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UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA FACULDADE DE PSICOLOGIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICOBIOLOGIA “Personalidade, Bem-estar e Espiritualidade: a influência das metas e motivações últimas na prevenção da saúde” Tese de Doutorado Por Gisneide Nunes Ervedosa Dirigida por: Profa. María Ángeles Luengo Martín Santiago de Compostela, Junho de 2004

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UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA FACULDADE DE PSICOLOGIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLNICA E PSICOBIOLOGIA

Personalidade, Bem-estar e Espiritualidade: a influncia das metas e motivaes ltimas na preveno da sadeTese de Doutorado

Por Gisneide Nunes Ervedosa

Dirigida por: Profa. Mara ngeles Luengo Martn

Santiago de Compostela, Junho de 2004

Ao filho Ricardo e s filhas Amanda e Patricia, ao meu pai Paulo e minha me Gisleuda, aos Irmos e Irms, e s mais novas geraes representadas pelo meu Neto, Sobrinhas e Sobrinhos. sabedoria irreverente e bem humorada da tia Expedita, e seus lcidos 88 anos, que nos recordam o respeito por todos os Filhos e Filhas da Terra, e por nossos Ancestrais. Ao av Jos e av Francisco (in memoriam), fontes de juventude e liberdade, serenidade na vida e na morte. tia Lucia e s avs Ceclia e Maria do Carmo (in memoriam), exemplos de autntica vida crist. A primeira me contava histrias dos santos, sem se esquecer de narrar as estorinhas infantis, onde o macaco sempre nos fazia rir com suas peripcias. A segundo me ensinou a fora do Silncio, e a terceira, a rezar com f, apesar de.... Durante os ltimos anos, vocs todos no me fizeram falta; vocs me preencheram com seu amor e dedicao, dando-me fora para prosseguir, passo a passo, mais alm da saudade.

AGRADECIMENTOSEmbora este trabalho seja produto de uma iniciativa individual, seria impossvel come-lo e conclu-lo sem a inestimvel colaborao de vrias pessoas, principalmente daquelas com as quais venho compartilhando esses ltimos anos. Antes de tudo, quero agradecer a Deus, pois sua Presena, fortalecida pelas Mestras e Mestres das Tradies de Sabedoria, me animou a superar as limitaes e seguir. Em primeiro lugar, quero manifestar minha gratido Orientadora desta tese, Professora Dra. Mara ngeles Luengo Martn, que supervisionou com reconhecida competncia, as etapas desta investigao. Tambm quero agradecer Professora da Faculdade de Educao, Dra. Beatriz Cebreiro Lpez, que orientou com esmerada eficincia parte desta tese. Ao Professor da Faculdade de Geografia e Histria, Dr. Antonio Rodriguez Colmenero, pelo primeiro contato com a Universidade de Santiago de Compostela; Ao Professor da Faculdade de Psicologia, Dr. Lus Fernndez Ros, pelas discusses tericas e oportunas sugestes, e ao Professor da Faculdade de Filosofia, Dr. Marcelino Ags Villaverde, pela fora e incentivo; Universidade de Fortaleza (Cear-Brasil), Universidade de Santiago de Compostela, e Agencia Espaola de Cooperacin Internacional que financiaram esta investigao; Aos professores da Universidade de Fortaleza, especialmente, ao Prof. Ms. Batista de Lima (Diretor do Centro de Humanidades), Prof. Ms. Gil (Vice-reitor de Graduao), Prof. Ms. Morano (Vice-reitor de Ps-graduao), Profa. Mrcia Telma e Profa. Mrcia Alves (ento coordenadora do Curso de Psicologia); Aos professores da Universidade de Santiago de Compostela e bolsistas dos projetos de investigao coordenados pela Professora Mara ngeles, em especial ao Prof. Dr. Jos Antonio Gmez Fraguela, Professora Dra. Estrella Romero Trianes, e Dra. Paula Villar Torres, por me ajudarem a dar olguns passos necessrios para concluir este estudo; Aos clientes do consultrio de psicoterapia, e alunos da Universidade de Fortaleza, e da Universidade de Santiago de Compostela, que me estimularam a ir alm de mim mesma para ser capaz de orient-los; Aos desfavorecidos habitantes do Planeta, aos indgenas do Continente Americano, e em especial, aos favelados do Brasil, que me ensinaram a Sade Solidria apesar da injustia e da pobreza, me levando alm do formalismo acadmico; s crianas e adolescentes, pacientes de cncer (e respectivas famlias) do Hospital Infantil Albert Sabin (Fortaleza-Cear-Brasil), que enfrentam com confiana e f o processo de vida/morte/vida, e tambm inspiraram a elaborao do projeto de tese; Universidade da Paz (Fortaleza e Braslia), que me proporcionou os primeiros subsdios para me aproximar do Esprito, nas pessoas de Lise Lima, Harbans AlArora, Jean-Yves Leloup, Leonardo Boff, Roberto Crema, Pierre Weil e aos companheiros de estudos; Veronica Barbazn, cnsul da Espaa em Fortaleza, por seu valoroso trabalho de intercmbio entre Brasil e Galicia ;

Aos colegas de profisso, familiares e amigos com quem venho compartilhando a aventura da vida como aprendizes da Essncia, em especial, a Amanda de Ervedosa Mendona, Evelyne Ervedosa Bastos, Lucy Lopes, Paulo Borges, Leo Matos, Silvana Araripe, Elita Bezerra de Menezes, Ftima Sena, Ftima Severiano, Gustavo e Maristher Fernandes, Luis Fernando, Susana Lousada, madrinha Gladys, Beatriz Bispo, Gecilane Arajo, Hiran e Conceio Cmara, Joo Batista e Ana Nunes, Conceio, amigos do Instituto Gaia, Instituto Anima e Unio do Vegetal, e muitos outros; Comunidade Cearense em Santiago de Compostela, nas pessoas de Joo Batista e Ana Nunes, Fernando e Shirley Pereira, Jorge Freitas, Ila Silva de Souza e famlia, Auxiliadora Giffoni e famlia, em especial Marilene Cordulino, Socorro Brando e Eros Gonalves; s monjas bernanrdas da Ordem de San Benito, cuidadoras do Monasterio del Divino Salvador de Ferreira de Pantn (Lugo-Galicia), pela silenciosa hospitalidade, quando redigia uma parte desta tese; Ao Dr. em Filologia Jlio Rocha pelo auxlio na reviso de boa parte do texto; Aos professores da Universidade de Santiago de Compostela (Faculdades de Educao, Psicologia e Fsica), e do Instituto Teolgico Compostelano, e aos dirigentes das Parquias catlicas da Cidade de Santiago pela colaborao no recrutamento dos futuros participantes da presente pesquisa; Aos alunos das Faculdades acima citadas, alunos do Instituto Teolgico, fiis das referidas Parquias catlicas, e peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela, que responderam os questionrios e entrevistas; Ao Diretor da Consellera de Cultura, Comunicacin Social e Turismo da Xunta de Galicia, Dom Manuel Villar Rosende (in memoriam) e ao Padre Jose Igncio Das da Parquia de Gran (La Rioja), que me deram permisso para trabalhar como hospitaleira-investigadora, no Refgio de O Cebreiro (Galicia); hospitaleira do Refgio de O Cebreiro, Edita Nues, e demais hospitaleiros que colaboraram com a seleo dos peregrinos, e a todos os que guardam esse Caminho; A todos os amigos peregrinos por me ajudarem a recordar e integrar as Lies do Caminho, nas pessoas de Orietta Prendn, que transcreveu parte das entrevistas (Itlia), Accio da Paz, Cristtina Davet, Marta Lima, Slvio Gurjo, Vania Frank e Zulmira Bomfim (Brasil), Carlos Lzaro, Lola Centeno, Joo Curiel, Juan Barro Bueno e Mara Gutirrez, Mercedes Fernndez, Jose Caballo e Maricarmen Villar, Mara Sagrario (Galicia-Espaa), Denyse Huston (Malpica-Galicia/Frana) e o grupo de meditao, Orlando Casais, Lua e Cassandre Stapfer (Fisterra-Galicia/Sua), Jacomina Klistemaker (Punta do Couso-Galicia/Holanda), Stefan Hlavac e famlia (ustria); peregrina Paz Gonzlez Villamayor e seus pais, Manoel e Pilar, minha famlia em Bandeira, Va da Plata (Pontevedra-Galicia), Moitas Gracias

NDICE

INTRODUO 1 PARTE CAPTULO 1 Psicologia e Religio..............................................................................3 1.1 Psicologia e Religio: breve histrico, problemas terico-metodolgicos atuais e novas perspectivas ....................................................................7 1.2 Principais dificuldades terico-metodolgicas enfrentadas pelos estudiosos...10 1.3 Psicologia cientfica e Religio: da crena na neutralidade explicitao das crenas filosficas e religiosas ............................................................... 17 1.4 Uma relao mais construtiva entre Psicologia e Religio ........................ 32 1.5 Implicaes para a Psicologia aplicada ................................................... 84 CAPTULO 2 Psicologia da Personalidade e Religio ...............................................95 2.1 Desenvolvimento histrico..................................................................... 95 2.1.1 Estudos pioneiros ................................................................... 102 2.1.2 Status da Psicologia da Personalidade no campo da Religio..... 153 2.2 Desenvolvimento atual ........................................................................ 158 2.2.1 Aspectos bio-sociais e teoria evolucionista ............................... 159 2.2.2 A teoria da Personalidade de Eysenck e Religio ...................... 165 2.2.3 O modelo dos Cinco Grandes Fatores e os constructos relacionados . com Religio .......................................................................... 176 2.2.4 A teoria de Cloninger e a Auto-transcendncia ......................... 207 2.2.5 A abordagem gentico-estrutural e o desenvolvimento da Personalidade religiosa ........................................................... 218 2.2.6 O desenvolvimento das fases da vida e a Religio na senescncia 225 2.2.7 O papel do afeto e dos processos inconscientes: a teoria cognitivoexperiencial do self e a teoria das relaes objetais aplicadas experincia religiosa ............................................................... 238

2.2.8 A teoria do apego e Religio .................................................. 252 2.2.9 Motivao e metas ltimas e a teoria da Inteligncia Espiritual . 261 2.3 Estudos empricos sobre Personalidade e Religio................................. 274 2.3.1 Religiosidade, autoritarismo e conformismo............................. 275 2.3.2 Religiosidade e ansiedade ...................................................... 276 2.3.3 Converso religiosa................................................................ 280 2.3.4 Virtudes ................................................................................ 281 2.3.5 Gnero como varivel interveniente ........................................ 282 2.3.6 Auto-estima........................................................................... 286 2.3.7 Aspectos psicossociais............................................................ 288 2.4 Religio e Espiritualidade na dimenso da Personalidade....................... 296 2.4.1 Aspecto integral ou componente da Personalidade .................. 298 2.4.2 Motivao e metas ltimas como facilitadoras do dilema Personalidad versus Religio................................................ 302 2.4.3 Condio e essncia do desenvolvimento humano ................. 306 CAPTULO 3 Delimitao dos Conceitos: Religio versus Espiritualidade............ 327 3.1 Discusso e delimitao dos conceitos ................................................. 328 3.2 Funes da Religio ............................................................................ 344 3.3 Necessidade de integrao dos conceitos de Religiosidade e Espiritualidade..401 3.4 Indicadores de Religio e Espiritualidade nas investigaes ................... 405 3.5 Indicadores das funes da Religio .................................................... 415 3.6 Religiosidade e Espiritualidade: conceito uni ou mutidimensional ........... 417 CAPTULO 4 Religio e Sade ............................................................................... 423 4.1 Mecanismos atravs dos quais a Religio pode afetar a sade............... 433 4.2 Sade fsica, Religio e sistema imunolgico ........................................ 447

4.3 Sade mental e Religio ...................................................................... 488 4.4 Efeitos negativos da Religio sobre a sade.......................................... 514 CAPTULO 5 Personalidade, Religio e Sade .......................................................531 5.1 Religio, traos de Personalidade e virtudes relacionadas sade ......... 537 5.1.1 Hostilidade............................................................................. 542 5.1.2 Otimismo e esperana ............................................................ 545 5.1.3 Locus de controle................................................................... 551 5.1.4 Perdo .................................................................................. 558 5.1.5 Amor ..................................................................................... 572 5.2 Metas, sentido na vida e Bem-estar ..................................................... 584 CAPTULO 6 Religio, Sade e implicaes para a preveno ..............................603 2 PARTE 1. Metodologia ...................................................................................... 643 1.1 Consideraes iniciais.......................................................................... 643 1.2 Objetivos da investigao .................................................................... 655 1.3 Estudo quantitativo ............................................................................. 656 1.3.1 Amostra ................................................................................ 657 1.3.2 Variveis estudadas e instrumentos de coleta e mensurao .......................................................................... 662 1.3.3 Procedimento......................................................................... 674 1.3.4 Anlise estatstica................................................................... 676 1.4 Estudo qualitativo ............................................................................... 678 1.4.1 Amostra ................................................................................ 678 1.4.2 Variveis estudadas e instrumento de coleta de dados ............. 685

1.4.3 Procedimento ........................................................................ 686 1.4.4 Anlise qualitativa.................................................................. 688 1.4.4.1 Programa de anlise de dados atravs de computador .............................................................. 688 1.4.4.2 Operaes realizadas no processo analtico ................ 690 2. Resultados do estudo quantitativo............................................... 703 2.1 Caractersticas da experincia religiosa/espiritual.................................. 703 2.1.1 Anlises descritivas dos indicadores de Religiosidade e Espiritualidade ....................................................................... 703 2.1.2 Anlise fatorial das escalas de Religiosidade e Espiritualidade ... 711 2.2 Anlises das dimenses Religiosidade e Espiritualidade ......................... 720 2.2.1 Anlises descritivas das pontuaes dos fatores Religiosidade e Espiritualidade....................................................................... 720 2.2.2 Anlises de correlao entre fatores e indicadores de Religiosidade e Espiritualidade .................................................................... 722 2.3 Religiosidade e Espiritualidade e sua relao com Personalidade ........... 731 2.3.1 Religiosidade e Espiritualidade e o TCI de Cloninger ................ 731 2.3.1.1 Anlises descritivas...................................................... 731 2.3.1.2 Correlaes entre os fatores Religiosidade e Espiritualidade e as dimenses do TCI.............................................. 734 2.3.1.3 Correlaes entre Prticas religiosa-espirituais e o TCI... 742 2.3.1.4 Dimenses do TCI e outros indicadores de Religiosidade e Espiritualidade ............................................................ 750 2.3.2 Religiosidade e Espiritualidade e o NEO-PI-R ........................... 766 2.3.2.1 Anlises descritivas...................................................... 766 2.3.2.2 Correlaes entre os fatores Religiosidade e Espiritualidade e as dimenses do NEO-PI-R ....................................... 767 2.3.2.3 Correlaes entre Prticas religiosa-espirituais e o NEO-PI-R............................................................. 769 2.3.2.4 Dimenses do NEO-PI-R e outros indicadores de

Religiosidade e Espiritualidade ................................... 771 2.4 Religiosidade e Espiritualidade e Sade/Bem-estar................................ 773 2.4.1 Anlises descritivas ................................................................ 773 2.4.2 Correlaes entre os fatores Religiosidade e Espiritualidade e os indicadores de Sade/Bem-estar............................................. 777 2.4.3 Prticas religiosa-espirituais e indicadores de Sade/Bem-estar .... 780 2.4.4 Sade/Bem-estar e outros indicadores de Religiosidade e Espiritualidade ...................................................................... 784 2.5 Personalidade, Religiosidade e Espiritualidade e Sade/Bem-estar ......... 803 2.5.1 Anlises discriminantes entre os grupos altos e baixos em Religiosidade e Espiritualidade ................................................ 803 2.5.2 Anlises de regresso: preditores de Sade/Bem-estar............. 806 3. Resultados do estudo qualitativo ..................................................817 3.1 Reduo dos dados/Codificao ........................................................... 817 3.2 Freqncia dos cdigos ....................................................................... 828 3.3 Anlise em profundidade ..................................................................... 830 3.3.1 Motivao para peregrinar como mudana pessoal................... 831 3.3.2 Motivaes para fazer o Caminho de Santiago como meio para apreender os conceitos de Religiosidade e Espiritualidade ........ 834 3.3.3 Definio de Religiosidade e Espiritualidade ............................ 834 3.3.4 Descrio das experincias msticas ........................................ 857 3.3.5 Valores e virtudes como metas sagradas ................................. 878 3.3.6 Espiritualidade como processo evolutivo .................................. 888 3.3.7 Religiosidade, Espiritualidade e Sade/Bem-estar..................... 903 3.3.8 Manifestaes do substrato subjetivo da transcendncia .......... 931 3.3.9 Integrao da experincia transcendente, meta ltima e salvao.. 955 4. Discusso dos resultados .............................................................979 4.1 Descrio do fenmeno religioso/espiritual a partir da anlise dos seus indicadores ........................................................................................ 979

4.2 Da polarizao interao entre Religiosidade e Espiritualidade ............ 988 4.3 Relao entre Religiosidade, Espiritualidade, Personalidade e Sade/Bemestar ................................................................................................. 999 4.3.1 Religiosidade, Espiritualidade e as dimenses de personalidade ... 999 4.3.2 Influncias da Religiosidade e Espiritualidade sobre a Sade/Bemestar e a relao com a Personalidade .................................. 1005 5. Concluses ................................................................................. 1027 6. Bibliografia.................................................................................. 1035 7. Anexos ........................................................................................ 1053 Anexo I: Folha de Identificao Anexo II: Indicadores de Religiosidade e Espiritualidade: Escala de Transcendncia Espiritual Anexo III: Roteiro de entrevista com peregrinos Anexo IV: Formulrio do TCI (Cloninger et al., 1993) Anexo V: Formulrio do NEO-PI-R (McCrae & Costa, ) Anexo VI: Indicadores de Sade: Formulrios Questionrio de Sade Geral de Goldberg (GHQ), Afeto Positivo e Afeto Negativo, Questionrio de Satisfao com a Vida. Anexo VII: Relao de estratgias analticas utilizadas no Programa AQUAD Anexo VIII: Resultados: Freqncia de Cdigos Anexo IX: Resultados: cdigos meta e mudana Anexo X: Resultados: cdigos definio de Religiosidade e mudana Anexo XI: Resultados: cdigos definio de Espiritualidade e mudana Anexo XII: Resultados: definio de Religiosidade e motivao religiosa Anexo XIII: Resultados: definio de Religiosidade e motivao religiosa Anexo XIV: Resultados: definio de Espiritualidade e motivao espiritual Anexo XV: Resulados: relao entre Religiosidade e Espiritualidade

Anexo XVI: Resultados: definio de Espiritualidade, Religiosidade e experincia na natureza Anexo XVII: Resultados: definio de Religiosidade, Espiritualidade e experincia na natureza Anexo XVIII: Resultados: expanso de conscincia, experincia religiosa, experincia na natureza e experincia espiritual Anexo XIX: Resultados: definio de Religiosidade e expanso de conscincia Anexo XX: Resultados: definio de Espiritualidade e expanso de conscincia Anexo XXI: Resultados: definio de Religiosidade e conexo Anexo XXII: Resultados: definio de Espiritualidade e conexo Anexo XXIII: Resultados: definio de Religiosidade e evoluo Anexo XXIV: Resultados: definio de Espiritualidade e evoluo Anexo XXV: Resultados: experincia religiosa, experincia espiritual e Bemestar Anexo XXVI: Resultados: experincia espiritual, experincia religiosa e Bemestar Anexo XXVII: Resultados: Bem-estar e meta Anexo XXVIII: Resultados: Bem-estar e virtude Anexo XXIX: Resultados: motivao religiosa, sintoma e Bem-estar Anexo XXX: Resultados: motivao espiritual, sintoma e Bem-estar Anexo XXXI: Resultados: meta e sentido Anexo XXXII: Resultados: Deus e meta Anexo XXXIII: Resultados: confiana/f e meta Anexo XXXIV: Resultados: confiana/f e Deus Anexo XXXV: Resultados: Deus e unidade Anexo XXXVI: Resultados: confiana/f e bem-estar Anexo XXXVII: Resultados: evoluo e mudana Anexo XXXVIII: Entrevistas

INTRODUO

A histria da relao entre Psicologia e Religio coincide com os primrdios da psicologia cientfica, e ao conhec-la, os psiclogos passam a compreender o prprio desenvolvimento dessa cincia de uma forma mais ampla. A psicologia da religio fora uma importante rea de estudo no campo da psicologia at 1930, tendo havido um declnio para o qual confluram vrios fatores, como por exemplo, o cuidado por parte dos psiclogos de no serem confundidos com os filsofos, assegurando o status da psicologia como cincia separada da filosofia. Fierro e Baile (1996) observaram que os psiclogos, ao contrrio dos socilogos e antroplogos, no consideraram a religio crenas, condutas e experincias msticas como elemento crucial na explicao de outros processos psquicos, experincias e comportamentos. Entretanto, o panorama estaria se modificando. Vm ressurgindo as publicaes dos manuais de psicologia da religio, as atividades nesse campo cresceram muito nas dcadas de 70 e 80, a Diviso 36 da American Psychological Association (APA) fora criada para congregar psiclogos interessados no fenmeno religioso/espiritual, e essa associao vem publicando revistas cientficas voltadas para esse tema. Inclusive, a Organizao Mundial de Sade (OMS) incluiu, no seu instrumento de mensurao de qualidade de vida, o mdulo religio, espiritualidade e crenas pessoais. Pargament (1997) defendeu que a psicologia e a religio s teriam a ganhar, caso se encontrassem na realizao do objetivo comum a ambas, a busca de resposta ao sofrimento inerente condio da humanidade, como tambm, promover a compreenso do ser humano.

Para tanto, os psiclogos deveriam focalizar no o contedo de verdade ou legitimao da f, e sim, os aspectos psquicos da religio, estudando a significao que tem para o sujeito a sua relao com o que lhe transcendente. Mais recentemente, alguns fatores tm concorrido para o renascimento do interesse pelo fenmeno religioso/espiritual, seja a nvel cientfico, seja a nvel social. Em primeiro lugar, a crtica neopositivista viso cientificista da cincia rompeu com a resoluo da National Academy of Science, que havia declarado a separao entre o saber cientfico e a religio, em 1981. Cuidadosos estudos da filosofia da cincia contempornea revelaram interessantes paralelos e similaridades entre a cincia e a dimenso cognitiva da religio, mesmo mantendo a diferena entre elas. Assim, a aproximao entre esses dois tipos de saberes vem favorecendo as investigaes nesse campo, em particular na rea da psicologia e religio. A literatura especializada tem apontado para a necessria elucidao de temas tais como: os conceitos de religiosidade e espiritualidade (em sua relao com a personalidade); traos de personalidade relacionados com o fenmeno religioso/espiritual; experincia transcendente e a relao entre sade/bem-estar e o referido fenmeno. Os estudos que vm trabalhando com essa problemtica tambm tm se ocupado de encontrar uma metodologia adequada e instrumental vlido para abordar cientificamente esses temas. Tais pesquisas tm suscitado vrias discusses metodolgicas e os instrumentos de coleta e mensurao dos dados ligados religio e espiritualidade, vm sendo alvo do interesse atual na rea. Quanto metodologia utilizada, a maioria dos estudos tm adotado os procedimentos quantitativos, por favorecerem quantificaes precisas, possibilitando explicaes mais objetivas sobre o fenmeno religioso/espiritual, e permitindo verificar relaes entre as variveis estudadas. Entretando, vrios autores vm reclamando por um modelo tericometodolgico mais compreensivo e global, por uma metodologia qualitativa.

Ao possibilitar a descrio dinmica do referido fenmeno e portanto, a apreenso de um conceito processual de religiosidade/espiritualidade, essa perspectiva metodolgica poderia ajudar tambm na interpretao dos resultados. Seria necessrio pois, estudar as dimenses da Religio em movimento, como recomendaram Zinnbauer et al. (1999). Esse panorama justificou a presente investigao, que procurou se orientar global. Alm do ressurgimento dos estudos sobre religio, no campo cientfico, o interesse sobre o tema tem aumentado no contexto da sociedade mais ampla. Alguns fatores de ordem social que tm contribudo para elevar o interesse sobre os temas religiosos, espirituais e transcendentes, estariam relacionados s rpidas mudanas das sociedades ocidentais e conseqente perda de razes, valores, e sentido na vida, laicizao ou secularizao da sociedade, e crise da religio (Griera i Llonch & Urgell i Plaza, 2001). Por um lado, vem sendo propagada uma viso materialista do mundo e da vida, vem diminuindo a participao nas instituies religiosas e desaparecendo o sagrado do cotidiano. Por outro, essa mesma situao tem levado um grande contingente de indivduos a buscar significao na vida, a conhecer outras tradies de sabedoria como as orientais, e a formar novas seitas e novos movimentos religiosos. Inclusive, vem sendo observado e estudado por socilogos, telogos e psiclogos, um movimento chamado religio personalista e outro mais recente, ou cultura integral alcunhada por Wilber (2000) de Religio Civil Centrada na Pessoa (RCCP). De acordo com Wilber (2000), a questo central seria discernir criticamente, at que ponto essa espiritualidade popular ou cultura integral est realizando uma maturidade espiritual ou apenas preocupada em lograr que as pessoas se sintam bem, ao encontrar significado e legitimar o eu, proporcionando tambm legitimidade e coeso sociedade, no caso, a norteamericana. pelas questes apontadas acima, utilizando a metodologia complementar, no intuito de abordar o objeto de estudo de maneira mais

Mesmo que o autor tenha focalizado a realidade dos Estados Unidos, esse movimento tambm se pode observar em outros pases como o Brasil e a Espanha. No caso da autora desta investigao, vrios motivos lhe levaram a encontrar bases mais slidas para subsidiar seu trabalho acadmico e profissional. Foi justamente seu processo de individuao, o trabalho na rea de psicloga social, na favela do Pirambu (Fortaleza-Cear-Brasil), no consultrio de psicoterapia, no acompanhamento hospitalar de crianas e adolescentes com cncer (seus familiares e profissionais de sade), a inquietao acadmica de vrios alunos, e a necessidade de melhor preparao (tambm percebida por alguns colegas no trabalho cotidiano) que incentivaram o estudo do tema. Os moradores do Pirambu consideravam as vrias vises religiosas de mundo existentes na comunidade (desde as oriundas da teologia da libertao at as da umbanda), quando se discutia sobre uma determinada interveno no coletivo. No consultrio, surgiam fenmenos resultantes da ampliao da conscincia, que os manuais de psicopatologia tradicional tratavam como mrbidos, quando tal diagnstico no conferia com a realidade. Os pacientes com cncer e suas famlias, quando tinham uma religiosidade positiva, enfrentavam o desalentador diagnstico, persistiam no doloroso tratamento (o que aumentava a chance de sobrevida), e quando era o caso, aceitavam a morte com mais tranqilidade. Os alunos intuam que a psicologia poderia ir mais alm, procurando discernir sua vocao de psiclogos, e finalmente, a experincia de alguns companheiros de profisso, lhes falava que necessitavam de algo mais. Tudo isso foi se processando como uma interrogao a respeito do significado da religio e da transcendncia, e sobre a influncia que poderiam exercer na vida das pessoas. O resultado foi um longo caminho de estudos e investigao, trabalho. onde importantes questes terico-metodolgicas e as fomentadas na vida mesma foram esclarecidas, culminando com o presente

Foi feito um considervel esforo para apresentar uma ampla viso das principais teorias e investigaes cientficas que vm sendo realizadas no campo da psicologia e religio, principalmente, na rea da psicologia da personalidade em sua interface com a sade. Esse esforo se justifica pelo acentuado interesse que o tema vem suscitando na atualidade de modo geral, e particularmente, no Brasil. Todavia, esse interesse pelo fenmeno religioso/espiritual inversamente proporcional ao nmero de publicaes cientficas produzidas em lngua portuguesa e castelhana, sendo o grande montante dos estudos realizados em pases de lngua inglesa. Assim, aproveitou-se a oportunidade para democratizar esse conhecimento acumulado, atravs de uma extensa reviso da literatura especializada, que ser muito til, tanto para nortear futuras pesquisas, como tambm para complementar a formao dos psiclogos. Formalmente, este trabalho inclui duas partes. Na primeira delas, realizou-se uma aproximao conceitual do fenmeno religioso/espiritual, e uma reviso da literatura sobre sua relao com a personalidade, sade/bemestar e o uso da religio nos programas de preveno. Ciente da atual problemtica e necessidades de elucidao apontadas pela reviso da literatura, na segunda parte do trabalho, realizou-se a investigao emprica, onde se tratou de dar alguns passos no sentido de contribuir para o avano nessa rea de pesquisa. Mais concretamente, no primeiro captulo, se discute a relao entre cincia e religio, fazendo-se especialmente um levantamento histrico da dade religio e psicologia. Esse captulo situa brevemente, os temas abordados pelas investigaes, os principais problemas terico-metodolgicos enfrentados pelos estudiosos nessa rea, e ainda, uma proposta dialgica entre psicologia e as tradies de sabedoria da humanidade. No segundo captulo, se apresentam as contribuies dos pioneiros da psicologia da personalidade para o estudo da dimenso religiosa/espiritual do ser humano, e as principais teorias e investigaes realizadas mais recentemente. Aqui se tecem algumas reflexes sobre um importante

questionamento presente na rea: se a dimenso espiritual seria mais um fator da personalidade ou uma experincia bsica do ser humano. A discusso e delimitao dos conceitos religiosidade e espiritualidade, bem como o estudo dos indicadores, que vm sendo mais utilizados para medir essas variveis, constituram os objetivos do terceiro captulo. No captulo quarto, examinou-se a relao entre religio e sade, focalizando-se os mecanismos pelos quais se explicam a influncia do fenmeno religioso/espiritual sobre a sade e o bem-estar. O captulo quinto tratou de estreitar mais ainda essa relao, agora focalizando os traos de personalidade, as virtudes e as metas relacionadas com a sade e o bem-estar. Foi examinado como a religio vem sendo utilizada nos servios de sade, e discutida a sua implicao para a preveno, no sexto captulo. A parte emprica do trabalho comea com uma aproximao tericometodolgica da problemtica estudada, incluindo a descrio do processo de investigao que se deu em duas etapas, posto que se optou por uma metododogia complementar. Primeiramente, realizou-se o estudo quantitativo dos dados obtidos atravs de instrumentos de medida de personalidade, religiosidade, espiritualidade e sade/bem-estar, aplicados a quatro grupos distintos: universitrios, catlicos praticantes, populao geral e peregrinos no Caminho de Santiago de Compostela. Em seguida, foi realizado o estudo qualitativo, onde a anlise em profundidade tratou os fragmentos de texto das entrevistas com os peregrinos. Objetivos, amostra, variveis, anlises realizadas e resultados encontrados foram apresentados para cada um dos estudos. Em seguida, passou-se discusso dos resultados, finalizando-se com as principais concluses do trabalho.

CAPTULO 1:

Psicologia e Religio

Y por qu despus de todo, no puede ser el mundo lo bastante complejo como para consistir en muchas esferas de realidad interpenetradas (...)? Desde este punto de vista, religin y ciencia, cada una verificada a su manera, en cada momento y en cada vida, seran coeternas. (W. James) Onde est o conhecimento que se perdeu com a informao? Onde est a sabedoria que se perdeu no conhecimento? (T. S. Eliot) Precisamos da coragem e tambm da inclinao, para consultar e extrair os benefcios das tradies de sabedoria da humanidade. (Schumacher)

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1. PSICOLOGIA E RELIGIO Um estudo psicolgico no campo da religio requer, primeiramente, uma reflexo sobre as relaes da psicologia com o saber das tradies religiosas ou espirituais, para situar a investigao no referido contexto, bem como no marco das demais pesquisas e questionamentos que estas tm levantado. As seguintes pginas, portanto, proporcionaro um panorama geral que reflete de maneira crtica, os tipos de interao entre esses dois ramos do conhecimento, as atitudes do cientista e do profissional de psicologia diante dos temas religiosos, e os problemas terico-metodolgicos com os quais vm se deparando os pesquisadores atualmente. Refletindo sobre os modos de interao formal da psicologia com a religio, Jones (1994) observou trs clssicas modalidades unilaterais, que no afetavam substancialmente cincia psicolgica: a) o uso das descobertas ou teorias psicolgicas para revisar, reinterpretar, redefinir, suplantar ou descartar as tradies religiosas estabelecidas; b) a informao psicolgica para guiar a prtica de assistncia pastoral;. c) o estudo cientfico da religio pelos psiclogos, ou seja, a psicologia da religio. Segundo Jones (1994), nessas trs modalidades baseadas numa antiquada compreenso de cincia e num profissionalismo estreito a religio seria tratada como um objeto de estudo, no como uma forma de conhecimento e ao humana ou como um parceiro ativo nessa interao. A seguir, passarei a examinar brevemente os argumentos de Jones (1994) sobre as duas primeiras formas de interao da religio com a psicologia, para depois observar mais detalhadamente o desenvolvimento da psicologia da religio. Comentou Jones (1994) que os quatro maiores paradigmas histricos da psicologia, quais sejam a psicanlise, o behaviorismo, a psicologia humanista e o cognitivismo, tm sido aplicados para cumprir a finalidade do primeiro modo de interao descrito acima. O referido autor destacou como o cognitivismo vem

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sendo usado para redefinir as crenas religiosas, exemplo recente encontrado num artigo de Sperry (1988), quem afirmou o surgimento de uma nova religio destituda de crenas sobrenaturais, baseada na tica biosfrica e na teologia do cognitivismo evolutivo. Criticando essa nova compreenso de Sperry, Jones (1994) comentou que a partir dela, a humanidade poderia ver a si mesma como o mais alto produto da evoluo e como nossa prpria preocupao ltima, promovendo nosso bem-comum para intensificar a continuao do progresso evolutivo (Sperry, 1988:185; c.f. Jones, 1994). Baseando-se na anlise histrica do processo de psicologizao da assistncia pastoral realizada por Holifield (1983: cf. Jones, 1994), Jones (1994) afirmou que quase todo movimento no campo da sade mental tem se espelhado na psicologia da pastoral. Comentou ainda, que Oden (1984: cf. Jones, 1994) tem demonstrado que os textos sobre a assistncia pastoral at 1920 eram dominados pelas razes histricas e teolgicas da tradio dos cuidados da pastoral, enquanto que depois de 1920, os textos passaram a ser dominados pelos tericos da psicoterapia. Atualmente, os psiclogos tm procurado os pastores como fonte de referncia e auxiliares de sade mental em quase toda comunidade. De fato, a reviso da literatura especializada demonstrou que vrios profissionais do campo da sade, inclusive os psiclogos, tm visto as comunidades religiosas como populao-alvo para investigaes e programas a nvel de preveno e interveno. Se por um lado, tm existido iniciativas para reconciliar psicologia e religio, apesar de suas marcantes diferenas quanto s suas vises de mundo e prticas, por outro, a psicologia teria se tornado uma rival da religio, nas sociedades ocidentais: em lugar da confisso, teramos a psicoterapia; em lugar da converso, crescimento pessoal; pecados e virtudes foram substitudos pela tica (Pargament, 1997). A psicologia funcionaria como uma religio no mundo laico, mas devido singularidade da religio, na opinio de Pargament (1997), esta no poderia ser tragada pela cincia psicolgica. Ao contrrio, esses dois tipos de saberes s teriam a ganhar, caso se encontrassem na realizao do objetivo

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comum a ambas, a busca de resposta para o sofrimento inerente condio humana. Um exemplo da necessidade de renegociao entre religio e sistema de sade foi apresentado por Jenkis (1992), quem assegurou que as organizaes religiosas tm oferecido uma base excelente para o cuidado com o cncer e sua preveno, por alcanar populaes de alto risco, por aumentar o conhecimento sobre sade e as habilidades de cuidar da sade, abrangendo diferentes segmentos da populao. Para tanto, o autor sugeriu: buscar a colaborao do clero para se familiarizar com o sistema de crenas do paciente e harmoniz-las com a prtica mdica, e a integrao dos conceitos psicossociais com os conceitos relevantes no contexto religioso, tais como preocupaes espirituais ou existenciais. Jenkis (1992) chamou ateno para estilos de vida identificados com certas confisses religiosas, que parecem ter implicaes para a preveno do cncer, como encorajar a abstinncia de tabaco (Southern Baptist) e proscrever relaes sexuais fora do casamento (Amish). Esse tipo de orientao, continuou Jenkis (1992), tem inspirado pesquisas que examinaram o papel de comportamentos voltados para a sade sobre fatores de risco e ainda, tem levado os profissionais da rea de sade a considerar as igrejas como colaboradoras naturais para a promoo de programas de educao preventiva e programas de interveno. Hathaway & Pargament (1992) confirmaram a viabilidade da dimenso religiosa no processo de enfrentar uma situao de crise ou mudana1 nos programas de preveno, junto comunidades religiosas. Entretanto, alertaram para a necessidade de superar vrios desafios, o que de alguma maneira vem ratificar a crtica de Jones (1994) ao modo de interao entre a religio e a1 Esse processo corresponderia em ingls, palavra coping, e em castelhano, palavra afrontamiento. Neste trabalho, utilizaremos o termo em ingls, por que as palavras enfrentamento e afrontamento em portugus, no abrangeriam sua definio. Folkman e Lazarus (1984) definiram o coping como um processo atravs do qual, os indivduos tentam encontrar um significado pessoal para as exigncias da vida numa situao de crise ou mudana, e entender, suportar e administrar essa mesma situao. Quando a dimenso religiosa est presente no coping, como por exemplo, o uso de atitudes e atividades religiosas para suportar as demandas da vida, ento os autores de lngua inglesa definiriam tal processo como religious coping. (Cf. Hathaway & Pargament, 1992).

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psicologia. O maior desafio na viso dos dois primeiros autores, consistiria em superar esteretipos e falsas idias sobre a vida religiosa, inclusive a convico de que instituies religiosas funcionam mais ou menos como simples centros de sade mental, aquela religio completamente boa ou malfica, ou que religio no uma parte importante na vida das pessoas. Segundo Hathaway e Pargament (1992), as evidncias mostraram o contrrio: os sistemas religiosos so religiosos; a religio um fenmeno multidimensional, complexo, com uma variedade de implicaes psicolgicas e sociais; a religio permanece uma fora na vida das pessoas. Os autores nos advertiram por exemplo, que os profissionais de sade mental e as comunidades religiosas poderiam ver as funes de coping de modo diferente. Os primeiros defenderiam a forma tpica de coping, como a finalidade de resolver problemas, atingir bem-estar social ou psicolgico. A comunidade poderia no excluir essas funes do coping religioso, mas provavelmente enfatizar os propsitos espirituais do coping. Com esses fatos fundamentais da vida religiosa em mente, concluram os referidos autores, provavelmente o profissional de sade encontraria mais facilidade em realizar as atividades de preveno e promoo da sade, nas comunidades religiosas. Como foi visto acima, parece que a interao da psicologia com a religio no se restringiu aos cursos de assistncia pastoral. Alm da sua presena no campo da sade fsica e mental, junto s comunidades religiosas, a psicologia chegou tambm aos cursos de teologia no nvel acadmico. Emmons (1999b) destacou vrios programas de treinamento profissional que tm reconhecido a afinidade natural entre personalidade e teologia. O autor citou, por exemplo, a Diviso de Religio da Emory University que tem oferecido estudos de doutoramento em Theologie and Personality Program, e tambm o curso promovido pela Pacific School of Religion na Califrnia, Religion and the Personality Sciences, cujo programa engloba tpicos sobre a teoria da personalidade, aconselhamento pastoral e converso religiosa. Ele citou ainda, o Garrett-Evangelical Theological Seminary da Northwestern University, que vem

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oferecendo uma especializao na rea de Religion, Personality and Culture dentro do seu programa de Master of Theological Studies. Emmons (1999b) assegurou que os telogos tm sido mais atentos teoria da personalidade que a teoria da personalidade teologia. Isso pode ser constatado, quando se examinam os estudos no campo da psicologia da personalidade e religio, que sero abordados no prximo captulo. Agora passarei a examinar o terceiro modo de interao formal entre a psicologia e a religio apontada por Jones (1994), a psicologia da religio. 1.1 Psicologia e Religio breve histrico, problemas terico-

metodolgicos atuais e novas perspectivas Gorsuch (1988), numa primeira reviso sobre a psicologia da religio publicada na Annual Review of Psychology, destacou a proeminncia desse campo da cincia psicolgica, que j interessava aos fundadores da psicologia americana. William James publicou o livro The Varieties of Religious Experience, em 1902, defendendo que a religio pessoal deveria ser estudada cientificamente pela psicologia religiosa. De acordo com James (1902/1994), a psicologia religiosa faria parte de uma nova disciplina compreensiva, a cincia das religies. Stanley Hall, que foi o primeiro presidente da American Psychological Association, estabeleceu um jornal de psicologia da religio que sobreviveu at 1915, e em 1891 j havia publicado o artigo sob o ttulo The moral and religious training of children and adolescents (Gorsuch, 1988). Jones (1994) tambm documentou que a psicologia da religio de 1880 a 1930 foi a maior rea de estudo nesse campo, e que atualmente haveria um renascimento das publicaes dos manuais de psicologia da religio (e.g., Meadows & Kahoe,1984; Paloutzian, 1983; Spilka, Hood & Gorsuch, 1985; Wulff, 1991: cf. Jones, 1994). Koenig, Smiley & Gonzales (1988) citaram um trecho do artigo de Francis Galton datado em 1883, onde este autor afirmava a necessidade de

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estudos empricos que usassem mtodos estatsticos para verificar a influncia da prece na recuperao das pessoas doentes. Gorsuch (1988) documentou ainda, a existncia de antigos trabalhos publicados e apontou autores como Starbuck (1899) e Leuba (1912), que conduziram estudos em massa, envolvendo milhares de pessoas para estabelecer a mdia de idade da converso religiosa. A psicologia da religio continuou ativa at permanecer extinta desde 1930 at 19602. A Religious Research Association criou em 1959 a Review of Religious Research, que publicava principalmente pesquisas empricas. Em 1961, a Society for the Scientific Study of Religion comeou a publicar o Journal for the Scientific Study of Religion, que vem continuando a funcionar como as revistas cientficas da American Psychological Association (APA). At o surgimento dessas revistas, raramente se viam artigos de psicologia da religio nas principais publicaes, o que provocou a fundao de novas sociedades. A diviso 36 da APA foi criada para congregar psiclogos interessados em assuntos religiosos. Gorsuch (1988) informou que houve muitas atividades na rea da psicologia da religio, nas dcadas de 70 e 80, citando diversos trabalhos como por exemplo os de Capps et al 1976; Summerling, 1980; Vande Kemp, 1984; Argyle & Beit-Hallahmi, 1975; Batis & Ventis, 1982; Spilka et al 1985; Meadow & Kahoe, 1984; Paloutzian, 1983. Apesar dos avanos constatados, advertiu Gorsuch (1988), a psicologia da religio no estaria bem integrada com a psicologia como um todo. Vrios textos no tm considerado a religio em si mesma e quando a consideraram o fizeram brevemente, raras vezes fazendo uma conexo com estudos empricos.2 Todavia, Koenig e colegas (2001) catalogaram algumas obras relacionadas religio, de autoria de S. Freud (O Mal-estar na Civilizao, 1930; Novas Notas Introdutrias, 1933; Por que a Guerra, 1933; Moiss e o Monotesmo, 1939), C. Jung (O Homem Moderno em busca da Alma, 1933), e G. Allport (O Indivduo e sua Religio, 1950), todas publicadas pois, entre 1930 e 1950. No entanto, Gorsuch (1988) no citou os referidos trabalhos. Koenig, Smiley & Gonzales (1988) tambm listaram alm dessas, outras obras publicadas nesse perodo, a saber: Psychology and Religion (C. Jung, 1938); Psychotherapy and a Christian View of Man (D. Roberts, 1950); Mans Search for Meaning (V. Frankl, 1959); The Self in Pilgrimage (E. Loomis, 1960). Butelman (1994) fz referncia tambm a Psychologie und Alchemie, obra de C. G. Jung publicada em Zrich, em 1942.

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Nessa

reviso,

o

referido

autor

examinou

algumas

hipteses

relacionadas ao declnio e ao renascimento da psicologia da religio: a distncia entre os psiclogos e o fenmeno religioso por serem os cientistas sociais menos religiosos que os das cincias fsicas e naturais; a pouca relevncia que os psiclogos dariam ao religioso em suas vidas e na vida das pessoas; a reao negativa dos catlicos e protestantes aos psiclogos e contato positivo das lideranas religiosas com psiclogos religiosos; o cuidado por parte dos psiclogos de no serem confundidos com os filsofos, assegurando o status da psicologia como cincia separada da filosofia. Comentou Gorsuch (1988) que essas hipteses sobre a mudana da sorte da psicologia da religio estariam baseadas nas preocupaes pessoais dos psiclogos. O autor chegou a concluir que, se a dinmica pessoal fosse capaz de influenciar a relao da psicologia com a religio, alguns problemas na psicologia da religio poderiam surgir a partir da viso de mundo dos psiclogos. Este tem sido um tema que vem preocupando vrios psiclogos, ao tratarem da relao entre cincia e religio, particularmente entre a psicologia e a religio (e.g. Jones, 1994; Vande Kemp, 1999; McCrae, 1999; Mankeliunas, 1961; Francis, 1978; Vine, 1978; Ringel, 1978 e ODherty, 1976: cf. Garcs, 1985). Essa importante discusso ser abordada mais adiante. Gorsuch (1988) informou tambm a existncia de algumas pesquisas em religio dentro de outras reas da psicologia (atitudes e comportamento: e.g., Thurstone & Chave, 1929; Fishsbein & Ajzen, 1974; valores: e.g., Rokeach, 1973, 1979, 1984) e outros estudos que tm focalizado a religio em si (experincia religiosa e misticismo: e.g., Hood in Spilka et al. 1985; natureza da religio: e.g., Chave, 1939; Allport & Ross, 1967; Donahue, 1985; desenvolvimento religioso: e.g., Spilka et al 1985; Kirkpatrick, 1986) e a relao da religio com o comportamento social (e.g., Snook & Gorsuch, 1985; Batson & Ventis, 1982; Batson et al 1985), converso (e.g., Lovekin & Malony, 1977; Spilka et al 1985), morte (e.g., Spilka et al 1977), psicopatologia e sade fsica e mental (e.g., Comstock & Partridge, 1972), e grupos religiosos (Festinger et al 1964; Pargament et al 1979).

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1.2 Principais dificuldades terico-metodolgicas enfrentadas pelos estudiosos Garcs (1985), revisando as investigaes referentes aos aspectos psicossociais da religio, encontrou alguns problemas relacionados a esses estudos: escassez de investigaes rigorosas, conotaes ideolgicas dos projetos e estratgias, diversas e contrapostas conotaes dos termos relacionados religio. Abordou a polmica entre telogos e psiclogos, debate que teria pouca operatividade segundo ele, mas que tem sido um foco de questionamento sobre qual dos dois grupos seria mais adequado para estudar o fenmeno religioso. Analisou a multidimensionalidade das atitudes religiosas, contribuies realizadas a respeito e os instrumentos de medida utilizados. Concluiu o trabalho com um panorama das investigaes mais relevantes sobre o tema, enfatizando que se tem ocupado basicamente, de correlacionar as atitudes religiosas ou a religiosidade com diversas variveis de personalidade, como autoritarismo, neuroticismoestabilidade, autoconceito, auto-estima e ansiedade. Garcs (1985) afirmou ainda a existncia de poucos trabalhos cujo contedo terico correspondesse a modelos compreensivos ou delimitaes epistemolgicas. Em sua maioria, os estudos tm sido descritivos e correlacionais, de concluses problematicamente generalizveis. A seguir, passarei a descrever certos estudos abordados por Garcs (1985), em sua reviso, demonstrando os principais temas abordados no campo e as dificuldades encontradas pelos investigadores. Poveda (1967) e Stollberg (1979), por exemplo, demonstraram as diferenas de critrio que vm existindo entre os estudiosos do tema. O primeiro afirmou que a psicologia da religio deveria se ocupar da religio em seu aspecto de fenmeno psquico, no converter-se em uma descrio plenamente significativa de algo como a religiosidade, para ele, um captulo da histria da alma humana. Stollberg, por sua vez, defendeu que a psicologia da religio seria o estudo das constantes psicolgicas da religiosidade, no devendo indagar sobre

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a verdade divina, pois isso seria da competncia da teologia. Esse ramo da psicologia trataria da realidade humana na qual aparece a f numa revelao divina. Suas tarefas e objetivos seriam aprofundar e analisar criticamente as realidades religiosas: o carter projetivo e ideal das religies, a funo racionalizadora das teologias, o sentido dos tabus e dos preconceitos, como tambm, os mecanismos de defesa que se manifestariam nas religies para suprimir a angstia. Alm de evidenciar essa dificuldade em dimensionar o objeto de estudo da psicologia da religio, a reviso de Garcs (1985) revelou tambm o problema da influncia pessoal do psiclogo, no estudo da religiosidade. Assim, Vine (1978) admitiu que a psicologia da religio trataria de um tema delicado, ao estar ligada ao sistema de valores bsicos de uma pessoa, sofrendo pois, o risco do preconceito. A respeito da discusso de quem estaria mais apto a investigar os temas religiosos, Mankeliunas (1961) apresentou trs posies a respeito do debate entre psiclogos e telogos sobre a legitimidade de uns ou de outros para investigar dentro do campo da psicossociologia da religio: a posio dos empiristas, que defenderam a neutralidade dos desprovidos de religiosidade ou de todo sentimento religioso; a posio contrria que sustentou que somente quem experimentara o fato religioso subjetivamente, como o psiclogo religioso, poderia chegar a conhec-lo, e a posio intermediria que afirmou que aqueles que abandonaram sua religio possuiriam a melhor forma para estudar o fato religioso. Por outro lado, Francis (1978) ainda que tenha defendido a melhor adequao do psiclogo religioso para realizar estudos sobre religio, diminuiu posteriormente, suas crticas aos empiristas, sugerindo um marco multidisciplinar para que esses estudos pudessem realmente avanar de modo mais significativo. Rangel (1978) sugeriu igualmente uma abordagem multidisciplinar, que eliminaria pr-julgamentos mtuos, abrindo novos grupos de trabalho entre psiclogos e telogos. No Congresso de psicologia da religio celebrado em Lancaster em 1977, chegou-se a uma concluso que afirmou o postulado de ODoherty (1976) segundo

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o qual somente os psiclogos religiosos teriam condies para compreender a religio e para estud-la, e que os ateus e agnsticos deveriam se limitar busca de correlaes superficiais entre medidas de religiosidade e outras variveis externas (Garcs, 1985). Garcs (1985) deu exemplos de algumas pesquisas que evidenciaram o problema da generalizao dos resultados das investigaes no campo da psicologia da religio, por encontrarem resultados incompatveis: Fehr & Heintzelman (1977) no encontraram nenhuma correlao significativa entre as variveis Traos Neurticos e Ansiedade com as medidas de religiosidade. McClain (1978), Sturgeon & Hamley (1979) e Brown (1962) sugeriram que a religiosidade estaria associada com um maior ajuste social e estabilidade pessoal. Por outro lado, Wilson & Miller (1968) apoiaram a idia de que a religiosidade correlacionaria positivamente com ansiedade e medo. Pfeifer & Waelty (1995) citaram alguns estudos sobre a relao entre compromisso religioso e psicopatologia que trouxeram tambm concluses divergentes: Bergin (1983) realizou uma longa meta-anlise e descobriu que 23% dos estudos relatavam uma relao negativa, 47% reportavam uma relao positiva, e 30% no relatavam nenhuma relao entre religio e sade mental. Numa reviso extensa da literatura emprica Gartner, Larson & Allen (1991) dividiram as publicaes disponveis em trs sees: uma influncia positiva da religio foi encontrada na rea da sade mental, incluindo bem-estar, taxa de divrcio e satisfao conjugal, depresso e suicdio, uso de drogas e lcool e delinqncia. Associaes ambguas ou complexas entre religio e sade mental foram encontradas nas reas de ansiedade, desordens sexuais, psicoses, autoestima e preconceito. Finalmente, a religio foi associada com a psicopatologia na rea do autoritarismo, sugestibilidade/dependncia, dogmatismo/tolerncia e ambigidade/rigidez. Numa viso geral recente da pesquisa publicada em dois importantes informativos psiquitricos, Larson et al (1992) descobriram uma influncia positiva na sade mental em 72% dos estudos, concluses neutras em 12%, e efeitos

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negativos em 16%. Vrias revises feitas por Levin & Vanderpool (1987) e Sanua (1969) concluram com base na diversidade dos dados, que havia muito pouca ou nenhuma base para posicionar qualquer relao entre religio e sade mental. Pfeifer & Waelty (1995) argumentaram ainda que apesar da falta de apoio emprico, a religio foi considerada uma expresso ou causa de psicopatologia. Freud (1927) por exemplo, alcunhou o termo religio como uma neurose obsessiva universal. Schaetzing (1955) e Thomas (1964, 1989) tambm atriburam as desordens de ansiedade, desordens de personalidade e disfunes e desvios sexuais ao passado religioso de seus pacientes. Entretanto, de acordo com Ellis (1982), essa relao estaria baseada em estudos de caso nico, ou seja, em investigaes no empricas. Numa exaustiva reviso dos estudos empricos, Francis & Katz (1992) concluram que no haveria nenhuma relao significativa entre neuroticismo e religiosidade (cf. Pfeifer & Waelty, 1995). As limitaes dos estudos empricos sobre as interrelaes entre religiosidade e psicologia foram evidenciadas por Gorsuch (1984, c.f. Pfeifer & Waelty, 1995). Uma delas seria o problema da mensurao, devido dificuldade de operacionalizar a religiosidade em sua abrangente diversidade fenomenolgica. Alm disso, como um fenmeno cultural, a religio exigiria a adaptao das escalas para as particularidades regionais e para os vrios tipos de denominaes religiosas, sem que se perdessem os fatores comuns do funcionamento religioso. A viso de Douglas (1963) sobre o crescimento e a diminuio da psicologia da religio no sculo passado, tambm reforou alguns problemas terico-metodolgicos. Essa viso foi resenhada por Beit-Hallahmi no seu livro Prolegomena to the Psychological Study of Religion, publicado em 1989. Dentre as razes para o falecimento desse campo, o autor incluiu duas, que particularmente poderiam inquietar e alarmar os cientistas e estudiosos envolvidos no estudo da religio, senescncia e sade: 1- o uso dos mtodos de coleta de dados e de explicaes, desprovido de criticidade e competncia; 2- nfase na coleta de dados, sem integ-los com uma teoria compreensiva (Levin, 1994).

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Observou-se uma falta de unanimidade quanto ao reconhecimento da psicologia da religio como uma disciplina especializada. Autores como Fierro & Baile (1996) e Dconchy (1970: c.f. Fierro & Baile, 1996) no reconheceram a existncia de uma psicologia da religio. Fierro & Baile (1996) argumentaram que os psiclogos, diferentemente dos socilogos e antroplogos no teriam considerado a religio crenas, condutas, experincias religiosas como elemento crucial na explicao de outros processos psquicos, experincias e comportamentos. Esses autores lembraram os estudos em sociologia que consistiram no desenvolvimento de uma sociologia da religio como mbito especfico, e tambm os estudos do fato religioso, como chave para a anlise sociolgica da sociedade em geral, nas clssicas anlises de Weber (1905, 1920) e Durkheim (1912), e para a anlise da sociedade moderna secular empreendida por Berger (1967) e por Berger & Luckman (1968)3. Ainda que admitissem a existncia de tratados como o primeiro livro apresentado como Psicologia da Religio (Starbuck, 1995) e outros mais abrangentes como a Psicologia Religiosa de Vergote (1966), Fierro e Baile (1996) continuaram a questionar a possibilidade de uma psicologia da religio como disciplina especializada. Vrios desses tratados, inclusive o de Vergote, apresentariam fragilidades frente a uma avaliao da cincia positiva, pelo seu tom confessional e por sua ligao com a tradio psicanaltica ou fenomenolgica. Concluram dizendo que a religio no pareceu apresentar caractersticas singulares que aconselhassem estud-la por si mesma, margem de outras categorias gerais da psicologia, como atitudes, pertinncia grupal, crenas, sentimentos, comportamentos ritualizados. Nesse caso, poderia haver investigao psicolgica dos fatos religiosos, mas no uma psicologia da religio. Para Dconchy (1970: cf. Fierro & Baile, 1996) a psicologia dos fatos religiosos estaria reduzida

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Contudo, Fierro & Baile (1996) desconsideraram que Durkheim e Sorokin enfatizaram fortemente a religio como um fator relacionado sade fsica e mental, e que Weber focalizou o sentido que a religio proporcionaria aos indivduos e sociedade. Payne (1988) por exemplo, apresentou um modelo para a gerontologia social fundamentado na obra desses trs clssicos socilogos, relacionando religio, envelhecimento e sade.

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psicopatologia e psicossociologia no devendo ser considerada um ramo especfico da cincia psicolgica. Todavia, estudos mais recentes como o de Oser & Gmnder (1998), tm se preocupado em estabelecer a competncia da psicologia da religio. Concordando com Vergote (1980), Oser e Gmnder (1998) afirmaram que a cincia deveria desistir de pronunciar-se sobre o contedo de verdade ou legitimao da f ou explicar a religio, reduzindo-a a uma causalidade psicolgica ou sociolgica. As cincias humanas deveriam sim, investigar os fatores que determinam os diferentes modos de conduta prprios da relao religiosa. De acordo com os referidos autores, o primeiro trabalho da psicologia da religio seria delimitar seu raio de ao e limitar-se sua fronteira. Sua competncia consistiria em abarcar o sujeito mesmo e estudar a significao que tem para ele sua relao com Aquilo que lhe transcende, atravs da exteriorizao e expresso pelo sujeito, evitando reducionismos psicolgicos, ao se centrar no carter referencial, relacional, da conscincia em geral e do ato religioso em particular. Os autores consideraram tambm as dificuldades de conjugar sob um mesmo cdigo lingstico, a perspectiva das cincias da religio, o modo de fundamentao prprio da filosofia da religio e ainda, a investigao emprica que caracteriza a psicologia da religio. J que aos filsofos, a empiria parece algo muito simplificado, e para os psiclogos a filosofia da religio parece algo bastante abstrato, os autores discutiram os resultados empricos das suas investigaes, luz das discusses filosficas atuais. Assim, insistiram em ressaltar as diferenas entre filosofia da religio e psicologia da religio. Enquanto a primeira se ocupa de estabelecer princpios, criando um marco normativo, estabelecendo a natureza, o ser do juzo religioso, a segunda deveria investigar e provar esse marco normativo na prtica, esclarecendo o modo, o processo desse mesmo juzo. Poderia ser assinalado empricas. tambm, que os modelos compreensivos filosoficamente fundamentados servem para ler e explicar os resultados das investigaes

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Penso que esforos como esses poderiam diminuir os problemas terico-metodolgicos nesse campo, mas conforme Oser e Gmnder (1998), esse seria um caminho direcionado no apenas a estabelecer as fronteiras e o objeto de estudo da psicologia da religio. Esses autores enfatizaram que no momento atual do seu desenvolvimento, a psicologia deveria se abrir ao dilogo com a filosofia para no cair num empirismo superficial. De um modo ou de outro, seguiriam atuais os resultados das revises feitas por Fierro & Baile (1996) e Garcs (1985): a maioria dos estudos em psicologia e religio afirmou a multidimensionalidade das atitudes ou experincias religiosas, e denunciou dificuldades terico-metodolgicas de se acercar do objeto de estudo. Em suma, as dificuldades nos estudos em psicologia e religio, encontradas nas revises apresentadas acima, foram as seguintes: a) falta de integrao da psicologia da religio com a psicologia como um todo; b) poucos estudos que considerassem a religio em si mesma ou que relacionassem o tema da religiosidade com estudos empricos; c) influncia da viso de mundo do psiclogo; d) dvida quanto aptido dos psiclogos e telogos para estudarem o fenmeno religioso; e) problema de definio da varivel religiosidade e a conseqente dificuldade de se estabelecerem bons instrumentos de medida; f) escassez de investigaes rigorosas; g) conotaes ideolgicas dos projetos e estratgias; h) uso de diversas e contrapostas conotaes dos termos relacionados religio; i) dificuldades terico-metodolgicas ao abordar o objeto de estudo; j) poucos trabalhos que formulassem modelos compreensivos ou delimitaes epistemolgicas (ausncia de marcos tericos globais e explicativos); k) dvida em relao ao reconhecimento da psicologia da religio como disciplina especializada; l) dificuldade de dimensionar o objeto de estudo da psicologia da religio; m) resultados incompatveis e pouco generalizveis. Acredito que toda essa problemtica envolvendo os estudos em psicologia da religio deva, muito provavelmente, concorrer para que os resultados das investigaes na rea caream de certa capacidade de generalizao, e sejam

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pouco compatveis . Pesquisas mais recentes parecem ter avanado em relao a algumas dessas questes (e.g., Pfeifer & Waelty, 1995), mas a discusso continua sendo atual. 1.3 Psicologia cientfica e Religio: do mito da neutralidade explicitao das crenas filosficas e religiosas Permeando alguns problemas terico-metodolgicos citados acima, estaria a discusso sobre religio e cincia, dois campos diferentes da atividade humana que se separaram desde a Ilustrao (Wilber, 1998), e que atualmente vm se aproximando. Os investigadores tm refletido a respeito das fronteiras entre esses dois saberes, sobre metodologias cientficas apropriadas para se acercarem do fenmeno religioso, a questo da neutralidade e rigor cientfico

versus os valores dos cientistas, etc. Uma reflexo acerca do tema se faznecessria aqui, visto que a psicologia cientfica e a psicologia aplicada estariam obviamente implicadas. Ainda que as questes religiosas (como as da existncia de Deus ou a natureza de uma ps-vida) estejam alm do objetivo da cincia, vrias questes vm sendo debatidas, como por exemplo: a competio entre esses dois campos do conhecimento (Hill & Hood, 1999); conflitos entre cincia e religio, onde as religies fariam exigncias empricas -e.g., sobre o valor saudvel da meditao ou a reversibilidade da orientao sexual- (McCrae 1999); o confronto entre a Teologia e certos resultados dos testes empricos (McCullough e Worthington, 1999); a competio entre as vrias religies pelo nico acesso verdade, frente a uma psicologia da religio que tratasse a todas como expresses equitativamente vlidas de religiosidade (McCrae, 1999); incompatibilidade entre a maioria das filosofias da cincia e a concepo religiosa segundo a qual os atos divinos poderiam ignorar as leis da natureza (McCrae, 1999); no aceitao por parte das religies de algumas concluses da psicologia, como por exemplo, a

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impossibilidade de uma converso religiosa mudar substancialmente os traos de personalidade (Paloutzian, Richardson & Rambo, 1999). Por outro lado, a abordagem de Jones (1994) sobre a relao entre cincia e religio, trouxe alguns elementos para evitar o impasse entre o que seria dogmtico ou verdadeiro. Primeiramente, ele destacou quais os aspectos da religio a que se referiu, quando empreendeu sua anlise. Focalizou a dimenso cognitiva ou declarativa das crenas e doutrinas religiosas, advogando que essa seria a mais relevante dimenso para a cincia. Em segundo lugar, a partir da crtica viso positivista feita pela filosofia neopositivista da cincia, Jones (1994) rejeitou a resoluo da National Academy of Science feita em 1981. Tal resoluo declarou que cincia e religio seriam reinos do pensamento humano separados e mutuamente exclusivos, por diferirem em seus objetivos, pelo carter objetivo, emprico e experimental das teorias cientficas, diferentemente do carter subjetivo e dogmtico das doutrinas religiosas. Por outro lado, defendeu Jones (1994), a crtica neopositivista concepo tradicional de cincia evidenciou pelo menos trs pontos relevantes: a) os dados estariam previamente carregados de teoria; b) os cientistas geralmente tenderiam a acreditar em suas teorias antes de submet-las a testes empricos; c) a cincia, como um fenmeno humano e cultural estaria permeada por ideologias e vises de mundo, dentre as quais estariam as concepes religiosas. Alm de tudo, o referido autor justificou seu posicionamento contrrio separao entre religio e cincia, baseando-se em cuidadosos estudos da filosofia da cincia contempornea, que revelaram interessantes paralelos e similaridades entre a cincia e a dimenso cognitiva da religio, mesmo mantendo a diferena entre elas4: 1- as verdades cientficas seriam menos comprovadas por testes experimentais do que antes se poderia supor, enquanto que as verdades religiosas no estariam totalmente isoladas da realidade da experincia; 2- a cincia teria4 O fsico e terico de sistemas Fritjof Capra (1976) defendeu que a cincia e o misticismo seriam duas abordagens completamente diferentes, mas que a fsica teria demonstrado que elas constituiriam manifestaes complementares das faculdades racionais e intuitivas da mente humana, necessrias para uma

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objetivos que transcendem a descrio mundana da realidade emprica, enquanto a religio teria aspiraes de dizer algo sobre os aspectos empricos da realidade humana; 3- de acordo com Rolston (1987) nem a cincia nem a religio chegariam a certezas; religio e cincia teriam como maior objetivo promover a compreenso humana ainda que a forma particular de compreenso para cada uma delas seja diferente; 4- de acordo com Barbour (1974) ambas usariam modelos analgicos em paradigmas ou vises de mundo para explicar a experincia; 5- ambas seriam iniciativas humanas comuns e culturais que afetam todas as nossas atividades, devendo o elemento humano e os fatores que formam cada uma delas serem analisados pela sociologia e pela psicologia (sem cair nos reducionismos sociolgicos, nem no reducionismo religioso promulgado por Freud, Skinner e outros); 6- segundo Mahoney (1976) a cincia, como a religio, poderia inspirar o mesmo tipo de devoo fantica (cf. Jones, 1994). Nesse debate, Pargament (1997) tambm acrescentou que a religio em si mesma no estaria separada da reflexo crtica ou da avaliao do mundo observvel. Seu foco iria alm da realidade emprica, mas ela permaneceria fortemente interessada na conexo entre as questes metafsicas e a imediaticidade da existncia. O autor defendeu ainda o dilogo e o intercmbio entre cincia e religio, afirmando o enriquecimento mtuo como conseqncia desse encontro. Koenig (1994), por sua vez, demonstrou que religio e cincia teriam mais aspectos comuns do que se poderia esperar. Em ambas as reas, existiriam muitas contradies e muito por conhecer. As diferenas no poderiam ser negadas, mas as similaridades tambm seriam totalmente notveis. Ele demonstrou tambm vrias atrocidades cometidas no passado, tanto pela religio, como pelas cincias psicolgicas, j que o erro humano seria universal e apenas se desculparia pela ignorncia. Entretanto, as religies fundamentadas na tradio judeu-crist, frisou Koenig (1994), demandariam algo que os bons cientistas nocompreenso plena do mundo. Uma interrelao dinmica entre a intuio mstica e a anlise cientfica, argumentou Capra, se faria mais necessria do que encontrar uma sntese entre elas.

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fizeram, nem poderiam fazer. O relativismo da cincia atual (a verdade dependeria do ponto de vista do observador) seria uma marca caracterstica do conhecimento humano. Ao contrrio, quando olham para si mesmas, essas tradies religiosas encontrariam o absoluto (a verdade no depende do observador). Este ltimo tipo de verdade deveria estar baseada na f. Mas essa f no seria algo sem justificativa. Ela estaria baseada numa experincia na qual, Deus inicia e o homem recebe. Koenig (1994) explicou essa experincia, noutra parte de sua obra, onde explanou a teoria do desenvolvimento da f religiosa. Ken Wilber, em sua obra Ciencia e Religin (1998), criticou os excessos do relativismo e, com a ajuda da Filosofia Perene, defendeu que alm da ordem do conhecimento relativo, a sabedoria universal, ahistrica e eterna, e portanto, absoluta. William James (1902/1994), j no comeo do sculo XX, fora um precursor das idias contemporneas sobre as fronteiras da cincia e da religio:(...) ciencia y religin son llaves genunas para abrir la cmara del tesoro del mundo a quien sepa usar ambas; es (...) evidente que ninguna de las dos excluye el uso simultneo de la otra. Y por qu despus de todo, no puede ser el mundo lo bastante complejo como para consistir en muchas esferas de realidad interpenetradas (...)? Desde este punto de vista, religin y ciencia, cada una verificada a su manera, en cada momento y en cada vida, seran coeternas (p. 101).

sabido que C. G. Jung (1938/1994), ao constatar o desamparo espiritual dos seus pacientes, se viu obrigado a estudar a experincia religiosa, procurando compreender alguns smbolos religiosos produzidos pelo inconsciente. Profundamente mergulhado na questo, dez anos depois do pronunciamento de James (1902/1994) sobre as fronteiras entre religio e psicologia, Jung (1942/1994) esclareceu o que deveria ser objeto de estudo da cincia psicolgica, no se esquivando porm, de dialogar com as tradies religiosas da humanidade:

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La competencia de la psicologa como ciencia emprica slo llega al punto de establecer si la impronta que encontramos en el alma puede o no legtimamente ser llamada, en base a la investigacin comparativa, una imagen de Dios. Con ello nada positivo o negativo se afirma sobre una posible existencia de Dios... (p. 28)

Percebe-se no trecho citado, o reconhecimento de dois diferentes ramos do saber, a conseqente fronteira entre eles, a tarefa da psicologia cientfica e os limites de sua interveno. Alm disso, essa postura seria uma antecipao do que aconteceria futuramente. Quase trs dcadas depois do pronunciamento de Jung (1942/1994), a filosofia da cincia contempornea romperia com a demarcao radical entre cincia e outros tipos de conhecimento e ao humana, incluindo a religio. Ao documentar esse feito, Jones (1994) props ento, uma nova forma de interao entre a religio enquanto parceira ativa, e a psicologia como cincia e disciplina profissional aplicada. Alguns telogos tambm concordaram com o posicionamento da filosofia da cincia, exposto acima. Por exemplo, o telogo Torres Queiruga (2001), reconhecendo a diferenciao entre o campo da cincia e o campo da religio como um avano cultural, advertiu porm, que uma separao radical entre eles, no poderia ser correta , posto que as duas nascem do mesmo sujeito e procuram responder a necessidades humanas. Acertadamente, o autor afirmou que o discutvel da atitude cientfica no seria exigir verificao, mas impr um nico tipo de mtodo. Por outro lado, sem dilogo com os cientistas, os telogos estariam imunes a toda crtica, no tendo que justificar seus pressupostos. Defendendo a integrao entre religio e cincia, ele acrescentou dois aspectos a considerar, quando a reflexo se realiza sob o ponto de vista teolgico: a) o carter radicalmente humano da experincia religiosa, que, como tal, deve compreender a si mesma e portanto, submeter-se a uma verificao adequada; b)

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a possibilidade de um dilogo real e frutfero, que atravs da diferena, integre esses dois aspectos, a favor do que comum ao ser humano. Por boas razes, a cincia e a religio foram separadas no sculo XVII, e ento foi postulado o antagonismo entre cincia e espiritualidade. Introduzindo assim seu pensamento, Crema (2002) lembrou que Albert Einstein falava de religiosidade csmica e Fritjof Capra afirmava que todos estamos participando e pertencendo ao universo, dando a entender que espiritualidade seria uma conscincia de participao e comunho. Entretanto, Crema (2002) alertou para que no se misturassem cincia e espiritualidade, nem se confundisse uma com a outra. Aqui se poderia fazer uma ilustrao com o clssico exemplo de Galileu, brilhantemente explicado por Torres Queiruga (2001). Partindo de um descobrimento cientfico a Terra move-se em volta do Sol o pensamento de Galileu se chocou com uma idia religiosa, tal como at ento se interpretava, pois a Bblia diz no livro de Josu, que o Sol que se move em torno da Terra. O telogo lembrou que Galileu ofereceu uma soluo para o dilema, com a famosa frase de que as escrituras no dizem como vai o cu, mas sim como se vai ao cu. Nas prprias palavras do telogo galego,que a Biblia sexa para o crente palabra de Deus, non significa que sexa identicamente un dictado divino que deba ser tomado letra en todas as sas afirmacins. E sobre todo, que non pretende manifestar verdades que pertenzan a puntos de vista distintos, de xeito que a astronoma igual que a xeoloxa, a xeografa, a bioloxa, a medicina ou a historia como tal non matria da sa competencia. En consecuencia, canto nela se diga respecto nin verdadeiro nin falso: simplemente fala doutra cousa (2001: 27).

Dessa maneira, o autor frisou que os dois campos tm competncia distinta, e portanto cada um teria seus respectivos mtodos de verificao. Capra (cf. Crema, 2002) afirmou que a cincia no precisa da espiritualidade pois tem seu prprio caminho, o analtico. A espiritualidade tambm no precisaria da

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cincia, que possui seu caminho, o caminho sinttico. Porm, enfaticamente Crema (2002) frisou que o ser humano precisa dos dois. Por isso, a Universidade Holstica Internacional (UNIPAZ), com sua sede em Braslia, no tem economizado esforos, durante os ltimos dezesseis anos, para construir uma ponte dialgica entre as milenares tradies sapienciais e as abordagens cientficas contemporneas, visando sade integral (Crema, 2002: 95). Paloutzian et al. (1999) apresentaram uma postura que parece estar de acordo com a posio de Jones (1994), Torres Queiruga (2001) e Crema (2002). Ao conclurem seu estudo sobre converso religiosa, Paloutzian et al. (1999) afirmaram que o esforo do ser humano em direo mudana e o esforo da pessoa fortalecido por sua prpria religio, teriam importantes implicaes, e uma delas seria a necessidade de integrao desses dois tipos de conhecimento. Uma forma mais construtiva de interao entre religio e a cincia psicolgica se faria ento necessria, mas no sem um debate prvio sobre a neutralidade no campo da pesquisa e da cincia aplicada. Assinalando que os cientistas e profissionais da psicologia so seres humanos, Jones (1994) admitiu que todas as nossas atividades e esforos profissionais estariam conectados com todas as dimenses do nosso ser, incluindo as crenas religiosas e devoes, fossem elas tradicional e explicitamente codificadas ou no tradicionais e implcitas. O autor realou a interao da nossa compreenso de mundo, dos outros e de ns mesmos com nossa atuao nas investigaes cientficas. Alm disso, as crenas religiosas compreendidas de forma mais ampla nos ajudariam a formar o contorno de nossas redes de crenas. Assim, Jones (1994) procurou demonstrar que no existiriam barreiras intransponveis separando o domnio do pensamento e da devoo religiosa do domnio da atividade humana a que chamamos cincia, mesmo admitindo que cincia e religio so completamente distintas, no podendo ser confundidas ou superidentificadas. Incentivou uma maior conscientizao dentro da comunidade psicolgica a respeito da presena e importncia das crenas e devoes religiosas

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para os objetivos cientficos e profissionais da psicologia contempornea. Encorajou uma crescente conscientizao e explicitao prvia na discusso do papel que as crenas religiosas desempenhariam em nossas atividades cientficas e profissionais, incluindo a proposta de relacionar as crenas religiosas com a cincia e a profisso do psiclogo. Esse autor sustentou tambm que a Psicologia poderia ser enriquecida ao explorar mais explicitamente a interface da religio com as atividades profissionais e cientficas. Ele chamou ateno para a necessidade de documentao emprica da qualidade do atendimento, o que envolveria nossa compreenso de como a cincia e a prtica profissional (derivadas de modelos cientficos e quase-cientficos) estariam infundidas de crenas metafsicas, morais e religiosas. Para esse autor, os psiclogos estariam mais advertidos ao explorar explicitamente, as conexes do seu trabalho com os nveis mais profundos dos nossos compromissos humanos, o que tornaria mais efetivas a pesquisa e a prtica psicolgicas. Admitir que nossas crenas religiosas atuam como predisposies que levamos para a cincia e a prtica psicolgica permitiria consider-las intrnsecas s nossas atividades profissionais. Jones (1994) argumentou ainda que atravs de tais predisposies, perceberamos e entenderamos o mundo, devendo ser pois examinadas para no se tornarem mais limitadas e perigosas, ao exercerem seus efeitos de modo irrefletido. Levin (1994) identificou, por exemplo, algumas barreiras que impediram ou vem impedindo o desenvolvimento do estudo da religio na rea da sade, que poderiam ser consideradas como crenas e vises de mundo sustentadas por muitos cientistas e profissionais, tais como: religio no real, religio no importante, esses estudos somente encorajam o clero, esses estudos no podem ser considerados cientficos, considerar os aspectos religiosos fora de uma psicopatologia ir contra minha formao profissional. Alguns exemplos da preferncia pessoal dos autores interferindo no modelo de etapas de desenvolvimento foi concedido por Vande Kemp (1999). A autora argumentou que muitas vezes os pesquisadores tm confundido uma

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preferncia no estilo pessoal com uma conquista do desenvolvimento, colocando seu prprio estilo no topo da hierarquia. Citou Du Buy, por exemplo, quando comparou as cinco maiores religies do mundo ao procurar entender as mudanas das misses e pedagogia religiosas. Ele concluiu que a religio maometana, o confucionismo, a religio de Jesus, o budismo e a filosofia vedanta representariam os cinco estgios do desenvolvimento religioso a nvel filogentico e ontogentico. A filosofia vedanta, o estgio mais elevado, seria o estilo preferido de Du Buy. Vande Kemp (1999) pareceu levar em alta considerao o tema do papel da personalidade do investigador no trabalho cientfico. Explicitando seu posicionamento profissional, ela o chamou de minhas predisposies. Apresentou-se ento, como algum que no estaria profundamente atualizada quanto aos debates correntes entre os pesquisadores da personalidade. Seu campo de trabalho tem sido o estudo da relao entre a psicologia e a religio e entre a psicologia e a teologia, alm dos temas histricos sobre psicologia da religio. Enfatizou tambm que nesse trabalho, ao focalizar as razes filosficas da psicologia e os temas correntes na psicologia filosfica, ela tem recusado definir a psicologia exclusivamente como uma cincia. Como pesquisadora e psicloga clnica, ela tem se comprometido com a metodologia qualitativa, o mtodo fenomenolgico e a anlise de narrativas combinados com uma perspectiva feminista. Confessou que o seu trabalho como psicloga da religio, sua prpria pesquisa e extensa reviso da literatura a teriam levado a uma profunda apreciao das tradies no-empricas. Assinalou que as diferenas tipolgicas tais como aquelas tratadas por Paloutzian e colegas (1999) como fatores de auto-seleo influenciadores da converso para a seita Hare Krishna, tambm seriam fatores de converso para as vises de mundo representadas pelas vrias teorias psicolgicas, epistemologias, metodologias e definies de realidade, avaliadas como diferenas nas definies de religiosidade e espiritualidade observadas por Zinnbauer e colegas (1999). Ela exemplificou que seu prprio modo introvertido, intuitivo, de pensar e sentir, e estilos de julgamentos a levaram a preferir uma forma de abordar a personalidade

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diferente da abordagem emprica. O tipo de abordagem desses autores cujos trabalhos ela analisou, tenderia a refletir a extroverso, a sensao e o estilo de pensamento geralmente associados com a abordagem cientfica da psicologia. Gorsuch (1988) tambm afirmou que os interesses e valores do psiclogo determinariam a rea em que ele trabalhar e a conduo do desenvolvimento de boas teorias e hipteses, elementos que seriam e poderiam ser influenciados pelo sentimento de uma pessoa sobre o que seria importante, e sua viso da natureza da realidade. Toda essa preocupao com a influncia dos interesses e valores pessoais do investigador sobre o trabalho cientfico, e de modo particular no campo da psicologia da religio, desembocou na discusso a respeito da neutralidade e da objetividade, e no questionamento a respeito da natureza da psicologia como cincia (Jones, 1994) e da possibilidade de uma psicologia da religio (Gorsuch, 1988). Para Gorsuch (1988), afirmar a impossibilidade da psicologia da religio enquanto cincia, devido s dificuldades de objetividade, equivaleria a admitir que a cincia s poderia ser conduzida onde total objetividade fosse possvel. Mas, argumentou o referido autor, em 1970, Kuhn demonstrara que mesmo as cincias naturais no tm se mantido completamente objetivas, necessitando ento serem abandonadas caso a cincia requisitasse uma total objetividade. Em suma, acrescentou Gorsuch (1988), a cincia psicolgica teria como propsito perseguir e incrementar a objetividade. O cientista realizaria tal objetivo, sempre que esclarecesse as bases de deciso sobre o modo de interpretar os resultados antes da coleta de dados; testasse as teorias atravs das quais as decises se fundamentariam; definisse as variveis de modo claro e objetivo, etc. Entretanto, enfatizou, tais procedimentos no poderiam negar que os interesses e os valores do pesquisador pudessem exercer uma influncia no trabalho cientfico. A posio de James (1902/1994), mesmo depois de tantos anos desde suas conferncias em Edimburgo, pareceu se encaixar nesse contexto. Ele sublinhou que a cincia estaria ocupando o lugar da religio, na mente de muitos cientistas, que consideram as leis da natureza como fatos objetivos a que se

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devem venerar. Todavia, o eminente psiclogo, decidindo no adotar uma atitude sectria, afirmou que sua compreenso objetiva da experincia humana lhe empurraria mais alm dos limites cientficos. Assim, considerou o mtodo cientfico, desde uma perspectiva histrica:(...) cualquier camino de progreso puede seguir una espiral en lugar de una lnea recta; si as fuese, la visin rigurosamente impersonal de la ciencia podra aparecer algn da como una excentricidad til temporalmente, pero que no ostenta la posicin definitivamente triunfante que el cientfico sectario contemporneo anuncia con tanta seguridad (James, 1994: 374).

Se por um lado, a objetividade deveria ser perseguida (Gorsuch, 1988) e tratada como historicamente til (James, 1902/1994), no se poderia esquecer que a teoria e a prtica do cientista e do profissional esto impregnadas com as crenas e valores. Estes constituram mais um aspecto que Jones (1994) evidenciou na relao entre psicologia e religio. Esse autor se referiu aos temas religiosos ou quase-religiosos abordados pelos cientistas da psicologia, quando estendem suas teorias para explicar os mais amplos domnios do comportamento humano e seguem uma funo prescritiva do que seja uma pessoa saudvel, madura ou normal. Esses temas estariam, segundo o autor, relacionados com a teoria da personalidade, base do conhecimento acadmico para a prtica da psicoterapia. Apesar da existncia de vrios exemplos de interao entre psicologia e religio, onde as concepes do psiclogo poderiam ser contrrias s concepes religiosas, para Jones (1994), os mais claros exemplos da forma pela qual a investigao e a prtica psicolgica interagem com a compreenso religiosa da pessoa, estariam no domnio da psicologia aplicada, em particular, na prtica da

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psicoterapia. Em seu artigo, o referido autor apresentou alguns estudos interessantes, onde ficou evidenciada a afinidade entre psicologia e religio.5 Em um desses estudos, Kelly & Strupp (1992: c.f. Jones, 1994) realizaram uma pesquisa emprica e chegaram a descobrir que: a) a psicoterapia tenderia a mudar os valores dos clientes mesmo que no fossem em direo aos valores do terapeuta; e b) os terapeutas tenderiam a estimar como mais bem-sucedidos aqueles clientes, cujos valores quanto s metas pessoais na mudana de vida, mais se assemelhassem s metas de vida do terapeuta, ainda que outras medidas no indicassem que esses clientes de fato, melhoraram mais que outros clientes. London (1986: c.f. Jones, 1994), por sua vez, considerou a psicoterapia como um ajuste retrospectivo dos traumas do passado e uma planificao prospectiva de como o cliente viver no futuro: falar dos atos do futuro corresponderia aos problemas da salvao, e as justificativas e explicaes desses atos corresponderiam a um cdigo moral. Para Jones (1994), a existncia de uma alta presena de sentimentos no religiosos e anti-religiosos, baixos nveis de participao religiosa e altos nveis de agnosticismo, cepticismo e atesmo entre esses profissionais, quando comparados populao norte-americana em geral, complicaria a atuao do psiclogo. Braun (1981: c.f. Jones, 1994) afirmara que isso aumentaria a possibilidade dos psiclogos de no compreenderem, ou avaliarem de forma inapropriada a religiosidade do cliente, e o lugar da f em suas vidas.

5 Jones (1994) argumentou que tanto os programas de terapia e vises compreensivas da pessoa, como a psicoterapia behaviorista e todos os demais sistemas psicoterpicos, que contm afirmaes matafsicas e princpios de ao para a mudana da personalidade ou do comportamento, estariam fundamentados nas sutis e muitas vezes implcitas concepes que adotaram e que coincidiriam parcialmente, com os domnios da moral e da religio. Browning postulou que a religio tradicional e a moderna psicoterapia se encontrariam numa relao uma com a outra, porque ambas proporcionariam conceitos e tecnologias para as demandas da vida interior (1987: p. 2; c.f. Jones, 1994). Browning (1987) afirmou tambm que as teorias psicoterpicas iriam alm dos limites tpicos das teorias cientficas para responder questes sobre o sentido ltimo e sobre o devir humano: nenhum sistema que seja usado como um guia para formar, sanar ou reformar a vida humana poderia evitar a metafsica ou a tica. Esse autor sugeriu que os atuais modelos cientficos corresponderiam a modernas formas de pensamento religioso no modo como tentam responder nossas inseguranas, fornecem uma viso geral do mundo e formam atitudes que podemos ter em relao aos valores da vida, natureza da morte e s bases da moralidade (1987: p. 120; c.f. Jones, 1994).

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Alm disso, as ideologias, valores e crenas da sociedade e ainda, uma determinada teoria do desenvolvimento humano, poderiam predizer e justificar, limitar ou ampliar as perspectivas do desenvolvimento das qualidades humanas, dentre elas, a capacidade de experimentar o transcendente (Walsh & Vaugham, 1994). Refletindo sobre as relaes histricas, ideologia e transcendncia, Wilber (1994c) props uma releitura da realidade que poderia revolucionar, segundo ele, nossa viso das capacidades humanas e das possibilidades divinas, e vislumbrar o lugar exato do conhecimento espiritual no desenvolvimento da cinci