perseguição ao mst traz de volta o velho autoritarismo

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brasil de 3 a 9 de julho de 2008 4 5 Renato Godoy de Toledo da Redação COM A ação judicial prepara- da pelo Conselho Superior do Ministério Público Estadu- al do Rio Grande do Sul, que visa proibir as atividades do Movimento dos Trabalhado- res Rurais Sem Terra (MST), a entidade tomou uma atitu- de rara, quase inédita, para os períodos de democracia pelos quais o Brasil já passou. A decisão unânime dos no- ve membros da instância má- xima do MP gaúcho, que por m sugere a dissolução do movimento, é comparada por especialistas com a dizima- ção das Ligas Camponesas, a partir do golpe militar de 1964. Mas com um agravante: à época, a incipiente ditadu- ra militar fazia vistas grossas aos ataques de latifundiários contra os camponeses, en- quanto que agora o Estado é evocado para ser protagonis- ta do processo de extinção de um movimento social. A cassação de organiza- ções sociais e políticas tem sido uma característica das ditaduras brasileiras, como a de Getúlio Vargas, que fe- chou sindicatos não-alinha- dos a ele, e o regime mili- tar, que promoveu uma caça a seus opositores. Esse tipo de restrição já ocorreu tam- bém em um período de frá- gil estabilidade democrática. Entre a ditadura Vargas e a militar (1946-1964), o Parti- do Comunista Brasileiro foi posto na ilegalidade e seus parlamentares, cassados, em 1947, pelo governo do Briga- deiro Eurico Gaspar Dutra, que buscava posicionar-se com mais ênfase ao lado dos EUA durante a Guerra Fria. (Sobre esse período, veja ar- tigo da historiadora Virgínia Fontes, na página ao lado) Servidor do povo? Ao determinar a proibição de marchas, a intervenção no sistema de ensino nas escolas do MST e, numa ação com- binada com a Brigada Mili- tar, retirar trabalhadores ru- rais de áreas cedidas, o MP fere ao menos três direitos estabelecidos pela Constitui- ção de 1988, de acordo com juristas consultados pela re- portagem. No artigo 5 da Constituição, há dois incisos atacados pela decisão: o 16, que assegura o direito de reuniões, sem ar- mas, em locais abertos ao pú- blico e o 18, que rechaça a in- terferência estatal em asso- ciações e cooperativas. Para o jurista Fábio Konder Com- parato, a ação do MP também ignora o direito ao trabalho e à determinação de que a pro- priedade deve cumprir uma função social. Comparato te- me pela perda de credibilida- de de uma instituição respei- tada como o MP. “O que está acontecendo no Rio Grande do Sul é um desvio de função do Ministé- rio Público. De acordo com a Constituição, o MP deve fazer a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos in- teresses sociais e individuais. Ministro signica servidor, então o MP seria o servidor do povo. Ao invés de defen- der o povo e seus direitos fun- damentais, o MP cerra leiras na defesa dos interesses de grandes proprietários rurais e empresas multinacionais de agronegócio”, avalia. O jurista lembra como o di- reito de manifestação foi im- portante para as garantias de direitos e a construção de leis contra a exploração de trabalhadores e, no entanto, essa garantia não está sen- do observada em alguns ca- sos, sobretudo no Rio Gran- de do Sul. “Quando a mani- festação não é organizada por empresários, ela é reprimi- da fortemente. Na Constitui- ção, todos são iguais perante a lei, mas, agora, uns são mais iguais que os outros”, ironiza. Sobre os diferentes tipos de propriedade, Comparato arma que estão ignorando a Constituição e invertendo os valores, colocando a proprie- dade acima da vida humana. “Nem toda propriedade é di- reito fundamental. Só é di- reito fundamental a proprie- dade que é vital para uma vi- da digna para o titular. Seria um escárnio dizer que o con- trole da Microsoft pelo Bill Gates, por exemplo, é um di- reito fundamental. Não po- demos esquecer que existe na propriedade a possibilida- de de se exercer poder sobre outros. Aí a propriedade dei- xa de ser direito fundamen- tal e ca obrigada pela Cons- tituição a cumprir sua função social. O fato de alguém ter 20 casas não signica que te- nha direito fundamental so- bre elas”, explica. Preparando o terreno Plínio Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrá- ria e da direção do Psol, disse ter recebido a notícia da de- cisão do MP gaúcho com es- tarrecimento. Para ele, seto- res conservadores preparam uma “limpeza” no campo pa- ra que o país seja o principal produtor de matérias-primas exportáveis pelo agronegó- cio. “Então, precisam come- çar a eliminar obstáculos. In- discutivelmente, há uma es- calada que visa estrangular o MST”, considera. No entanto, um hipotético m do movimento seria uma tragédia tanto para as forças de esquerda quanto para as de direita, segundo Plínio. “Para a esquerda, é claro que seria ruim. Mas eu faço um alerta à direita: se o MST for crimi- nalizado e considerado ilegal, ninguém vai segurar a violên- cia no campo. Quem apresen- ta uma esperança e uma saída hoje no meio rural é o MST, ele é quem civiliza o processo, porque, na verdade, a ocupa- ção não prejudica ninguém, porque a Justiça põe tudo no lugar ou o Incra paga um alto valor pela terra. Sem o MST, a violência seria despertada de forma perversa, por meio do narcotráco e do banditismo rural, formas que não são so- ciais”, aconselha. Traçando um paralelo com a dizimação das Ligas Cam- ponesas, Plínio arma que, se a intenção dos que o zeram era retirar a reforma agrária da ordem do dia, a ação foi em vão. “Depois da dizima- ção das Ligas, a bandeira da reforma cou ainda mais for- te. A ação do MP é mais gra- ve do que a da ditadura, pois ela se dá em plena vigência de uma Constituição democráti- ca”, nota. Estrutura do MP A atitude dos promotores gaúchos não passou incólu- me nem mesmo por colegas de prossão. Inês do Amaral Buschel, promotora de justi- ça aposentada e sócia-funda- dora do Movimento Ministé- rio Público Democrático, ava- lia que, dentro da instituição, há diversas reações acerca da ação dos colegas do Rio Gran- de do Sul. “Há promotores que ca- ram horrorizados com a ati- tude, mas também há aqueles que estão aplaudindo. Assim como na sociedade, há pesso- as no MP que odeiam admitir que a propriedade tem fun- ção social. Como o MP é in- dependente, é difícil existir unanimidade. Por isso, para mim, a unanimidade do Con- selho Superior é o mais cho- cante”, revela. A promotora explica que, por prerrogativas jurídicas, os promotores são indepen- dentes, tendo liberdade para interpretar as leis à sua ma- neira. Mesmo assim, a jurista arma nunca ter se deparado com uma situação semelhan- te desde o estabelecimento da Constituição de 1988. “Es- se tipo de ação só ocorreu na ditadura militar e no governo de Getúlio Vargas”, reforça. Na análise de Buschel, a medida se baseia na “cons- tatação” de que o MST é uma organização paramilitar, que mantém relações com as Farc, conforme a ata da reu- nião. “O que consta na socie- dade brasileira é que o MST luta pacíca e legitimamen- te pela reforma agrária, sem armas de fogo. Ao contrário, o MST é vítima das armas de fogo dos latifundiários. Es- sa conotação que o MP dá ao MST, comparando-o com o antigo movimento comunis- ta, é algo totalmente reacio- nário”, constata. Ideologia de berço A promotora aposentada aponta uma peculiaridade na composição do Ministério Pú- blico do Rio Grande do Sul, o que pode ser um dos fatores decisivos para a sua orienta- ção pró-latifúndio. “No geral, o MP é compos- to por pessoas de classe mé- dia. Mas no Rio Grande do Sul, percebe-se que há um grande número de promoto- res que são lhos de proprie- tários rurais. Assim, é natu- ral que eles defendam o lati- fúndio. O cerne é que você vê o mundo conforme o seu ber- ço. Se o pai torce por um time, ou segue uma religião, o mais provável é que o lho também o faça. Há exceções. Mas um lho de latifundiário, no ge- ral, acha normal que seu pai tenha uma imensidão de ter- ras”, interpreta. Segundo a promotora, a conguração de uma enti- dade pró-latifúndio explica- ria frases como a de Gilber- to Thuns, relator da reunião que sugeriu a dissolução do MST. “No Rio Grande do Sul não existe terra improdutiva”, disse o promotor. “Eles dizem isso porque não querem divi- dir a terra”, responde a pro- motora. “Raiva de pobre” Thuns também armou que o MP sugerirá ao governo do Rio Grande do Sul que não negocie com o MST, pelo fa- to deste ser uma “organização criminosa”. Além das arma- ções contundentes de Thuns, outros dois promotores se so- bressaíram por suas coloca- ções. Luís Felipe de Aguiar Te- sheiner e Benhur Biacon Jú- nior mencionaram que nas es- colas do MST há livros do edu- cador Paulo Freire, que com- provariam o envolvimento dos sem-terra com atividades ile- gais. Ao site Viomundo, a vi- úva do educador, Nita Freire, se disse indignada com a si- tuação. “A elite brasileira tem ódio dos pobres, dos negros, dos que não cheiram bem, dos que não tomam banho, dos ín- dios, dos trabalhadores rurais. Ainda não perdemos o ranço da herança trágica do colonia- lismo”, disse Nita. O método criado pelo mari- do de Nita é utilizado em di- versos municípios brasileiros e goza de reconhecimento in- ternacional. Outros pensado- res também foram citados no relatório do MP, como prova da tendência à ilegalidade do MST, como o sociólogo Flo- restan Fernandes e o peda- gogo soviético Anton Maka- renko. (Sobre esse pensador, veja artigo ao lado, da jorna- lista Cecília Luedemann, au- tora de livro sobre a vida e a obra do russo que foi “proibi- do” pelos promotores) Reação da sociedade Após a notícia da aprova- ção por unanimidade do Con- selho Superior do Ministé- rio Público do Rio Grande do Sul, determinando a proibi- ção de atividades do MST, di- versas entidades da socieda- de civil e partidos políticos apresentaram mensagens de solidariedade ao movimento e criticaram a atitude do MP. “Nós repudiamos a ofensa ao direito constitucional da lei de associação. Com essas ati- tudes extremas, de impedir a locomoção e a reunião, não se preserva a democracia. Os anos de luta pela conquista do convívio democrático não podem ser dilapidados com essa postura do MP”, ar- ma Rafael Valim, conselhei- ro da Comissão de Justiça e Paz. Segundo ele, a entidade adotou uma posição jurídi- ca para contrapor-se à deci- são estritamente política dos promotores. O PT repudiou a crimina- lização dos movimentos so- ciais, da qual arma já ter si- do vítima, e lamentou que a ação “inaceitável” de promo- tores gaúchos tenham dado fôlego à repressão policial so- bre o MST. O MST também recebeu solidariedade de artistas e intelectuais, como o uruguaio Eduardo Galeano, que en- viou uma saudação aos “ami- gos elogiados pelo ódio dos inimigos”. No Brasil, sempre é preciso mudar para que tudo continue como está O jurista Fábio Konder Comparato teme pela perda de credibilidade de uma instituição respeitada como o MP “Como o MP é independente, é difícil existir unanimidade. Por isso, para mim, a unanimidade do Conselho Superior é o mais chocante” , opina a promotora aposentada Inês do Amaral Buschel Virgínia Fontes A HISTÓRIA do Brasil tem um ma- tiz doloroso: a perversidade seletiva praticada contra a organização so- cial dos setores populares. Para os grupos endinheirados ou empresa- riais, abrem-se todas as facilidades – além de contarem com enormes recursos. Enquanto isso, as inicia- tivas dos setores populares, que en- frentam sempre maiores diculda- des, costumam ser duramente per- seguidas. Na longa lista dessa repressão se- letiva sobre a sociedade civil, quan- do originada em setores popula- res, algumas situações foram dra- máticas e merecem ser relembra- das, pela semelhança com a trucu- lência das falsas acusações contra o MST no Rio Grande do Sul, e pelo uso cínico de dois pesos e duas me- didas. Eis algumas das arbitrarieda- des profundamente anti-democráti- cas, que carregavam marcas sinis- tras de ditaduras: 1. Na década de 1930, a dita- dura de Getúlio Vargas implan- tou um sistema corporativo obri- gatório para a representação sin- dical. A lei deveria aplicar-se pa- ra trabalhadores e empresários. Aos primeiros, a repressão foi ri- gorosa e brutal, desmantelando to- Danilo Dara enviado a Guararema (SP) Há um padrão comum de cri- minalização da pobreza e dos mo- vimentos sociais construído e vi- gorando em todo o mundo. Esse foi o ponto de partida do seminá- rio internacional “Criminalização da pobreza e dos movimentos so- ciais na América Latina” – inicia- tiva do Instituto Rosa Luxemburg e da Rede Social, entre 18 e 20 de junho na Escola Florestan Fernan- des, em Guararema (SP). O encon- tro reuniu mais de 70 participantes de vários países, entre eles Argen- tina, Chile, México, Paraguai e Ale- manha, além do Brasil. Durante as discussões, pôde-se diagnosticar estratégias comuns de repressão ao conjunto mais po- bre das sociedades, organizados ou não. Criminalização dirigida espe- cialmente contra grupos étnicos es- pecícos (povos originários e afro- descendentes), sem-terra, sem-te- to, trabalhadores informais ou de- sempregados, mulheres e migran- tes. Além, obviamente, do alvo prioritário: movimentos populares – visando seu enfraquecimento e, se possível, sua dissolução. Segundo Pablo Romo, do Obser- vatório da Conitividade Social no México, a criminalização é marca- da “pelo desenvolvimento das re- formas estruturais que os governos neoliberais iniciaram no nal dos das as formas de organização que não se enquadravam no novo siste- ma. Para os empresários, entretan- to, fez-se vista grossa, permitindo que mantivessem sistema dual, no qual conviviam o regime corpora- tivo e centros privados, não apenas sem serem incomodados pela polí- cia que reprimia os trabalhadores, mas se convertendo em “interlocu- tores legítimos do governo”. 2. Em 1947, foi cassado o registro do PCB, falsamente acusado de ser dirigido pela União Soviética. To- das as análises sociológicas ou polí- ticas e toda a historiograa brasilei- ra desde então provaram exaustiva- mente o contrário, o que já era sabi- do na ocasião e que, aliás, cou cla- ramente expresso pelos votos (ven- cidos) de dois ministros que parti- ciparam da votação. A atuação do PCB na Constituinte de 1946 – na qual se destacou – primara pela de- fesa de uma efetiva democratização, que assegurasse as liberdades de- mocráticas, o direito de greve, a luta contra a censura e as arbitrarieda- des policiais. O crescimento de um partido político que não nascera das entranhas do poder e que procura- va organizar os setores populares foi podado na origem, levando-o a cair em duríssima clandestinidade e di- cultando enormemente a partici- pação popular no período. Em con- trapartida, em 1949, o mesmo tribu- nal aceitaria o registro do Partido da Representação Popular, continua- dor da Ação Integralista Brasileira, partido pró-fascista e golpista, que prosseguiu impunemente sua atua- ção na política brasileira, até ser ul- trapassado pela ditadura militar, na qual se diluiu. 3. Entre 1961 e 1964, grande va- riedade de organizações (chega- vam a 500 em 1963), em sua maio- ria com base empresarial, foi criada e apoiada a partir dos institutos de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). Contaram com apoios go- vernamentais, com favores da mí- dia, com recursos empresariais, com extensa rede de associações internacionais, contatos com go- vernos exteriores – em especial, dos Estados Unidos. Em documen- tadíssima e jamais contestada pes- quisa, René Dreifuss demonstra como se articulavam com setores militares, construindo as bases do golpe civil-militar que lançaria o país em longa ditadura. Criminali- zavam e satanizavam todos os mo- vimentos de cunho popular, a co- meçar pelos trabalhadores rurais, então organizados sobretudo nas Ligas Camponesas. Imediatamen- te após o golpe, enquanto os inte- grantes dessas entidades refeste- lavam-se nas macias poltronas do poder, desencadeou-se truculen- ta repressão sobre todas as formas de organização popular, contando, inclusive, com arquivos que passa- riam a integrar o Serviço Nacional de Informação (SNI). O MST é uma organização popu- lar modelo em nosso país, reconhe- cida na América Latina e no mundo. Apesar dos obstáculos derivados da própria condição de vida de seus in- tegrantes, estes se mobilizam, edu- cam e formam seus militantes e fa- miliares, os quais permaneceriam esquecidos, esbulhados e sem di- reitos caso não se organizassem pa- ra exigi-los. No entanto, o MST en- frenta corriqueiramente a violên- cia seletiva, visível na longa lista de mortos e torturados dentre seus mi- litantes. A truculência atual, exibida pela documentação forjada para in- criminá-lo, deixa supor, a julgar pe- la nossa trajetória histórica, a exis- tência de organizações empresariais e policiais cujo intuito é criminali- zar a voz popular, mantendo a se- gregação social que ainda persiste em nosso país. Virgínia Fontes é historiadora, pro- fessora da Pós-Graduação em História da UFF, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST. A perseguição na História do Brasil anos de 1980, agora em sua segun- da fase”. Para ele, na relação entre movimentos e Estado “estão se re- duzindo as possibilidades de saí- das negociadas, pois, por um lado, o Estado está cada vez menos dis- posto a fazer concessões substanti- vas, e justicam esse endurecimen- to, qualicando os movimentos de extra-legais e ilegítimos, não mere- cendo ser incorporados a nenhum tipo de negociação-acordo. Por ou- tro lado, um número signicativo de movimentos está cada vez me- nos disposto a ceder frente à deci- são vertical ou aos danos e destrui- ção a que são submetidos”. Pablo destaca ainda o papel cru- cial desempenhado pelos meios de comunicação na legitimação da repressão estatal, citando co- mo exemplo os casos de Oaxaca e Atenco em 2007, quando as redes de TV trataram de repetir inúme- ras vezes imagens pinçadas de mi- litantes reagindo a provocações policiais, visando legitimar o uso de forças repressivas despropor- cionais, tendo como conseqüência centenas de feridos e detidos e de- zenas de mortos. No caso argentino, analisando os desdobramentos da crise de 2001 até a relativamente esperançosa ascensão dos Kirchner, Maristella Svampa observa um duplo movi- mento: durante a crise, “o gover- no nacional não titubeou em ali- mentar a estigmatização do pro- testo – contrapondo a mobiliza- ção de rua à exigência de ‘norma- lidade institucional’”, difundindo uma imagem da “democracia sen- do acossada por movimentos so- ciais”. Para ela, “como resultado, houve o avanço da ‘judicialização’ e da criminalização no tratamento dos conitos sociais, e a instalação de um forte consenso antipiquetei- ro, apoiado por amplos setores da opinião pública”. Um cenário cuja promessa de reversão – apontada pelo governo Kirchner aos setores populares – não só não foi cumpri- da como, em muitos casos, se in- tensicou. Ao mesmo tempo, co- mo aponta Roberto Gargarella, “as políticas penais parecem desenha- das no calor das demandas conjun- turais dos grupos melhor situados. Estes têm mostrado reiteradamen- te, nos últimos anos, sua capacida- de para inuir no redesenho do Có- digo Penal”. Outro aspecto vivenciado por lá diz respeito à mudança histórica de amplitude política na atuação das organizações em defesa dos direitos humanos, que, duran- te a ditadura militar, tiveram pa- pel fundamental para sua “supe- ração”. No entanto, segundo Clau- dia Korol (Pañuelos en Rebeldia), teriam limitado seu alcance após a chamada redemocratização, im- pondo a necessidade de repoliti- zar o tema. O cenário alarmante, porém, não se restringe à periferia do mundo. Os testemunhos sobre as estraté- gias de criminalização em prática atualmente na Alemanha, ecoan- do rumos europeus, são bastante preocupantes. Conforme aponta- ram Corinna Genschel, do Comi- tê para os Direitos Civis e a Demo- cracia, e Peer Stolle, da Associação de Advogados e Advogadas Repu- blicanos da Alemanha, após a que- da do muro e a unicação dos apa- ratos estatais (e policiais) de Leste a Oeste, o grau de controle em re- lação a qualquer tipo de mobiliza- ção social se intensicou. Desenvolveu-se um arcabouço jurídico-criminal chamado de “Es- tado de Segurança Preventiva” que prevê, entre outros pontos, amplo registro de dados dos cidadãos pa- ra uso da polícia; intervenções mi- litares rígidas contra reuniões e manifestações políticas; proibição de algumas associações (sobretudo islâmicas – sempre prejulgadas –, e de extrema direita, mas também organizações de esquerda); além de normas penais especiais para a criminalização de movimentos, vinculando-os a associações crimi- nais e terroristas. Uma estratégia que, ademais, estaria relacionada à cooperação institucional e policial crescente entre os Estados euro- peus, cujos novos interesses polí- tico-comerciais requerem crescen- te controle das fronteiras externas, e inimigos internos. Não por aca- so, já existe a Polícia Européia (Eu- ropol) e a Procuradoria Geral do Continente (Eurojust). Estratégias globalizadas de criminalização Cecília Luedemann Como autora de um livro “proi- bido” pelos promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbar- delotto, decidi escrever este artigo para me posicionar contra as me- didas inconstitucionais e violen- tas do Ministério Público Estadual e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Dentre outras “providên- cias”, como impedir marchas, re- primir protestos, invadir acampa- mentos e assentamentos, os pro- curadores ainda propõem “a inter- venção nas escolas do MST, a m de tomar todas as medidas que se- rão necessárias para a readequa- ção à legalidade, tanto no aspec- to pedagógico, quanto na estrutu- ra de inuência externa do MST.” Na chamada “readequação peda- gógica”, os interventores criaram uma lista de livros “proibidos”, cujos autores conhecidos são inte- lectuais internacionalmente desta- cados, como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Chico Mendes, José Martí e Che Guevara. E um educa- dor também consagrado no cam- po da pedagogia, mas não tão co- nhecido pelo público leigo, consi- derado pelos “interventores” co- mo um perigoso pedagogo soviéti- co: Makarenko. Mas, anal de contas quem é esse tal? Anton Semionovich Makarenko (1888-1939), escritor e pedagogo ucraniano, é mundialmente respei- tado por sua maior obra pedagógi- ca: a organização da escola como coletividade, conhecida como Colô- nia Gorki, onde reeducou centenas de crianças e adolescentes, meninos e meninas, órfãos da guerra civil e ex-marginais, para assumirem o co- mando das próprias vidas. Durante a efervescência cultu- ral dos anos de 1920, Makarenko criou uma escola organizada co- mo coletividade autogestionária. A revolução gerada por ele no cam- po da sociologia da educação po- de ser comparada àquela realiza- da por Lev Semyonovich Vigotski (1896-1934), na área da Psicologia da Educação, com a criação da te- oria da “zona proximal”, que con- sidera o desenvolvimento da crian- ça sempre mais lento que o aprendi- zado e defende a ação educativa co- mo forma de antecipação social do conhecimento. A escola organizada como coletividade une as diferentes salas de aula, alunos e professores, em uma nova sociabilidade que ga- rante um aprendizado signicativo: o educando participa, decide e cons- trói sua própria educação. Essa geração, impulsionada pe- la participação das massas no pri- meiro período da revolução soviéti- ca, entrou em confronto com as te- orias espontaneístas, individualis- tas, que se baseavam apenas no de- senvolvimento do indivíduo a partir das próprias forças ou, ainda, do ní- vel em que este se encontrava, co- mo naquela época, a teoria de Rous- seau, e hoje, de Piaget. E o resulta- do foi surpreendente: a possibilida- de de transformar os antigos explo- rados em verdadeiros cidadãos que participaram ativamente da cons- trução da nova sociedade. Com for- mação cientíca, crítica e ativa, cul- tos e educados para a solidariedade, essa nova geração tornou-se a prova de que mesmo os povos mais atra- sados economicamente poderiam conquistar outros patamares da vi- da cultural e cientíca, se a escola fosse organizada como coletividade. Quando escrevi Makarenko: Vida e obra tomando como base minha dissertação de mestrado (orientada pela professora Mirian Jorge War- de, pela PUC/SP, em 1994), tinha clareza das contribuições que esse livro poderia dar para a formação de pedagogos, educadores e educan- dos que lutam por uma escola públi- ca de qualidade. Mas, em especial, para os do MST que, como a Unes- co já mostrou por meio de prêmios e convênios, é o movimento social que tem contribuído para a garantia do direito à educação do campo. Já na terceira edição esgotada, Maka- renko: Vida e obra responde tanto às necessidades das escolas públi- cas em crise, quanto à crise de ree- ducação de crianças e jovens margi- nalizados. Ao invés da violência ins- titucionalizada, nossos jovens têm o direito à educação de qualidade, co- mo provou a experiência de Maka- renko nas primeiras décadas do sé- culo 20. Quem tem medo de Makarenko? A burguesia, cujo projeto de Brasil não permite a formação de um po- vo culto e livre. Para eles, armados com seus promotores de aluguel, e suas brigadas violentas, a chamada readequação pedagógica deve ser a destruição das escolas de qualidade para o povo. Escolas sem bibliote- cas, salas de aula sem livros, edu- cadores mal remunerados, desesti- mulados e sem tempo para forma- ção acadêmica, educandos proibi- dos de participar e decidir sobre a vida de sua escola: essa é a reade- quação pedagógica apregoada por promotores ultradireitistas em ter- ras gaúchas. Na contramão da his- tória, proíbem o livro de Maka- renko, um dos pedagogos mais co- nhecidos e respeitados ainda hoje, porque representa a escola que cul- tiva o gosto pela participação, pela ciência, pela produção cultural, pe- lo respeito ao ser humano... “Um povo instruído será sempre forte e livre”, José Martí. Cecília Luedemann, jornalista e edu- cadora, é autora do livro Anton Maka- renko: Vida e obra – A pedagogia da revolução (Expressão Popular). Quem tem medo de Makarenko?

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1947 - 1964 - 1968 - 2008

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de 3 a 9 de julho de 20084 5

Renato Godoy de Toledoda Redação

COM A ação judicial prepara-da pelo Conselho Superior do Ministério Público Estadu-al do Rio Grande do Sul, que visa proibir as atividades do Movimento dos Trabalhado-res Rurais Sem Terra (MST), a entidade tomou uma atitu-de rara, quase inédita, para os períodos de democracia pelos quais o Brasil já passou.

A decisão unânime dos no-ve membros da instância má-xima do MP gaúcho, que por fi m sugere a dissolução do movimento, é comparada por especialistas com a dizima-ção das Ligas Camponesas, a partir do golpe militar de 1964. Mas com um agravante: à época, a incipiente ditadu-ra militar fazia vistas grossas aos ataques de latifundiários contra os camponeses, en-quanto que agora o Estado é evocado para ser protagonis-ta do processo de extinção de um movimento social.

A cassação de organiza-ções sociais e políticas tem sido uma característica das ditaduras brasileiras, como a de Getúlio Vargas, que fe-chou sindicatos não-alinha-dos a ele, e o regime mili-tar, que promoveu uma caça a seus opositores. Esse tipo de restrição já ocorreu tam-bém em um período de frá-gil estabilidade democrática. Entre a ditadura Vargas e a militar (1946-1964), o Parti-do Comunista Brasileiro foi posto na ilegalidade e seus parlamentares, cassados, em 1947, pelo governo do Briga-deiro Eurico Gaspar Dutra, que buscava posicionar-se com mais ênfase ao lado dos EUA durante a Guerra Fria. (Sobre esse período, veja ar-tigo da historiadora Virgínia Fontes, na página ao lado)

Servidor do povo?Ao determinar a proibição

de marchas, a intervenção no sistema de ensino nas escolas

do MST e, numa ação com-binada com a Brigada Mili-tar, retirar trabalhadores ru-rais de áreas cedidas, o MP fere ao menos três direitos estabelecidos pela Constitui-ção de 1988, de acordo com juristas consultados pela re-portagem.

No artigo 5 da Constituição, há dois incisos atacados pela decisão: o 16, que assegura o direito de reuniões, sem ar-mas, em locais abertos ao pú-blico e o 18, que rechaça a in-terferência estatal em asso-ciações e cooperativas. Para o jurista Fábio Konder Com-parato, a ação do MP também ignora o direito ao trabalho e à determinação de que a pro-

priedade deve cumprir uma função social. Comparato te-me pela perda de credibilida-de de uma instituição respei-tada como o MP.

“O que está acontecendo no Rio Grande do Sul é um desvio de função do Ministé-rio Público. De acordo com a Constituição, o MP deve fazer a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos in-teresses sociais e individuais. Ministro signifi ca servidor, então o MP seria o servidor do povo. Ao invés de defen-der o povo e seus direitos fun-

damentais, o MP cerra fi leiras na defesa dos interesses de grandes proprietários rurais e empresas multinacionais de agronegócio”, avalia.

O jurista lembra como o di-reito de manifestação foi im-portante para as garantias de direitos e a construção de leis contra a exploração de trabalhadores e, no entanto, essa garantia não está sen-do observada em alguns ca-sos, sobretudo no Rio Gran-de do Sul. “Quando a mani-festação não é organizada por empresários, ela é reprimi-da fortemente. Na Constitui-ção, todos são iguais perante a lei, mas, agora, uns são mais iguais que os outros”, ironiza.

Sobre os diferentes tipos de propriedade, Comparato afi rma que estão ignorando a Constituição e invertendo os valores, colocando a proprie-dade acima da vida humana. “Nem toda propriedade é di-reito fundamental. Só é di-reito fundamental a proprie-dade que é vital para uma vi-da digna para o titular. Seria um escárnio dizer que o con-trole da Microsoft pelo Bill Gates, por exemplo, é um di-reito fundamental. Não po-demos esquecer que existe na propriedade a possibilida-de de se exercer poder sobre outros. Aí a propriedade dei-xa de ser direito fundamen-tal e fi ca obrigada pela Cons-tituição a cumprir sua função social. O fato de alguém ter 20 casas não signifi ca que te-nha direito fundamental so-bre elas”, explica.

Preparando o terrenoPlínio Arruda Sampaio,

presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrá-ria e da direção do Psol, disse ter recebido a notícia da de-cisão do MP gaúcho com es-tarrecimento. Para ele, seto-res conservadores preparam uma “limpeza” no campo pa-ra que o país seja o principal produtor de matérias-primas exportáveis pelo agronegó-cio. “Então, precisam come-

çar a eliminar obstáculos. In-discutivelmente, há uma es-calada que visa estrangular o MST”, considera.

No entanto, um hipotético fi m do movimento seria uma tragédia tanto para as forças de esquerda quanto para as de direita, segundo Plínio. “Para a esquerda, é claro que seria ruim. Mas eu faço um alerta à direita: se o MST for crimi-nalizado e considerado ilegal, ninguém vai segurar a violên-cia no campo. Quem apresen-ta uma esperança e uma saída hoje no meio rural é o MST, ele é quem civiliza o processo, porque, na verdade, a ocupa-ção não prejudica ninguém, porque a Justiça põe tudo no lugar ou o Incra paga um alto valor pela terra. Sem o MST, a violência seria despertada de forma perversa, por meio do narcotráfi co e do banditismo rural, formas que não são so-ciais”, aconselha.

Traçando um paralelo com a dizimação das Ligas Cam-ponesas, Plínio afi rma que, se a intenção dos que o fi zeram era retirar a reforma agrária da ordem do dia, a ação foi em vão. “Depois da dizima-ção das Ligas, a bandeira da reforma fi cou ainda mais for-te. A ação do MP é mais gra-ve do que a da ditadura, pois ela se dá em plena vigência de uma Constituição democráti-ca”, nota.

Estrutura do MPA atitude dos promotores

gaúchos não passou incólu-me nem mesmo por colegas de profi ssão. Inês do Amaral Buschel, promotora de justi-ça aposentada e sócia-funda-dora do Movimento Ministé-rio Público Democrático, ava-lia que, dentro da instituição, há diversas reações acerca da ação dos colegas do Rio Gran-de do Sul.

“Há promotores que fi ca-ram horrorizados com a ati-tude, mas também há aqueles que estão aplaudindo. Assim como na sociedade, há pesso-as no MP que odeiam admitir

que a propriedade tem fun-ção social. Como o MP é in-dependente, é difícil existir unanimidade. Por isso, para mim, a unanimidade do Con-selho Superior é o mais cho-cante”, revela.

A promotora explica que, por prerrogativas jurídicas, os promotores são indepen-dentes, tendo liberdade para interpretar as leis à sua ma-neira. Mesmo assim, a jurista afi rma nunca ter se deparado com uma situação semelhan-te desde o estabelecimento da Constituição de 1988. “Es-se tipo de ação só ocorreu na ditadura militar e no governo de Getúlio Vargas”, reforça.

Na análise de Buschel, a medida se baseia na “cons-tatação” de que o MST é uma organização paramilitar, que mantém relações com as Farc, conforme a ata da reu-nião. “O que consta na socie-dade brasileira é que o MST luta pacífi ca e legitimamen-te pela reforma agrária, sem armas de fogo. Ao contrário, o MST é vítima das armas de fogo dos latifundiários. Es-sa conotação que o MP dá ao MST, comparando-o com o antigo movimento comunis-ta, é algo totalmente reacio-nário”, constata.

Ideologia de berçoA promotora aposentada

aponta uma peculiaridade na composição do Ministério Pú-blico do Rio Grande do Sul, o

que pode ser um dos fatores decisivos para a sua orienta-ção pró-latifúndio.

“No geral, o MP é compos-to por pessoas de classe mé-dia. Mas no Rio Grande do Sul, percebe-se que há um grande número de promoto-res que são fi lhos de proprie-tários rurais. Assim, é natu-ral que eles defendam o lati-fúndio. O cerne é que você vê o mundo conforme o seu ber-ço. Se o pai torce por um time, ou segue uma religião, o mais provável é que o fi lho também o faça. Há exceções. Mas um fi lho de latifundiário, no ge-ral, acha normal que seu pai tenha uma imensidão de ter-ras”, interpreta.

Segundo a promotora, a confi guração de uma enti-dade pró-latifúndio explica-ria frases como a de Gilber-to Thuns, relator da reunião que sugeriu a dissolução do MST. “No Rio Grande do Sul não existe terra improdutiva”, disse o promotor. “Eles dizem isso porque não querem divi-dir a terra”, responde a pro-motora.

“Raiva de pobre”Thuns também afi rmou que

o MP sugerirá ao governo do Rio Grande do Sul que não negocie com o MST, pelo fa-to deste ser uma “organização criminosa”. Além das afi rma-ções contundentes de Thuns, outros dois promotores se so-bressaíram por suas coloca-ções. Luís Felipe de Aguiar Te-sheiner e Benhur Biacon Jú-nior mencionaram que nas es-colas do MST há livros do edu-cador Paulo Freire, que com-provariam o envolvimento dos sem-terra com atividades ile-gais. Ao site Viomundo, a vi-úva do educador, Nita Freire, se disse indignada com a si-tuação. “A elite brasileira tem ódio dos pobres, dos negros, dos que não cheiram bem, dos que não tomam banho, dos ín-dios, dos trabalhadores rurais. Ainda não perdemos o ranço da herança trágica do colonia-lismo”, disse Nita.

O método criado pelo mari-do de Nita é utilizado em di-versos municípios brasileiros e goza de reconhecimento in-ternacional. Outros pensado-res também foram citados no relatório do MP, como prova da tendência à ilegalidade do MST, como o sociólogo Flo-restan Fernandes e o peda-gogo soviético Anton Maka-renko. (Sobre esse pensador, veja artigo ao lado, da jorna-lista Cecília Luedemann, au-tora de livro sobre a vida e a obra do russo que foi “proibi-do” pelos promotores)

Reação da sociedadeApós a notícia da aprova-

ção por unanimidade do Con-selho Superior do Ministé-rio Público do Rio Grande do Sul, determinando a proibi-ção de atividades do MST, di-versas entidades da socieda-de civil e partidos políticos apresentaram mensagens de solidariedade ao movimento e criticaram a atitude do MP. “Nós repudiamos a ofensa ao direito constitucional da lei de associação. Com essas ati-tudes extremas, de impedir a locomoção e a reunião, não se preserva a democracia. Os anos de luta pela conquista do convívio democrático não podem ser dilapidados com essa postura do MP”, afi r-ma Rafael Valim, conselhei-ro da Comissão de Justiça e Paz. Segundo ele, a entidade adotou uma posição jurídi-ca para contrapor-se à deci-são estritamente política dos promotores.

O PT repudiou a crimina-lização dos movimentos so-ciais, da qual afi rma já ter si-do vítima, e lamentou que a ação “inaceitável” de promo-tores gaúchos tenham dado fôlego à repressão policial so-bre o MST.

O MST também recebeu solidariedade de artistas e intelectuais, como o uruguaio Eduardo Galeano, que en-viou uma saudação aos “ami-gos elogiados pelo ódio dos inimigos”.

No Brasil, sempre é preciso mudar para que tudo continue como está

O jurista Fábio Konder Comparato teme pela perda de credibilidade de uma instituição respeitada como o MP

“Como o MP é independente, é difícil existir unanimidade. Por isso, para mim, a unanimidade do Conselho Superior é o mais chocante”, opina a promotora aposentada Inês do Amaral Buschel

Virgínia Fontes

A HISTÓRIA do Brasil tem um ma-tiz doloroso: a perversidade seletiva praticada contra a organização so-cial dos setores populares. Para os grupos endinheirados ou empresa-riais, abrem-se todas as facilidades – além de contarem com enormes recursos. Enquanto isso, as inicia-tivas dos setores populares, que en-frentam sempre maiores difi culda-des, costumam ser duramente per-seguidas.

Na longa lista dessa repressão se-letiva sobre a sociedade civil, quan-do originada em setores popula-res, algumas situações foram dra-máticas e merecem ser relembra-das, pela semelhança com a trucu-lência das falsas acusações contra o MST no Rio Grande do Sul, e pelo uso cínico de dois pesos e duas me-didas. Eis algumas das arbitrarieda-des profundamente anti-democráti-cas, que carregavam marcas sinis-tras de ditaduras:

1. Na década de 1930, a dita-dura de Getúlio Vargas implan-tou um sistema corporativo obri-gatório para a representação sin-dical. A lei deveria aplicar-se pa-ra trabalhadores e empresários. Aos primeiros, a repressão foi ri-gorosa e brutal, desmantelando to-

Danilo Daraenviado a Guararema (SP)

Há um padrão comum de cri-minalização da pobreza e dos mo-vimentos sociais construído e vi-gorando em todo o mundo. Esse foi o ponto de partida do seminá-rio internacional “Criminalização da pobreza e dos movimentos so-ciais na América Latina” – inicia-tiva do Instituto Rosa Luxemburg e da Rede Social, entre 18 e 20 de junho na Escola Florestan Fernan-des, em Guararema (SP). O encon-tro reuniu mais de 70 participantes de vários países, entre eles Argen-tina, Chile, México, Paraguai e Ale-manha, além do Brasil.

Durante as discussões, pôde-se diagnosticar estratégias comuns de repressão ao conjunto mais po-bre das sociedades, organizados ou não. Criminalização dirigida espe-cialmente contra grupos étnicos es-pecífi cos (povos originários e afro-descendentes), sem-terra, sem-te-to, trabalhadores informais ou de-sempregados, mulheres e migran-tes. Além, obviamente, do alvo prioritário: movimentos populares – visando seu enfraquecimento e, se possível, sua dissolução.

Segundo Pablo Romo, do Obser-vatório da Confl itividade Social no México, a criminalização é marca-da “pelo desenvolvimento das re-formas estruturais que os governos neoliberais iniciaram no fi nal dos

das as formas de organização que não se enquadravam no novo siste-ma. Para os empresários, entretan-to, fez-se vista grossa, permitindo que mantivessem sistema dual, no qual conviviam o regime corpora-tivo e centros privados, não apenas sem serem incomodados pela polí-cia que reprimia os trabalhadores, mas se convertendo em “interlocu-tores legítimos do governo”.

2. Em 1947, foi cassado o registro do PCB, falsamente acusado de ser dirigido pela União Soviética. To-das as análises sociológicas ou polí-ticas e toda a historiografi a brasilei-ra desde então provaram exaustiva-mente o contrário, o que já era sabi-do na ocasião e que, aliás, fi cou cla-ramente expresso pelos votos (ven-cidos) de dois ministros que parti-ciparam da votação. A atuação do PCB na Constituinte de 1946 – na qual se destacou – primara pela de-fesa de uma efetiva democratização, que assegurasse as liberdades de-mocráticas, o direito de greve, a luta contra a censura e as arbitrarieda-des policiais. O crescimento de um partido político que não nascera das entranhas do poder e que procura-va organizar os setores populares foi podado na origem, levando-o a cair em duríssima clandestinidade e di-fi cultando enormemente a partici-pação popular no período. Em con-

trapartida, em 1949, o mesmo tribu-nal aceitaria o registro do Partido da Representação Popular, continua-dor da Ação Integralista Brasileira, partido pró-fascista e golpista, que prosseguiu impunemente sua atua-ção na política brasileira, até ser ul-trapassado pela ditadura militar, na qual se diluiu.

3. Entre 1961 e 1964, grande va-riedade de organizações (chega-vam a 500 em 1963), em sua maio-ria com base empresarial, foi criada e apoiada a partir dos institutos de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). Contaram com apoios go-vernamentais, com favores da mí-dia, com recursos empresariais, com extensa rede de associações internacionais, contatos com go-vernos exteriores – em especial, dos Estados Unidos. Em documen-tadíssima e jamais contestada pes-quisa, René Dreifuss demonstra como se articulavam com setores militares, construindo as bases do golpe civil-militar que lançaria o país em longa ditadura. Criminali-zavam e satanizavam todos os mo-vimentos de cunho popular, a co-meçar pelos trabalhadores rurais, então organizados sobretudo nas Ligas Camponesas. Imediatamen-te após o golpe, enquanto os inte-grantes dessas entidades refeste-

lavam-se nas macias poltronas do poder, desencadeou-se truculen-ta repressão sobre todas as formas de organização popular, contando, inclusive, com arquivos que passa-riam a integrar o Serviço Nacional de Informação (SNI).

O MST é uma organização popu-lar modelo em nosso país, reconhe-cida na América Latina e no mundo. Apesar dos obstáculos derivados da própria condição de vida de seus in-tegrantes, estes se mobilizam, edu-cam e formam seus militantes e fa-miliares, os quais permaneceriam esquecidos, esbulhados e sem di-reitos caso não se organizassem pa-ra exigi-los. No entanto, o MST en-frenta corriqueiramente a violên-cia seletiva, visível na longa lista de mortos e torturados dentre seus mi-litantes. A truculência atual, exibida pela documentação forjada para in-criminá-lo, deixa supor, a julgar pe-la nossa trajetória histórica, a exis-tência de organizações empresariais e policiais cujo intuito é criminali-zar a voz popular, mantendo a se-gregação social que ainda persiste em nosso país.

Virgínia Fontes é historiadora, pro-fessora da Pós-Graduação em História

da UFF, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e da Escola

Nacional Florestan Fernandes-MST.

A perseguição na História do Brasil

anos de 1980, agora em sua segun-da fase”. Para ele, na relação entre movimentos e Estado “estão se re-duzindo as possibilidades de saí-das negociadas, pois, por um lado, o Estado está cada vez menos dis-posto a fazer concessões substanti-vas, e justifi cam esse endurecimen-to, qualifi cando os movimentos de extra-legais e ilegítimos, não mere-cendo ser incorporados a nenhum tipo de negociação-acordo. Por ou-tro lado, um número signifi cativo de movimentos está cada vez me-nos disposto a ceder frente à deci-são vertical ou aos danos e destrui-ção a que são submetidos”.

Pablo destaca ainda o papel cru-cial desempenhado pelos meios de comunicação na legitimação da repressão estatal, citando co-mo exemplo os casos de Oaxaca e Atenco em 2007, quando as redes de TV trataram de repetir inúme-ras vezes imagens pinçadas de mi-litantes reagindo a provocações policiais, visando legitimar o uso de forças repressivas despropor-cionais, tendo como conseqüência centenas de feridos e detidos e de-zenas de mortos.

No caso argentino, analisando os desdobramentos da crise de 2001 até a relativamente esperançosa ascensão dos Kirchner, Maristella Svampa observa um duplo movi-mento: durante a crise, “o gover-no nacional não titubeou em ali-mentar a estigmatização do pro-testo – contrapondo a mobiliza-

ção de rua à exigência de ‘norma-lidade institucional’”, difundindo uma imagem da “democracia sen-do acossada por movimentos so-ciais”. Para ela, “como resultado, houve o avanço da ‘judicialização’ e da criminalização no tratamento dos confl itos sociais, e a instalação de um forte consenso antipiquetei-ro, apoiado por amplos setores da opinião pública”. Um cenário cuja promessa de reversão – apontada pelo governo Kirchner aos setores populares – não só não foi cumpri-da como, em muitos casos, se in-tensifi cou. Ao mesmo tempo, co-mo aponta Roberto Gargarella, “as políticas penais parecem desenha-das no calor das demandas conjun-turais dos grupos melhor situados. Estes têm mostrado reiteradamen-te, nos últimos anos, sua capacida-de para infl uir no redesenho do Có-digo Penal”.

Outro aspecto vivenciado por lá diz respeito à mudança histórica de amplitude política na atuação das organizações em defesa dos direitos humanos, que, duran-te a ditadura militar, tiveram pa-pel fundamental para sua “supe-ração”. No entanto, segundo Clau-dia Korol (Pañuelos en Rebeldia), teriam limitado seu alcance após a chamada redemocratização, im-pondo a necessidade de repoliti-zar o tema.

O cenário alarmante, porém, não se restringe à periferia do mundo. Os testemunhos sobre as estraté-

gias de criminalização em prática atualmente na Alemanha, ecoan-do rumos europeus, são bastante preocupantes. Conforme aponta-ram Corinna Genschel, do Comi-tê para os Direitos Civis e a Demo-cracia, e Peer Stolle, da Associação de Advogados e Advogadas Repu-blicanos da Alemanha, após a que-da do muro e a unifi cação dos apa-ratos estatais (e policiais) de Leste a Oeste, o grau de controle em re-lação a qualquer tipo de mobiliza-ção social se intensifi cou.

Desenvolveu-se um arcabouço jurídico-criminal chamado de “Es-tado de Segurança Preventiva” que prevê, entre outros pontos, amplo registro de dados dos cidadãos pa-ra uso da polícia; intervenções mi-litares rígidas contra reuniões e manifestações políticas; proibição de algumas associações (sobretudo islâmicas – sempre prejulgadas –, e de extrema direita, mas também organizações de esquerda); além de normas penais especiais para a criminalização de movimentos, vinculando-os a associações crimi-nais e terroristas. Uma estratégia que, ademais, estaria relacionada à cooperação institucional e policial crescente entre os Estados euro-peus, cujos novos interesses polí-tico-comerciais requerem crescen-te controle das fronteiras externas, e inimigos internos. Não por aca-so, já existe a Polícia Européia (Eu-ropol) e a Procuradoria Geral do Continente (Eurojust).

Estratégias globalizadas de criminalização

Cecília Luedemann

Como autora de um livro “proi-bido” pelos promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbar-delotto, decidi escrever este artigo para me posicionar contra as me-didas inconstitucionais e violen-tas do Ministério Público Estadual e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Dentre outras “providên-cias”, como impedir marchas, re-primir protestos, invadir acampa-mentos e assentamentos, os pro-curadores ainda propõem “a inter-venção nas escolas do MST, a fi m de tomar todas as medidas que se-rão necessárias para a readequa-ção à legalidade, tanto no aspec-to pedagógico, quanto na estrutu-ra de infl uência externa do MST.” Na chamada “readequação peda-gógica”, os interventores criaram uma lista de livros “proibidos”, cujos autores conhecidos são inte-lectuais internacionalmente desta-cados, como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Chico Mendes, José Martí e Che Guevara. E um educa-dor também consagrado no cam-po da pedagogia, mas não tão co-nhecido pelo público leigo, consi-derado pelos “interventores” co-mo um perigoso pedagogo soviéti-co: Makarenko.

Mas, afi nal de contas quem é esse tal? Anton Semionovich Makarenko

(1888-1939), escritor e pedagogo ucraniano, é mundialmente respei-tado por sua maior obra pedagógi-ca: a organização da escola como coletividade, conhecida como Colô-nia Gorki, onde reeducou centenas de crianças e adolescentes, meninos e meninas, órfãos da guerra civil e ex-marginais, para assumirem o co-mando das próprias vidas.

Durante a efervescência cultu-ral dos anos de 1920, Makarenko criou uma escola organizada co-mo coletividade autogestionária. A revolução gerada por ele no cam-po da sociologia da educação po-de ser comparada àquela realiza-da por Lev Semyonovich Vigotski (1896-1934), na área da Psicologia da Educação, com a criação da te-oria da “zona proximal”, que con-sidera o desenvolvimento da crian-ça sempre mais lento que o aprendi-zado e defende a ação educativa co-mo forma de antecipação social do conhecimento. A escola organizada como coletividade une as diferentes salas de aula, alunos e professores, em uma nova sociabilidade que ga-rante um aprendizado signifi cativo: o educando participa, decide e cons-trói sua própria educação.

Essa geração, impulsionada pe-la participação das massas no pri-meiro período da revolução soviéti-ca, entrou em confronto com as te-orias espontaneístas, individualis-tas, que se baseavam apenas no de-

senvolvimento do indivíduo a partir das próprias forças ou, ainda, do ní-vel em que este se encontrava, co-mo naquela época, a teoria de Rous-seau, e hoje, de Piaget. E o resulta-do foi surpreendente: a possibilida-de de transformar os antigos explo-rados em verdadeiros cidadãos que participaram ativamente da cons-trução da nova sociedade. Com for-mação científi ca, crítica e ativa, cul-tos e educados para a solidariedade, essa nova geração tornou-se a prova de que mesmo os povos mais atra-sados economicamente poderiam conquistar outros patamares da vi-da cultural e científi ca, se a escola fosse organizada como coletividade.

Quando escrevi Makarenko: Vida e obra tomando como base minha dissertação de mestrado (orientada pela professora Mirian Jorge War-de, pela PUC/SP, em 1994), tinha clareza das contribuições que esse livro poderia dar para a formação de pedagogos, educadores e educan-dos que lutam por uma escola públi-ca de qualidade. Mas, em especial, para os do MST que, como a Unes-co já mostrou por meio de prêmios e convênios, é o movimento social que tem contribuído para a garantia do direito à educação do campo. Já na terceira edição esgotada, Maka-renko: Vida e obra responde tanto às necessidades das escolas públi-cas em crise, quanto à crise de ree-ducação de crianças e jovens margi-

nalizados. Ao invés da violência ins-titucionalizada, nossos jovens têm o direito à educação de qualidade, co-mo provou a experiência de Maka-renko nas primeiras décadas do sé-culo 20.

Quem tem medo de Makarenko? A burguesia, cujo projeto de Brasil não permite a formação de um po-vo culto e livre. Para eles, armados com seus promotores de aluguel, e suas brigadas violentas, a chamada readequação pedagógica deve ser a destruição das escolas de qualidade para o povo. Escolas sem bibliote-cas, salas de aula sem livros, edu-cadores mal remunerados, desesti-mulados e sem tempo para forma-ção acadêmica, educandos proibi-dos de participar e decidir sobre a vida de sua escola: essa é a reade-quação pedagógica apregoada por promotores ultradireitistas em ter-ras gaúchas. Na contramão da his-tória, proíbem o livro de Maka-renko, um dos pedagogos mais co-nhecidos e respeitados ainda hoje, porque representa a escola que cul-tiva o gosto pela participação, pela ciência, pela produção cultural, pe-lo respeito ao ser humano... “Um povo instruído será sempre forte e livre”, José Martí.

Cecília Luedemann, jornalista e edu-cadora, é autora do livro Anton Maka-renko: Vida e obra – A pedagogia da

revolução (Expressão Popular).

Quem tem medo de Makarenko?