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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.90-101. <www.ephispucrs.com.br>. PERFIL DOS MORADORES DE SAN JOZÉ DO TAQUARI A PARTIR DA RELAÇÃO DE MORADORES DE1784 THE RELATIONSHIP OF RESIDENTS OF 1784: A PROFILE OF THE RESIDENTS OF SAN JOZÉ OF TAQUARY Sandra Michele Roth Eckhardt Graduanda/Universidade Federal de Santa Maria [email protected] RESUMO A existência de unidades agrícolas no sul do Brasil ao final do período colonial, cujo foco esteve na produção de gêneros alimentícios destinados ao sustento de pessoas das unidades produtivas e também para o mercado interno de abastecimento, já é conhecida para diversas regiões. Buscando-se atentar às lógicas próprias de funcionamento dessas e uma decorrente autonomia em relação aos movimentos do mercado internacional de exportação colonial, pretende-se investigar esses aspectos econômico-sociais em uma região de povoamento açoriano. Para tanto, analisara-se o perfil demográfico e econômico dos moradores da Freguesia de San Jozé de Taquary, no Rio Grande de São Pedro, ao final do período colonial. A partir da Relação de Moradores de 1784 é possível verificar quem eram os sujeitos que estavam instalados nessa região e como esses obtiveram acesso aos meios produtivos. Desse modo, podemos destacar a inserção dos imigrantes e descendentes de origem açoriana, enquanto pequenos produtores, no mercado interno a partir da produção de gêneros alimentícios. Palavras-chave: Mercado Interno. Relação de moradores. Taquary. ABSTRACT The existence of farms in southern Brazil at the end of the colonial period, whose focus was on the production of foodstuffs intended to keep people productive units and also for the domestic market supply, is already known for different regions. In an attempt to look to their own logic of operation of these and a resulting autonomy in relation to the movements of the international market for export colonial, we intend to investigate these aspects socioeconomic in a region of settlement of the Azores. For both, analyzed the demographic profile and economic support of residents of the Parish of San Jozé of Marburg, in Rio Grande de São Pedro, at the end of the colonial period. From the Relation of Inhabitants of 1784 it is possible to check who were the subjects that were installed in this region and as such gained access to the means of production. In this way, we can highlight the insertion of immigrants and descendants of Azorean origin, while small producers in the domestic market from the production of foodstuffs. Keywords: Internal Market. The Relationship of Residents. Taquary. Introdução A proposta deste artigo é refletir e assinalar um perfil da produção agrícola praticada por pequenos produtores no extremo sul da América Portuguesa, mais especificamente na freguesia de Taquari, ao final do período colonial. A partir desses, apontar algumas

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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS.

Porto Alegre, 2016. p.90-101. <www.ephispucrs.com.br>.

PERFIL DOS MORADORES DE SAN JOZÉ DO TAQUARI A PARTIR

DA RELAÇÃO DE MORADORES DE1784

THE RELATIONSHIP OF RESIDENTS OF 1784: A PROFILE OF THE

RESIDENTS OF SAN JOZÉ OF TAQUARY

Sandra Michele Roth Eckhardt

Graduanda/Universidade Federal de Santa Maria

[email protected]

RESUMO A existência de unidades agrícolas no sul do Brasil ao final do período colonial, cujo foco esteve na produção de

gêneros alimentícios destinados ao sustento de pessoas das unidades produtivas e também para o mercado

interno de abastecimento, já é conhecida para diversas regiões. Buscando-se atentar às lógicas próprias de

funcionamento dessas e uma decorrente autonomia em relação aos movimentos do mercado internacional de

exportação colonial, pretende-se investigar esses aspectos econômico-sociais em uma região de povoamento

açoriano. Para tanto, analisara-se o perfil demográfico e econômico dos moradores da Freguesia de San Jozé de

Taquary, no Rio Grande de São Pedro, ao final do período colonial. A partir da Relação de Moradores de 1784 é

possível verificar quem eram os sujeitos que estavam instalados nessa região e como esses obtiveram acesso aos

meios produtivos. Desse modo, podemos destacar a inserção dos imigrantes e descendentes de origem açoriana,

enquanto pequenos produtores, no mercado interno a partir da produção de gêneros alimentícios.

Palavras-chave: Mercado Interno. Relação de moradores. Taquary.

ABSTRACT The existence of farms in southern Brazil at the end of the colonial period, whose focus was on the production of

foodstuffs intended to keep people productive units and also for the domestic market supply, is already known

for different regions. In an attempt to look to their own logic of operation of these and a resulting autonomy in

relation to the movements of the international market for export colonial, we intend to investigate these aspects

socioeconomic in a region of settlement of the Azores. For both, analyzed the demographic profile and economic

support of residents of the Parish of San Jozé of Marburg, in Rio Grande de São Pedro, at the end of the colonial

period. From the Relation of Inhabitants of 1784 it is possible to check who were the subjects that were installed

in this region and as such gained access to the means of production. In this way, we can highlight the insertion of

immigrants and descendants of Azorean origin, while small producers in the domestic market from the

production of foodstuffs.

Keywords: Internal Market. The Relationship of Residents. Taquary.

Introdução

A proposta deste artigo é refletir e assinalar um perfil da produção agrícola praticada

por pequenos produtores no extremo sul da América Portuguesa, mais especificamente na

freguesia de Taquari, ao final do período colonial. A partir desses, apontar algumas

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possibilidades de pesquisa na história da agricultura, sobre a produção de gêneros alimentícios

destinados ao sustento de pessoas.

Ao observar a inserção desses pequenos produtores no mercado interno é possível

entender a sociedade colonial brasileira moldada não apenas nas relações entre grandes

senhores, donos de plantations e seus escravos. Mas também, por uma complexidade social

que guardava especificidades distantes dos modelos de produção escravista de exportação e

não se reduzida a vinculações de interesses externos.

O estudo da freguesia de San Jozé do Taquary pretende analisar e apontar questões

sobre a inserção da região sul do império português no mercado interno de alimentos. Os

moradores dessa freguesia ao final do período colonial eram pequenos proprietários, de áreas

de dimensões modestas se comparadas às estâncias, que encontraram na prática da agricultura

e na pequena criação de animais o necessário para o sustento da família e, quando havia,

comercializavam algum excedente no mercado regional e interno.

O lugar dos não afortunados na colônia do Império Português

Tentar entender a sociedade colonial brasileira moldada apenas nas relações entre

grandes senhores, donos de plantations e seus escravos é não perceber a complexidade social

que se formou na paisagem do período colonial e do século XIX.

Os apontamentos de Gilberto Freyre sobre a sociedade agrária brasileira gerou por

muito tempo uma visão calcada apenas na Casa Grande e Senzala, na qual a polaridade entre

senhores e escravos representaria a sociedade colonial1. No entanto, um gama de homens

livres pobres foram invisibilizados ou vistos como secundários. Espectro este que também foi

reproduzido por Caio Prado Jr, o qual atribuiu à população livre as dependências para com

grandes proprietários de terra e economicamente marginais à economia da plantation

escravista.

Uma nova historiografia dos anos 1970 e 1980 questionou esse modelo explicativo e

apontou grupos produtivos com organizações econômicas voltadas para o abastecimento de

alimentos e com verdadeira significação econômica e social, ainda que sua ligação com a

exportação fosse apenas indireta. Esses sujeitos estiveram conectados com o mercado interno

1 A obra desse autor apresenta traços muito marcantes da sociedade nordestina açucareira e ao generalizá-los

para toda América Portuguesa excluí uma imensidão sujeitos inseridos no mercado interno de alimentos.

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de alimentos e foram capazes de geral alguma acumulação de capital, a partir de suas próprias

práticas de interesses2.

A primeira renovação desse debate historiográfico se inicia a partir do interesse de

alguns pesquisadores preocupados em discutir o conceito de “modo de produção escravista

colonial”. Esses pesquisadores formularam hipóteses fora dos moldes da produção escravista-

colonial e buscaram explicações nas quais homens livres e pobres atuavam a partir de lógicas

próprias e não apenas sob os comandos dos interesses e poderes metropolitanos e grandes

proprietários de terras.

As abordagens críticas dos modelos explicativos gerais foram iniciadas por Ciro

Flamarion Cardoso, Jacob Gorender, Antônio Barros de Castro e Maria Yeda Linhares. Esses

autores propuseram explicações para além de esclarecimentos apenas políticos.

Aproximaram-se com outras áreas do conhecimento das ciências humanas, como a economia,

sociologia e antropologia e introduziram elementos dessas áreas no estudo das populações do

passado.

Pesquisadores inspirados no materialismo histórico e na história regional francesa da

“segunda fase” dos Annales, como Maria Yedda Linhares, João Fragoso, Francisco Carlos

Teixeira, Sheila de Castro Faria e Hebe Mattos, iniciaram nos anos 1970 um movimento

investigativo voltado para o estudo do mercado interno, a partir da sistematização de questões

metodológicas. Inovaram na utilização de documentos cartoriais, judiciais e eleitorais, dados

demográficos e fiscais, a fim de favorecer uma abordagem capaz de atender aos objetivos por

eles propostos3.

A partir dessa inovação metodológica apontaram novas problemáticas da história da

agricultura, particularmente os relacionados a sistemas de trabalho, uso da terra, produção de

alimentos, estrutura ocupacional, visões do cotidiano e das mentalidades. Como objetivos

principais propuseram compreender a história da agricultura composta de ritmos próprios de

sua prática, redefiniram conceitos, reformularam hipóteses e marcaram um movimento da

reprodução do mercado interno de alimentos da América Portuguesa, desconhecidos ou

ignorados até então.

Essa preocupação metodológica possibilitou a observação de sujeitos não inseridos no

modelo de produção escravista, caracterizados como formadores de uma produção

2 Especialmente o grupo de alunos ligados à pesquisadora Maria Yeda Linhares. Os quais buscaram enfatizar

uma presença camponesa no mercado interno de abastecimento colonial e do século XIX.

3 Essa inspiração se deu principalmente no racionalismo francês, a partir do qual criaram hipóteses e buscaram

fontes e fizeram uma história problema para a história da agricultura.

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fornecedora de mantimentos de primeira necessidade alimentar. Esses nem sempre possuíam

a propriedade da terra e mão-de-obra cativa como recurso de produção.

Esse perfil se assemelha ao que foi observado para os moradores da freguesia de San

Jozé do Taquary, os quais desenvolviam um sistema econômico misto, com maior presença de

atividades que envolviam a prática da agricultura e criavam pequeno número de animais.

Essas atividades eram praticadas de forma conjunta e a origem da fonte de sustento das

pessoas das próprias unidades e também poderiam inseriam os moradores dessa freguesia

num mercado interno local-regional.

A inclusão do Rio Grande de São Pedro aos interesses do Império Português na América

A inclusão do território localizado ao sul de Laguna, hoje município de Santa

Catarina, as possessões do rei de Portugal ocorreu a partir da expansão de algumas famílias de

bandeirantes paulistas que encontravam na mão-de-obra cativa do indígena uma das suas

principais bases de trabalho. Os paulistas conheciam a região desde o século XVII, pois esta

fazia parte do caminho para as Missões jesuíticas e, mais tarde, para as vacarias formadas com

a dispersão da criação de gado guarani4.

A ocupação da região mais ao extremo sul fazia parte da disputa entre as coroas

portuguesa e espanhola pela ocupação e definição dos limites territoriais de seus impérios.

Essa disputada somente veio a ser amenizada com o Tratado de Madri do ano de 1750, no

qual a ocupação portuguesa dos campos de Viamão é reconhecida pela coroa espanhola.

A chegada dos imigrantes açorianos se inicia a partir do final da primeira metade do

século XVIII, com o desembarque de famílias açorianas a partir de 1748 nos litorais de Santa

Catarina. No entanto, o cumprimento do Tratado de Madri não ocorreu de forma totalmente

efetiva, pois com a eclosão da Guerra Guaranítica em 1753 o encaminhamento dos migrantes

açorianos para o oeste teve de ser adiado e gerou o problema da dispersão desses e também

dos indígenas pelo continente de São Pedro.

Segundo Cleusa Maria Gomes Graebin (2006) “[...] uma vida em trânsito pelos

caminhos do Rio Grande de São Pedro foi o que a maior dos casais açorianos enfrentou desde

a sua chegada” (2006, pg. 207). Ao acompanhar algumas trajetórias dessa nova população,

através de justificações de matrimônio e registros de batismo, essa autora apontou as situações

4 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família e poder no Continente do Rio Grande (Campos de Viamão 1720-

1800). São Leopoldo: Oikos, 2014.

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de arranchamento em que se encontravam os povoadores açorianos, na primeira década da

segunda metade do século XVIII.

O dispor dos casais e famílias açorianas que aguardavam por acomodações acabou se

dando a margem dos rios Guaíba, Jacuí e Lagos dos Patos, como uma medida provisória. No

entanto, enquanto aguardavam fixação esses acabaram se espalhando pelo continente e

envolvendo-se em um processo de espera pela posse efetiva das datas de terra que durou

cerca de duas décadas. Segundo Paulo Silveira e Sousa:

Em Santa Catarina, a distribuição de terras iniciou em junho de 1753 [...]. Contudo,

numa zona de fronteira como o Rio Grande do Sul, a promessa da Coroa demorava a

se tornar efetiva. Os casais de ilhéus tiveram que esperar 20 anos para tornarem-se

os legítimos senhores das suas dadas de terra, integrando-se a uma economia que

estava já estruturada em torno da pecuária da criação de gado e da produção e

comércio de couros e de carne salgada. (SOUSA, 2014, p. 88)

A observação desse autor reflete uma situação que os açorianos vieram a enfrentar

após a chegada ao extremo sul do Brasil, pois a ocupação da terra que lhes foi prometida pela

Coroa não ocorre de imediato.

Helen Osório (1990) em sua dissertação de mestrado, ao estudar o espaço platino do

século XVII e XVIII, explica que a ocupação dos territórios coloniais era determinada por

interesses externos, no entanto lembra que “os espaços coloniais guardavam especificidades e

suas estruturas internas possuíam uma lógica que não se reduzia a essa vinculação externa”

(1990, pg. 17). A realidade encontrada pelos açorianos recém-chegados ao Rio Grande é um

exemplo dessa divergência de interesses externos e realidades coloniais.

A aproximação de alguns ilhéus com grandes proprietários através de relações de

cooperação, que nem sempre eram harmônicos, possibilitou as primeiras ascensões aos meio

produtivos e a inserção desses na economia da América Portuguesa5.

Se a ação de ocupação do espaço e acesso aos meios produtivos, a terra em especial,

foi um processo conflituoso, o processo ocorrido em seguida foi a diferenciação social.

Luciano Gomes Costa (2012) em sua dissertação de mestrado estudou a estrutura econômico-

demográfica na formação de Porto alegre e apontou a fronteira agrária fechada naquele espaço

regional, entre 1772 e 1802, como um dos fatores de diferenciação social entre produtores

rurais. Essa diferenciação foi ressaltada a partir da existência de propriedades de dimensões

variadas e a concentração fundiária, verificada na análise da Relação de Moradores de 1784.

5 HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila do

Rio Grande dos Registros Batismais (c.1738-c. 1763). Rio de Janeiro: PPGHS - UFRJ, 2006.

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Quando se aponta domínios produtivos de menor dimensão do que as estâncias,

podemos pensar em pequenas unidades produtivas. No entanto, essas não empregaram apenas

a mão-de-obra familiar. É preciso atenção para o referencial adotado para definir o que é ser

grande, médio ou pequeno produtor, já que o uso da mão-de-obra cativa esteve bastante

difundido entre os produtores agrários do final do período colonial brasileiro6.

A Relação de Moradores e os pequenos produtores de San Jozé do Taquary

Solicitada ao Provedor da Fazenda do Rio Grande, Diogo Osório Vieira, pelo Vice-Rei

do Brasil, Luís de Vasconcelos e Souza, em 1784, a Relação de Moradores que tem campos e

animais no Continente do Rio Grande de São Pedro tinha como por objetivo conhecer a

situação da distribuição de terras no extremo sul do Brasil e a ocupação dos moradores. Essa

documentação é uma espécie de um censo agrário do final do período colonial. Existem dois

rascunhos dessa, localizados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e uma

versão oficial localizada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).

Mesmo que a instalação das estâncias tenha sido fundamental na inserção da região sul

do Império português no mercado interno de alimentos, ao revelar a maior presença de médios

e pequenos lavradores que simultaneamente praticavam a agricultura e a pecuária, em escala

menor que a dos estancieiros, Osório (2007) verificou para o Rio Grande do Sul um cenário

longe de ser um amontoado de grandes produções pecuaristas.

A autora marcou um caráter produtivo amplamente dependente do trabalho familiar e

escravo e a não caracterização da extensiva ocupação da terra. A partir da análise da Relação

dos Moradores do Continente, de 1784, acompanhou a expansão econômica e demográfica do

Rio Grande e apresentou um esboço da estrutura agrária da região, ao final do período

colonial. Demostrou que em uma região até então apenas compreendida pelo domínio da

pecuária extensiva, havia uma ampla presença de domicílios de pequenos produtores

declarados como “lavradores”. Esses possuíam pequenos rebanhos, se comparados aos

montantes de animais dos estancieiros, e, muitos deles, uma média de poucos escravos7.

Ao analisar a Relação de Moradores de 1784, referente à freguesia de San José do

Taquary, atual município de Taquari, é possível verificar ampla presença de moradores que ao

6 Para o Continente de o Rio Grande ver caso de Porto Alegre estudado por Luciano Gomes Costa em sua

dissertação de mestrado -“Uma cidade negra: escravidão, estrutura e econômico-demográfica e diferenciação

social na formação de Porto Alegre, 1772 – 1802”.

7 OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto

Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

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serem questionados sobre sua ocupação principal declararam “viver de suas lavouras”. Como

é possível verificar na tabela a seguir:

Tipo de economia

declarada

Número de Moradores Percentual %

Lavouras 102 95,3%

Lavouras e Criação 05 4,7%

Criação de animais 0 0% Tabela 1 Ocupações declaradas na Relação de moradores de 1784.

Fonte: Relação de Moradores que têm campos e animais no Continente.

Ao analisar os dados referentes a essa freguesia é possível concluir que a principal

atividade desenvolvida por seus moradores, ao final do período colonial esteve amplamente

ligada à prática da agricultura. No entanto, o desenvolvimento da pecuária não foi inexistente,

pois quase todos os moradores declararam presença de animais em suas propriedades, apenas

quatro moradores declararam não possuir nenhum animal8.

Desse modo, podemos caracterizar a freguesia de Taquary como formada por

moradores que desenvolviam um sistema econômico misto, com maior presença de atividades

que envolviam a prática da agricultura e criavam pequeno número de animais.

Se comparada a outras freguesias como, por exemplo, Santo Amaro, esse perfil

produtivos dos moradores de Taquari fica bastante evidente, como podemos perceber na

tabela abaixo.

Quantidade de animais

declarados

Taquari Santo Amaro

1-100 75% 5%

101-500 25% 29%

501-2000 0% 33%

Mais de 2000 0% 33%

Tabela 2 Distribuição das reses de gado entre os moradores de Taquari e Santo Amaro em 1784.

Fonte: Relação de moradores que têm campos e animais no Continente.

A partir das informações apresentadas na Relação de Moradores de 1784 é possível

verificar que os imigrantes e descendentes de origem açoriana instalados na freguesia de San

8 Três dos quatro moradores que não declararam animais ocupavam áreas denominadas “chácaras no rossio” e

não possuíam títulos de posse da terra. Desse modo, é difícil conhecer o real tamanho dessas áreas e avaliar se a

prática da pecuária seria possível.

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Jozé do Taquary, se caracterizam dentro do contexto produtivo colonial enquanto pequenos

produtores, cujo foco econômico esteve centrado no cultivo de lavouras e em pequenas

criações de animais.

Como já demostrou Luciano Gomes Costa (2012), para Porto Alegre, a produção dos

lavradores se destinava para o abastecimento de níveis locais e também comércios de maiores

distâncias que envolviam principalmente os portos do Rio de Janeiro. O autor também

demostrou que foi a partir dessa variação de destino dos produtos dos lavradores que esses

garantiram uma margem de autonomia mediante o mercado externo.

O envolvimento dos lavradores com comerciantes do Rio de Janeiro pode ser

observado nos inventários post-mortem, nos quais é possível verificar uma relação que

envolve negociação e comercialização de produtos agrícolas e mão-de-obra escrava. Essas

transações apontando uma capacidade acumulativa de capital oriundo dos gêneros alimentares

produzidos pela agricultura prática por esses pequenos produtores.

A escravidão esteve amplamente distribuída entre a população colonial e representava

a base econômica da sociedade, e no Rio Grande não foi diferente. Helen Osório (2007)

constatou a partir dos inventários post-mortem e encontrou ampla presença de escravos entre

os pequenos proprietários. No entanto, o tamanho da posse escrava se mantem inferior, em

79% dos casos, ao número de pessoas do núcleo familiar. A mão-de-obra familiar era a

principal força de trabalho entre os pequenos produtores e sua complementação ocorria com a

aquisição de escravos.

No Mapa de população de 1798 e 1802 a presença de pardos forros, pardos cativos,

pretos forros e pretos cativos aparece e demostra o uso da mão-de-obra cativa na freguesia de

Taquary. A existência de forros pode indicar uma presença e utilização da mão-de-obra

escrava anterior a da realização do mapa e/ou processos migratórios. A capacidade

acumulativa necessária para acessar a mão-de-obra cativa é tema a ser desenvolvido em

trabalhos futuros.

Segundo Helen Osório (2007), apesar de se caracterizarem como os mais

representativos habitantes do Rio Grande, os lavradores eram o grupo que detinha o menor

número de terras e encontravam mais dificuldades em acessá-las. A presença de moradores “a

favor” declarados na Relação de moradores pode ser verificado também na freguesia de

Taquary.

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Forma de acesso a Terra Número de Moradores

A favor 34

Doação 3

Compra 13

Concessão do Governador 32

Herança 15

Ocupação 02

Sem registro 22

Tabela 3: Forma de acesso à terra declarada na Relação de Moradores de 1784 – Taquari.

Fonte: Relação de moradores que têm campos e animais no Continente.

Os dados apresentados na tabela acima indicam que o acesso aos meios produtivos, a

terra, não se dava de forma facilitada quando tratamos de pequenos produtores que

sustentavam as unidades familiares com a prática da agricultura. A freguesia de Taquary foi

ocupada inicialmente por imigrantes açorianos e a partir dos dados apresentados na Relação

de Moradores, demostra que a ideia de um Rio Grande como território de pouca ocupação e

desmembrado da dinâmica econômica colonial não é compatível com a realidade encontrada

pelos imigrantes recém-chegados a América.

A existência da forma de acesso a terra via “compra” e “a favor” pode ser um

indicativo de que ao final do período colonial na freguesia de Taquary já ocorria um processo

de monopolização da terra e um possível fechamento da fronteira agrária.

A confiança de que foi o modelo da plantation que organizou e definiu a sociedade

colonial brasileira impediu a compreensão mais profunda da história da agricultura. Essa

visão não conseguiu explicar a existência de um mercado entre rural e urbano, logo, ignorou

toda uma rede de articulações econômicas inclinadas ao abastecimento local e regional.

Os pequenos produtores de Taquary são um exemplo de produção agrícola

desenvolvida em dimensões bem mais modestas que as das estâncias ou plantations, cujo

objetivo esteve no sustento de pessoas da propriedade e, quando houvesse ocorria a

comercialização de excedentes para mercados regionais e mercado interno colonial.

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Conclusão

Os objetivos desse trabalho buscaram perceber a inserção econômica de pequenos

produtores de alimentos ao sul da América Portuguesa, no mercado interno ao final do

período colonial.

Ao analisar, a partir da Relação de moradores de 1784, o perfil econômico dos

moradores da freguesia de San Jozé do Taquary foi possível perceber uma ampla presença de

moradores que encontraram na prática da agricultura e na pequena criação de animais, o seu

meio de sustento e inserção econômica no mercado interno colonial. Quando comparada com

outras freguesias, é plausível verificar uma maior presença dessas características, pois a da

criação de animais é bem menos acentuada em Taquary, e o número de moradores que se

declararam “viver de suas lavouras” é superior aos encontrados para outras freguesias.

As culturas que se cultivavam nas lavouras de Taquary e as formas como essas se

inseriam no mercado interno de alimentos é tema a ser explorado. Os possíveis níveis de

acumulação capital que esses obtiveram a partir da agricultura também é uma possibilidade de

pesquisa.

A participação e a difusão da mão-de-obra escrava nas atividades agrárias e na

formação social de Taquary podem ser conhecidas a partir do mapa de população de 1798 e

1802 e apontam uma possível conexão entre os moradores da freguesia e comerciantes os do

Rio de Janeiro. A forma como essas relações são estabelecidas e gerenciadas é mais uma

problemática de pesquisa a ser investigado.

Fontes

AHRS (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul)

Relação de Moradores que tem campos e Animais no Continente, Códice 1198:

-Taquari

-Santo Amaro

AHU (Arquivo Histórico Ultramarino)

Mappa de todos os habitantes da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, devididos

pelas freguezias actuais da mesma Capitania no anno de 1802. Projeto Resgate: documentos

manuscritos avulsos da Capitania do Rio Grande de São Pedro.

ANRJ (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro)

Relação de moradores que têm campos e animais no Continente, Códice 104.

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