa pr-compreenso

    constitucional. Neste diapaso, Konrad Hesse (1983, p.44) considera que:

    El intrprete no puede captar el contenido de la norma desde un punto casi arquimdico situado fuera de la existencia histrica sino nicamente desde la concreta situacin histrica en la que se encuentra, cuya plamacin ha conformado sus hbitos mentales, condicionando sus conocimentos y sus pr-juicios.6

    O prprio exaurimento do modelo iluminista-cientificista de explicao da realidade,

    denunciado, por exemplo, pela Teoria Crtica Social (Escola de Frankfurt)7, j pressentiu que

    todos os mecanismos criados para uma nova compreenso da realidade so apenas novos

    rtulos, ganhando nomes adequados. Ignorando este alerta assim como vem sendo a

    6 O intrprete no pode captar o contedo da norma por uma medida quase arquimdica, se est fora da existncia histrica, s aps a situao histrica concreta em que esto localizados que se tem moldado seus hbitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pr-julgamentos (traduo livre). 7 Theodor Wiesengrund-Adorno, Herbert Marcuse, Jngen Habermas, Karl-Otto Apel, Walter Benjamin, Axel Honneth, Max Horkheimer, dentre outros autores, so alguns representantes da Escola de Frankfurt.

  • 34

    inesgotvel criao dos seres humanos e da Histria convencionou-se denominar esse

    momento de ps-modernidade.

    Boaventura de Sousa Santos (1999) investiga como esta orientao inovadora at

    que se demonstre o contrrio se manifesta de maneira rpida e profunda nos cenrios

    sociais, culturais, polticos e econmicos, no escapando de uma perspectiva internacional,

    preocupando-se sempre com a histria das naes atingidas. Sua proposta revisitar

    conceitos, modelos, teorias e solues que at ento eram consideradas eficazes para

    diagnosticar as crises institucionais que se instalavam, mas com o novo constitucionalismo,

    so necessrias tambm novas reflexes. Diante do exposto, resta claro que, por essa nova

    orientao hermenutica e no contexto do Estado Democrtico de Direito, a Constituio

    passa a ser vista como uma norma de hierarquia superior e suprema, cujo contedo expressa

    uma srie de princpios e valores que so orientadores das disposies dos diversos ramos do

    Direito e das atividades jurdicas.

    1.2 O movimento constitucional no Brasil

    Pode-se dizer que o pensamento constitucional brasileiro (BONAVIDES;

    ANDRADE, 1989) desdobra-se em quatro fases e o nascimento de cada uma destas foi

    antecedido por importantes movimentos polticos ou sociais. As influncias do movimento

    constitucional no Brasil na fase monrquica tiveram como marcos a chegada de D. Joo VI,

    em 1808, a elevao do Brasil categoria de Reino Unido a Portugal, em 16 de dezembro de

    1815, e a proclamao da independncia, em 7 de setembro de 1822, inaugurando a fase

    imperial de governo. Segundo relatos de Oliveira Vianna (1956, p.247), a nobreza brasileira

    era composta por uma aristocracia intelectual de graduados em universidades europeias,

    conhecimentos que contriburam significativamente para a sedimentao das novas teorias

    polticas que se desenvolviam na Europa: o liberalismo, o constitucionalismo, o federalismo,

    etc. Cogitou-se em aplicar no Brasil a Constituio portuguesa. O passo seguinte foi a

    instalao de uma unidade de poder que se afastasse da monarquia. Na lio de Jos Afonso

    da Silva (2006, p.74), assim era o cenrio do Brasil Imprio:

    O constitucionalismo era o princpio fundamental dessa teoria, e realizar-se-ia por uma constituio escrita, em que se consubstanciasse o liberalismo, assegurado por uma declarao constitucional dos direitos do homem e um mecanismo de diviso dos poderes, de acordo com o postulado do art. 16 da Declarao dos Direitos do

  • 35

    Homem e do Cidado de 1789, segundo o qual no tem constituio a sociedade onde no assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separao dos poderes.

    A fase dominante no Brasil Imperial foi caracterizada como liberal-centralizadora,

    destacando-se as contribuies de Pimenta Bueno (1978), o Marqus de So Vicente, com a

    sua obra Direito Pblico Brasileiro e Anlise da Constituio do Imprio, de 1857. Refletia,

    com a existncia do Poder Moderador, sobre as questes poltico-administrativas da

    centralizao e a relao com o desenvolvimento nacional, o que veio posteriormente com a

    Repblica nos moldes das instituies norte-americanas. Devem-se registrar ainda as

    contribuies doutrinrias de Aureliano Tavares Bastos, em suas Cartas do Solitrio (1863)

    e A Provncia (1870). No Brasil, embora a concepo liberal no tenha sido aplicada em sua

    pureza (FAORO, 1991), manifestou-se de forma indireta nas Constituies de 25 de maro de

    1824, pela concentrao de poderes nas mos do imperador, titular do Poder Moderador, a

    existncia da escravido e dos privilgios da nobreza; e de 1891, devido influncia marcante

    do constitucionalismo norte-americano. (BRASIL, 1999, p.96-121).

    O Brasil Republicano representa a segunda fase do constitucionalismo nacional,

    dominada pelo pensamento de Rui Barbosa, ento Ministro da Fazenda e interino da Justia, o

    qual foi o defensor, dentre outras contribuies, do habeas corpus e do controle de

    constitucionalidade pelo Poder Judicirio. Valem ressaltar os esforos de Joo Barbalho e de

    Carlos Maximiliano, referncias para a interpretao da Carta de 1891. O perodo foi marcado

    ainda por um nacionalismo realista e autoritrio inaugurado por Alberto Torres, e no plano

    constitucional, pela obra de Oliveira Vianna (1927), que, em Idealismo da Constituio,

    enfraquece o trabalho de Rui Barbosa em prol das liberdades pblicas. Nesse perodo

    surgiram vozes dissonantes que procuraram substituir o direito pela sociologia e pela

    economia, sob o um olhar crtico do constitucionalismo.

    Ao lado do Poder Moderador, pelo qual o Rei reinava, governava e administrava

    (SILVA, 2006, p.76), dois rgos reforavam a ao do soberano: o Senado e o Conselho de

    Estado. O primeiro era conservador e funcionava como rgo de reao contra os movimentos

    liberais da Cmara dos Deputados. O segundo era um rgo consultivo. Impregnada pela

    sistemtica dos poderes locais da poca colonial, a ameaa da descentralizao poltica foi

    uma constante na histria poltico-constitucional do Imprio. Por meio das rebelies que

    ficaram conhecidas como cabanada, balaiada, sabinada, tentou-se implantar no Brasil a

  • 36

    monarquia federalista, mas o Imprio somente sucumbiu em 1889, quando as foras

    descentralizadoras firmaram-se como fatores de conduo da vida poltica brasileira na

    estruturao do Estado e, para isso, apoiaram-se na democracia como regime jurdico que

    assegurasse os direitos fundamentais, iniciando-se a fase republicana. O governo provisrio

    foi institudo pelo Decreto no 01, de 15 de novembro de 1889, sob o comando do Marechal

    Deodoro da Fonseca.

    Em 24 de fevereiro de 1891, foi promulgada a Constituio da Repblica dos Estados

    Unidos do Brasil, ocasio em que ficou estabelecida como forma de governo a Repblica

    federativa, constituda pela unio perptua e indissolvel das antigas provncias e o regime

    representativo. A opo pelo presidencialismo, de acordo com o modelo norte-americano, foi

    justificada por Pedr