minha querida maman do meu coração€¦ · recados para todos e sou do coração seu filho muito...

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José de Saldanha, carta n.º 404 Pág. 1/1 Coimbra. 9 de Janeiro 1860 Minha Querida Maman do meu Coração Recebi hoje a sua de 8 e muito estimo sabel-a bem. Já procurei os livros, que me pede mas não os achei hoje, porque só fui a uma loja que os não tem. Estou muito contente com a obra do Raspail, que a Maman me deo, porque me tem entretido muito. Tenho estudado bastante estes dias, e continuarei, porque ganho sempre com isso por todos os motivos. Espero que a conversa do ultimo dia no seu quarto nada tenha causado, porque o meu desejo já lh’o manifestei, como n’uma carta, que d’aqui foi antes de ferias. Vejo que forão todos jantar com a thia Julia, hontem. Adeos. Peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho Muito Amigo e obediente Jozé. Recados da minha velha. Adeos. As minhas cartas vão sempre muito curtas, mas consola-me a ideia de que não attribuem isso a falta de amizade, tambem não aos muitos a fazeres. Por aqui houve muita bulha e cousas vergonhosas, quando foi das eleições e n’ellas se ia compromettendo muita gente, inclusive uma pessoa muito nossa Amiga (R). De novo nada sei. Dizem que os Jornaes vem cheios de descomposturas, mas não os quero lêr, porque seria mais uma occasião de vêr o peso que para muitos tem certas pequenas miserias, que só contra elles provão. Parece incrivel! Não sei se o que digo vai expresso de um modo exquisito e que provoca o riso, mas no fundo é essa a minha ideia. Adeos vou-me deitar: são 10 horas e ainda vou vêr as lições para amanhã e fiquem descansados que hei de tomar cuidado no candeeiro. Adeos. Peço que diga ao Menezes que não se esqueça do que lhe pedi carta de recomendação para um caloiro não digo isto por suppôr que elle se esqueça, que d’isso não o julgo capaz por certo, mas só para lembrar. O que peço é que não se escandalize tambem com a lembrança. Adeos. Adeos.

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Page 1: Minha Querida Maman do meu Coração€¦ · recados para todos e sou do Coração seu filho Muito Amigo e obediente Jozé. Recados da minha velha. Adeos. As minhas cartas vão sempre

José de Saldanha, carta n.º 404 Pág. 1/1

Coimbra. 9 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 8 e muito estimo sabel-a bem. Já procurei os livros, que

me pede mas não os achei hoje, porque só fui a uma loja que os não tem. Estou muito

contente com a obra do Raspail, que a Maman me deo, porque me tem entretido muito.

Tenho estudado bastante estes dias, e continuarei, porque ganho sempre com isso por

todos os motivos. Espero que a conversa do ultimo dia no seu quarto nada tenha

causado, porque o meu desejo já lh’o manifestei, como n’uma carta, que d’aqui foi antes

de ferias. Vejo que forão todos jantar com a thia Julia, hontem. Adeos. Peço muitos

recados para todos e sou do Coração seu filho Muito Amigo e obediente

Jozé.

Recados da minha velha. Adeos. As minhas cartas vão sempre muito curtas,

mas consola-me a ideia de que não attribuem isso a falta de amizade, tambem não aos

muitos a fazeres. Por aqui houve muita bulha e cousas vergonhosas, quando foi das

eleições e n’ellas se ia compromettendo muita gente, inclusive uma pessoa muito nossa

Amiga (R). De novo nada sei. Dizem que os Jornaes vem cheios de descomposturas,

mas não os quero lêr, porque seria mais uma occasião de vêr o peso que para muitos tem

certas pequenas miserias, que só contra elles provão. Parece incrivel! Não sei se o que

digo vai expresso de um modo exquisito e que provoca o riso, mas no fundo é essa a

minha ideia.

Adeos vou-me deitar: são 10 horas e ainda vou vêr as lições para amanhã e

fiquem descansados que hei de tomar cuidado no candeeiro. Adeos. Peço que diga ao

Menezes que não se esqueça do que lhe pedi – carta de recomendação para um caloiro –

não digo isto por suppôr que elle se esqueça, que d’isso não o julgo capaz por certo, mas

só para lembrar. O que peço é que não se escandalize tambem com a lembrança. Adeos.

Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 405 Pág. 1/1

Coimbra. 11 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Hoje de tarde sahi e posso dizer que tive um grande gosto quando encontrei o

carteiro, que me entregou a sua de 10. Parecia-me já que havia um seculo que não tinha

carta. Hontem tratei de arranjar os taes livros, mas ainda não os tenho, e não sei quando

isso será. São livros classicos muito antigos que não se encontrão hoje á venda: em

consequencia do que está um livreiro incumbido de os procurar. Por esta occasião

lembra-me pedir o nome d’aquelle livro, em que me fallou nas ferias, porque talvez o

arranje por aqui. Temos tido um tempo horrivel, e ha muito que não se vê sol. Tenho

escripto muito pouco e a razão é porque tenho estudado mais. Parece-me que as ferias

tambem me fizerão bem n’esse particular. O que é fóra de duvida é que a distracção é

em parte necessaria, porque o viver só com os livros sem sociedade alguma não dá em

proporção o proveito que se julga. Vejo o que me diz sobre o Papa, Imperador, etc. e

pode acreditar que tudo me pilhou de repente porque nada suspeitava. Sempre forão

jantar com a thia Julia. Que Universidade será essa cujas aulas se frequentão com tanta

facilidade? Á hora d’esta supponho-os a todos no theatro e espero que se divirtão. Eu

vou tomar chá, e depois deitar-me mas não para dormir. Estamos em meia semana.

Adeos. Peço muitos recados para o Papa, Manos, thios, primos, criados e Amigos e sou

do Coração seu filho Muito Amigo e obediente

Jozé.

Aceite recados do Bernardino.

Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 406 Pág. 1/2

Coimbra. 15 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hontem a sua de 12, e já sei porque fiquei um dia sem carta. Hoje tive

uma de 14 e só lhe digo que tenho, em consequencia d’ellas, tido os 2 dias cheios para

os que aqui tenho. A d’hoje sobretudo fez-me bem, porque, ha muito o digo, os

Domingos são dias criticos para mim. Se por um lado o não devem ser porque n’elles

ouve a gente Missa e é levada a fazer certas considerações, que nos outros não lembrão

tanto, por outro lado são-no porque, tendo uma manhã toda e a tarde, de que posso

dispôr, acho-me mais livre, mas só e isolado. Não é que não tenha por aqui um ou outro

rapaz de quem sou Amigo e um sobretudo de quem o sou de veras – o João –; mas não

podem supprir a falta da familia, que não é tão pequena como a muitos parece por

exemplo áquelles, que nunca a deixárão. Vejo que a respeito do famoso negocio, nada

ha de novo. Pois bem, confesso que por elle tenho estado em espinhos – mas que não se

afflija se nada se conseguir. Alma grande e deixar os mais! De mais estou persuadido

que tudo recebe a sua paga n’este mundo e por isso, se considerar o comportamento

passado do outro, em negocio similhante, nada tem a temer. Em quanto ás noticias que

me dá vejo que a sahida do Waleski tem outro alcance do que aquelle, que se lhe

suppunha. O nobre Marquez lá foi de novo figurar. Seja Feliz. É o que lhe posso

desejar, e não é tão pouco como isso. Uma das cousas que me consola é pensar que não

tenho odio a ninguem. É verdade que me podem dizer que ainda não me derão occasião

para isso, ao que eu responderei que o odio pode traduzir-se por varios modos. Está

passada uma Semana mais de Aulas e amanhã começa outra. Não tenho dado lição

ultimamente. Na 6.ª feira fui consultado sobre um ponto e na 5.ª feira fizerão-me uma

pergunta. Por aqui vamos andando sós, e assim o posso dizer, porque tudo quanto

conhecemos se tem ido. Peço desculpa a todos por não ter já escripto, mas estou muito

mandrião em o fazer, e esta é para casa. Por aqui nada ha de novo. Tive hoje bazar ao pé

de caza e com Musica. Ha 6 annos que aqui estou, nunca lá fui, e hoje o proveito, que

tirei, foi vêr-me obrigado a sahir de casa pela impressão, que me produzia a Musica.

Quando a oiço quero imaginar-me livre (?) e aqui acho-me preso por uma cadeia moral,

da qual é impossivel suppôr-me livre aqui. Não sei o que tenho dito. Muita asneira? Não

me arrependo. Tomára que me conhecesse bem para eu d’ahi poder colher fructo, e

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José de Saldanha, carta n.º 406 Pág. 2/2

peza-me muitas vezes ter sido e ser, em muitas occasiões, pouco ou nada expansivo,

podendo d’ahi julgar-se pouca amizade e confiança. Esta ultima pertence aos que

raciocinão como o faz o geral da gente e por isso não tem applicação a nenhum dos

meus – felizmente! Em todo o caso hei de procurar vencer-me. Peço muitos recados

para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 407 Pág. 1/1

Coimbra. 22 de Janeiro 1860

Meu Querido Papa do Coração

Acabo de ter um susto. É noitinha, está um tempo horrivel e vejo entrar pela

porta dentro o Luiz Adelino e o que imagino? Imagino que tenho alguem doente ahi em

casa, que por isso não tive carta e que elle vem da parte do Dr. Bernardino avisar-me

por bons termos. Felizmente não é esse o caso; pergunto tudo e o homem responde-me

que me vem visitar. Mas quem tal podia imaginar, quando elle sahe pouco? Em fim

fiquei descansado e tratei de o entreter. Mostrei-lhe o microscopio, e como o homem se

sahio dizendo que tinha feito uma maquina photographica pilhei assumpto para a

conversa e mostrei-lhe 2 photographias, que aqui tenho. Pobre homem, espero que não

levasse a mal a minha pergunta e agora, que sahio comecei eu esta. Fui á Missa, e n’um

pulo ao João Ferrão e desde as 11 horas que não vou á rua, nem tenções tenho d’isso.

Hontem foi o Concurso do Viegas. Foi bom, mas a materia não era bôa para brilhar

muito. Diz-se por aqui que o Marquez de Loulé foi chamado ao Passo para ser

consultado sobre os negocios do pais. É verdade? Falla-se já em dissolução das Cortes.

Não sei. Cada cabeça, cada sentença. Não julgue d’aqui que me occupo muito de

politica, nem em tal penso. Não porque o objecto não seja para isso, mas porque por em

quanto não me diz respeito por muitas razões. Tive hontem uma carta do Antonio, que

muito agradeço. Vejo que tem gozado de bailes e theatro. É o verdadeiro. Por aqui anda

o Tavora da Revolução, que vai ao concurso de Direito, dizem que levado a isso pelo

nobre Reitor. Aceite recados do Bernardino, Padre Carvalho, Calisto Velho, Barjona e

Raymundo. O João Ferrão sempre pergunta por todos. Adeus meu querido Papa do meu

Coração peço muitos recados para todos e sou seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 408 Pág. 1/1

Coimbra. 23 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 21, que muito agradeço e que veio atrazada. Escrevo hoje

muito á pressa porque tenho estado a lêr e já é tarde. Tenho estado a lêr um livrinho do

Paul de Réumsat em que apresenta alguns artigos que já tem publicado na revista dos 2

mundos. Depois de accabar esta vou lêr um livro do Emile Souvestre – Le Monde tel

qu’il sera – que me dizem ser divertido para entreter um bocado. Dei hoje lição ao

Antonino, e elle deo excellentemente. É por conta d’elle. Tive muito dó d’elle, coitado,

porque no fim agradeceo aos que o forão visitar durante o nojo pelo pai, e desatou a

chorar, e as lagrimas são dias de menos de vida! Coitado, era a 1.ª vez que ia á aula

depois d’isso. Adeos. Peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho Muito

Amigo e obediente

Jozé.

Amanhã escrevo mais.

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José de Saldanha, carta n.º 409 Pág. 1/1

Coimbra. 24 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Escrevi hontem muito á pressa e por isso torno a fazel-o hoje, e começarei por

dizer que espero que as taes contas não lhe tenhão dado muito que fazer. Por mais que

se faça parece que, ás vezes, com quanto mais cuidado se faz uma coisa, peior é. Mas

em fim é da ordem das nossas cousas errar. Hoje dei lição em Botanica. Amanhã faz o

Viegas a sua 2.ª lição. Recebi hoje a sua de 23 e começarei por lhe dizer, em resposta a

ella, que estou muito melhor, e espero que não julgue que eu tenho estado doente: tenho

tido um defluxo, o que não admira, porque com as Aulas, e, andando de sapato e meia,

por força se pilha humidade nos pés, estando o tempo pessimo, como está. Os feriados e

cavaco tiverão logar, não por causa de festas, mas por causa do Concurso e do outro

accontecimento, que ha dias referi. Vejo que o Marquez de Souza está deputado. Oxalá

que ande bem, pelo menos com senso commum, que estas palavras são hoje tão usadas,

que já a gente tem medo em as empregar. Já li o tal – Monde tel qu’il sera – que não é

máo e que acaba provando que sem fé, esperança, e caridade de nada servem todos os

progressos imaginaveis. Bate o egoismo pessoal e a ideia de que no dinheiro só consiste

a felicidade. Deo-me vontade de rir o que me diz sobre a sua visita. Recebi os 2 folhetos

do Raspail, que muito agradeço e ainda os não abri, porque estive toda a tarde a lêr o

livro, em que acima fallo. Em quanto ao que me diz sobre grosseria, respondo que é

uma cousa desagradavel para quem é d’ella victima, mas peior para quem a pratica e é

esta a verdadeira victima. Em todo o caso é mister dár desconto e vêr d’onde parte o

golpe. Não digo que seja este, com certeza, sempre o caso, mas quantas vezes não

podemos tomar por ella o que é acanhamento e resultado da falta de educação. Ainda

mais, para aquelles que a praticão de caso pensado, a melhor arma a empregarmos

contra elles, é a polidez com certa reserva, porque os vai ferir directamente e por mais

que busquem não achão desculpa para o seu modo de proceder, como succede quando

se oppõe a contraria. Adeos minha Querida Maman do meu Coração peço muitos

recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 410 Pág. 1/2

Coimbra. 30 de Janeiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 29 e uma do Antonio de 28, e ambas agradeço muito.

Estamos quasi no fim do mez e muito me tem lembrado que ha um mez estava eu

gozando da companhia de todos. Estou em vesperas de 2 Sabbatinas, e ainda me resta

vêr alguma cousa para ellas, mas as aulas amanhã começão só ás 11 horas, e agora

quero conversar um bocadinho. Tenho continuado a estudar todos os dias differentes

pontos, mesmo independentes das lições e ganho com isso, até passa o tempo

desapercebido. Por outro lado tenho recordado o Inglez, porque o estudo tem sido feito

n’aquelle Jornal Inglez, que me deo. Estou todos os dias persuadido que o melhor que

ha a fazer é estudar, até se obtem uma certa satisfação propria, que só pelo estudo se

adquire. De mais todos os dias se admira mais o partido que o homem sabe tirar de tudo

o que o rodeia. Achão-se pontos de relação entre todos os conhecimentos, e, se não nos

é dado saber tudo, podemos até certo ponto suspeitar o que resta a conhecer. A minha

pena é que os estudos não estejão montados aqui de modo que se possa aproveitar mais

e muito mais. Em França com o systema, que ha, mette-se, para assim dizer, a sciencia

pelos olhos dos individuos e evita-se muito trabalho que se aproveita em outras cousas.

Aqui não succede isso. É necessario cada um trabalhar por si, e mesmo isso não o pode

fazer porque lhe faltão os elementos. A sciencia consiste em adquirir certo numero de

factos, conhecidos os quaes, se possa entrar na averiguação de differentes phenomenos.

Mas aqui não se conhece essa verdade. Por exemplo ha um calculo muito massador,

n’uma lição, e que dá uma certa formula, por meio de um certo numero de

transformações, e em logar de o Lente o desenvolver, que o faz porque já lh’o

ensinaram ou pela idade, que tem, deixa-se isto ao estudante que perde uma noite com

esse trabalho infructifero, perdendo na aquisição de um facto, ás vezes de pouca

importancia, um tempo preciosissimo. Este methodo é absurdo. O que aqui se aprende

em 5 annos por outro methodo dá quanto muito para 3. O que succede é que as

intelligencias se cansão logo no principio e por isso são ao depois estereis. Por isto tudo

tomára tambem vêr-me d’aqui para fora porque se perde um tempo immenso em cousas

simples e ás vezes de 1.ª intuição, e tempo que não se recupera. Quando se chega a certo

ponto entendida uma cousa nunca mais esquece, mas aqui não se percebe isso. Ensinão

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José de Saldanha, carta n.º 410 Pág. 2/2

como ensinão os professores de Latim, que em logar de guiarem os rapazes pela razão,

os levam pela palmatoria obrigando-os a decorar regras, que não entendem. Aqui não ha

palmatoria, mas ha a ideia de que o Lente, não fazendo as suas verdadeiras funções, se

constitue n’um Juiz, nem sempre benevolo, quando chama á lição. Pouco posso, mas se

o podesse, apezar de filho da Universidade, havia de fazer-lhe uma guerra de morte, até

elles se emendarem. Pode dizer-se que o Lente não tem os elementos para fazer isto que

indico, mas a minha questão é differente – diz respeito á falta de zelo ou antes caridade,

com que alguns exercem o Magisterio. Adeos Minha Querida Maman do meu Coração.

Peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho Muito Amigo e obediente

Jozé.

Amanhã escrevo mais. Adeos. Para prova do que disse não consistirá a vida no

pensar e este não será baseado na collecção de factos? Adeos. Estas ultimas cartas tem

ido muito massadoras, mas desculpe. Gosto sempre saber se pensa comigo ou não.

Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 411 Pág. 1/2

Coimbra. 10 de Fevereiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Em resposta á sua de 8, começarei por dizer que muito agradeço o que n’ella

me diz e até me sensibilisei ao lel-a, mas que tudo é só e unicamente o resultado dos

bons exemplos e principios, que me tem, desde o berço, sido indicados. É esta a pura

verdade. Em quanto á historia que me conta, bem pode suppôr como estou. Que

loucura! Que consequencias não pode um similhante passo trazer consigo! Estou com

pena d’ella e de todos. Imaginava e ainda imagino que, quando se tem Amigos

verdadeiros como parentes chegados, ou ainda que o não sejam, que ás vezes são os

maiores inimigos, o sentimento mais natural é procurar parecer bem (não no sentido da

maioria dos janotas) e sobretudo quando se gostar d’alguem como é o caso. Creio que

sobre isto não pode haver duvida, e atrevo-me a dizer que o proprio J. está convencido

d’isto. Quem sabe se alguma idéa de gloria o levaria a fazer isto, já que pelo estudo

nada faz (não por falta de habilidade). Mas ainda então para que foi este passo? O meio

era simples, e a Maman encarregou-se de m’o indicar na sua ultima. Faz mal pensar nos

resultados que muitas vezes traz uma falta de pensar. Mas o rapaz não tem a culpa

principal. Não desejo mal a pessoa alguma, mas digo a verdade: a culpa é do tutor. Dár

dinheiro á larga a um rapaz, dár-lhe toda a liberdade, não investigar os seus usos e

costumes, são descuidos que não se podem jamais justificar! Sobretudo aquelle a quem

compete o logar de Pai, porque para este ha quasi sempre inclinação do filho, e para o

tutor nem sempre, o 1.º tem a cumprir uma obrigação imposta pela natureza, o 2.º uma

obrigação que lhe cabe, porque quer. Como ha de elle apparecer diante do Conselho de

familia? E ainda se fosse isto, o peior é a consciencia que o ha de arguir, e com razão.

Se quer ser homem politico, deixe os outros encargos; só de quando em quando

apparecem genios, que chamam tudo a si marcando em tudo o seu sello, e apezar do

tutor, agora em questão, ser premiado (o que nem sempre é grande recommendação)

não o julgo d’esses entes privilegiados. Não sei o que seguirá, mas digo que o novo

tutor deve ser homem religioso, porque é o modo de levar o rapaz, que tem bom fundo e

que tem sido victima, involuntaria em grande parte, de tudo o que tem succedido.

Dizem que é para admirar o homem que lucta contra a pobreza, mas, pergunto eu, não

será mais para admirar aquelle, que sendo abastado domina as paixões e os erros, que

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José de Saldanha, carta n.º 411 Pág. 2/2

provem da riqueza, ou que com ella apparecem? Aquelle tem um fim acima n’esta vida,

enriquecer; este tem outros, ainda mais nobres, de certo, como socorrer a pobreza, mas

as idéas do seculo não levão para ahi, e só o pode fazer se se guiar pela religião e com

esperança na vida futura. Com rigores nada podem obter. O homem culpado fica

contente, quando pode irritar-se contra os obstaculos apresentados pela fria razão, mas

quando se lhe falla a linguagem do 1.º dos Philosophos, fica desarmado e, o que mais é,

convencido do erro, em que andava. A quem caberá uma tal empreza? Não sei e, o que

mais é, não vejo pessoa alguma, no caso de o fazer. Mas engano-me. Conheço uma, mas

infelizmente a lei não se presta talvez a que ella a possa emprender e levar a bom fim.

Ha muito que se grita contra o vicio que a sociedade tem, de serem n’ella os direitos dos

homens differentes dos das mulheres. Todos o reconhecem, e não o destroem, porque os

homens são egoistas de mais para isso. E quando acabará isso? Talvez nunca, porque

para isso é forçoso que as mulheres fizessem uma revolução. Logo que se ponha em

pratica tudo o que a religião ordena desapparecerão essas desigualdades.

Amanhã espero carta sua. Adeos. Peço muitos recados para todos e sou do

Coração seu filho Muito Amigo e obediente

Jozé.

Peço que diga ao Antonio e Menezes, que o Corvo vai amanhã para Lisbôa.

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José de Saldanha, carta n.º 412 Pág. 1/2

Coimbra. 20 de Fevereiro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Acabo de ouvir a Ristoni. Estou enthusiasmado. Nunca esperei vêr tal.

Ouvir uma mulher que faz vibrar todas as cordas do Coração, que arrebata e eleva a

gente é o mais que se pode desejar. Ditoso d’aquelle que a pudesse ouvir

continuamente! Que maior felicidade pode haver n’esta terra do que viver com

aquelles que sentem verdadeiramente o que ha de bom e bello. O peior é que não

torna a representar aqui, parte logo á 1 da noite para o Porto. Ha uma direcção

estupida e depravada no theatro, que não se atreveu a garantir á 1.ª trágica do Mundo

2 enchentes, no theatro. Horror, 3 vezes horror. Envergonho-me de pertencer a uma

Academia (se merece esse nome), que tem representantes d’esta ordem. Que

vergonha, meu Deos! Vem um politriqueiro, como faz milagres, agrada. Vem uma

mulher como é a Ristoni, e que mais se pode dizer, é recebida com frieza. Derão-lhe

muitas palmas, muito bravo, mas não serião alguns dados por troça? Atrevo-me a

dizer, e não minto, que a maioria da platea, não estava no caso de a comprehender.

São aptos para comprehender todo o fossilismo, que reuna nesta sancta

Universidade, como sebentas e teorias, que ha mil annos estavão na móda. Perante a

naturalidade, o genio, ficam immoveis, quáes estatuas, verdadeiras estatuas, e

d’onde provém isto? Da pouca moralidade que por aqui reina. Não quero dizer que

fóra d’aqui seja maior, mas ha, para contrabalançar isso, o uso e vista do bom n’esse

genero e por isso, mesmo os menos sensiveis, são-no por esse lado, no momento

dado. Estou indignado com tudo isto! Em logar d’um Reitor, que manda examinar se

o estudante anda com as pernas grossas, venha um, que promova a moralidade, não

pelo systema jesuitico (como vulgarmente se diz) mas que disponha para o bem

corações ainda novos, que só querem direcção. Trata-se de nomear uma direcção

para o theatro, e por intrigas vis e infames, nomea-se uma incapaz de tudo, e qual é a

causa d’isto senão a corrupção. Se todos quizessem o bem de todos havião de

escolher gente capaz. D’aqui vão-se costumando e na vida publica fazem o que se vê

depois. Mas onde vou eu? Não sei. Só lhe posso dizer que me hei de lembrar sempre

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José de Saldanha, carta n.º 412 Pág. 2/2

com gosto das poucas horas, em que ouvi a Ristoni, porque apezar das horas serem

poucas, n’ellas vivi longos annos: a vida conta-se pelas sensações. Que linda cousa!

O 1.º acto, o 2.º, e o 3.º, tudo em fim, não ha nada a perder, quando ella entra em

scena, fica-se attento tot auribus, tot oculis. Adeos minha Querida Maman do meu

Coração. Peço muitos recados para todos e acredite-me seu filho Muito Amigo do

Coração e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 413 Pág. 1/2

Coimbra 2 de Março 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Espero que o Papa esteja já bom, e muito estimei saber pela sua de 1 que elle

ia melhor. Foi talvez alguma constipação pilhada á saida do theatro. Em quanto á minha

saúde pode estár socegada, porque estou bom. Muito agradeço tambem a sua de 29. É

verdade que senti a falta de carta, mas logo imaginei que algum motivo forte tinha sido

causa d’isso e, como não julgava que fosse falta de saúde, estava descansado. Em

quanto a tal descoberta, que se pretende verificar, é a da existencia provavel de um

grupo planetario entre o Sol e Mercurio, e como isso é difficil por causa do grande

brilho, que ha n’essa região, proxima do Sol, querem aproveitar-se da escuridão que ha

de haver na occasião do eclipse do sol de 18 de Julho de 1860. Este meio foi indigitado

por Faye a Le Verrier, que foi levado pelo calculo a suppôr a existencia d’esse novo

grupo. Que o mesmo Le Verrier indicou outro meio, que Faye tambem modificou

fazendo entrar tambem em acção a photographia. Parece-me que isto á aquillo a que a

Maman se refere na sua de 29. Tenho pena de não estar agora em Lisbôa, porque no dia

7 do corrente ha a maior maré do seculo presente, cousa que aqui não posso observar. O

que eu tomára é vêr-me livre de Coimbra. Acho-me aqui só de todos os que aqui

conheci. Foi-me isso hoje muito sensivel, porque arranjando as cousas do Manoel, fui

levado a pensar no que passei na rua dos Estudos e mesmo em Lisbôa antes de para aqui

vir. Faz tristeza pensar em tudo isso, mas ao mesmo tempo faz bem. Tambem hontem

recebi uma carta que muito me doéu. Ahi lh’a remetto. Eu nada posso fazer aqui, em

quanto que a Maman pode conseguir muita cousa, tudo. Não estará a pessoa, que a

escreveu, no caso de ser socorrida pela sua Associação?

Em quanto ao João Ferrão nada sei, nem procuro saber. Indo a Lisbôa, se elle

ainda ahi estiver, hei de fallar-lhe seriamente. Parece que está doudo. Ainda assim oxalá

que pare. O que dirá agora o Barruncho? Se o pilha não o larga. Fui hontem vêr o Dr.

Bernardino e o Souza, ambos fazem os seus cumprimentos. O 1.º já o tornei a vêr hoje.

Tambem hontem fui procurar o Padre Brito e offerecer-me de novo para o poder servir.

É muito bôa pessoa, e elle ficou muito obrigado pela lembrança da Maman, e faz

tambem os seus cumprimentos. Os jornaes vem cheios de um dito de El Rei ao tal

Vieira de Castro. É verdadeiro? Não o acho verosimel. Vejo que o Roberto não agradou.

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José de Saldanha, carta n.º 413 Pág. 2/2

Que desculpa dão os admiradores de M.me Lotti? Estou ainda em vespera de aula, e já

são 9 horas da noite. Esta carta vai uma misturada de tudo não lhe parece? Mas somos

assim feitos, e mal de nós se fosse o contrario! Ora alegres, ora tristes, não persistimos

no jubilo nem na dôr, mais de pressa n’esta, por isso que é mais frequente: aquelle raro.

Faz hoje annos que eu estive bem doente, e que mais uma prova tive do bem que me

querem. Era dia em que costumavamos sahir mais cedo do collegio, e jantár tambem a

horas differentes das do costume. Adeos minha querida Maman do meu Coração peço

muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Abraço o Papa e os Manos. Não se esquece da carta, não? Recebi hontem uma

carta do sempre Amigo Rozado. O que é feito do Menezes? Adeos. Esta chega ahi no

Domingo. Adeos. Adeos. Adeos. Faz impressão lêr a carta, mas o que posso eu? Nada.

Se estivesse em Lisbôa ia vel-o aqui – peço a Deos por elle – (que outros por mim

devem pedir).

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José de Saldanha, carta n.º 414 Pág. 1/1

Coimbra. 6 de Março. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Tive hoje uma carta do Antonio, que muito agradeço e muito estimo sabel-os

bons. Julgo tambem que o Papa está bom, felizmente. Hoje dei lição em Zoologia sobre

cousa que dizia respeito a climas. Mais huns dias e já tenho o gosto de os vêr. Fui esta

tarde dár uma grande volta com o Thomaz Palmella, pela estrada do Porto.

Muito me penhorou tudo o que o Antonio me diz na sua carta, mas o fim fez-

me pensar. Diz respeito a uma cousa que reputo acabada e espero que se convenção

d’isso tambem. Cada dia estou mais n’essa opinião, porque para melhor dizer nem em

tal penso. Não imaginem que estou zangado com o que o Antonio me diz, pelo contrario

só me prova a sua amizade. Como poderia estár zangado com elle, depois de ser tão

bom para comigo. Com isto não sou mais extenso. Peço muitos recados para todos e sou

do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Como são as cousas! Hontem de manhã tinha-me dito um rapaz Brazileiro que a Sr.ª

Condessa de Thomar tinha promovido uma subscripção para os orphãos: mal pensava

que era para os de Ajuda. Peço o favor de me mandar uma ordemsinha de 3 libras, no

caso de ser possivel. Em Lisbôa me explicarei sobre isso. Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 415 Pág. 1/2

Coimbra. 11 de Março. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Aqui estou outra vez a escrever-lhe e principiarei por dizer que fico com muito

cuidado no Papa, e que tomára sabel-o bom. Só hoje é que sei que elle tem tido mais do

que attaque de respiração. Espero que falle com algum medico, mas espero que não se

deixe guiar de todo por elle. Ás vezes a natureza quer que a gente tenha esses

incommodos, por algum tempo, para depois melhorar. O que deve fazer é passear

bastante a pé, tomár ar e levar uma vida hygienica, porque já que toco n’isto, com

franqueza digo que a que se leva ahi em caza pecca ás vezes por defeito. Não é mania

minha é a verdade. O que tomára é sabel-o bom. Muito agradeço a ordemsinha, que me

mandou. Em quanto ao que me diz da purificação do alcool, não foi excepção, porque

todos temos sido encarregados de differentes processos. Amanhã começa um, tambem

meu e d’outro, que formámos uma turma, muito delicado. O que faz desconsolação é a

gente sentir vontade e animo para trabalhar, e não o poder fazer: desejava que o que isto

pode aqui vir a ser para o futuro o fosse já, mas infelizmente não ha remedio senão ir

com o tempo. Bom era que o Rei se occupasse da educação mas infelizmente é nomeada

para Ministro d’Instrução Publica um homem, que não tem vergonha de sustentar que a

idéa de pezo especifico é absoluta, quando encontramos (que basta a simples razão para

isso) nos livros que, pezo especifico de um corpo é a relação do seu pezo, debaixo de

um dado volume, em relação ao de um igual volume de agua distillada e á temperatura

de +4º. E para que foi tudo isto? Para justificar uma asneira, que lhe escapou n’um

artigo. Forte toleima: fica mal dizer que se enganou quando hominis est errare, e não

fica mal sustentar uma toleima, reconhecida como tal por todos, porque não se pode

dizer que estes todos estejão tolos e aquelle não. E uma idéa d’estas foi apoiada por uma

alta dignidade! Em quanto á tal historia do Julio faz tristeza e sobretudo, porque na

questão apresenta-se tambem pouco amor de patria. O outro toma a parte dos francezes

com grande calor e não admitte que o outro chegue, pelo trabalho ao mesmo resultado

que outros. Quantos exemplos d’estes não apresenta a historia! Não faz tristeza a idéa

que o outro fez toda aquella bulha só talvez por inveja e nada mais? Uma nação é uma

grande familia, e assim como n’esta todos procurão não fazerem mal uns aos outros o

mesmo deve succeder n’aquella. O que eu não sei é para onde vamos: tudo é dezordem

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José de Saldanha, carta n.º 415 Pág. 2/2

e para o provar basta dizer que ainda antes d’hontem tive de pagar, para não ser citado,

uns 2 mil e tantos reis dos 4 por cento addicionaes da casa da rua dos Estudos, em que

estive em 58. Que bella fiscalização! Querião que pagasse tambem de 59 para 60 mas

mandei dizer que não o faço: era melhor fazer-me (a mim, não, ao Papa) pagar por todas

as cazas de Coimbra! Por outro lado gostava que teimassem n’isso, porque era um bello

assumpto para um artigo. Mas o mal é que ninguem abre os olhos a El-Rei. Todos

palacianos!!! Devia alguem fallar-lhe a verdade, ainda que fosse com o perigo de ter de

cavar depois para comer. Que ja hoje em dia não ha muito esse perigo, porque quem tal

fizesse era homem de genio, e, como tal, havia de poder achar outro modo de vida. E

quando assim não fosse, não deve saber tão bem o pão bem ganho?

Lendo a sua de 8 muito me fez rir a tal historia da velha. Hoje de tarde fui vêr

o Padre Brito e depois o Dr. Bernardino que tem andado muito incommodado. Parece

uma criança. Tendo andado tão constipado, mette-se na cama e, apezar d’isso, vai á

Aula todos os dias e assim perde o beneficio do abafo. O tal Compendio dá cabo d’elle.

Não quer que mais ninguem lhe vá reger a cadeira. Quiz hoje convencel-o de que deve

recolher-se de veras á cama por 15 dias, mas nada consegui. Disse-me que recebo uma

carta do Papa e pede recados para todos. Eu tambem os peço e sou do Coração seu filho

muito Amigo e obediente

Jozé.

Espero que o Papa esteja melhor e peço noticias. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 416 Pág. 1/1

Coimbra. 16 de Março. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 15 e estou socegado por saber o Papa melhor e todos os

mais bons. O que eu tomára é saber bem o que o Papa tem tido e que não sei se me tem

querido esconder. Vejo que tem immenso que fazer e por isso peço que não se prenda

com a escripturação para aqui, que lhe tira de certo tempo. Fui ainda agora ao Instituto e

lá vi no Jornal do Commercio a carta do tal Cunha sobre o naufragio do Mondego. É

cousa horrivel. N’aquelles casos é que melhor se deve entender o nada que somos sem a

ajuda de Deos, e melhor se pode apreciar o que vale esta vida, que pode passar com um

sopro. E quem não ha de acreditar na existencia de um Ente Supremo lendo tambem o

que tem havido na India com o corpo de São Francisco Xavier. E dizem que está

passado o tempo dos milagres! Forte loucura! Todos os dias milhares e milhares d’elles

passão desapercebidos á nossa vista, e entre elles está sem duvida a conservação da vida

dos differentes individuos, expostos a continuos desarranjos e influencias, que talvez

nunca o homem chegue a conhecer. Bom seria que tomassem conta de tudo isto para

não andarem insensiveis e fiados não sei em que. Mas tudo isto é resultado de pensarem

pouco ou mal, e de não darem a devida attenção a Quem criou tudo quanto vemos. Uma

prova d’isso temos agora n’essa vergonhosa historia da moeda falsa, na qual se torna

saliente o facto de um individuo ter elevado outro e hoje procurar deprimil-o, porque...!

Tambem vi nos Jornaes que tem havido suas desordens em Lisbôa. Oxalá que acabem

de pressa. Fazem com que se vá embora a esquadra ingleza, que tanto dinheiro ha de ter

deixado e continuaria a deixar ahi. O pobre Ferreri falleceu, coitado! Deos tenha a sua

alma em repouso. Em quanto ao tal tributo dos 4 por cento não se torna a renovar a

funcção porque o senhorio que agora temos obrigou-se a pagal-os. Peço muitos recados

para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo do Coração e obediente

Jozé.

Muito agradeço a lembrança de me mandar o jornal, mas talvez seja melhor

não o mandar por causa de já ter lido talvez aquillo, a que se referia.

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José de Saldanha, carta n.º 417 Pág. 1/1

Coimbra. 23 de Março. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Já estou nas vesperas de ir até a casa o que é bem bom. Hoje sai a uma

Sabbatina em Botanica, e agora estou contente escrevendo esta porque me parece que

arranjei um exercicio que me estava mettendo medo por não ver em parte nenhuma

tratado, pelo menos claramente. Tenho ainda mais 2 o que perfaz a quantia de 5 um dos

quaes entrego depois d’amanhã. Está um tempo muito bom e oxalá que continue. Muito

agradeço a sua de 26 e a do Antonio que aqui recebi hontem, por signal vinha de

caturreira, mas isso nada quer dizer, sempre Amigos. Devem fazer sahir o Papa, porque

o estár em caza sem tomar ar pode fazer mal. Ainda n’esse ponto precisamos caminhar,

convencendo-nos de que um passeio todos os dias é necessario para a saúde; se não

todos os dias pelo menos muitas vezes. Não ha nada mais ridiculo do que os ranchos

que pelas ruas se encontrão nos dias de festa e tão pouco costumados a isso que não

sabem andár pelas ruas. Por isso succede muitas vezes um individuo embasbacar com

outro, sem saber se ha de dár-lhe a direita ou a esquerda. A mim já me tem succedido

isso e a todos nós. Hontem devia ser a eleição. Vamos a vêr o que houve, que o

resultado principal era certo. É horrivel a tal morte da Sr.ª Condessa de Lumiares D.

Constança! Ainda no Natal a vi no theatro, por isso é bem verdade que esse golpe vem,

quando menos se espera, e que andamos como o outro com a espada sempre suspensa

sobre a cabeça por um fio. O que admira é como a gente resiste a tantas causas

destruidores que de continuo operão e muitas das quaes são desconhecidas e talvez

sempre o sejão. Vejo que já houve noticias do João Ferrão – o 1.º desappontamento

deve ter sido não poder sentar praça. Talvez d’ali venha um bom general. Tudo é

possivel excepto uma só cousa. Adeos minha querida Maman do meu Coração peço

muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 418 Pág. 1/1

Coimbra. 16 de Abril. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 15, que muito estimei e agradeço. Fico contente por saber

a Thereza melhor e todos os mais bons. Por fim não tive resposta á tal parte

telegraphica. Não sei se assim succedeu por confundirem o fim d’ella, ou por chegar ahi

fóra de horas, ou ainda por se ter perdido. Hoje começárão as Aulas e já está passado

um dia. Fiquei toda a tarde em caza a dormir. Hoje devem ter descansado do trabalho de

hontem os admiradores de M.me Lotti, devem ter ficado com os braços cansados de dár

palmas. Vejo que a Thereza gostou de me vêr e a mim succedeo-me outro tanto, e mais

gostei disso porque a achei melhor do que esperava. Agora ainda lhe resta, coitada, a

convalescença que é sempre incommoda, mas a par d’isto tem vantagens, porque quem

terá estado doente que não se lembre tambem com gostos dos carinhos e desvelos de

que foi objecto, e da agradavel impressão que experimentou ao sentir-se outra vez

entrando na vida que até então levava. Tudo pareceu bonito, tudo o incantou e ficou

apreciando melhor o grande bem que é ter saude e por isso o cuidado que n’ella

devemos ter. É um pouco o que vemos succeder com as victimas da tisica. De mais

estou persuadido que ninguem por certo qualquer paciencia uma doença do que a

Thereza, e isto por motivos, que todos sabemos. Deu-me vontade de rir a ideia de fazer

escrever o Luiz Candido, Chronista da noite do dia 15. Essa idéa já elle a tinha tido,

pois fallou-me n’isso no dia 14. Aceitem todos muitos recados do Raymundo. Eu peço-

os para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Hoje não posso ser mais extenso. Abraço a todos. Adeos. A Marianna Ignacia

agradeceu muito o presente, mas diz que não queria que fizessem despezas com ella,

coitada! Em quanto a pontos nada sei. Agora, que são quasi 12 horas da noite, sinto

foguetes, não sei porque. Tambem isso não é para admirar n’esta terra. Adeos. Adeos.

Até amanhã.

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José de Saldanha, carta n.º 419 Pág. 1/2

Coimbra 23 de Abril. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 22 e, muito estimo as boas novas que n’ella me dá, e fico

socegado. Tenho escripto muito pouco, mas desculpe-me. Esteve hoje um dia muito

desagradavel, mas apezar d’isso fui lá abaixo ver o Souza, a quem ainda não tinha

procurado, e depois fui dár uma volta para aquecer. Encontrei o Guerra que muito se

recommenda ao Papa e ao Antonio. Por agora não sei quando tenho Ponto, mas vamos

andando para elle. Quasi de Ponto estou eu hoje, porque amanhã arrisco-me a dár lição,

por ter já frequentado Geologia. Hoje em Zoologia explicou-se uma lição parte sobre

bichos da seda e muito me lembrou uma tentativa, que fizemos na Boa Morte, para a

criação d’esses animais. Já isso vai bem longe. Lembra-me bem que as taes folhas de

amoreira davão muito que fazer. Por fim foi morto o tal Ortega. Coitado! E ha gente que

nos queria fazer Espanhóes. Credo á Missa! diz a gente do povo. Tudo menos isso. Ha

muito desassocego por causa das taes medidas de fazenda, e oxalá que continuem para

deitar abaixo a imoralidade e os escandalos que se estão dando. Não ha nada como o tal

annuncio nos jornaes francezes, e de mais apresentando como membro da associação

dos larapios o nosso Ministro em França. O Casal Ribeiro é um miserável – copia

quanta pauta apanhou dos paizes estrangeiros e, como estas tivessem restrições, que não

servião para cá, omittia essa parte mas não fez substituições. Prova que aprendeu a

copiar o a b c, e nada mais. E dizem que é mister obrigar o povo a pagar mais, que pode

mas não quer fazel-o. Estão enganados! Todos querem pagar para ter caminho de ferro

– como se vê do enthusiasmo que houve agora em Setubal, e o que eu presenciei em

Santa Apolonia, mas não se quer pagar para ser mal empregado o dinheiro ou para

servir, Deus sabe para que. Um outro erro é um Ministerio suppôr, que ha de impor a

sua autoridade, quando a desobediencia e barulho provem de meia duzia, mas quando é

d’um paiz inteiro, não é assim. O que admira é como não se desfazem d’elles logo, e

esperão não sei o que. Mas não sei o que é. Todos gritão e pouco se faz. Falta talvez

mão vigorosa, que os guie e leve, e para a qual não haja contemplações, que são a mola

real de tudo o que por aqui se vê. Não fique julgando que estou de cabeça perdida, e que

faço parte n’alguma conspiração, mas quem pega n’um jornal e principia a ler, revolta-

se, zanga-se e pergunta se está em seu juizo ou se o perdeu. Tambem os taes Amigos

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José de Saldanha, carta n.º 419 Pág. 2/2

podem julgar assim: o juizo consiste em fazer tudo ás avessas. Tenho pena que o

Antonio não seja deputado, porque tanto o havia de atormentar que elle havia de dizer

por fim as verdades amargas na Camara e quando D. Magnifico lhe dissesse que dizia

só o que lhe convinha, havia de responder que tambem queria dizer o que convinha e

pôr a calva á mostra. Adeos minha Querida Maman do meu Coração. Peço muitos

recados para todos não esquecendo o thio Pedro e sou do Coração seu filho muito

Amigo e obediente

Jozé.

Abraço o Papa e os Manos. Aceitem cumprimentos do Souza. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 420 Pág. 1/2

Coimbra 28 de Abril. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hoje a sua de 27 e vejo que felizmente todos estão bons. A doente vai

melhor, mas não fiquei contente, quando li que já escreve, porque, tendo licença para o

fazer, póde cansar-se e abusar das suas forças. Deve descansar mesmo para que a

convalescença tenha um bom effeito. Já sabia da morte do Duque da Terceira, que todos

tem sentido. Era boa pessoa, segundo sempre tenho ouvido, além de outras qualidades

estimaveis, e parece bem que El Rey esteja tambem sentido. Diz a Maman – quando se

lêr – mas eu faço a pergunta, quem escreveu ou tem escripto? – Não digo escreverá por

muitas razões, e entre outras, porque a esse que escrever já hão de escapar muitos

detalhes. Já por muitas vezes tenho pensado n’isto, e digo que até com pena de não estár

em Lisbôa, porque ainda queria vêr se apanhava ao Rozado muitos apontamentos, que

elle tem, e que um dia se podem desviar sem d’elles se ter tirado proveito. Faz tristeza

pensar que de tanta gente, que tem assistido a tantos e tão grandes acontecimentos,

ninguem tenha tomado a resolução de escrever ou apontar alguma cousa sobre elles.

Quando mais não fosse para adquirir um certo nome, já que não se decidisse a fazel-o

pelo nome de todos. Já me tem lembrado que o Antonio podia emprehender esse

trabalho. Pouco que fizesse era immenso n’esse caso. E não era um bem bom modo de

empregar o seu tempo? Não sei se é assim em toda a parte, mas Lisbôa tem para mim

um grande defeito – todos trabalhão ahi pouco ou nada – e envelhece-se n’esse ocio,

que deve ser ao depois de um pezo horrivel, quando, olhando para o passado, se reflectir

que nada se fez, que não se tomou apontamentos de cousa alguma, que depois podessem

trazer agradaveis recordações, que não se beneficiou o seu corpo nem a sua alma – que

não se fez serviço algum ao proximo – que, n’uma palavra, se vegetou e se viveu para

comer, porque os mesmos theatros não são para muitos mais do que um meio de matar o

tempo. E a vida já de si é tão curta! Não digo isto para offender pessoa alguma, digo o

que tenho visto no geral d’esses, que dizem levar a vida divertida em Lisbôa: parece-me

que é este o modo favorito de expressar aquillo de que se devião envergonhar, porque

para muitos indica uma especie de degradação da especie humana! Será assim ou não?

Mas a principal causa de tudo isto é a pouca instrução que se recebe entre nós, e essa

mesma o modo porque é prestada. Ficam admirados a maioria dos nossos ao ler ou

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José de Saldanha, carta n.º 420 Pág. 2/2

ouvir dizer que na Allemanha se estudão por exemplo as sciencias naturaes com grande

enthusiasmo, e qual será a razão d’isto senão as idéas que entre nós se associão ao

estudo – vem-lhes logo á lembrança o estudo que fizerão do Latim sempre a tremer com

receio das palmatoadas ou dos carilhões, vem-lhes á lembrança tudo o que é enfado,

nojo e descontentamento, quando devia ser exactamente o contrario. E bem longe de os

arguir e condemnar não devemos antes ter compaixão d’elles, victimas de um methodo

barbaro e errado de estudo, em que nunca se attendeu ao desenvolvimento das

faculdades intellectuais, proprio de cada idade? E não será esta tambem a razão porque

entre nós apparecem poucos homens notaveis – essas intelligencias tornárão-se estereis,

porque não lhes souberão guiar os 1.os passos, não souberão amparar os primeiros vôos

da imaginação; apresentarão-lhes um positivismo que mata e esfria tudo!

Adeos minha Querida Maman do meu Coração. Peço muitos recados para

todos, abraço o Papa, Manos e thio Pedro e sou do Coração seu filho muito Amigo e

obediente

Jozé.

Vai esta escripta n’um papel bem pouco limpo e com muito má lettra, mas

desculpe. A intenção é tudo. Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 421 Pág. 1/2

Coimbra 3 de Maio. 1860.

Minha Querida Maman do meu Coração

Passárão 2 dias sem escrever, mas não foi por esquecimento. Os dias agora são

muito grandes. Vou á noitinha dár uma volta, venho para casa, tomo chá e quando mal

penso são 10 horas ou mais, e ás vezes, quasi sempre, com 2 lições em branco para o dia

seguinte que tenho aula ás 8 horas da manhã. O que succede é ir para a cama com

tenções de estudar muito e quando tenho passado os olhos pelo livro, fecho-os, apago o

candieiro e adormeço. Fica sempre recomendação para me acordar ás 5 horas da manhã,

mas de que serve isso se venho a acordar bem só ás 6. Leio a lição, levanto-me, almoço

e depois aula. Foi o que me succedeu hoje, e tendo eu feito hontem tenção de escrever

esta manhã não o fiz. Pode dizer-se que levei o egoismo a ponto de não querer sacrificar

um pouco de somno para escrever, mas a cousa é outra: a dormir não se sabe bem o que

se faz e quando recuperei os 5 sentidos era já tarde, porque ainda tinha muito que fazer

que no fim nada foi. Hontem recebi a sua de 1 e muito estimei as boas novas, que n’ella

me dava. Vejo que fez ler a minha carta ao Antonio. Dal-a-hia por muito bem

empregada se produzisse algum bom effeito. A tal pergunta que elle fez é de uma

ingenuidade immensa e que todos os que emprehendem alguma cousa fazem: o caminho

a seguir não se acha traçado, é necessario que cada um se dirija pela sua razão, não

desprezando nunca os conselhos dos outros. Em quanto a gente que dê esclarecimentos

não faltão. Ha dias descobri eu que o porteiro do collegio de São Bento andou na guerra

peninsular, fui fallar com elle e agora procuro ver se se arranja alguma hora boa para o

poder ir ouvir: o peior é que elle tem a vida muito presa, e eu tambem tenho alguma

cousa que fazer. O que não tem desculpa é a chamada falta de pachorra, e bem nos diz

alguem a respeito da priguiça.

Oh! listen not to that enchantress Ease with seeming smile.

A estas horas estarão provavelmente ouvindo o baile de mascaras e a ultima

noite de theatro durante este anno. Vi hoje no Jornal do Commercio, me parece, o

agradecimento feito a M.me Lotti pelo beneficio, que cedeu, e supponho ter elle sido

escripto pela Maman. Vai esta ahi chegar na manhã do jantarão. Imagino que ha de ser

uma actividade immensa, e que ha de tudo estár muito bom. Eu escrevi hoje uma

cartinha, que o Souza me pediu para o Papa, a quem peço que faça chegar a carta do

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José de Saldanha, carta n.º 421 Pág. 2/2

filho do Souza ás mãos do Bispo da Guarda, e que faça o que lhe parecer melhor.

Estamos a 3. Por em quanto não sei quando terei ponto, mas espero-o para a outra

semana, sem ser a immediata. Está isto por pouco. Tenho continuado a trabalhar na tal

demonstração. Reformei-a em parte – o principio – mas a base principal ficou a mesma.

Vamos a ver que tal ficou d’esta feita. Não tenho muitas esperanças. Quem me exutou a

isso foi o Raymundo, a quem a mostrei da 1.ª vez. Fui hoje ver o Dr. Bernardino, que

continua sempre Amigo e se recommenda muito ao Papa, á Maman, a todos. O pobre do

homem está adoentado. Quiz fazer das fraquezas forças, mas teve de parar na empreza.

Não vai á Aula. Toma leite de jumenta, e passeia de tarde, mas eu acho-o abatido.

Coitado! O Compendio projectado foi mal vindo. Oxalá que melhore! Está o Aguiar no

Ministerio e por isso probabilidades de haver bernarda. D’esta feita vão-se os conventos

das freiras, não lhe parece? Adeos minha Querida Maman do meu Coração. Peço muitos

recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Abraço o Papa, os Manos e thio Pedro. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 422 Pág. 1/1

(Para Teresa de Saldanha)

Coimbra 5 de Maio. 1860.

Minha Querida Mana do Coração

Com razão suppunhas que eu havia de ter um grande prazer em receber uma

cartinha tua, pois pela tua de 3 mais certo fiquei das tuas melhoras. Estou com medo

que tenha cansado o escrevel-a e por isso peço que não repitas: agora deve haver todo o

cuidado. Chego agora, que são 11 horas da noite, de casa do Souza, a casa de quem fui

tomar chá, e que me veio entregar á Marianna Ignacia accompanhado do Padre Abel.

Está uma noite linda, parece dia. D’hoje a 15 dias espero ter ponto: depois do ponto

actos e em seguida casa, se Deus quizer, que é de esperar que sim. Agora tenho 3

feriados. Domingo, 2.ª e 3.ª. É o peior que aqui pode succeder. Amanhã tenho reunião

da tal sociedade: supponho que é para tratar de um bazar, contra o qual faço tenção de

votar, porque não lhe reconheço vantagem alguma, sobretudo aqui, onde ha

necessariamente poucos compradores, e onde os premios devem ter poucos attractivos.

Saberás que tambem aqui se faz a festa do mez de Maria. Sempre me lembra o trabalho,

que, por causa d’isso, tinhas na Boa Morte. O Anno passado tive eu o gosto de as

accompanhar no 1.º dia d’essa devoção. A estas horas julgo que devem ahi estar todos

descansando do jantar. Adeos. Peço muitos recados para o Papa, Maman, thios, primos,

Rozado, Menezes e criados e sou do Coração teu

Irmão e maior Amigo

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 423 Pág. 1/1

Coimbra. 17 de Maio. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Aqui escrevo esta em todo o meu vagar felizmente, que sempre assim podia

ser se eu escrevesse de dia, mas não me posso costumar a isso. Recebi hontem a sua de

15. Fico atrapalhado com o que me diz do Antonio. Não percebo as taes dores de

cabeça, e tomára sabel-o bom. O que devem é fazel-o mudar de vida – essa sedentaria e

efeminada, que leva para nada presta. Fação-no ir para o campo, fação-lhe tomar gosto

pela lavoura, emfim tudo é preferivel a não fazer cousa alguma. Os que estão ahi não

sentem bem o pezo de tudo isto, mas os que estão de fóra aprecião-no bem. Espero

amanhã melhores noticias. É preciso que tomem uma resolução energica e elle será o

primeiro a agradecer-lh’o ao depois. A Thereza felizmente está bôa. Hoje recebi o

retrato do Papa que de novo agradeço. Poz-se hontem Ponto em Direito. Eu só o tenho

no fim do mez. O Sena aceitou a tal these, mas o peior é que estou com pouca paciencia

de acabar de estudal-a. Muito menos a tenho para as Aulas, que já não se podem soffrer.

Hontem fui outra vez aos Zouares. Em quanto a comparal-a com os Estudantes, é fazer

bôa idéa de mais d’estes, como comicos, que diga-se a verdade são pessimos, e como

não ha de ser assim se não tem naturalidade. O caracter dos portuguezes é pouco

expansivo, tristonho e d’isto se ressentem os nosso comicos, que quando querem

affectar o contrario se estendem necessariamente. Diga-se tudo – ha entre nós por em

quanto pouca civilização. Vejo o que disse o Gomes e muito agradeço o que a Maman

acrescenta, mas sobre isso nada digo: é negocio um pouco serio para se tratar por

escripto quando o podemos fazer de viva voz, muito mais quando não é de urgencia. O

Jardim segundo me dizem perdeu um bom par de contos de reis, tanto mais que tinha a

casa segura em metade do valor. Creio que conserva a tal Ingleza, segundo ouvi. Hoje

fui ver o Dr. Bernardino que vai melhor, e pergunta se viria o tal livro tão desejado com

o barão d’Hortega. O Dr. Raymundo tem tambem perguntado por todos. Adeos. Peço os

meus recados para o Papa, Manos, thio Pedro e todos os mais e sou do Coração seu

filho muito amigo e obediente

Jozé

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José de Saldanha, carta n.º 424 Pág. 1/1

Coimbra. 20 de Maio. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Vai para as 2 horas da noite, mas não quero deixar passar o correio de hoje

sem lhe escrever. Agora acabo de ouvir 2 horas. Recebi a sua carta de 17 e fiquei mais

socegado a respeito do Antonio, e contente por o saber em causa ordinaria. A Thereza,

pelo que vejo, está restabelecida. Imagino bem que a thia Marianna esteja afflicta com a

doença de M.me O’Sullivan May. É bem horrivel o abandono em que se devem achar os

protestantes no momento de passar d’esta para a outra! Se os que já por ahi passarão

podessem dizer o que ha e não ha n’esse momento terrivel, estou certo que todos se

convertião. Provém esse erro um pouco talvez da pequena attenção, que se liga á morte.

Li o outro dia que todos se costumão a vêr morrer os outros, julgando, ou melhor

pensando, sempre que nunca virá a sua vez, e é exacto. É bem verdade. E por isso é bom

a gente achar-se de quando em quando isolado, até mesmo nas trevas, porque se treme

mais facilmente e pensa-se em que nos deixamos preparar a morrer um dia. É golpe que

a todos ha de tocar, quando, ninguem sabe. Mas deixemo-nos tambem agora d’essas

idéas. Fui hoje á noite ouvir os Zouaves, ou antes hontem. Não ha mais nada a fazer, e o

espirito tambem precisa de recreio. Não digo que um homem não pense senão em si,

como de um deposito que se lhes confiou, e que, por isso, são obrigados a procurar

conservar em bom estado, espiritualmente e corporalmente. Sobre tudo do espirito, é tal

a sua influencia que chega a fazer esquecer os sofrimentos a que a bête está sujeita. Haja

vista ao que succedia com Voltaire, e com o mesmo Rousseau, que por fim chegou a

estár privado da consolação de dormir. Adeos minha Querida Maman do meu Coração.

Peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé

Abraço o Papa, os Manos e o thio Pedro, que supponho proximo a partir.

Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 425 Pág. 1/1

Coimbra. 25 de Maio. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Vejo que a minha priguiça fez com que estivesse 2 dias sem carta minha e por

isso com algum cuidado na minha pessoa. Peço desculpa de tudo isto mas o caso é que

tenho estado ultimamente um grande mandrião em escrever. Vejo que o thio Pedro já

partiu, e que vai com tenção de voltar em Outubro. Hoje começarão os actos em Direito.

Eu tenho Ponto no fim do mez, como já o disse por mais vezes. Já tenho a dissertação

sobre a unidade de especie prompta. Vou vêr se escolho uma para o 4.º anno. Para a

outra semana, sem ser a seguinte, devo fazer exame do 3.º anno. Faz muito calor.

Felizmente tenho passado bem, e espero em Deus continuar assim. Vejo pela sua de 24

que vai por ahi grande barulho. Deixal-os. É bom que se conheça o revers de la

médaille de muito menino bonito, que figura ninguem sabe porque. Assim fica-se

sabendo que é por ser capaz de ser maroto. Tive uma carta do Menezes a quem estou

obrigadissimo. Elle é muito bom rapaz e nosso amigo. Hoje terminou aqui a famosa

audiencia sobre moeda falsa. Ha uns poucos de dias, que durava. Estava implicado

n’isso um Padre, que parece que foi condemnado com outros a trabalhos forçados e

degredo perpetuos. Outros tiverão annos de prizão para castigo, como uma mulher. O

que faz mal é pensar que tanto vem a soffrer gente, que era simples instrumento, e que

os autores de tudo isso passeião de carrinho rindo-se do que succede. É de arripiar os

cabellos, mas é de suppor que a consciencia não esteja muito descansada, que alguns

procurão abafar os seus gritos. Adeos minha Querida Maman do meu Coração peço

muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

O Raymundo recommenda-se a todos. Adeos. Abraço o Papa e os Manos.

Peço que exija do Silva os n.os 49, 50, 51 do anno de 1859 da Science pour

Tous, que elle não entregou, estando por isso o livro incompleto. É bom pedir-lh’os já,

para ao depois não haver difficuldade n’isso. O João Ferrão não me escreveu, e por isso

não sei se ainda será tempo de entregar a minha carta. Se quizer escrevo outra. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 426 Pág. 1/2

Coimbra. 29 de Maio. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Espero que esta os vá encontrar bons e com boas noticias do Antonio. Acho

que foi muito bem lembrada a ida ao Riba Tejo e é de esperar em Deus que não lhe faça

mal. Pelo contrario, a agitação e o respirar de dia o ar puro de uma mata ha de fazer-lhe

bem. Por aqui continuão os actos. Hoje houve ainda festa em Santo Antonio, mas não

fui lá. Fui lá abaixo á noitinha, e a tarde passei-a metido na livraria a vêr uma cousa

curiosa a respeito da causa, que faz com que a agua não se precipite de um tubo, que

está tapado na extremidade superior e aberto na inferior, disposto assim verticalmente.

Diz-se que é effeito da pressão do ar, mas não é assim – entra tambem a capillaridade. O

caso é que a gente se entretem com isto e passa o tempo divertido e tranquillo. Amanhã

tenho ponto n’uma aula; depois d’amanhã na outra. Amanhã tambem devia ter ponto na

3.ª, mas não sei o que será. É ter o coração á larga e estar preparado para o que der e

vier. A Mariana Ignacia aqui tem sahido estes dias com o seu pallio rico – a figurar

tambem na romaria. Hoje á meia noite parte para Viseu o Ayres d’Ornellas, para receber

Ordens, e depois vir tomar o capello em Theologia. É incrivel que no seculo, em que

estamos, se obrigue ainda a tomar ordens para poder ser Dr. em Theologia. Um acto,

que deve ser filho da vontade livre, torna-se um meio para ganhar e não o fim. Resulta

d’ahi o que se vê. De mais pode ensinar-se Theologia, sendo solteiro ou casado. O

Marquez de Lavradio é um chavão em Theologia e não é Padre. Não digo isto com

referência a pessoa alguma, e muito menos ao Ornellas, que é muito bom moço e de

sentimentos bons. O Bispo de Coimbra não está agora aqui. Foi, qual vil capacho,

apoiar o Governo. É o principio da reciprocidade dos serviços. Por isso aqui ha o que se

vê. Ainda ha dias foi um Padre condemnado como moedeiro falso. Costuma-se dizer

que a civilização traz comsigo o aumento da criminalidade; é o facto que sempre se

observa, mais ou menos, pois se diminue em extensão augmenta em intensidade e ainda

fica em pé – Le monde marche – mas entre nós não me parece que seja esse o caso.

Tambem a corrupção que se observa, é effeito da constituição senão immediato, pelo

menos mediato. Não me julgue miguelista, mas deve concordar que os taes

contitucionaes (alguns) tem feito muito mal. Ainda assim antes isto do que o Rei

Senhor, como eu digo á Mariana Ignacia. Tenho pena que não tenha ahi o Instituto

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José de Saldanha, carta n.º 426 Pág. 2/2

jornal, para ver um artigo muito estupido, a meu vêr, do Forjaz, em que falla do

Marquez de Souza – jovem Dr. da Universidade incumbido de altas funções (cousa

parecida com isto)! É uma perfeita mascarada. Falta ver entrar em scena a outra parte

dizendo – Sr. Forjaz, Ornamento da Universidade, Distincto Economista (os distinctos

entre nós tem a grande habilidade de publicar obras apanhadas a dente aqui e ali) etc.

etc. É isto talvez ter má lingua, mas isto fica entre nós – eu hei de escrever alguma

cousa e então digo o que sinto. O bom é a gente conhecel-os. O mais, deixal-os.

Representem o seu papel á vontade! Quem quizer que lhe dê ouvidos! Não lhe parece?

Todos teem defeitos, mas quando a gente vê os taes chamados – faltas de senso – é para

dár graças a Deus de não entrar no numero. É de advertir que – faltas de senso – não

querem dizer o tal sens commum que me lembra de ter visto muito bem criticado n’um

livro, não me lembro de quem, e que tem por base o egoismo, a estupidez a inercia e

outros bons fundamentos, como esses. Adeos. Abraço o Papa e os Manos, peço recados

para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Esta já ahi chega no dia 31, e por isso vai com o fim especial de levar um

abraço meu para o Papa, a Maman e os Manos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 427 Pág. 1/1

Coimbra. 11 de Junho. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Muitos e muitos parabens pelo dia de amanhã. Muita pena tenho de não estar

ahi. Ha já huns poucos de annos, que assim succede. Vejo que estava indecisa sobre o

que faria amanhã. Provavelmente ou ficão em casa ou vão, para a de alguma das thias.

Hontem recebi a sua de 9. Vejo que não me expliquei bem a respeito do acto. Os

homens não sairão para fora dos pontos, tirada a pergunta do Antonino, de que por fim

me lembrei e a que respondi, mas não derão logar a que eu podesse fallar e fazer muito

melhor acto. Mas sobre isto ponto, que já massa. O Dr. Bernardino não escreveu,

porque o quer fazer no fim. Muito estimei saber que já houve noticias do thio Pedro.

Hoje espero a ordem do dinheiro para me poder matricular. Hontem tive uma carta da

thia Marianna e a tudo o que me diz vou dár cumprimento hoje. Hontem fui leccionar

um rapaz, e hoje tenho outro. Não ha remedio senão ajudar os afflictos. O de hontem

não me deu trabalho, e o de hoje espero que tambem não m’o dará. Repito á Maman e a

todos os nossos os parabens pelo dia d’amanhã. Não posso ser mais extenso porque

tenho de mandar esta para o correio. Abraço o Papa e os Manos e sou do Coração seu

filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 428 Pág. 1/2

Coimbra. 12 de Outubro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

São 10 horas da noite e aqui estou, sentado á banca, escrevendo esta, que

espero os vá encontrar todos bem, e começando outra vez a correspondencia,

interrompida pelas ferias. Aqui tudo está no mesmo estado: nada ha que possa distrahir

da lembrança de todos os que ahi estão, e por mais divertimentos, que houvesse, estou

persuadido que nenhuma influencia terião sobre mim. Foi esta uma das vezes, em que

mais me tem custado sahir, posto que não o dei a conhecer, porque tinha uma cousa nas

palavras e outra no sentido: mas foi melhor assim. De que teria servido chorar? A gente

deve estár tão costumada aos desgostos, que até das proprias lagrimas deve procurar

usar com moderação: uma lagrima é um dia de menos de vida. Aqui cheguei hoje ás 3 ½

horas da tarde, tendo tido uma jornada boa como muitos m’a desejárão. Tive a

felicidade de poder dormir a maior parte do caminho. O Amigo Luiz veio acompanhar-

me até Sacavem e estou certo que, por elle, tiverão noticias minhas. O thio Francisco

tambem me fez a fineza de me ir vêr ao caminho de ferro, onde deve saber que esperei

perto de 1 hora. Hoje jantou comigo o Manoel. Oxalá que tome bom caminho! O Dr.

Bernardino aqui está sempre bom e amavel. Foi esperar-me á estação. Recommenda-se

muito a todos: só está ancioso por cartas do Papa. Estive em casa d’elle de conversa,

agora á noite, umas 2 horas. A Marianna Ignacia está a mesma cousa, coitada:

perguntando sempre pelos Senhores Condes, Sr. D. Antonio e Menina. Gente conhecida

pouca ou nenhuma encontro. Imagine que, para maior mortificação, tive por

companheiro um rapaz, que vem para o 1.º Anno, acompanhado por um velho, que

muito e muito me fez lembrar do Caetano, coitadinho. Ao menos consola a idéa de que

se reconhecem os serviços que nos fez. Amanhã vou matricular-me e espero em Deus

levar até ao fim a empreza, em que me metti. Amanhã é o baile em Paço d’Arcos e

espero que se divirtão. Não sei se deva estár contente ou triste por lá não estár, mas a

idéa do devoir accompli inclina-me para o 1.º sentimento. Pode acreditar que tenho

muitas saudades de todos. Não fui talvez durante as ferias muito cazeiro, mas sei que

me desculpão isto. Houve tempo em que não tratei senão de estudar e isso com um fim

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José de Saldanha, carta n.º 428 Pág. 2/2

em vista: prehenchi, em parte, esse fim, e se não o fiz de todo por isso tenho soffrido

tanto que é justo que eu procure uma compensação. A estas horas ja ahi em casa se vão

recolher. Tambem vou fazer o mesmo e por isso acabo esta, pedindo muitos recados

para todos e que me acredite seu filho muito Amigo do Coração e obediente

Jozé.

Espero que esteja bôa da sua dôr.

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José de Saldanha, carta n.º 429 Pág. 1/2

Coimbra. 14 de Outubro 1860 – 6 horas da manhã

Minha Querida Maman do meu Coração

Levantei-me de proposito para escrever esta, porque não queria que ficassem

sem ter carta minha. Hoje espero uma d’ahi de casa. Hontem tive uma do Amigo

Rosado, dando o motivo, por que não foi vêr-me a Oeiras. Ainda não estou matriculado,

de modo que, em vez de partir d’ahi na 5.ª feira, podia tel-o feito no Sabbado ou mesmo

no Domingo, porque na 2.ª feira deve haver, sendo necessario, matricula até ás 12 horas

da noite. As aulas só se abrem na 4.ª feira, porque na 3.ª feira é a Oração de abertura.

Hontem á noite não escrevi, porque estive toda a tarde e parte da noite a arranjar os

livros e fiquei cansado. Foi bom, porque era arranjo, que tinha de fazer, por força, e

assim já está feito. Hontem mandei uma parte telegraphica, que espero tenha chegado a

bôas horas. Ia n’ella uma recommendação, que me tinha feito estár em espinhos todo o

tempo. Amanhã conto receber alguns detalhes sobre o que se passou. Finalmente ficou

certa gente descansada com a minha vinda, que Deos queira que não me seja prejudicial,

pois hão necessariamente de lançar mão d’essa arma contra mim. E se fosse só essa,

bom seria! Em fim ha de ser o que Deos quizer, mas o mal é que ás vezes custa-nos e

muito sujeitármo-nos aos seus decretos. Não sei se estou muito massador? Se o estou,

peço desculpa d’isso. Estou fechado entre 4 paredes, por companhia os livros e a

Marianna Ignacia, e por isso, se não desabafar, escrevendo, abafo de todo. Está o tempo

mudado; parece-me que vamos ter chuva. Tomára já as aulas abertas, porque quando

mais cedo começarem mais cedo acabarão. O que digo é que é necessario fazer um

grande esforço para ainda estár aqui. Vejo todos os rapazes do meu tempo já

empregados, já arranjados e com seu destino, alguns com muito poucos estudos, e eu

acho-me ainda aqui agarrado á corda do sino á espera não sei de que? Das cartas. É

verdade. Das cartas, em que oiço fallar, ha não sei quanto tempo, e que muitas vezes se

resumem no nada. É destino do homem que aquillo, que concorre para o seu bem estár,

e para o seu desenvolvimento, é tambem aquillo, que faz que elle nunca gose do

presente, occupando-se sempre do futuro, com inquietação. Não posso escrever mais,

porque se aproxima a hora de tirarem as cartas da caixa. Peço muitos e muitos recados

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José de Saldanha, carta n.º 429 Pág. 2/2

para todos os de casa e para os amigos e tenho o gosto de ser seu filho muito Amigo do

Coração e obediente

Jozé.

Não fique inquieta com a leitura d’estas linhas, porque pode ter a certeza de

que sei qual é o meu dever e a minha obrigação: e não digo isto por basofia. Adeos.

Adeos. Até logo.

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José de Saldanha, carta n.º 430 Pág. 1/2

Coimbra. 17 de Outubro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

A sua cartinha de 15 causou-me hoje uma bem agradavel surpreza, porque se

por um lado tinha esperança de ter carta, pelo outro parecia-me que não devia ter. Vejo

que as minhas cartas teem ido intelligiveis, mas, como entendo, que não se deve aceitar

o que se não pode receber, mesmo quando com isso se possa desmerecer, por isso digo,

francamente, que, quando escrevi as minhas primeiras cartas, não reparei na lettra;

depois de as ter mandado é que reflecti n’isso e hoje que me falla n’isso sinto que devo

continuar no mesmo systema, e faço-o com o maior gosto, pelo proveito que d’ahi tira.

Se as mais das vezes escrevo mal não com intenção de assim o fazer, é porque tenho

muito pouco que dizer, ás vezes pouco tempo de que dispôr e então escrevo pelos ares.

Parece-me que achou uma parte da minha carta enigmatica, mas o enigma resolveu-o

sem pensar n’elle quando disse – contentaste completamente e na verdade o que eu

sempre procurei foi tornar o completamente ainda mais completo. Infelizmente só

respondo por mim e das poucas-vergonhas dos outros não tenho culpa. Vejo que

continua o systema das janellas fechadas. Talvez julguem que eu ainda por ahi estou.

Tomára saber se o Antonio creado lá foi na 2.ª feira e em que dia lá torna em

consequencia do que eu mandei dizer ao meu Mano, que estimei immenso saber já bom.

As patuscadas do Papa com o Soveral dão-me sempre immensa vontade de rir, porque

imagina a gente logo que devem haver episodios magnificos. Fez-me saudades a sua ida

a cavallo acompanhada pelo José Cocheiro, pois fez-me lembrar o que tantas vezes

succedeu na Alfarrobeira. A tal D. Maria vai-se tornando um bom emplastro, pelo que

me diz. É incrivel a mania geral de se metterem nos negocios alheios! O que importa

que os outros fação o que quizerem. Deixem ao menos liberdade plena a esse respeito.

Hoje abrirão-se as Aulas. As minhas são das 12 ½ horas ás 4 horas da tarde. Sou

obrigado a almoçar bem ás 10 horas e janto só depois das Aulas. Já esta noite estudei

alguma cousa, e espero em Deos levar esta Cruz ao Calvario. Está um tempo muito

bonito e muito me tem lembrado que o aproveitem ahi bem em passear. O João sempre

partio. Sempre ficou com o mesmo Tutor. Agradeço muito o final da sua carta pois é

mais uma prova da sua amizade. Estão dando 12 horas da noite e por isso concluo esta

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José de Saldanha, carta n.º 430 Pág. 2/2

pedindo muitos recados para todos e que me acredite sempre seu filho muito Amigo do

Coração e obediente

Jozé.

Peço que diga ao Antonio que não se descuide do meu negocio, e que não

despache. Adeos. Se souber alguma cousa espero que m’o mande dizer. Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 431 Pág. 1/2

Coimbra. 23 de Outubro 1860 7 horas da manhã

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hontem a sua de 20, ainda com data de Oeiras, mas, pelo que me diz,

supponho que pouco mais se demorarão ahi. Deve-lhes custar ir para Lisbôa estando o

tempo tão bonito, tanto mais que o sitio da Annunciada não é dos mais apetitosos. O

que vale é a casa ser grande e os 2 jardins, que fazem respirar melhor ar: se não fosse

isso era um verdadeiro suicidio. Peço que não me falle outra vez no que eu disse ao

Antonio, porque põe-me em espinhos, pois sei que o meu dito foi injusto e tambem logo

o disse. Já aqui está o Viegas. Tem estado doente. Foi elle o 1.º a fallar sobre a historia

dos premios, e disse que a mais saliente injustiça d’este anno foi comigo. Concordamos

ambos, que era cousa que não valia a pena pensar mais um só momento. O que houve

por causa d’isso em Lisbôa direi. São miserias que a mão recusa-se a escrevel-as.

Tambem me disse que no caso de me convir, por algum motivo, vir ao 6.º anno, que o

fizesse, mas a isto respondi que o fazer isso era a minha morte, porque tomando eu isto

dos estudos a peito, como tomo, podia ser-me fatal esse passo. Antes burro vivo do que

Doutor morto diz o ditado, mas a 2.ª nem aqui se podia verificar, porque antes d’ella se

dár ou estava morto physicamente ou moralmente – doudo ou muito doente. Agradeço

muito as recommendações, que me faz sobre a minha saúde. Vou andando menos mal, e

em quanto a comida procuro tel-a o melhor que é possivel! Estamos na 2.ª Semana

d’Aulas. Na 6.ª feira dei lição ao Thomaz d’Aquino. Hontem devia repetir-se a scena,

mas elle não foi lá. Ficou adiada para hoje. A aula de Agricultura é muito bonita e

interessante – tem-se como divertimento. Já sabia da ida do José Luiz a Mafra para uma

caçada. Vejo que se tem procurado demorar o casamento da Nympha. Hontem á noite

deve ahi ter havido alguma novidade. Vamos a vêr em que dá tudo isto, com a ajuda de

Deos. O que não sei é explicar bem como se conseguiu o que já existe. Alguma vez

havia de andar a roda a meu favor. A tal gente, que de nada sabe, deve fazer um juizo

curioso a meu respeito, mas o peior é que cahirão no ridiculo, talvez sem o quererem.

Querião evitar-me essa mancha que ficou para ellas. Mais uma vez prova que gente

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José de Saldanha, carta n.º 431 Pág. 2/2

cega não sabe o que faz, mas é a gente cega que não tem por freio a moral e a religião,

porque estas fazem sentir-se ainda nos maiores desvarios. Por exemplo um homem que

quer vingar-se d’outro, ou não o faz, ou, se o faz, não é traiçoeiramente. Adeos. São

horas de mandar esta. Recados a todos. Seu filho muito Amigo do Coração e obediente

Jozé.

Espero as cartas d’amanhã. Adeos. Logo continuo.

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José de Saldanha, carta n.º 432 Pág. 1/1

Coimbra. 24 de Outubro. 1860 7 horas da manhã

Minha Querida Maman do meu Coração

Hontem fui obrigado a acabar de escrever á pressa, e tencionando escrever á

noite, não o fiz. Fui dár um passeio á noitinha, o que não fazia ha muito, pela estrada de

Lisbôa, e não imagina como aquillo estava bonito. Estive lá até perto das 7 horas, que

vim para cima. Cheguei a casa, sentei-me á banca e estive a lêr até ás 11 horas, que me

fui deitar. Hontem dei lição de novo no Thomaz de Aquino. Relendo a sua de 20 fico

espantado com o que me diz do thio Saldanha, não pelo acontecimento, porque já se

previa isso, mas pela sua resolução. Os sonhos que fazia de ser millionario dentro de 3

annos ficárão em nada. O que me dá immensa vontade de rir é a resolução tambem

repentina, que o thio Luiz tomou a respeito de carruagens, e que ha muito devia ter

tomado. É novo assumpto de conversa. O D. Antonio de Almeida, pelo que me diz, vai

figurando lá por fora. Ainda bem que assim é, por elle e por nós Portuguezes. O que não

tem duvida é que elle é muito bom rapaz e instruido. Estâmos já no meio da 2.ª semana

de Aulas: vai isto a correr. Lembra-me que talvez tenhão vindo hontem para Lisbôa,

pois sei que a 24, 25, 26, havia reunião de Associações. Eu tive a minha no Domingo

mas o peior é que está em muito máo estado. O Dr. Bernardino aqui tem perguntado

sempre por todos, assim como o Raymundo. Adeos minha Querida Maman do meu

Coração peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo do

Coração e obediente

Jozé.

Tenho um pedido a fazer, é o seguinte: se me póde mandar antes do fim do

mez uma ordem para aqui receber algum dinheiro. Estes principios e fins de annos são

terriveis. E fallão em ensino gratuito! A pezo de ouro o chamo eu. Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 433 Pág. 1/1

Coimbra. 28 de Outubro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Hontem recebi a sua carta de 25 e muito estimo sabel-os bons. Vejo que,

segundo o Soveral me disse, tencionão vir amanhã para Lisbôa. Este deve a estas horas

ter chegado a casa. Ia muito constipado e triste, não fallando em volta. Disse com sua

graça que andou durante 72 horas despedindo-se dos Rio-Maiores. Já devem saber que

o Manoel Ponte foi-se para Lisbôa, sem que eu e o criado de tal soubessemos. Imagino

que isto deve ter custado muito aos thios e é para isso. Admirou-me tanto mais quanto o

rapaz parecia mais socegado e effectivamente houve cousa, que o fez dár esse passo.

Qual foi, não sei. Vejo que a parte telegraphica do Antonio não foi mandada por causa

do que eu julgava, de modo que posso escrever ao Sr. Sequeira e o que eu julgava ter-se

passado com o Antonio criado não se passou. Ainda bem. O dito da tal Senhora

Viscondessa nada quer dizer – indica ou muita curiosidade ou desejo de atormentar

alguem e, como não acredito que se dê o 2.º caso, estou pelo primeiro. Tomára saber se

a minha carta é entregue ou não, porque no caso de o ser e de saber o que diz o Aug.,

quero escrever outra, quando mesmo seja a ultima. Em todo o caso tenho a consciencia

descansada, pois não fiz nada que podesse ser em prejuizo de 3.º. Ha de chegar o dia de

o pagarem, nem digo isto com rancôr porque é cousa, que não tenho a ninguem, mas

pela forte convicção de que tudo o que faz tem a sua recompensa, mais tarde ou mais

cedo. O que os outros dizem é cousa de que não me importa, e é o melhor systema.

Hontem fui chamado em Mathematica, porque na 6.ª feira tive feriado. Hoje e amanhã

são dias feriados. Na 3.ª tenho Sabbatina no 5.º Anno Philosophico. Póde estár

descansada que os dois 5.os não dão cabo de ninguém, pelo menos, segundo o que vejo.

Está tempo de chuva e temos o máo tempo á porta. Adeos Minha Querida Maman.

Abraço a todos e sou do Coração filho muito Amigo e obediente

Jozé.

8 horas da noite.

Espero que cheguem bem a Lisbôa. Tenho aqui umas conchas muito bonitas,

que me derão. Hontem á noite estive com o Dr. Bernardino, que pede muitos recados

para todos. Abraço o Papa e os Manos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 434 Pág. 1/2

Coimbra. 29 de Outubro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi a sua de 27 que, pelo que vejo, foi escripta debaixo de uma certa má

impressão que lhe causárão as minhas de 25. Não me admirou isso, porque deveras,

quando escrevi, estava estonteado e pouco a sangue frio. Tanto conheci isso que lh’as

remetti todas, para que ahi julgassem o que era mais conveniente fazer. Vejo que

escreveu ao Antonio e por isso espero carta d’elle, mas em todo o caso penso que é

melhor rasgar o que d’aqui mandei. Em fim espero, como disse, resposta para saber se

devo escrever outra. Póde acreditar que acho muita razão a todas as suas considerações,

mas ha occasiões em que não se pensa. Direi mesmo mais: succede muitas vezes que

um sentimento se apodera de um individuo, mesmo dizendo a razão que não deve ser

assim, o qual augmenta em razão das difficuldades, que se lhe oppõe. Em quanto a eu

adoecer, pode estár descansada que estou bem de saúde e mesmo do incommodo, que

ahi tinha, estou, póde dizer-se bom, porque ha dias que desappareceu. Tambem pode

estar descansada a respeito das aulas, porque não as abandono nunca. Sei bem apreciar a

obrigação, em que estou, de as seguir e de procurar cumprir a ellas. É até isso bem bom,

porque quando leio, nem penso em mais nada. Podem fazer-me o que quizerem, que

nada sinto. Hontem e hoje tenho andado a lêr um livro, em que muito tenho ouvido

fallar, mas que nunca aqui tinha visto: é a Constitution de L’Univers pelo Azaïs.

Tambem hontem li um folheto – Conférences Astronomiques, que agora teem logar em

Paris, em que se dá uma grande batida á eschola de Newton e se mostrão os seus erros.

Até me succedeu uma cousa exquisita: dizem os livros que o movimento de translação

da terra tem logar de Occidente para Oriente, mas não dizem mais nada: ora succedeu

que o anno passado pensando n’isto e fazendo as minhas figuras não me podia

conformar com similhante cousa e tinha razão, porque hontem lendo o tal folheto vi

claramente desaparecerem as difficuldades. Succede muitas vezes que os homens de

sciencia não entrão na apreciação minuciosa de certos principios, que admittem, como

axiomaticos, e o resultado é que, se alguem pensa n’elles e não se conforma com elles, é

tratado por doudo. No caso presente embóra digão que quer tudo dizer o mesmo não é

assim; porque no rigor, das palavras de Occidente para Oriente não se entende o mesmo

que de Oriente para Occidente, como deve dizer-se. Amanhã tenho uma Sabbatina em

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José de Saldanha, carta n.º 434 Pág. 2/2

Agricultura. Quando tornar a escrever mandarei dizer os pontos dados para a discussão.

Hoje tive feriado. Na 5.ª e 6.ª tambem não tenho aula. O Manoel para ahi deve estár.

Estou com muito dó dos thios. Nunca vi resolução tomada tanto a segredo. Foi-se sem

se poder impedir isso. O motivo da ida tambem já o suspeito, e, se acertei, não ha de dar

pouco trabalho aos thios impedil-o de caminhar. Adeos Minha Querida Maman do meu

Coração. Abraço o Papa e os Manos e sou do Coração seu filho muito Amigo e

obediente

Jozé.

Espero que fique mais descansada com esta e em todo o caso póde estár certa

que sei qual é o meu dever, quand même. Adeos. Remetto uma continha, e muito

agradeço a remessa, que hontem me chegou. Adeos. Adeos. Vai na conta uma verba de

livros de 8100 rs, porque no 5.º anno Filosofico não dão todos os livros precisos, dão 1

só e fui obrigado a compral-os de fóra. Adeos. Adeos.

Espero que tenhão chegado bem.

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José de Saldanha, carta n.º 435 Pág. 1/2

Coimbra. 29 de Outubro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Muito e muito agradeço a sua de 27 escripta no barulho da mudança. Espero

que tenhão feito tudo o menos incommodamente, que é possivel, porque incommodo ha

de haver sempre n’essas occasiões. Hoje foi a tal Sabbatina. Os pontos erão os

seguintes:

1.ª Parte

1.º Critica das definições da Agricultura.

2.º Deve admittir-se a separação e independencia da Agricultura e Zootecnia?

2.ª

1.º Quaes são as relações da Agricultura com as outras sciencias

Philosophicas?

2.º Divisões da sciencia Agricola.

3.ª

1.º A Agricultura considerada como sciencia, como arte e como officio.

2.º Vantagens e importancia da Agricultura.

3.º Parallelo entre a industria rural e os outros ramos de produção.

4.ª

1.º Resenha das principaes causas do atrazo da agricultura entre nós.

Pelo que vê o programma era immenso e apenas se tocou em 3 pontos. Eu fui

2.º defendente e argumentárão-me na 2.ª divisão da 1.ª Parte. Tive ao principio minhas

colicas, mas pouco durárão de modo que, quando fallei, estava como em casa. O motivo

era o não ter ainda fallado n’aquella aula e o estár a casa com muitos estudantes mesmo

de fora. Se o Curso não fosse tão heterogeneo {estudantes do 5.º anno Medico, do 5.º

anno Mathematico (eu), de Direito e os filhos da Aula} ia tudo bem; mas ha gente, que

quer subir, ou, pelo menos, deprimir os outros, como succedeu hoje com o meu

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José de Saldanha, carta n.º 435 Pág. 2/2

arguente, que quiz saltar e por isso fez-me tambem saltar e isso assim não tem geito,

tanto que lhe disse que não valia o caso que elle se alterasse e que eu, pela minha parte,

havia de expôr, sem disfarce, o que me lembrasse, e que muito estimaria ser elucidado

por elle sobre qualquer ponto, em que estivesse enganado. Entendi que devia dizer isso,

porque o tal Amigo anda muito cheio de si e então não admitte nada a não ser o que diz.

À sahida dei-lhe um abraço e disse-lhe que não fizesse caso d’aquillo, porque eu, pela

minha parte, entendia que o nosso fim era, ou deve ser, procurar encher o tempo o que

talvez pareça á Maman ser um pouco frio, mas é que, a haver questão, deve ser

tranquilla e placida, o que nem sempre se dá. Eu acho que as taes Sabbatinas não

servem de nada, porque não são, como deverião ser, uma especie de tira-duvidas, e para

avaliar os estudantes ha outros meios á disposição dos Lentes. Adeos minha Querida

Maman do meu Coração. Abraço o Papa e os Manos, peço recados para todos e sou do

Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

O Manoel ainda ahi está. Voltará para cá? Adeos. Adeos. Amanhã torno a

escrever. O tal arguente chama-se Pinheiro. Foi meu condiscipulo do 1.º Mathematico.

Hoje está muito mais desenvolvido do que então era. Adeos. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 436 Pág. 1/1

Coimbra. 1 de Novembro / 60

Minha Querida Maman do Coração

Estamos em dia de todos os Santos, e, por isso, não quero deixar de escrever,

hoje, que tenho tempo, á vontade, para o fazer, e começarei por lhe dizer que tive o

gosto de vêr a Marianna Ignacia fazer hoje as pazes com um filho, com o qual não

fallava havia 5 annos, e de concorrer em parte para isso. De tarde recebi a sua carta, que

me veio dár animo e mais esperança. Muito agradeço os seus bons conselhos, que não

ficão, de certo, por aproveitar, tanto mais quanto eu fico, não sei como, sempre que se

trata de escrever; perco o sangue frio e falta a prosa. Vejo que a ida do Manoel foi mal

recebida, como devia ser. Tenho muito dó dos thios, mas elles devião procurar, ainda

agora, emendal-o, porque a responsabilidade, que sobre elles pesa, é immensa! O Padre

Brito, que está em Lisbôa, mandou-me pedir que falasse a seu favor ao Papa, para o

recommendar ao C. B., e eu, em resposta, disse-lhe, fiado na bondade da Maman, que

fosse ahi á Annunciada, até ás 11 horas da manhã, expôr o seu negocio. Fiz isto para

não pôr o Papa n’uma posição falsa; bem suppõe porque. Hontem esteve aqui o Dr.

Bernardino e hoje o Luiz Adelino. Ambos pedem os seus comprimentos para o Papa e

para a Maman, assim como o Raymundo. Hontem dei lição em Mathematica. O Thomas

d’Aquino, perguntou-me por todos. Amanhã tambem é dia feriado. Tenho andado a

acabar de lêr o tal livro do Azaïs, que nem por isso é leitura muito facil. Estou sempre

em casa, salvo quando vou ás Aulas. Estou muito melhor: o ferro tem-me feito bem;

mas parei agora huns dias com elle. Peço que me mande algum retrato meu, se ainda ha,

para o dár ao Rosado, Amigo velho. Não sei se preveni a tempo a mudança na direcção

das cartas. O Nunes tambem hontem me perguntou por todos. Abraço o Papa e os

Manos. Peço recados para todos, não esquecendo o Menezes e o Luiz Candido e sou do

Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 437 Pág. 1/1

Coimbra. 1 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Agora que são 7 ½ horas da manhã, acabo de me levantar e escrevo, por isso,

esta á pressa para lhe dizer que estou bom. Espero que o Antonio esteja melhor. Está um

tempo horrivel. De antes d’hontem para hontem houve, de noite, uma trovoada

medonha. Custou a vir, mas veio chuva em abundancia. Antes d’hontem dei lição outra

vez em Mathematica. Hontem tive feriado, que aproveitei para lêr alguma cousa sobre

Mechanica. Tenho estado com o Manoel todos os dias. Deos queira que continue assim.

Esteve hontem aqui o nosso Dr. Bernardino, indo para 2 Congregações – Theologia e

Direito. Tenho visto os jornaes e parece que os negocios de Italia se vão complicando

cada vez mais. O que é ridiculissima é uma declaração de D. João de Bourbon, dizendo

que só elle tem direito à corôa de Napoles, mas não que agradece os bons serviços da

Rainha de Hespanha a essa corôa, porque desiste d’ella. É a maior caricatura, que pode

haver. Li isso n’um jornal hespanhol. Hoje parte a thia Marianna de Inglaterra. Adeos.

Não posso escrever mais. Abraço o Papa e os Manos, e peço recados para todos. Filho

muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 438 Pág. 1/2

Coimbra. 10 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Aqui estou escrevendo, agora que são 10 e tanto da noite. Dei lição em

Mathematica. Em Philosophia tive feriado. Na 2.ª tenho outra vez sabbatina n’esta

ultima aula. Faz hoje um mez estava eu em vespera de vir para esta terra. Passa tudo a

correr. Espero que o Antonio esteja melhor. Tomára sabel-o bom, mas estou

descansado, porque, no caso de haver novidade, de certo m’o terião mandado dizer.

Tem estado um tempo horrivel e tem havido trovões fortissimos. Nem se póde sahir.

Ainda assim fui, á noitinha, vêr os Jornaes, ao Instituto, para saber um pouco o que vai

ahi por fóra. Na Nação d’antes d’hontem vinha um artigo immenso, de que não gostei,

sobre os negocios de Italia, sobre moralidade publica, etc. Via o que o escreveu tudo em

negro e não dizia pouco contra a revolução de 1779. Outra cousa de que não gostei hoje

é da importancia, que se dava, em algum jornal, a El-Rei fallar em deixar de fallar com

certa pessoa, que ha pouco se quiz retirar, ou assim fingio, de Lisbôa. Pode dizer-se que

em toda a parte é assim, mas eu tenho de mim para mim que isso é prova de atrazo. Ha

certas fraquezas, digo isto sem saber qual foi o culpado, que é miseria fallar n’ellas. O

Manoel aqui vai e parece-me que melhor. Hoje vi-o mesmo com os seus livros de aula e

seus apontamentos. Tomára que levasse o anno ao fim. Estando na posição, em que

está, é mesmo um crime não se aproveitar d’ella, porque poderia vir a ajudar muito os

seus em pouco tempo. Uma das cousas, sobre que devião teimar, era fazer-lhe

comprehender a sua posição mesmo pecuniaria, a vêr se isso lhe fazia algum pezo. Por

aqui nada ha de novo, a não ser miserias. Houve um Concurso em Medecina, em que

reprovárão pela 3.ª ou 4.ª vez, em merito absoluto, creio eu, um rapaz de muito saber,

mas que tem o defeito de ser gago. Elle zangou-se, com razão, e quiz tomar contas a 2

dos votantes, um dos quaes se prezou, segundo dizem, de ter sido enxovalhado mas de

não ter levado pancada. Veja o qua ahi vão de cousas! Torna a haver concursos em

Direito, o que é outra immoralidade. Estavão os Concursos depentes da decisão sobre o

contrato do Langlois (contagem de 29 ou 30 dias), decide-se isto, e o Concurso torna a

ser aberto, porque ultimamente houve doutoramentos e os novos doutores metterão

empenhos para isso. Dirão que é para melhor se cumprir o espirito dos Concursos, mas

pergunta-se, ao tempo em que foi 1.º aberto, não o podia ter sido, porque se devia

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José de Saldanha, carta n.º 438 Pág. 2/2

esperar pelo futuros doutores, que quizessem concorrer? Assim nada se fazia, á espera

do que podesse vir. Nunca deveria haver um despacho, porque poderia apparecer para o

futuro alguem mais competente para o merecer. São 11 horas da noite e por isso acabo

pedindo um abraço para o Papa e os Manos, recados para os thios, tio Francisco,

Menezes, Luiz e criados e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

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José de Saldanha, carta n.º 439 Pág. 1/1

Coimbra. 14 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Não tenho escripto estes dias, mas espero que não tenhão tido cuidado. Na 2.ª

feira houve a Sabbatina, mas não sahi a ella. Tinhamos os seguintes pontos

1.º O que é a Agrologia? O que é o solo aravel? Importancia d’este estudo.

Estrutura geognostica da crosta do globo.

2.º Formação dos solos araveis. Sua composição chymica. Modo de acção e

principios componentes. Influencia relativa da composição mineralogica e das

propriedade physicas. Riqueza e potencia do solo.

3.º Sub-solo – Sua influencia – Importancia do seu estudo.

4.º Resenha critica das principaes classificações dos solos araveis.

Bem vê d’aqui que mesmo assim se estuda alguma cousa n’algumas aulas.

Hontem dei lição em Mathematica. Os que dizem lá por fora que não se estuda aqui,

estão enganados. Não se vai d’aqui sabio, mas, querendo-se, pode-se ir desenvolvido a

ponto de se poder aplicar com proveito a algum ramo. Aqui recebi a sua de 10 e li o que

me diz sobre a parte telegraphica. Nada mais sei. Recebi uma cartinha do Luiz, a que

hei de responder. Estou envergonhado com muitos, a quem não tenho escripto e não

julguem que é pelo muito trabalho: é mais depressa uma inacção em que ás vezes estou.

Muito gostei de saber que o Antonio estava melhor. Agora na convalescença é que deve

haver todo o cuidado. Hoje deve chegar a thia Marianna. Adeos. Abraço o Papa e os

Manos, peço recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Bem vê que a reflexão que apontei na outra pagina não é para a Maman nem

para nenhum de casa. Adeos. Tenho andado entretido a lêr alguma cousa sobre

Mechanica. Fez-me bem descansar um anno do estudo de Mathematica. Sinto em mim

uma differença muito grande pela facilidade com que agora entendo as differentes

obras. Adeos. Adeos. Agora que vou gostando mais do trabalho que tive, porque hoje

tiro-lhe o fructo não só para mim, mas mesmo para alguns outros. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 440 Pág. 1/2

Coimbra. 18 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

No dia 15 escrevi com grandes projectos de escrituração para os 2 dias

feriados e no fim ficou tudo em nada. Foi o caso que estive no dia 16 entretido com um

calculo immenso, pelo mais não tem difficuldade, e que me tirou muito tempo. Hontem

dei lição em Mathematica estive sempre a escrever e ainda ficou metade para amanhã.

Muito gostei de saber que os thios chegárão bons. Hontem tive a sua de 16 e vi que o

Antonio está bom. Já tinha sido avisado d’isso por uma carta do Padre Brito, que me

dizia que o Antonio fora dár um passeio. O Padre está penhoradissimo com o Papa e

com a Maman. É muito boa pessoa. Mas vamos ao que ha de novo. Antes d’hontem

chegou noticia da passagem de El-Rei por esta terra na noite de 18 para 19. Reune-se

logo claustro pleno, para que? Convierão em que nada havia a fazer, mas combinárão

que o Concelho de Decanos ficasse com todos os poderes para fazer o que as

circumstancias exigirem de um momento para o outro. Em todo o caso mandou-se tirar

os oleados ás mezas da Livraria, lavar o Hospital, limpar e arranjar o Museu e quando

mais não seja a passagem rapida da Magestade tem a benefica influencia de fazer com

que haja mais limpeza. Tambem hontem houve reunião de Estudantes, a que foi a maior

parte para rir, porque sempre ha causa para isso n’estas occasiões, e no fim nada fizerão,

segundo me contárão. Bem vê d’aqui que anda tudo de cabeça perdida. Poderião fazer

uma cousa bonita que era illuminar-se a ponte com archotes, ou outra qualquer cousa

n’esse genero, mas não o farão. O que querem alguns estudantes é occasião para figurar

seja como for, até pela asneira, pois hontem até hum chegou a dizer – para que

precisamos do Rei? – e a outro que fallava disserão-lhe – o Sr. não pode fallar porque é

Miguelista, Rapaziadas. O caso é que tem chovido e chove horrivelmente e nada haverá

para a gente se rir, porque na verdade fazer barulho pela passagem nocturna de El-Rei é

exquisitorio. Se viesse ficar para aqui, mudava de figura, mas não parando porque vai

para a Graciosa, é para aproveitar – de noite todos os gatos são pardos, e cada qual ficar

entre os lençóes. Antes d’hontem estive com o Bernardino que se recommenda muito

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José de Saldanha, carta n.º 440 Pág. 2/2

assim como o Raymundo. Abraço o Papa e os Manos, peço recados para todos e sou do

Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Vejo que por em quanto nada ha de novo. Paciencia! O que se lhe ha de fazer?

Nada. Hontem deu-me o Manoel o seu retrato, que está muito bom. Em todo o caso El-

Rei deve ficar contente porque tudo mostra que ainda tem, apezar de tudo, certo

prestigio, e que no fim o nosso mal principal provem de meia duzia, que quer jogar o

jogo do – pilha a mim. Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 441 Pág. 1/2

Coimbra. 19 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Recebi hontem a sua carta de 17 em que me fallava na vinda de El-Rey a esta

terra. Com effeito hontem de tarde soube o mesmo pelo Horta que por aqui passou para

o Porto e a quem fui procurar ao Lopes. Por elle tive noticias de todos. Havia na

hospedaria um grande jantar, no qual tomárão parte algumas autoridades da terra e o

Marquez de Loulé, a quem o Horta me apresentou. O tal Presidente de Ministros, pelo

que me pareceu, é mouco. Eu pouco tempo estive lá: estive com o Horta e fugi. Andava

immensa gente pela rua, não parecia a mesma terra. Tudo isto erão indicios de que se

esperava a Magestade, segundo uns ás 11 horas da noite, segundo outros á 1 da

madrugada. Vim para cima e encontrei a sua de 17 e uma carta da thia Ponte cuja

recepção accusarei em breve. Ás 6 horas da noite estava lendo os jornaes e, quando

esperava ouvir a cabra, nada ouvi. Era isso signal de feriado, que hoje tivemos, e que foi

dado pelo motivo da passagem de sua Magestade. Parece-me não ser um bom

fundamento, mas n’uma terra pequena, onde o cahir de uma telha causa alvoroço, era

mais que sufficiente. Tinha havido convite da camara para pôr luminarias, e algumas se

poserão. Ás 10 horas fui para baixo com o Manoel, que tomou chá comigo, e fomos em

direcção á ponte. Estava cheia de gente, ao pé do caes, e por ali andámos a passear

muito tempo. Vimos passar o destacamento de cavallaria que ia esperar os viajantes e

espalhando o elle já lá vem mettemos direcção á Calçada e fomos seguindo, até o largo

de Samsão, onde bem de pressa soubemos que fora rebate falso produzido pelo rodar de

uma carruagem, que deu involuntariamente a muito toque de sinos e a muitos foguetes.

Começou então a espera que durou até ás 5 horas da manhã! Tivemos n’esse tempo frio,

fadiga, e para divertimento o vêr chegar á Camara o Reitor com o Bispo, etc. Por muitas

vezes tive tentação de voltar para casa, mas chegando até ás 2 ou 3 ou 4 esperava-se até

ás 5 horas. Havia ao principio muita gente, mas parte tinha sahido ou antes recolhido a

casa. Depois das 5 horas houve (...) o signal da chegada, e pouco depois vimos avançar-

se a musica, que estivera no caes, trazendo a traz de si a cavallaria e a diligencia onde se

achavão os esperados hospedes. Veio toda a comitiva da Camara Municipal, do

Concelho dos Decanos, Reitor etc. esperar o rei e a sua comitiva ao baixo da escada e

depois foi a cêa, que pouco durou. N’esse tempo houve muitos foguetes e alguns vivas.

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José de Saldanha, carta n.º 441 Pág. 2/2

Para o enthusiasmo ser grande devia ter sido a chegada mais cedo. Ás 6 horas metti-me

na cama, muito cansado, e ás 10 horas estava acordado. Á sahida do Rei houve alguns

vivas tambem. Falta-me poder dizer o que houve na céa e na Ponte. Hoje diz a Maman

na sua de 18 que não se sabe o motivo da viagem. O Horta tambem me disse que a

resolução foi repentina. Para o fim da semana dizem que estarão de volta aqui, e mais

enthusiasmo haverá se de mais a mais se renovar o que houve hoje. Estou ainda agora

cansado. Fica-me de emenda. Vejo o que me diz sobre o meu negocio. Não sei se

deveria eu tornar a escrever. Hoje fui com o Viegas ao Museu vermos um anemometro

fundado n’um principio muito engenhoso, mas que é fallivel e muito na pratica. Cousas

nossas. Annunciado esse aparelho, só se fez o que veiu para aqui, quando deverião ter

mandado vir algum já autorisado pela experiencia. Adeos. Abraço o Papa e os Manos,

peço muitos recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

A Marianna Ignacia recolheu-se ainda depois de mim. Adeos. Adeos. O

Manoel bom.

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José de Saldanha, carta n.º 442 Pág. 1/4

Coimbra. 25 de Novembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Estamos perto das 12 horas da noite e eu, sentado á banca, para escrever esta,

porque quero livrar-me da priguiça, que me não tem largado ha uns dias, fazendo-me

recolher á cama com a idéa de que posso escrever de manhã, o que nem sempre levo a

effeito. Aqui está a razão, porque os enganei hontem, dizendo que escrevia de tarde.

Não o fiz por me deitar, e hoje de manhã por não me levantar, e d’aqui pode vêr que

tenho andado com uma predilecção pela posição horizontal. Hoje recebi a sua de 24 e

não fico socegado a respeito do Antonio. Porque não o faz sahir de Lisbôa e ir passar

o hinverno n’algum campo, onde leve a vida descansada e quieta, que lhe é

necessaria? É bom, e até uma obrigação, dár remedio aos males, em quanto é tempo.

Sacrifique o gosto dos divertimentos, mas tenha-se saúde. De mais quem me diz que

elle não vai a esses divertimentos, para procurar socegar os de casa e diminuir o

cuidado que n’elle podem ter? Sabem que noites elle passará em claro com attaques,

só sem querer dar alarme? Talvez não se saiba, mas imagino eu que não serão poucas.

Dormi no mesmo quarto, com elle, muitos annos, e ainda isso se dá no campo e sei as

que lhe tenho visto passar em claro. O que não será n’uma terra doentia como essa é?

Onde as casas tem todas temperaturas differentes, achando-se um individuo sempre

sujeito a soffrer como diz Dante

A sofferir tormenti caldi e gelo?

Uma das poucas cousas de que gosto aqui é a temperatura igual, que reina

n’esta casa, onde estou, sendo, segundo todos dizem, muito mais de pressa quente do

que fria, e assim não ha perigos de constipações. Em fim tomára sabel-o bom. Eu se

fosse medico arriscava-me a levar talvez muita pancada, mas havia de dizer a verdade.

Como é possivel curar um individuo, sem o tirar para fóra da causa do seu

incommodo. Na Grammatica Latina diz-se – Sublata causa cessat effectus – mas

infelizmente gravão-se ás vezes as palavras e não o sentido! Não digo para offender

pessoa alguma, mas, porque estou verdadeiramente afflicto, e porque entendo que

devo dizer a verdade e n’isto até sigo o que vejo ahi em casa pintado nas portas e nos

tectos e que infelizmente parece não ser lido por aquelles, que o deverião lêr. Talvez

lhes dê vontade de rir esta ultima parte, mas fóra de brincadeira, o caso é sério, porque

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José de Saldanha, carta n.º 442 Pág. 2/4

se trata da saude de um filho, de um irmão, de um Amigo. N’uma palavra as

constipações tem para elle por causa principal a casa, em que está e com isto não

posso offender pessoa alguma, mesmo os nossos maiores, porque estes vivião em

tempo, em que não havia fogões, em que se era mais forte, e se tinhão a lareira tinhão

a par d’ella o bom capotão e os bons tamâncos. Depois de amanhã deve aqui chegar

Sua Magestade. Teem andado a arranjar grandes arcos pelas ruas, e o Paço da

Universidade. A entrada para a Universidade fica bonita: ao pé da botica do Luiz estão

fazendo um grande arco, mas com boas proporções e d’ali até á Porta ferrea deve ficar

tudo illuminado, á noite. São uns arcos, que apanhão essa frente e que vem mesmo até

defronte da minha janella, de modo que o Largo de fronte do theatro Academico, e

que é cheio de arvoredo, fica como uma especie de grande barraca toda illuminada. A

final vai uma deputação da briosa, mas fizerão-se cousas incriveis. Houve reuniões

por 2 ou 3 vezes, um dizia que não devia haver deputação, outro que o Rei era um

homem como os outros, etc. e para tudo haver, até se descobriu a existencia de um

individuo, que deve ser aproveitado para empregado da policia, porque é bom para

espião, pois foi denunciar ao Reitor um rapaz, como cabeça de motim, quando não

havia tal. As cabeças de motim erão outras e mais. Isto de rapazes é gente com quem

não se póde fazer nada, quando falta brio e sentimentos de honra. E dizem que as

cassoadas erão más! Bem longe d’isso. Era uma necessidade, confirmada pela

experiencia. O caso é que ficou nomeada uma Deputação, mas para que? Na idéa da

briosa vai pedir ao poder moderador (!!!) reforma na policia Academica, pelo que diz

respeito á parte penal, e como por de mais felicita a Sua Magestade. Para explicar isto,

diz a briosa; o rei é um homem como um outro, e como tal não merece nada mais (?);

de mais foi grosseiro pela occasião do casamento, dizendo que não esperassemos

perdão d’acto, mas vamos córar o caso mandando uma Deputação, que represente

contra a policia Academica, porque embora não seja a occasião propria, não vai a

Deputação só para cumprimentar a Magestade e lá fóra ficão sabendo que não somos

mais crianças, que não conhecem as cousas. Parece incrivel! E não ha a gente de

envergonhar-se d’isto. Ver rapazes calcando aos pés todos os sentimentos de honra e

de brio! E como não ha de ser assim se Coimbra está hoje um fóco de immoralidade,

em que as Authoridades são as 1.as a dár os maus exemplos, e em que vemos uma

antiga S. Mas vamos ao caso. Hoje na sociedade Philantropico-Academica tambem

alguem fallou em nomear uma Comissão, mas não foi isso ávante. O Presidente

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José de Saldanha, carta n.º 442 Pág. 3/4

declarou que não ia, e ir uma Deputação sem o Presidente, que ha de achar-se nos

actos Publicos como Lente, era uma inconveniencia. De mais irem 2 Deputações

Academicas era ir tornar palpavel uma mancha, que infelizmente se dá, é a de que a

maior parte dos rapazes não são, nem querem ser, Membros da Sociedade. Dizem

muitos que a Sociedade esteve mal Administrada e infelizmente assim foi, mas, ha

alguns annos a esta parte, não está e é pouco proprio de rapazes ter alma pouco

generosa quando mesmo houvesse ainda hoje uma má Administração, não pedia a

caridade que se concorresse com uma quantia tão diminuta como são 120 rs mensaes?

Quantos 120 rs não gastarão mal gastos! Não consolará a idéa de vêr educar rapazes

faltos de meios, como alguns, que conheço, ás vezes sem terem luz á noite por não

haver azeite. Não poderia ser que d’entre elles surgisse algum genio, que mesmo

viesse a regenerar esta boa terra, em que vivemos! O que é verdade é que me oppuz á

Deputação e decidio-se pedir á outra, que se incumbisse dos cumprimentos da

Sociedade e tanto mais quanto um membro da Direcção pertence á tal Deputação.

Deos queira que esteja bom tempo para a chegada! Se estiver como está agora, nada

póde haver. Eu estou contentissimo, porque poderei gosar do que houver, sem ter

massada alguma. Só me resta uma e essa hei de atural-a para a levar até ao fim – é ir

receber os taes diplomas das mãos de Sua Magestade e tomo isso como uma

mortificação e dizendo isto não minto. Mas já agora vá isto até ao fim. Hontem dei

lição em Mathematica. Amanhã, ou antes hoje, que já são 2 horas da noite, tenho

Sabbatina em Agricultura. É uma aula muito divertida, porque acha-se applicação de

tudo o que se tem estudado. Era bem bom que fosse mais cultivada essa sciencia entre

nós e muita gente entre nós saberia que muitos dos mais ricos proprietarios

estrangeiros, que hoje teem riquezas fabulosas, ainda ha 15 ou 20 annos possuião

algumas terras improductivas, ás quaes applicando os dados da sciencia, devem hoje a

fortuna, que os rodeia. Com as propriedades extensas, que alguns, que nós

conhecemos, possuem, não é arriscado dizer que em pouco tempo poderia haver

fortunas iguaes ou maiores em Portugal, maiores, porque o insulto que se nos atirou ás

faces lá de fóra, bem o indica.

Bonne Deus! Si Lusitani nossent sua bona naturae, quam infelices essent

plerique alii, qui non possident terras exoticas!!

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José de Saldanha, carta n.º 442 Pág. 4/4

O Raymundo agradece muito o seu recado assim como o Dr. Bernardino. É

muito tarde. Sou obrigado a acabar. Peço um abraço para o Papa e para os Manos,

recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Vejo que o meu negocio está em terra. O que se lhe ha de fazer? Nada. Não é

motivo para não continuar com os meus estudos e procurar seguir o meu trilho. Adeos.

Adeos.

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José de Saldanha, carta n.º 443 Pág. 1/3

Coimbra 30 de Novembro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Acaba de dár meia noite na Universidade, por isso vai esta com data de 30.

Recebi hontem a sua de 28 e fico mais descansado, com as noticias, que me dá, do

Antonio. Não tenho escripto estes dias, mas espero que não tenhão tido cuidado. Podem

acreditar que me tenho sempre lembrado de todos, e o boliço d’estes dias se alterou a

minha vida n’alguns pontos, n’esse de certo que não. Na 2.ª feira já não tive Aulas.

N’uma, Mathematica, houve feriado, por descuido, ou impossibilidade da parte do

guarda, o que não admira que succeda uma vez, porque ha, ali, no chamado

Observatorio, um só guarda, que é bem bom homem, em Philosophia houve um protesto

contra a Sabbatina e o Lente, que já tinha tenção de o fazer, deo feriado. N’esse dia á

noite fui vêr os arranjos no Paço, que me mostrou o Raymundo. O Paço é muito

pequeno a ponto de ficarem os 2 infantes no mesmo quarto, mas o Raymundo tirou

d’elle o melhor partido, que foi possivel, e os quartos de dormir de todos os viajantes

estavão mesmo com certa commodidade. Na 3.ª feira de manhã fui vêr os arcos e o tal

pavilhão. Havia um arco na rua Larga, e em que já fallei, outro na entrada para a rua dos

Loios, 2 na Calçada e mais 2 na Sophia. Erão cobertos de louro. O 1.º tinha panninho

branco e encarnado. Um d’elles, o 2.º, estava ridiculo, porque lhe apresentárão em cima

um mono, representando a deusa da sciencia, mas valha a verdade – o todo dos arcos

não estava mao. Tambem fui á ponte de Maias vêr o pavilhão, que ainda então não

estava prompto. Estava tudo cheio de agua, molhei os pés e por isso dispuz-me a voltar

para casa. Quando vinha na Sophia estavão-se dispondo as forças a marchar e parei para

vêr. Estava na rua, mas 2 rapazes, que estavão no Quartel, chamárão-me para lá e estive

de janella. As forças erão pequenas. Mas os pés molhados não podião estár socegados, e

por isso sahi do Quartel a fui ter com o Manoel Ponte, que me tinha mandado recado

para sahirmos juntos, mas eu já então estava fóra. Finalmente cheguei a casa. Às 3 ou 4

da tarde fui para casa do Manoel, para de lá vêr a passagem. Achei-me lá um grande

bocado só, que aproveitei para lêr e estar agasalhado, porque o dia estava tambem muito

frio. Já então havia alguma gente nas varandas e no largo. Quando El-Rei chegou ao

pavilhão, houve uma girandula. Soube depois que houve ali gente a esperal-o e que os

estudantes formárão alas na ponte de Maias. No pavilhão estiverão a Camara Municipal,

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José de Saldanha, carta n.º 443 Pág. 2/3

da qual é presidente o Raymundo, o Thomaz Palmella, o Reitor, etc. Eu tinha sido

convidado pela Camara para ir, mas entendi que não devia ir e isso mesmo disse na

vespera ao Raymundo. Quando a comitiva chegou á Sophia tornou a encontrar as alas

dos rapazes. Pouco depois da girandula vi passar pelo largo o corpo cathedratico com o

Vice-Reitor á frente. É uma vista sui-generis e que tem seu que de inexplicavel. Perto da

noite chegou El-Rei ao Largo, entrando pelo lado do Castello. Vinha rodeado de

estudantes, com um vivorio immenso, e a uma boa distancia da comitiva. Seguião-se os

2 infantes, Ministros, Marquez de Ficalho, muita gente e a carruagem do Visconde de

Maiorca, que vinha de estádo. O Horta vinha um pinto e todos os outros, pois apanhárão

uma grande molha. A essa hora já tinha vindo de baixo a tropa, os estudantes e o povo,

e a chegada d’essa gente toda não deixou de ser curiosa. Á porta da Sé estava a Camara

com o pallio, Bispo, etc. e tudo entrou na Igreja. Em casa do Manoel estavamos os 2, o

Manoel Sabugal e mais 2 rapazes, e estivemos optimamente. Findo o Te Deum foi tudo

a pé para o Paço indo El-Rei debaixo do pallio. Dizem que houve um apertão horrivel á

Porta-ferrea, mas eu cheguei lá mais tarde, que fui para fallar ao Horta, que já tinha ido

para cima para jantar. Começou a illuminação mas a noite ao principio não esteve bôa:

depois melhorou. Na rua larga havia um arco, feito de canos de gaz e com as iniciaes

V.D.P.5. (5 podia ser V). No tal largo em que já fallei o outro dia havia 2 corétos para

Musica. Andei a passear pelo Pateo e pela rua Larga com o Manoel e com mais rapazes.

Não fui lá abaixo, mas diz a Marianna Ignacia que nada perdi. Mais tarde fui procurar o

Marquez de Ficalho, que me penhorou em tudo muito. Estava lá quando o Horta foi lá á

minha procura. Estavamos conversando quando chegou á porta El-Rei e os Infantes.

Tinha chegado a hora fatal de uma apresentação, e não havia remedio. Fui apresentado e

mais 2 rapazes, que lá estavão com o Marquez de Ficalho, e vai se não quando acho-me

ao lado do Horta diante da Magestade, que esteve perguntando em que eu andava, etc.

De repente safa-se o Horta e acho-me só, mas felizmente a este tempo os outros sahião e

quando o Marquez acabava de os pôr fóra aproveitei eu a occasião para sahir. Achei-me

cá fóra e dado o grande passo. Ainda n’essa noite o Manoel me fez scismar sobre se

devia ou não beijar a mão aos Infantes, porque eu não o fiz, mas depois soube que fiz o

que muitos fazem. Achei o Rei muito amavel. Amanhã direi mais e o que se passou

hontem e antes d’hontem. Só digo que fui jantar ao Paço na 4.ª feira e que estive sempre

com medo de não representar devidamente aquelle por quem ali estava. Tambem me

parece que foi este o golpe fatal para a Universidade e em parte por sua culpa. Amanhã

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José de Saldanha, carta n.º 443 Pág. 3/3

direi tudo. Abraço o Papa e os Manos e sou do Coração seu filho muito Amigo e

obediente

Jozé.

Escrever uma carta d’estas e no fim pedir dinheiro parece que foi recado

estudado. Mas não é assim. O caso é que não era mao se me mandasse algum dinheiro

e, se me quizerem em Lisbôa nas ferias, mais necessario se torna elle. Adeos. Adeos.

Peço recados para todos. Adeos. Tenho feriado hoje e amanhã. Adeos.

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Coimbra 30 de Novembro 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Tive hoje o gosto de receber a sua de 29 e muito estimei sabel-os todos bons.

Vejo que por ahi tambem tem estado máo. Hoje esteve um dia bonito, mas á noite tem

feito muito vento e ameaça chuva. Já contei o que se passou na 3.ª feira, vamos agora ao

que houve na 4.ª. Logo de manhã ás 8 horas fui ter com o Marquez de Ficalho

perguntar-lhe o que tinha a fazer e combinou-se que eu fosse á recepção depois da

distribuição dos premios. Vim para casa e certifiquei-me de que tinha effectivamente de

ir receber 2 diplomas, pois não quereria ir lá e achar-me enganado. Ás 9 ½ horas fui

para a Secretaria da Universidade, que tinha sido marcada para ponto de reunião dos

Ursos a fim de poderem entrar na Sala livres de apertão e mesmo de serem esmagados.

Recebi então aviso de que devião, por ordem ou convite do Reitor, julgo que nos

Estatutos nada ha a esse respeito, ir os Ursos de luvas brancas, descalçando a da mão

direita no acto da recepção dos diplomas. Mas nada fiz por causa d’isso, porque ás 10

horas era a funcção, mal tinha tempo para ir lá abaixo, na duvida de encontrar luvas: 2

outros Ursos, que ali estavão convierão no mesmo, mas depois soube que as arranjárão,

pelo menos um com certeza. Na verdade a batina de estudante não pede luva, e de mais

deve ser luva branca ou preta. Que os Lentes, por excesso de delicadeza, ponhão luva,

vá lá, mas o estudante não pede muito a luva. Na vespera tinha dito isto mesmo a um,

que me pedio a minha opinião, e que disse estár de acordo, mas que depois falhou,

porque poz luva. Mas não julguem que fui unico, houve mais como eu, pelo menos 1.

Ás 10 horas sahimos da secretaria, que está no antigo local, subimos para os Geraes e

fomos pela Via Latina para a Sala. Fomos livres de apertão, porque as escadas para a

Via Latina tinhão guardas, que não deixávão subir os estudantes, que estavão no Pateo.

Na Sala, fomos para a Caranguejola, fazendo para isso os bedeis a chamada

conveniente. Do outro lado, na Caranguejola, havia cadeiras e bancos, e ahi ficou depois

a Camara Municipal e os mais convidados e algumas pessoas da terra. Tambem ali se

sentou um filho de Macario de Castro, estudante e que é Moço-Fidalgo. Pouco depois

começárão a entrar os Lentes das differentes Faculdades e encheo-se tudo. A parte dos

doutoraes destinada aos professores do Pateo tinha 2 ordens de homens de modo que

parte deve ter ficado em pé e a outra parte, se se sentou, pouco deve ter visto. A esse

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José de Saldanha, carta n.º 444 Pág. 2/5

tempo estava o Reitor com os Decanos á porta da Sala, mas não a porta grande, que

esteve, até estár tudo a postos, fechada, á espera de El-Rei. A Camara Municipal

tambem estava na Sála. El-Rei entrou acompanhado pela sua comitiva e lá vinhão os 2

Palmellas, com a competente charanga (não sei se assim se escreve) á frente, e armado

no sitio onde ha a cadeira para as prelecções. Estava sentado n’uma cadeira á direita,

tendo no seu lado esquerdo o Infante D. Luiz e ao pé d’este estava o Infante D. João.

Estiverão um pedaço de pé, sentárão-se, e a um signal dado cobrio-se tudo e os Lentes,

que, n’essas occasiões, teem privilegio para isso. Por signal foi isso bom, porque alguns

fazião-no com a maior gaucherie, coitados! O programma, feito pelo Reitor dizia que

este estaria á direita de El-Rei, e não marcava logar para os Ministros, o que foi uma

grande toleima, porque se sabia que 2 Ministros andavão com El-Rei e um d’elles, o do

Reino, é o director verdadeiro da Universidade. Sei que isto foi reparado, e com razão,

porque, na verdade, abaixo do Rei, são logo os Ministros e o caso é que o Marquez de

Loulé, esteve, talvez, na borda do banco, mas sentou-se entre o Rei e o Reitor. Á direita

d’este estava o Bispo, depois o Thomaz Palmella e o Marquez de Ficalho. Do outro lado

do throno estava o Horta, Filippe Palmella e um visconde ou barão: não sei se 2

viscondes, parece-me que sim, mas não estou certo. Foi-se ali sentar o barão de Santo

Antonio, conhecido do Papa, e ninguem sabe como assim fez, porque nunca foi Grande

do Reino. Tambem se cobria com a corte. Julgo que o fez por toleima. Está desculpado.

De mais, como dizia o Marquez de Ficalho, com sua graça, está-se em Coimbra.

Tambem estava o Ajudante d’Ordens de El-Rei. Começou a funcção, mas é máo fado da

Universidade que ha de enterrar-se sempre por suas proprias mãos. O 1.º discurso, lidos

todos, foi o do Reitor. Levantou-se foi fazer a sua cortezia diante de El-Rei, voltou para

o seu logar e de pé começou a lêr. Lêo, lêo e por fim treslêo. Já não se podia, a ponto

que El-Rei fallou com o Marquez de Loulé, o Reitor ficou calado e pouco depois acabou

a tal leitura. Diz-se que é mais facil criticar do que fazer, mas é fora de duvida que o

discurso estava improprio, muito longo, fallando em Camões e não sei que mais

citações (não é por se fazer pouco de Camões, bem longe d’isso, mas a occasião pedia

talvez outro discurso) e o peior, para os que o ouvirão o anno passado, é que tinha idéas

apresentadas então. O caso é que não agradou. Seguio-se o discurso do Rodrigues, que

subio, para o lêr, á cadeira, que tinha sido posta na Caranguejola do lado dos estudantes

isto é do lado do Horta. Esperava-se grande cousa, mas não correspondeo. Talvez por

ser um grande Miguelista e vêr-se obrigado a representar papel differente da sua

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José de Saldanha, carta n.º 444 Pág. 3/5

convicção, o que effectivamente teve sua graça. O discurso foi máo por ser muito

capacho e por dizer inconveniencias, por exemplo um Rei mais sabio que Salomão, e

tudo dito com muita cortezia e muito sorriso. Ou muita toleima ou muita velhacaria?

Fico pela 1.ª e por aqui vê, porque eu digo que a Universidade ficou enterrada por suas

proprias mãos. Seguio-se o discurso de El-Rei. Foi pequeno e o melhor ainda, que

apresentou uma idéa não muito exacta porque o que deve ser é harmonisar a moralidade

com a sciencia e não se pode, exemplo cathedra, admittir uma sem outra. Se não é geral

na pratica, isso é outro caso. Sei que os Lentes fizerão reparo em que El-Rei não

dirigisse uma leve allocução (não é o termo proprio, mas não me vem agora á idéa) ao

corpo cathedratico, mas pergunta-se o que havia de ser? De mais o discurso começava

bem; começava assim – Academicos – abrangia tudo, porque ainda que os Lentes não

recebessem ali premios, alguns já os tiverão e se os querem, porque ainda os podem ter

ainda que differentes, trabalhem. De mais o que se ouvio sobre moralidade, não seria

talvez mais de pressa dirigido aos Lentes do que aos estudantes? E não seria isto tudo

feito com finura? Não sei, mas o caso é que se lhe pode dár essa interpretação. Começou

a distribuição dos premios. Já na vespera tinhão dado muito que fallar as cortezias, e

andava nas mãos dos bedeis um papel dizendo que se fizessem 3 cortezias: 1 em baixo,

outra no alto dos degráos e a 3.ª ao pé de Sua Magestade, e que, recebido o diploma, se

ladeasse para o lado dos infantes e se descesse sem voltar as costas ao throno, operação

difficilima que dêo muito que pensar á elevada intelligencia, que a concebeo, e que era

quasi impraticavel na practica, porque a descida era perigosa, em quanto que se tem

arranjado uma escadinha lateral, encoberta com a cadeira, em que fallei, estava tudo

arranjado. O caso é que muitos se estenderão. Convierão em que recebido o diploma se

passasse para a mão esquerda e se beijasse a mão de El-Rei. Os revolucionários

revoltaram-se com tudo isto, mas lá forão e sem duvida os que mais se curvárão. Ali, e

sempre, não se beija a mão de um homem, vai-se tributar homenagem a uma idéa, e

para a representar está ali o homem que se deve suppôr digno d’isso. Mas é fóra de

duvida que foi uma parte divertida. Alguns lembrárão-se de beijar a mão a todos 3,

outros voltávão-lhes as costas e fazião cortezias á faculdade respectiva, etc. Eu segui o

programma: beijei só a mão a El-Rei nas 2 vezes que lá fui. Se o programma estava mal

feito e creio que sim, porque o beija-mão foi abolido ha tempo, deve a responsabilidade

recair sobre quem o fez. Um dos que beijou a mão a todos 3, aliás um rapaz esperto,

disse-me que era muito grato ao Rei, que tinha uma adoração por elle e que por isso fez

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o que lhe pedia o coração. É muito bom e bonito, mas nem sempre se faz o que pede o

coração, pelo menos n’aquellas occasiões. Mas isso é o menos, porque era tudo rapazes

e não havia a menor sombra de má intenção para com pessoa alguma em tudo isso. Eu

disse rapaz, mas elle é mais do que rapaz. É um estudante muito bom, padre, que o

Antonio deve conhecer, chamado Napoles. Tem grande enthusiasmo pelo Rei, porque,

pouco depois da acclamação foi a concurso para uma abadia e esteve para ser

desprezado por causa de um dos outros 2 concorrentes, estupidos ou pelo menos

ignorantes, e que tinham padrinhos, mas era no tempo da caixa verde, vai a Lisbôa,

desconhecido deita o seu requerimento na caixa e no dia seguinte sahe despachado em

virtude dos documentos scientificos. O Rei d’essa vez não se prestou, ao que o Ministro

quiz e perguntou-lhe mesmo quaes erão os concorrentes. Disse d’esta vez, mas sem má

intenção. Finda a distribuição dos premios sahio tudo. O Raymundo é meu Amigo. Lá

mesmo olhou para mim e rio-se. O nosso Dr. Bernardino estava nos doutoraes, mas

quando olhei para elle vi-o sempre voltado para o throno. Depois seguio-se a recepção.

Estive um pedaço cá em baixo ao pé da Via Latina – lá encontrei o Amigo Souza e subi.

Fui beijar a mão a El-Rei e aos Infantes e desci. Á direita de El-Rei estava o Reitor,

segundo me pareceo, porque confesso que fui um pouco atrapalhado a ponto que levei

aquillo tudo a galope. Sei que depois foi o corpo cathedratico beijar a mão e eu

encontrei-o effectivamente na Sala cá fora e fallei a alguns Lentes, entre outros ao nosso

Dr. Bernardino, com o qual fui depois visitar o Marquez de Loulé e o Horta, mas com

este ultimo fiquei eu ao depois só. Perguntou-me, e sempre o fez, por todos, e sempre

foi amavel comigo e no mesmo pé que em outros tempos na Charneca. Sahio e eu fui

para o quarto do Marquez de Ficalho, com o qual fomos ao Jardim botanico, o Manoel,

eu, os 2 Palmellas e outro rapaz e tambem o Manoel Sabugal. O outro rapaz é muito

protegido de El-Rei. Encontrámos no caminho o Horta, que tinha ido a cavallo vêr uns

pontos nas margens do rio e que se unio ao rancho. A esse tempo andava El-Rei no

Jardim e sahio para ir ao Seminario e ás Ursulinas. Nós andámos um pouco no Jardim e

voltámos e cheguei á Porta ferrea onde larguei o Horta e o Marquez de Ficalho. Fui ter

com o Manoel que vinha mais de vagar com parte do rancho primitivo. Fui para a Feira

com um rapaz chamado Macedo, sobrinho do Visconde de Maiorca, ali andei um

bocado e depois fomos sentarmo-nos no José Maria. E agora vou deitar-me que são

horas e mesmo, porque não quero tirar-lhe mais tempo. Está uma noite horrivel. Fui

hoje jantar com o Manoel. Mando uns versos que se deitárão na 4.ª feira no theatro.

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Abraço o Papa e os Manos. Peço recados para todos e sou do Coração seu filho muito

Amigo e obediente

Jozé.

Recados do Manoel. Muito agradeço tudo o que me diz na sua de 28. Peço que

diga ao Luiz Candido que lhe escrevo amanhã. Adeos. Adeos. O Horta leva um livro

para o Menezes. Peço que lembre ao Marquez de Ficalho o requerimento do tal rapaz,

que eu lhe apresentei. O que é bom é desenganar o rapaz. Seria tambem bom dizer-lhe

que eu estou muito agradecido pela bondade, que teve em me aturar. Não ha n’isto fim

algum a não ser o de gratidão. Tenho andado com vontade de escrever um folhetim

dando na gente Universitaria, por certos motivos, que já hoje digo e que amanhã

completarei, mas não o faço provavelmente. Posso ficar depois inquieto e não quero.

Sou máo para mim, mas ao menos não o quero ser para os outros. Esquecia-me dizer

que antes de ir ao Jardim foi El-Rei vêr a Livraria e o Observatorio. Não sei o que achou

d’estes 2 ultimos estabelecimentos, mas o ultimo causa dó. Está reduzido a 2

instrumentos bons, mas falta-lhe tudo o mais e gente. Quem se pode sujeitar a ser

ajudante do Observatorio com 200 mil reis annuaes!!! O Jardim achou elle menos máo.

A estufa, que se está fazendo, se se acabar deve ficar cousa magnifica. Adeos. É muito

tarde e acabo. Tem havido muitos episodios e alguns muito bons. Na 3.ª feira á noite,

depois do jantar chegou El-Rei á varanda, porque estavão dando vivas, mas vindo só

começão a dizer – é – não é, e por fim dizem – é um soldado e o homem recolheo-se.

Mas isto não foi de certo tomado a mal, porque elle andou sempre muito alegre. No

Seminario houve um vivorio immenso: deitárão as capas no chão, obrigárão-no a passar

por cima d’ellas e chegárão mesmo quasi que a montal-o no cavallo, arranjando a farda,

cujas abas ficavão debaixo do sellim, etc. Adeos. Não posso mais. A noite está horrivel.

Adeos.

Ainda bem que o Antonio está com resguardos e melhor. Amanhã,

continuando, respondo á sua de 29. Adeos. É 1 hora da noite. Adeos.

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Coimbra. 2 de Dezembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

Hontem não escrevi, mas agora que são 7 horas da noite aqui estou sentado

outra vez á banca. Antes de tudo quero destruir algumas inexactidões, que houve na

minha ultima, e que forão involuntarias. O tal dito: mais sabio que Salomão, não é do

Rodrigues, mas o caso é que eu achei o seu discurso tão não sei como, talvez em grande

parte pelo ar, como foi lido, que lh’o attribui, mas verifiquei que se achou essa idéa nos

taes versos, que não forão o outro dia, porque com elles teria de pagar-se 2 estampilhas,

em vez de uma. O tal pensamento de El-Rei é o seguinte – vale a alma o que vale a

intelligencia – Bem bom seria que assim fosse sempre! Outro engano foi no logar onde

esteve o Ajudante de Ordens, que depois li ter ficado do lado do Marquez de Ficalho,

como devia ser. Ficamos na minha ultima, quando eu estava na loja do José Maria.

Perto das 4 horas passou El-Rei para o Museu, com um vivório immenso, e um pouco

distante da comitiva. Foi vêr o Laboratorio e o Museu. Nos gabinetes deu-se um caso

triste, que talvez poucos saibão. El-Rei tirou uma concha e virando-se para o Lente de

Zoologia, que é o Lente de Prima da Faculdade, o Sena, disse-lhe que a concha estava

mal classificada. O Sena se se havia de ter preparado para um incidente qualquer, como

devia, fica todo atrapalhado e chama pelo Albino, que tem andado ultimamente a rever

o Gabinete de Conchyliologia, mas que infelizmente não tinha ainda chegado a essa

parte e teve de o declarar. É vergonhoso, não para o Albino, que tem andado com esse

trabalho por mera curiosidade, pois não tem nada com isso por não ser nem Substituto,

mas para o Amigo Sena, que é um Lente de Prima, que tem regido ha muitos annos a

Cadeira de Zoologia. Bem se sabe que a Conchyliologia é uma especialidade e que um

homem só não as pode saber só, a vida de um homem mal chega para vêr o que ha, por

exemplo, sobre insectos, mas tinha obrigação de se sahir melhor d’esse mao passo, pelo

menos com mais presença de espirito. Mas o peior não foi isto, foi que logo em seguida

mostrão-lhe uma concha dada por El-Rei e dizem-lhe que tinha trazido o nome errado e

para isso mostra-se-lhe o letreiro, que trouxe, e o que lhe substituirão. A resposta de El-

Rei foi a seguinte – Pode ser – Pode ser – e na verdade não podia ser melhor. O que

acabo de dizer passou-se, mas custa a acreditar. De aves tambem El-Rei mostrou

entender, mas mais o Sr. Infante, D. Luiz, creio eu. Nos outros Gabinetes pouca

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attenção prestou ao que se lhe mostrou. Do Museu foi El-Rei a pé para o Hospital. A

esse tempo fui eu conversar para uma loja na Feira, com o Manoel, Luiz da Costa, um

rapaz chamado Cunha e que foi meu Condiscipulo, mas hoje anda no 3.º Medico, é

muito bom rapaz, e appareceu tambem o Padre Napoles. O Luiz da Costa é o mesmo em

que me falla na sua de 29, e já foi durante 4 annos meu Condiscipulo. Hoje anda no 6.º

Anno Mathematico e é bom rapaz. Elle foi na Deputação pela Faculdade de

Mathematica, porque assim decidirão na ultima reunião. Houve alguns rapazes, porque

m’o disserão depois, que quizerão que eu fosse na Deputação, mas felizmente escapei.

Tambem tinha feito tenção de recusar, porque tendo a Deputação de entregar o tal

protesto, contra a policia Academica, na parte, que diz respeito á inquirição das

testemunhas, eu não ia para ahi. De mais só ia, indo tudo rapazes que eu achasse

convenientes: não é por desfazer nos que forão, bem longe de isso. Ganhei tambem que

não andassem discutindo a minha pessoa. Por isso é que eu disse na minha de 23, que

tinha muito que contár. Felizmente não lerão a El-Rei o tal protesto: lerão uma

felicitação e entregárão o protesto, mas em todo o caso não é muito proprio entregal-o

ao Poder Moderador. Dizendo-me alguem que o tal estudante do 6.º Anno de Direito, B.

de Albuquerque, esteve um dia, com alguem, á procura de legislação para fundamentar

o seu passo, e que a achára, respondi que não era mister ter estudos para resolver o caso,

porque saltava aos olhos de qualquer razão um pouco clara, e que quando mais não

fosse era attender ao que se vê todos os dias, que é negocio de tarifa. Á noitinha fui com

o Manoel a casa d’elle, onde encontramos o Manoel Sabugal e o Felippe Palmella e

fomos para o quarto do Marquez de Ficalho, onde tambem veio ter o Lemos de

Condeixa e o Antonio de Carvalho. Ás 6 horas fomos para cima, para uma Sala, com o

Marquez de Ficalho. Nós estudantes iamos todos de batina; parte tinha combinado isso,

porque não havia mais que vestir e o Felippe não quiz tornar-se saliente. Diga-se a

verdade: ambos os Palmellas fazem grande differença do irmão Francisco. Ao jantar

assistirão os que mencionei, os deputados, Governador Civil e Secretario, por signal

entrárão os 2 depois de começado o jantar, creio que é contra a etiqueta, pelo menos nas

casas particulares, Gavicho, casado com uma sobrinha do José João Guedes, e mais

gente, entre outros um estava de gravata preta. Eu fiquei entre o Horta e o Manoel

Sabugal. Fiquei o melhor que é possivel, porque conversei sempre. Até estive um

grande pedaço de conversa com o Sr. Infante D. João, que estava ao pé do Horta, e que

foi muito amavel. O jantar foi pessimo. Pouco ou nada comi. Acabado o jantar viemos

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para baixo, e eu sahi para ir para o theatro. Foi então que apresentei o tal rapaz ao

Marquez de Ficalho. Fui ao theatro com um bilhete do Manoel Sabugal, que foi para a

tribuna real assim como o Manoel e os 2 Palmellas. Estavão os 4 logo atraz das pessoas

Reaes. O camarote era na frente e estava menos mal arranjado. Os 2 camarotes dos

lados erão, um para as Authoridades, e Camara Municipal, outro para a gente do Paço.

O Reitor, que durante esses dias passou a parte bem secundaria, estava no seu camarote.

O chamado Salão do Theatro estava arranjado para El-Rei, que entrou pela entrada

principal, subindo a escadinha ao pé do Instituto. O Antonio que explique isto. Os mais

entravão pela porta por onde entrão de ordinario as Senhoras. Mas ha gente, que tem

cara para tudo, mas em rapazes admira isso. O filho d’um Godinho, que está nas Portas

de Santo Antão, ao pé de São Luiz, foi abrir as cortinas da Tribuna e houve por bem lá

deixar-se ficar todo o tempo e sempre muito alegre e rindo-se. O Taborda, que tinha

vindo para isso de Lisbôa, levou 2 scenas comicas – o José do Capote e o thio Matheus.

Houve muito viva no theatro. Havia bastantes Senhoras, e felizmente a briosa portou-se

bem. Depois do theatro fui tomar chá com o Viegas e depois ainda fui dár 2 dedos de

cavaco ao Manoel. No dia seguinte das 9 para as 10 horas foi El-Rei a Santa Clara, a

cavallo, acompanhado de muitos estudantes. Eu fui até São Francisco para vêr á vinda

para baixo metter-se El-Rei na Mála-Posta, que havia 2, uma para elle, irmãos e

camarista, outra para os Ministros, Lessa e o Ajudante. Os rapazes começão a gritar

para Condeixa, para Condeixa, e ahi vai tudo pela estrada fóra. Eu tambem fui até ao

alto da subida, com outro rapaz mas ahi parámos. Foi então que me despedi do Horta

para o que me cheguei da carruagem, que ambas ião muito de vagar. Foi tudo assim

muito de vagar até uma capellinha, que ha na estrada, onde El-Rei se demorou e pedio

que o deixassem andár, porque tinha de ir para Condeixa onde o esperava o Visconde de

Podentes a almoçar. Parte dos rapazes voltou então para Coimbra, outra parte deixou

partir as carruagens e, em n.º de 60, ainda forão encontrar El-Rei a Condeixa, onde um

d’elles recebeo um charúto e um abraço para transmittir aos outros. O peior é que

tambem querião o charuto. Esses 60 intitulárão-se Academia Real e á noite, em

Coimbra, pagárão a uma Musica e andárão tocando pelas ruas e ás portas do Governo

Civil, do Raymundo, da casa onde estava o Taborda, no Pateo da Universidade, etc.,

tudo isto acompanhado de muitos vivas. O Raymundo fez um discurso, e o Reitor, que

então passava a 1.º, houve por bem pôr 2 castiçaes á janella, apresentar-se no meio

d’elles, e fazer umas cortezias e creio que dár seus vivas. Muito ri. Depois d’isto tornou

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José de Saldanha, carta n.º 445 Pág. 4/4

Coimbra a cahir na sua apathia ordinaria e nós tivemos feriado na 6.ª e Sabbado, por

ordem de El-Rei. Houve no meio de tudo muita cousa de que rir, mas não quero ter má

lingua. O Raymundo fez como Presidente da Camara o mais que foi possivel e bem. A

tal viagem ou digressão real levou agua no bico e a prova é que em Condeixa El-Rei foi

a casa do Visconde de Podentes, porque é um voto para as côrtes, e assim ficou o

Lemos com os seus preparos inutilisados. Por isso teve hoje gente a jantar. Convidou-

me, mas eu não fui. Adeos. Espero ter dito tudo o que por aqui houve. Abraço o Papa e

os Manos, peço recados para todos e sou do Coração filho muito Amigo e obediente

Jozé.

Foi esta interrompida porque veio aqui um rapaz a quem lecciono no 1.º Anno

e coitado não tem para amanhã uma lição muito facil. Adeos. Adeos. Hontem forão 2

tambem no 1.º. Os do 3.º e 4º dão menos trabalho: dou-lhes os apontamentos e elles lá

os entendem. São 2, um em cada anno. Faço isto porque a gente deve ajudar-se uns aos

outros. Adeos. São 11 horas da noite.

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José de Saldanha, carta n.º 446 Pág. 1/1

Coimbra. 12 de Dezembro. 1860

Minha Querida Maman do meu Coração

É esta escripta com bastante frio, que é bem bom pois temos bom tempo. Eu

aqui vou andando com as aulas. Hontem dei lição em mathematica e hoje em filosofia,

sem ser esperada, porque pelo modo como ele {Lente} chamava até agora sabia-se o dia

de lição. Assim é melhor, e é o que me tem succedido em todos os annos. O Lente é

muito bom homem, polido e falla optimamente – é o Simões de Carvalho e foi elle o

proprio que disse aos estudantes que lhe parecia melhor não chamar por ordem, mas que

faria o que se quizesse: felizmente o curso decidio-se pela não ordem, como devia.

D’hoje a pouco mais de uma semana espero partir d’aqui, para ir estár um pouco de

tempo em casa. É com bastante prazer que vou, mesmo porque vivo aqui só e isolado.

No dia 9 forão os annos da Sr.ª Viscondessa D. Rita e muito favor me faria dando os

parabens por mim. É muito bôa senhora e trata-me de um modo tal que sempre me

penhora mais. Recebi hontem a sua de 10 e vejo que felizmente estavão todos bons.

Pelo que leio vai para Lisbôa grande bulha por causa de uma nota do Nuncio. A ser

verdade o que diz a Nação de hontem é mais uma immoralidade de que nos devemos

envergonhar. No Sabbado tive a visita de um Lente, a quem nunca fui recommendado,

de quem fui discipulo o ano passado (Henrique do Couto) e que disse a alguem, que,

não visitando estudante algum, me queria visitar, não por causa de ser filho de quem

sou, mas por sympathisar comigo, mas como a haver causa para essa sympathia, não

pode ser senão a educação que tenho tido, e n’isso não tenho eu por mim só

merecimento algum, por isso aponto o facto para o saberem aquelles a quem diz

directamente respeito. Adeos Minha Querida Maman do meu Coração. Abraço o Papa e

os Manos, peço recados para todos e sou do Coração seu filho muito Amigo e obediente

Jozé.

10 horas da noite. Esteve hoje aqui o Dr. Bernardino que a todos se

recommenda. Adeos. Lembra-me pedir que se mande cortar um pouco a gola do meu

fraque de hinverno, para não andar com os hombros, á cabeça como pelo passado.

Adeos. Adeos.