perfeccionismo e depressÃo pÓs-parto

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1 FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA PERFECCIONISMO E DEPRESSÃO PÓS-PARTO BERTA MARIA MARINHO RODRIGUES MAIA Dissertação de Doutoramento em Ciências da Saúde, ramo de Ciências Biomédicas, realizada sob a orientação do Professor Doutor António Ferreira de Macedo (Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra) e co-orientação da Professora Doutora Maria Helena Pinto de Azevedo (Professora Catedrática, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra), no âmbito de uma Bolsa de Doutoramento atribuída pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Referência SFRH/BD/27288/2006). Co-financiamento POPH/FSE. 2011

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FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

PERFECCIONISMO E DEPRESSO PS-PARTO

BERTA MARIA MARINHO RODRIGUES MAIA

Dissertao de Doutoramento em Cincias da Sade, ramo de Cincias Biomdicas, realizada sob a orientao do Professor Doutor Antnio Ferreira de Macedo (Professor Auxiliar com Agregao, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra) e co-orientao da Professora Doutora Maria Helena Pinto de Azevedo (Professora Catedrtica, Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra), no mbito de uma Bolsa de Doutoramento atribuda pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia (Referncia SFRH/BD/27288/2006). Co-financiamento POPH/FSE.

2011

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you have to go about with that big smile on your face and people saying arent you lucky to have a dear little baby, and you feel utter despair. Welburn, 1980

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AO PROFESSOR DOUTOR ANTNIO FERREIRA DE MACEDO

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PROFESSORA DOUTORA MARIA HELENA PINTO DE AZEVEDO

5 Este trabalho no seria possvel sem a colaborao de pessoas e entidades que com a sua disponibilidade e apoio permitiram que chegasse a esta pgina.

Ao meu Orientador Professor Doutor Antnio Ferreira de Macedo e Santos e minha Co-Orientadora Professora Doutora Maria Helena Pinto de Azevedo pela oportunidade que me concederam de integrar a sua equipa de trabalho em 2004 e por dedicarem tanto do seu tempo a formar os elementos que recebem no Instituto de Psicologia Mdica. Pela capacidade de partilharem generosa e humildemente os vastos conhecimentos em Psiquiatria, Psicologia e investigao cientfica. Pela dedicao na organizao regular de seminrios ps-graduados, muito pertinentes para este trabalho. Por reforarem que a cincia no autista, promovendo a partilha fundamental de ideias e de conhecimentos. Por incentivarem a abertura de horizontes, que se concretizou num estgio de trs meses na Perinatal Section, do Institute of Psychiatry da University of London, que em muito contribuiu para o meu crescimento pessoal e profissional. Pela possibilidade que me deram de integrar projectos de investigao, de colaborar em aulas, cujos temas se prendiam com o meu objecto de estudo. Pela oportunidade de seguir em regime de ambulatrio casos clnicos em que, pela psicopatologia apresentada, me foi possvel aperfeioar a interveno na rea especfica do meu doutoramento. Pela contribuio imprescindvel na elaborao do meu projecto de doutoramento. Pela orientao neste trabalho, que tal como no meu mestrado, primou pela presena, competncia e generosidade na partilha de saberes. Pelo apoio constantes e pelas reflexes interessantes, sempre construtivas, que enriqueceram este trabalho.

Fundao para a Cincia e a Tecnologia por ter aceite este projecto, concedendome uma bolsa de doutoramento e por ter financiado o meu estgio em Londres.

Aos restantes elementos e colaboradores do Instituto de Psicologia Mdica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra: aos Mestres Maria Joo Soares e Jos Valente por toda a ajuda no controlo de qualidade das entrevistas. Doutora Ana Telma Pereira pela dedicao com que acompanhou a elaborao da parte prtica desta dissertao. Dra. Mariana Marques, Doutora Ana Telma Pereira, Mestre Maria Joo Soares e Doutora Sandra Bos pela colaborao imprescindvel na recolha da amostra. Mestre Ana Cabral e Doutora Ana Allen por todo o apoio e incentivo ao longo destes

6 anos. Ao Sr. Mrio Rui e Sr. Bruno Craveiro pela colaborao na informatizao dos dados. A todos os profissionais pessoal administrativo, enfermeiros, mdicos e directores dos Centros de Sade de Coimbra e respectivas extenses, bem como das Maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos cuja colaborao foi imprescindvel para a prossecuo deste trabalho.

s centenas de mulheres que to generosa e pacientemente prescindiram do seu tempo para colaborar neste projecto, aceitando, sem reservas, responder aos instrumentos de avaliao utilizados.

A um conjunto muito especial de pessoas, cuja importncia na minha vida seria dificilmente descrita em poucas palavras. Aos meus pais, Maria Rosa Marinho e Alberto Rodrigues Maia. Aos meus irmos, Rui e Liliana e, em especial, ao Francisco. Ao meu marido, Alberto Fragoso. Aos amigos, Francisco Cristvo, Mariana Marques, Ana Cabral, Sofia Amaral, Manuela Serra, Rita Oliveira e Cristina Nunes

7 NDICE GUIA DE ABREVIATURAS RESUMO ABSTRACT INTRODUO I CAPTULO: PERSONALIDADE 1. Conceitos gerais 2. Teorias da personalidade 3. Dimenses da personalidade 4. Bases biolgicas dos traos 5. Estrutura fenotpica: algumas imprecises 6. Estabilidade da personalidade 7. Perfeccionismo 8. Modelos do desenvolvimento do perfeccionismo 9. Perfeccionismo e o modelo dos cinco factores 10. Estabilidade do perfeccionismo 11. Perfeccionismo, stresse e psicopatologia II CAPTULO: DEPRESSO PERINATAL 1. Depresso 2. Depresso no perodo perinatal 2.1. Depresso na gravidez 2.2. Alteraes afectivas no ps-parto 2.3. Prevalncia e incidncia 2.4. Sintomatologia 2.5. DPP diagnstico distinto? 2.6. Consequncias da Depresso perinatal 2.7. Etiologia 2.7.1. Factores genticos 2.7.2. Factores hormonais 2.7.3. Regulao do sono 2.7.4. Factores obsttricos e ginecolgicos 2.7.5. Factores clnicos 2.7.6. Factores sociais 2.7.7. Factores psicolgicos 3. Preveno III CAPTULO: PERSONALIDADE E DEPRESSO PERINATAL 1. Personalidade e depresso 2. Relao entre personalidade e depresso 3. Modelos de relao 3.1. Modelo de vulnerabilidade 3.2. Modelo patoplstico 3.3. Modelo da complicao e sequela 3.4. Modelo do espectro 3.5. Modelo da causa comum 3.6. Modelo da independncia 3.7. Modelo estado dependente 4. Desenho do estudo/mtodos de avaliao 5. Personalidade e depresso 6. Personalidade e depresso perinatal I III IV V 1 1 4 6 9 12 13 14 23 26 29 31 37 39 43 45 46 51 53 54 56 58 58 59 60 61 63 64 67 68 71 73 75 79 80 82 83 85 86 88 88 89 90 93 104

8 IV CAPTULO: ESTUDO EMPRICO 1. mbito geral do projecto 2. Objectivos 3. Metodologia 3.1. Instrumentos e medidas 3.2. Procedimentos 3.3. Anlise estatstica 3.4. Amostra 4. Resultados 4.1. Prevalncia de perturbaes depressivas (DSM-IV e CID-10) 4.2. Prevalncia de sintomatologia depressiva (BDI-II e PDSS) 4.3. Incidncia 4.4. Pontuaes mdias de perfeccionismo e de sintomatologia depressiva 4.5. Correlaes entre o perfeccionismo e variveis scio-demogrficas 4.6. Correlaes entre perfeccionismo e sintomatologia depressiva 4.7. Comparao de mdias entre o perfeccionismo e a sintomatologia depressiva 4.8. Regresso mltipla hierrquica 4.9. Regresso logstica V CAPTULO: DISCUSSO E CONCLUSES REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS 109 111 111 112 112 123 128 129 133 134 134 135 136 138 138 143 160 190 217 251 281

9 GUIA DE ABREVIATURAS AA, Assertion of Autonomy AI, Ansiedade/Insegurana AN, Afectividade Negativa AP, Afectividade Positiva APA, American Psychiatric Association BDI, Beck Depression Inventory BDI-II, Beck Depression Inventory-II CM, Confuso Mental CID-10, International Classification of Diseases Tenth Edition CID-9, International Classification of Diseases Ninth Edition CIDI, Composite International Diagnostic Interview CV, Culpa/Vergonha DALY, Disability-Adjusted-Life-Years DAS, Distrbios do Apetite e do Sono DEQ, Depression Experiences Questionnaire DIGS, Diagnostic Interview for Genetic Studies DPP, Depresso Ps-Parto DPt, Depresso Perinatal DSM-III-R, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 3rd Edition Revised DSM-IV, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders Fourth Edition DSM-IV-TR, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 4th Edition R DZ, Dizigticos E, Extroverso ECA, Epidemiologic Catchment Area EDI, Eating Disorders Inventory EMP, Escala Multidimensional do Perfeccionismo EPDS, Edinburgh Postnatal Depression Scale EPI, Eysenck Personality Inventory EPQ, Eysenck Personality Questionnaire ERA, Emotional Reliance on Another Person GBDS, Global Burden Disease Study IDI, Interpersonal Dependency Inventory IPSM, Interpersonal Sensitivity Measure

10 LE, Labilidade Emocional LKA, Lazare-Klerman Armor Inventory LOI, Leyton Obsessionality Inventory LSC, Lack of Social Self-Confidence MDM, Maternidade Doutor Daniel de Matos MPS, Multidimensional Perfectionism Scale MPS-H&F, Multidimensional Perfectionism Scale-Hewitt & Flett MPT, Munich Personality Test MZ, Monozigticos N, Neuroticism NEO-PI-R, NEO-Personality Inventory-Revised NSC, National Comorbidity Survey OPCRIT, OPerational CRITeria Checklist for Psychotic Illness (Lista de Critrios Operacionais Para Doenas Psicticas) PAO, Perfeccionismo Auto-Orientado PCA, Perturbaes do Comportamento Alimentar PCI, Perfectionism Cognitions Inventory PDSS, Postpartum Depression Screening Scale POMS, Profile of Mood States POO, Perfeccionismo Orientado para os Outros PP, Psicose Puerperal PSP, Perfeccionismo Socialmente Prescrito PSP-Ac, Perfeccionismo Socialmente Prescrito: Aceitao Condicional PSP-PpO, Perfeccionismo Socialmente Prescrito: Padres Elevados pelos Outros RDC, Research Diagnostic Criteria SADS, Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia SNC, Sistema Nervoso Central Sui, Pensamentos Suicidas TCI, Temperament and Character Inventory TPQ, Tridimensional Personality Questionnaire WHO, World Health Organization 16 PF, 16 Personality Factors

11 RESUMO Introduo: So escassos os estudos que investigam a relao entre a depresso e as caractersticas de personalidade, nomeadamente o perfeccionismo. Objectivos: Avaliar o papel do perfeccionismo na depresso ps-parto. A prevalncia de depresso em toda a vida e a prevalncia e incidncia de depresso perinatal foram igualmente estimadas. Mtodos: 386 mulheres no terceiro trimestre de gravidez (idade mdia=30.08 anos; DP=4.205; variao=19-44) completaram a Multidimensional Perfectionism Scale na gravidez e o Beck Depression Inventory-II (BDI-II), a Postpartum Depression Screening Scale (PDSS) e o Profile of Mood States (POMS) e trs questes adicionais para avaliar a ansiedade trao, o stresse e o apoio social na gravidez e no ps-parto. Os diagnsticos (CID-10 e DSM-IV) foram produzidos usando a verso portuguesa da Diagnostic Interview for Genetic Studies na gravidez e no ps-parto e o sistema OPCRIT. Para as anlises estatsticas recorremos ao SPSS 15.0 e ao STATA. Resultados: A prevalncia de depresso em toda a vida foi de 39.6%/CID-10 e de 35.0%/DSM-IV. A prevalncia na gravidez foi de 2.3%/CID-10 e de 1.3%/DSM-IV; no ps-parto foi de 16.6% e de 11.7%, respectivamente. A incidncia na gravidez foi de 0%/CID-10 e de .3%/DSM-IV e no ps-parto foi de 7.5%/CID-10 e de 4.9%/DSM-IV. A prevalncia pontual na gravidez encontrada usando os pontos de corte do BDI-II variaram de 13.7% a 19.4% e usando a PDSS variaram de 14.2% a 17.9%. A prevalncia pontual de depresso ps-parto usando BDI-II variou de .8% a 13.0% e usando a PDSS variou de 3.9% a 12.7%. O Perfeccionismo Auto-Orientado (PAO) apresentou correlaes significativas com quase todas as dimenses do BDI-II, da PDSS e do POMS na gravidez; no ps-parto as correlaes foram quase inexistentes. O Perfeccionismo Socialmente Prescrito (PSP) apresentou um padro consistente de correlaes significativas com a maioria das dimenses do BDI-II, POMS e PDSS na gravidez e no ps-parto. O mesmo padro de correlaes foi encontrado para os subcomponentes do PSP (Percepo de que os Outros Impem Padres Elevados para o Self/PSP-PpO e Aceitao Condicional/PSP-Ac). O PSP-PpO apresentou as correlaes mais elevadas com o BDI-II e o PSP-Ac com a PDSS. As mulheres com nveis mdios e elevados de PAO e PSP apresentaram na gravidez pontuaes significativamente mais elevadas no BDI-II, POMS e PDSS comparativamente a mulheres com nveis baixos nestas dimenses. Este padro manteve-se no ps-parto apenas para o PSP. O PSP e o PSP-PpO revelaram-se importantes preditores de sintomatologia depressiva (BDI-II e PDSS) no ps-parto e o PSP-Ac mostrou ser um importante preditor apenas para a sintomatologia depressiva avaliada pela PDSS. Nenhuma das dimenses do perfeccionismo se mostrou significativa na predio do diagnstico de perturbao depressiva (CID-10 e DSM-IV). Concluses. As prevalncias foram mais elevadas quando a definio de caso se baseou em instrumentos de auto-resposta; a CID-10 produziu taxas mais elevadas do que o DSM-IV. O PAO um importante correlato para a sintomatologia depressiva na gravidez. A associao preferencial encontrada entre o PSP e o BDI-II, POMS e PDSS refora o seu carcter eminentemente negativo. O PSP, o PSP-PpO e PSP-Ac revelaram ser factores de risco para a sintomatologia depressiva no ps-parto, mas no para perturbao depressiva (CID-10 e DSM-IV) no ps-parto. Globalmente, os nossos resultados permitem-nos suportar o modelo ditese-stresse (para o PAO na gravidez), o modelo patoplstico (para o PAO na gravidez e para o PSP e subcomponente na gravidez e ps-parto) e o modelo de vulnerabilidade (para o PSP e seus subcomponentes no ps-parto).

12 ABSTRACT Context: The studies investigating the relation between personality characteristics and depression are scarce, including perfectionism. Aims: To examine the role of perfectionism in postpartum depression development. Lifetime prevalence of depression and depression prevalence and incidence in perinatal period were also estimated. Methods: 386 women in their third trimester of pregnancy (mean age=30.08 years; SD=4.205; range=19-44) completed the Multidimensional Perfectionism Scale in pregnancy and Beck Depression Inventory-II (BDI-II), Postpartum Depression Screening Scale (PDSS), Profile of Mood States (POMS) and three additional questions evaluating anxiety trait, stress and social support, both in pregnancy and in the postpartum. Diagnosis (ICD-10 and DSM-IV) were obtained using the Portuguese version of the Diagnostic Interview for Genetic Studies in pregnancy and postpartum and the OPCRIT system. SPSS 15.0 and STATA softwares were used. Results: The lifetime prevalence of depression was of 39.6%/CID-10 and of 35.0%/DSM-IV. One-month prevalence in pregnancy was of 2.3%/ICD-10 and 1.3%/DSM-IV; in postpartum it was of 16.6% and 11.7%. Pregnancy incidence was of 0%/ICD-10 and .3%/DSM-IV and in the postpartum of 7.5%/ICD-10 and 4.9%/DSMIV. Depression pregnancy point prevalence found with BDI-II cut-offs ranged from 13.7% to 19.4% and with PDSS cut-offs from 14.2% to 17.9%. Postpartum depression point prevalence found with BDI-II cut-offs ranged from .8% to 13.0% and with PDSS from 3.9% to 12.7%. Self-Oriented Perfectionism (SOP) showed significant correlations with nearly of the BDI-II, PDSS and POMS dimensions in pregnancy; in postpartum correlations were almost inexistent. Socially Prescribed Perfectionism (SPP) showed a consistent pattern of significant correlations with almost of the BDI-II, PDSS and POMS dimensions both in pregnancy and postpartum. With respect to SPP subcomponents, the same pattern of correlations was found. SPP-Others High Standards (OHS) showed higher correlations with BDI-II, while SPP-Conditional Acceptance (CA) presented higher correlations with PDSS. Women with higher SOP and SPP scores presented in pregnancy higher BDI-II, POMS and PDSS scores comparing with women with low scores in these dimensions. The same finding was found in postpartum only for SPP. SPP and SPP-HOS showed to be important predictors of depressive symptomatology (BDI-II and PDSS) in the postpartum and SPP-CA shown to be an important predictor only for depressive symptomatology assessed by PDSS. None of the perfectionism dimensions predicted depression diagnoses (ICD-10 and DSM-IV). Conclusions: Self-report measures generated higher prevalence estimates; ICD-10 produced higher rates comparing to DSM-IV. SOP was an important correlate for depressive symptomatology in pregnancy. The preferential association found between SPP and BDI-II, POMS and PDSS reinforces its negative character. SPP, SPP-HOS and SPP-CA showed to be important risk factors for depressive symptomatology in postpartum, but not for postpartum depression (ICD-10 and DSM-IV). In general, our results gives support to diathesis-stress model (for SOP in pregnancy), the patoplastic model (for SOP in pregnancy and SPP and its subcomponents in pregnancy and postpartum) and the vulnerability model (for SPP and its subcomponents in postpartum).

13 INTRODUO As perturbaes que ocorrem no perodo perinatal constituem um problema de sade pblica substancial, contribuindo para uma elevada mortalidade (especialmente nos pases em desenvolvimento) e morbilidade das mes e bebs. Vrios aspectos chave foram j tidos em conta na investigao. No entanto, necessrio delinear e clarificar outros menos estudados, como o papel de traos de personalidade especficos, para auxiliar o desenho de estratgias preventivas e intervenes mais efectivas. Da literatura emerge um ponto-chave: a considerao das caractersticas da personalidade crtica para a compreenso da depresso e de considervel relevncia para a optimizao do seu tratamento. Apesar deste reconhecimento, os estudos que privilegiam a investigao do papel da personalidade so escassos, mais ainda aqueles que se dedicam ao estudo do perfeccionismo. Nesse sentido, o objectivo deste trabalho consiste em avaliar o papel do perfeccionismo no desenvolvimento da depresso ps-parto. No captulo I tecemos breves consideraes sobre a personalidade, definindo os conceitos centrais. So descritas sucintamente as teorias da personalidade que se enquadram na teoria dos traos e na perspectiva psicobiolgica, dando relevncia s dimenses da personalidade do modelo dos cinco factores. So tambm abordados aspectos como as bases biolgicas dos traos, a estrutura fenotpica e a estabilidade da personalidade. Finalmente, focamos aspectos centrais do constructo do perfeccionismo, como a natureza unidimensional/multidimensional, o carcter positivo/negativo, os modelos de desenvolvimento e a sua relao com o stresse e a psicopatologia. No captulo II abordamos alguns aspectos epidemiolgicos da depresso, focando a ateno na depresso perinatal, explicitando aspectos clnicos e de investigao, epidemiolgicos e etiolgicos e fazemos uma breve aluso preveno deste quadro. No captulo III descrevemos a relao complexa entre a personalidade e a depresso, enunciando os modelos de relao existentes. So descritos os estudos que suportam a relao de vrios traos de personalidade com a depresso geral e, em particular, os poucos estudos existentes sobre esta relao com a depresso perinatal. O Captulo IV dedicado ao estudo emprico; definem-se os objectivos do presente trabalho, descreve-se a metodologia seguida e, finalmente, so apresentados os resultados. O Captulo V dedicado discusso dos resultados e concluses.

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I CAPTULO PERSONALIDADE

15 1. CONCEITOS GERAIS 1.1. PERSONALIDADEDepus a mscara e vi-me ao espelho. Depus a mscara, e tornei a p-la. Assim melhor, assim sem mscara. E volto personalidade como a um terminus de linha. lvaro de Campos

A palavra personalidade tem timo latino, derivando de persona, que se reporta mscara de teatro que os actores usavam na antiguidade, para transmitir emoes e atitudes distintas. O estudo da personalidade constitui um domnio que tem suscitado particular interesse. A definio do conceito no de todo consensual, sendo que existem quase tantas teorias como o nmero de autores que abordam esta temtica. Como sublinhado por Heatherton e Nichols (1994, p.4) a personalidade pode ser definida de forma a englobar praticamente todos os aspectos da vida e experincia humana. Assim, se por um lado o carcter heurstico desta diversidade 1 de abordagens permite explorar conceptualizaes diversas, por outro, o desacordo terico marcado, acarretando srias implicaes para a investigao e prtica clnica. Allport (1937) definiu a personalidade como uma organizao dinmica (activa/interaco com o meio) de sistemas psico-fsicos (bases biolgicas) do indivduo que determinam o seu comportamento caracterstico e os seus pensamentos. Trata-se de uma entidade nica, que traduz a forma como uma pessoa pensa, reflecte, age e se comporta em diferentes situaes. Eysenck (1953), um dos mais destacados tericos da personalidade, refere que a personalidade constitui uma organizao mais ou menos firme e durvel do carcter, temperamento, inteligncia e da dimenso fsica de um indivduo (bases biolgicas), que determina a sua adaptao ao meio. Na perspectiva de Cattell (1965), a personalidade um conjunto de traos que predispem o indivduo a agir de determinada maneira, num conjunto de situaes. Assim sendo, a personalidade pode ser definida como o repertrio individual completo de comportamentos relativamente estveis e duradouros. Nestas ltimas conceptualizaes est implcita a ideia de que uma avaliao da personalidade fornece

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Muitas destas teorias esto j, na melhor das hipteses, desactualizadas, sendo que as actuais teorias beneficiam, sem margem de dvida, do avano dos conhecimentos em Psicologia (Hansenne, 2005).

16 a base para a predio do comportamento no futuro. Importa, ento, esclarecer alguns termos especficos da psicologia da personalidade, no raras vezes usados na linguagem corrente como se de sinnimos se tratassem, quando na realidade possuem caractersticas que os tornam distintos, a saber: temperamento, carcter, traos de personalidade e tipos de personalidade.

1.2 TEMPERAMENTO Segundo Allport (1966, cit. por Vaz Serra, 1972) por temperamento entendem-se os fenmenos caractersticos da natureza emocional do indivduo, nos quais se incluem a sua susceptibilidade estimulao, a intensidade e rapidez usuais de resposta, a qualidade da sua disposio predominante e todas as peculiaridades de flutuaes dessa disposio, sendo vistos tais fenmenos como dependentes da organizao constitucional e, por conseguinte, em grande parte originrios da hereditariedade. Os temperamentos representam a dimenso afectiva e emocional da personalidade e possuem uma base biolgica. Estes surgem precocemente na nossa vida e continuam a desempenhar um papel na vida adulta (Buss & Plomin, 1984), embora possam ser modificados pela experincia. A ideia de que os temperamentos possuem uma base biolgica remonta antiguidade, tal como foi exposto por Galeno na sua teoria dos quatro temperamentos, inspirada nas ideias de Hipcrates. Mais recentemente, Cloninger (1986, 1987), no seu modelo biossocial da personalidade aponta trs temperamentos relacionados com neurotransmissores especficos (explicitados no ponto 2.2.). No entanto, segundo alguns peritos em Gentica Comportamental (Loehlin, 1992), a ideia dos temperamentos serem influenciados por factores genticos, de um modo mais especfico do que a personalidade no demonstrada com clareza. Apesar de serem vrios os temperamentos, possvel agrup-los mediante anlise factorial2, num nmero mais restrito (Hansenne, 2005).

1.3. CARCTER A palavra carcter foi durante longos anos usada como sinnimo de personalidade. Trata-se, porm, de um termo que foi sendo suprimido da literatura cientfica, devido s2

Foi Spearman que deu origem ao mtodo de anlise factorial, marco de grande importncia para o estudo da personalidade. Resumidamente, perante um grande nmero de itens que descrevem a personalidade, habitualmente avaliados mediante questionrios de auto-resposta, avalia-se a correlao entre os itens. Estes so subsequentemente extrados da matriz de correlaes sob a forma de dimenses que maximizam a similaridade entre os loadings dos itens num factor especfico.

17 conotaes morais, tendencialmente negativas, que normalmente lhe so atribudas. Segundo Allport (1966, cit. por Vaz Serra, 1972) por carcter deve-se entender a personalidade qual se fez um juzo de valor. Por esta razo, o autor manifestou em 1937 uma notria preferncia pelo termo trao, por ser desprovido de tais conotaes morais. Apesar destas crticas, Cloninger mantm este termo e o seu modelo integra trs caracteres auto-determinao, cooperao e transcendncia (Cloninger et al., 1993), definidos como dimenses da personalidade determinadas pela aprendizagem social e cognitiva, no sendo, ao contrrio dos temperamentos, influenciados por factores hereditrios.

1.4. TRAOS E TIPOS DE PERSONALIDADECada indivduo como todas as outras pessoas, como algumas outras pessoas e como nenhuma outra pessoa. Kluckhohn e Murray, 1953

Um trao de personalidade representa uma caracterstica durvel, a disposio individual que orienta a conduta, em diferentes contextos, de forma particular. Os traos, tambm designados por subdimenses, so considerados num continuum, que vai de um extremo ao outro. Em ambas as extremidades da recta encontram-se qualificativos opostos. Em mdia, os indivduos situam-se no meio dessa mesma recta, sendo as posies extremas ocupadas apenas por alguns. Exemplos de traos habituais so a impulsividade, a generosidade, a sensibilidade, a timidez ou a empatia. Por sua vez, um tipo de personalidade (ou dimenso de personalidade) corresponde a um conjunto de diferentes traos (ou subdimenses). A segunda metade do sculo XX pautou-se por uma distanciao relativa s tipologias, focando-se em modelos estruturais da personalidade, baseados em traos dimensionais. Pioneiros nesta abordagem foram Hans e Sybil Eysenck (1975), os quais propuseram que a personalidade podia ser medida ao longo de trs dimenses: extroverso/introverso, neuroticismo/estabilidade emocional e psicoticismo/fora do eu. Cattell (1990) props um sistema mais complexo no qual a variao da personalidade dependia de dezasseis dimenses diferentes. Quer Hans e Sybil Eysenck, quer Cattell derivaram as suas dimenses-trao usando a abordagem da anlise factorial.

18 2. TEORIAS DA PERSONALIDADE 2.1. PERSPECTIVA DOS TRAOS Allport e Odbert (1936, cit. por Costa & McCrae, 2006) produziram a primeira lista compreensiva de traos de personalidade, consultando o dicionrio. Esta estratgia permitiu identificar mais de dezassete mil nomes de traos, sendo que destes, pelo menos quatro mil pareciam ser descries significativas dos indivduos. Allport referiu que os traos eram estruturas neuropsicolgicas reais que contribuam para cada aco individual, sendo organizadores dinmicos do comportamento na transaco com as circunstncias ambientais. Na distino que fez entre traos comuns e disposies pessoais, os primeiros dizem respeito s dimenses das diferenas individuais, sendo relevantes para todas as pessoas (e.g. todos os indivduos podem ser considerados mais ou menos agressivos), enquanto as disposies pessoais, em contraste, so tendncias concretas encontradas nos indivduos que podem no ser relevantes para todas as pessoas. Na dcada de 70, vrios psiclogos, seguindo a influncia crtica de Mischel, olharam os traos como meras fices cognitivas. Contudo, na ltima metade do sculo passado, investigao emprica mais rigorosa clarificou a natureza, estrutura, origens e consequncias dos traos de personalidade. Cattell (1965) constituiu uma real viragem no estudo da personalidade, uma vez que se baseou na observao, definindo a personalidade como o que permite uma predio do que uma pessoa vai fazer, numa determinada situao, tendo desenvolvido o questionrio 16 Personality Factors (16 PF) mediante uma abordagem lexical. Hans Eysenck criou uma taxonomia hierrquica com trs grandes dimenses: psicoticismo, extroverso e neuroticismo. Cada dimenso neste sistema um conjunto de comportamentos, hbitos e factores co-variantes hierarquicamente organizados, que descrevem traos biologicamente baseados. Estas caractersticas so vistas como constructos dimensionais e as diferenas individuais so assumidas como resultando de combinaes destes trs super factores, os quais compreendem vrios outros factores de segunda ordem, derivados do Eysenck Personality Questionnaire (EPQ; Eysenck & Eysenck, 1975). De acordo com o Modelo dos Cinco Factores (Five Factor Model) existem cinco grandes factores para apreender o conjunto dos traos de personalidade,

designadamente: neuroticismo, extroverso, amabilidade, abertura experincia e conscienciosidade. Este modelo derivou do trabalho de Eysenck, que identificou a

19 extroverso e o neuroticismo como dois componentes essenciais da estrutura da personalidade. A ideia central da teoria dos traos a de que os traos devem ser distinguidos da maior parte dos atributos estudados pelos psiclogos, designadamente, atitudes, crenas, valores, hbitos, papis, relacionamentos, etc. Todos estes atributos podem mudar e de facto, mudam com o tempo e as circunstncias, enquanto os traos no. Como referido por Costa e McCrae (1980), os traos fornecem uma estrutura estvel atravs da qual, com a idade, o indivduo capaz de se adaptar, defender ou ajustar. Quinze anos mais tarde esta ideia conduziu distino entre tendncias bsicas (incluindo traos de personalidade) e adaptaes caractersticas (atitudes, crenas, etc.).

2.2. PERSPECTIVA PSICOBIOLGICA Na teoria de Gray (1970) os determinantes biolgicos ocupam uma posio importante, assentando primeiramente em dois factores: impulsividade e ansiedade. Um elevado nvel de ansiedade manifesta-se atravs de uma reaco emocional intensa diante de acontecimentos novos, de eventos que podem ser sancionados atravs de uma punio e ainda perante acontecimentos que no so reforados ou que so perigosos. Por outro lado, um comportamento que traduza impulsividade reflecte uma reaco mais importante a acontecimentos ligados a uma recompensa. Gray props, igualmente, um terceiro factor: o sistema luta/fuga. Este autor supe que o nvel de ansiedade controlado por um sistema de inibio comportamental, constitudo pelo sistema septohipocmpico, pelos aferentes noradrenrgicos e serotoninrgicos do tronco cerebral e respectivas projeces corticais dos lobos frontais. Uma excitao destes sistemas induz uma inibio da resposta. Por sua vez, o sistema de facilitao comportamental compreende os gnglios de base e as respectivas projeces dopaminrgicas no crtex, o que encaminha os indivduos no sentido de objectos atraentes 3 . Este sistema equivalente ao sistema de activao comportamental proposto por Cloninger. O modelo proposto por Zuckerman (1994) comporta diferentes verses. O primeiro modelo abrange trs factores: sociabilidade e emocionalidade (bastante prximos dos factores de extroverso e neuroticismo do modelo de Eysenck e de Costa e McCrae) e procura impulsiva de sensaes de carcter anti-social. Este ltimo assemelha-se dimenso de procura de novidade de Cloninger, embora enfatize o seu3

Este modelo provm, em exclusivo, de investigaes realizadas em animais, sendo que a aplicao aos comportamentos humanos assenta essencialmente em hipteses.

20 lado anti-social. Contudo, o mesmo factor corresponde incapacidade de inibir um comportamento ao servio de uma adaptao social. Cloninger (1986, 1987) props uma teoria biossocial4 unificada do temperamento e da personalidade. Nesta teoria, a personalidade conceptualizada como uma combinao de traos hereditrios e neurobiolgicos (dimenses do temperamento) e traos reflectindo a aprendizagem sciocultural (dimenses do carcter). As dimenses do temperamento parecem estar relacionadas com a actividade em sistemas neurotransmissores centrais especficos e so designadas: evitamento do perigo (sistema serotoninrgico), procura de novidade (sistema dopaminrgico) e dependncia de recompensa (sistema noradrenrgico). Este modelo inicial foi posteriormente modificado, tendo sido aumentado para sete o nmero de dimenses da personalidade: quatro temperamentos e trs caracteres. Aos trs temperamentos descritos atrs, foi acrescentada a persistncia, que descreve a tendncia de um indivduo para prosseguir um determinado comportamento, sem considerar as respectivas consequncias. Os caracteres, por seu lado, definem-se como dimenses da personalidade determinadas pela aprendizagem social e cognitiva.

3. DIMENSES DA PERSONALIDADE Tendo em conta o vasto nmero de modelos da personalidade, uma das grandes questes que se coloca a de saber quais so, afinal, as dimenses fundamentais e suficientes para descrever o conjunto da personalidade. Eysenck referiu serem trs. Cattell, por seu lado, definiu dezasseis, Cloninger sete, ao passo que Zuckerman props trs, cinco ou sete dimenses. Nas ltimas dcadas o Modelo dos Cinco Factores o que tem gerado mais consenso relativamente ao nmero de dimenses, mas no relativamente denominao das mesmas. Apresentamos, de seguida, uma breve descrio das cinco dimenses nucleares.

3.1. NEUROTICISMO O termo neuroticismo descreve um dos domnios bsicos da personalidade (Costa & Stone, 1997), que avalia a adaptao versus instabilidade emocional, sendo um dos traos mais estudados em todo o campo da Psicologia. As crianas e os adultos que tm pontuaes elevadas de neuroticismo ou emocionalidade negativa, so ansiosas,

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Teoria amplamente influenciada pela gentica comportamental e pela psiquiatria biolgica.

21 vulnerveis ao stresse, propensas a sentir culpa, tm falta de confiana, deficiente autoimagem, sentem-se facilmente frustradas, possuem relaes inseguras e tm propenso a pensar irrealistamente. Pontuaes baixas neste domnio correspondem a indivduos emocionalmente estveis e adaptados, calmos, com humor constante, relaxados, seguros e resilientes face a situaes de stresse. O aspecto central deste domnio a tendncia para vivenciar afectos negativos, como a tristeza, medo, embarao, raiva, culpabilidade e repulsa.

3.2. EXTROVERSO Os extrovertidos so calorosos, divertidos, expressivos, enrgicos, dominantes e amigveis. Apreciam a conversao e as relaes pessoais chegadas, bem como a estimulao social de estranhos. So assertivos e desempenham facilmente papis de liderana. Temperamentalmente, so caracterizados por uma necessidade de excitao, nveis elevados de energia e actividade e so muito optimistas. Pelo contrrio, os introvertidos, embora tenham competncias sociais adequadas, preferem evitar multides e tendem a ser reservados, sbrios, adoptando um ritmo de vida mais calmo. So mais orientados para a tarefa e independentes nas suas tomadas de deciso. Contrariamente ao que se pensa, no so necessariamente introspectivos, nem os extrovertidos so necessariamente ajustados (McCrae & Stone, 1997).

3.3. ABERTURA EXPERINCIA A abertura experincia ou intelecto um dos domnios do Modelo dos Cinco Factores menos debatido e menos compreendido, embora seja, segundo Costa e McCrae (1992a) o mais relevante para o estudo da imaginao e da cognio. O facto de formulaes alternativas ao Modelo dos Cinco Factores designarem este domnio por intelecto, no significa que a abertura experincia seja equivalente inteligncia (McCrae & Stone, 1997). Segundo os autores, este trao sublinha o interesse pela experincia sensorial, para alm da experincia intelectual. Globalmente, esta dimenso traduz a procura produtiva, a apreciao da experincia, a tolerncia e a explorao do no familiar (Lima, 1997). A abertura experincia (imaginao, criatividade e sensibilidade esttica) e o intelecto (facilidade em aprender, inteligncia, capacidade de compreenso) foram propostos como sendo o ncleo deste trao (John & Srivastasa, 1999); cada um destes traos pode ser um subcomponente de traos de ordem elevada. Os indivduos abertos experincia preferem a novidade, variedade e

22 ambiguidade em vrios aspectos da vida. So curiosos em relao ao seu mundo exterior e interior, so imaginativos e criativos e interessam-se pela beleza na arte e na natureza. Possuem um nvel elevado de curiosidade intelectual, so liberais e no convencionais nas suas vises polticas e sociais. Por sua vez, indivduos fechados experincia so conservadores, convencionais e terra a terra, preferem a simetria e simplicidade e tendem a ter um pensamento a preto-e-branco. So relutantes em mudar as suas vises e os seus comportamentos.

3.4. AMABILIDADE Os indivduos amveis so altrustas, cooperativos, empticos, generosos, educados e simpticos. Os indivduos desagradveis so agressivos, hostis, rudes, teimosos, cnicos, manipulativos e egocntricos. A amabilidade tambm inclui a vontade de se acomodar vontade dos outros. Esta dimenso tambm est ligada conscienciosidade ou constrangimento, na medida em que ambos os traos possuem aspectos de inibio versus desinibio (Clark & Watson, 1999). Os dois plos da amabilidade antagonismo e tendncias pr-sociais tm sido avaliados separadamente como traos distintos em vrios estudos com crianas e adultos. O antagonismo varia entre a tendncia para ser calmo e gentil e a tendncia para ser agressivo e hostil. Um terceiro factor de segunda ordem que tem sido identificado nos adultos e que pode estar relacionado com o neuroticismo ou emocionalidade negativa o cinismo/alienao (Martin et al., 2000). Este ltimo inclui a tendncia individual para desconfiar dos outros e para se sentir maltratado.

3.5. CONSCIENCIOSIDADE Os indivduos conscienciosos so responsveis, atentos, cuidadosos, persistentes, ordenados e metdicos. Pontuaes elevadas nesta dimenso representam pessoas que trabalham muito, so persistentes e altamente motivadas; pontuaes baixas representam pessoas algo desorganizadas, com uma clara falta de direco na vida. No seu melhor, as pessoas conscienciosas so efectivas, no seu pior, so guiadas pelo perfeccionismo e negligenciam a sua vida pessoal em funo do seu trabalho (McCrae & Stone, 1997). Os indivduos que possuem baixas pontuaes de conscienciosidade so irresponsveis, distrados e pouco cuidadosos. As diferenas individuais no controlo podem estar relacionadas com diferenas biolgicas nos sistemas de ateno executiva que se desenvolvem ao longo da infncia e dos primeiros anos escolares (Posner &

23 Rothbart, 2000). De facto, a capacidade para focar a ateno na infncia prediz o controlo mais tarde (Kochanska et al., 2000) e a capacidade que um adulto possui para se esforar em estar atento est associada conscienciosidade (Rothbart et al., 2000).

4. BASES BIOLGICAS DOS TRAOS Est bem estabelecido que os efeitos genticos so importantes para as diferenas individuais na personalidade (Bouchard, 1994). A maioria dos trabalhos sobre a gentica da personalidade recorre a questionrios de avaliao administrados a crianas e a adultos, sendo que os mais utilizados so o EPQ de Eysenck, o Temperament and Character Inventory (TCI) de Cloninger, o 16PF de Cattell e o NEO-Personality Inventory-Revised de Costa e McCrae. O grau em que dois traos tm influncias genticas e ambientais comuns evidenciado pelos coeficientes de correlao. Habitualmente comparam-se as correlaes intra-pares de gmeos monozigticos 5 (MZ) e dizigticos (DZ). Uma correlao elevada entre pares de gmeos MZ, comparada com a de gmeos DZ, sugere a presena de influncias genticas. Os estudos de gmeos (um dos mtodos mais utilizados em gentica comportamental) indicam que as influncias genticas contribuem para

aproximadamente 40 a 60% da varincia para virtualmente todos os traos de personalidade. Estudos de gmeos usando questionrios de personalidade de autoresposta tm sugerido hereditabilidades6 moderadas. H mais de trs dcadas atrs, um estudo (Loehlin & Nichols, 1976) envolvendo 800 pares de gmeos e dezenas de traos de personalidade, permitiu concluir que quase todos os traos de personalidade revelam uma influncia gentica moderada, sendo as correlaes entre gmeos MZ mais elevadas do que as correlaes entre gmeos DZ. Eaves et al. (1989) efectuaram uma meta-anlise dos estudos de gmeos que usaram os trs factores de Eysenck. As correlaes para gmeos DZ foram cerca de metade das encontradas para MZ, sendo as hereditabilidades de .58 para a extroverso (n=36 estudos), .44 para o neuroticismo (n=22 estudos) e de .46 para o psicoticismo. Numa reviso posterior, Loehlin (1992) apresentou os resultados de cinco grandes estudos que incidiam sobre um total de 24000 pares de gmeos, usando o NEO-PI5

Constituem um achado da gentica comportamental; uma vez que possuem o mesmo genoma, possvel afirmar que toda a diferena constatada entre ambos forosamente devida ao meio. 6 Mtodo estatstico que descreve o tamanho do efeito da influncia gentica e que se refere proporo da varincia observada (fenotpica) que pode ser explicada pela varincia gentica, variando de 0 a 1.

24 (Quadro I.1). No domnio da extroverso, os gmeos MZ, tendencialmente, assemelham-se mais do que os DZ, o que implica uma participao da hereditariedade nesta dimenso da personalidade. Do mesmo modo, os MZ educados separadamente assemelham-se quase tanto como os MZ educados juntos, o que constitui uma indicao adicional da contribuio dos genes. Mais ainda, os MZ assemelham-se muito mais do que os gmeos DZ educados, quer separadamente, quer juntos. As semelhanas entre os MZ so tambm muito mais importantes do que as encontradas nas fratrias biolgicas.Quadro I.1: Correlaes entre gmeos MZ e DZ (Modelo dos Cinco Factores) Proximidade gentica e do meio Extroverso Neuroticismo Gmeos MZ que vivem juntos Gmeos DZ que vivem juntos Gmeos MZ que vivem separados Gmeos DZ que vivem separados Fratrias biolgicas .51 .18 .38 .05 .20 .46 .20 .38 .23 .09

A amabilidade, a conscienciosidade e a abertura experincia mostraram uma correlao de cerca de .45 para MZ e de cerca de .20 para DZ, sugerindo estimativas de hereditabilidade de cerca de 40% (Loehlin, 1992). Estudos subsequentes de gmeos, usando o NEO-PI-R obtiveram estimativas de hereditabilidade de 41% para o neuroticismo, 53% para a extroverso, 41% para a amabilidade e 44% para a conscienciosidade (e.g. Jang et al., 1996). Na abertura experincia, os efeitos genticos contriburam para cerca de 61% da varincia. Esta correspondncia entre a estrutura gentica e a estrutura de factores observada no NEOPI-R sugere que todas as partes constituintes de cada domnio mais vasto partilham uma base gentica comum. Os resultados indicam uma correspondncia entre a estrutura fenotpica da personalidade e a arquitectura gentica subjacente, sendo esta observao consistente ao longo de vrias medidas. Estes resultados so especialmente interessantes, dada a grande falha de correspondncia entre o gentipo e o fentipo para a maioria das perturbaes mentais (Merikangas, 2002). De acordo com Plomin e Caspi (1999) todas as medidas de auto-resposta da personalidade so hereditrias. Embora a maior parte dos estudos de hereditabilidade tenha usado medidas de auto-resposta, os poucos estudos que usaram mtodos de avaliao alternativos chegaram a resultados similares (Heath et al., 1992; Riemann et al., 1997). Em suma, quase sem excepo, os estudos convergem em trs resultados: 1) cerca de metade da varincia nas medidas dos traos de todos os cinco factores parece ser

25 gentica; 2) o ambiente comum contribui para uma varincia quase nula; e 3) a varincia restante atribuda ao que se designa por ambiente no-partilhado. Parte da varincia relativa ao ambiente no partilhado erro de medida, quer aleatrio, quer sistemtico. Alguns tericos defendem que o resto devido influncia dos pares (Harris, 1998) ou a eventos biolgicos aleatrios, como o ambiente pr-natal ou doena (Pinker, 2002). De salientar que os esforos no sentido de identificar as influncias no partilhadas especficas tm sido mal sucedidos (Riemann et al., 1997). Perante os slidos resultados suportando a base gentica dos traos de personalidade, um dos tpicos que tem suscitado particular interesse o de procurar os genes especficos associados aos traos. Contudo, a procura de genes para a personalidade difcil uma vez que, ao contrrio do que acontece nas perturbaes monognicas, nas quais um nico gene necessrio e suficiente para produzir a perturbao, no h dados para tais efeitos no respeitante personalidade. Para os traos quantitativos complexos como a personalidade, a influncia gentica provavelmente resulta do envolvimento de mltiplos genes de pequeno efeito. Diversos estudos tentaram identificar os genes que participam na expresso de determinadas dimenses da personalidade, os quais se tm centrado nas dimenses dos modelos de Cloninger e dos Cinco Factores. Em dois estudos foi demonstrado que um polimorfismo7 do gene do receptor dopaminrgico D4 se encontra ligado dimenso procura de novidade (Benjamin et al., 1996; Ebstein et al., 1995). Os indivduos que possuam alelos8 mais longos obtiveram resultados significativamente mais elevados do que os que tinham alelos curtos. No entanto, as replicaes subsequentes conduziram a resultados mistos (e.g. Vandenbergh et al., 1997). Lesch et al. (1996) mostraram uma relao entre a dimenso de neuroticismo do NEO-PI-R e o gene do transportador de serotonina. Os indivduos com alelos longos tinham pontuaes mais baixas de neuroticismo do que os indivduos com alelos curtos. Este resultado tambm se observou na dimenso evitamento de perigo de Cloninger e na dimenso de segunda ordem de ansiedade de Cattell.

7

, por definio, uma variao fenotpica que pode ser separada em classes distintas e bem definidas. O controlo gentico d-se por um ou poucos locus, sendo a caracterstica pouco susceptvel a factores ambientais. 8 cada uma das vrias formas alternativas do mesmo gene.

26 5. ESTRUTURA FENOTPICA: ALGUMAS IMPRECISES Apesar do acordo entre os tericos dos traos de que a personalidade est hierarquicamente organizada e do entusiasmo a favor da estrutura dos cinco factores, existem ainda vrios problemas por resolver. Permanece a confuso em relao ao nmero de factores no sendo, portanto, possvel afirmar qual o nmero especfico de dimenses que compem a personalidade. Exemplos destas divergncias so os artigos trocados entre Eysenck e Costa e McCrae, cujos ttulos so bastante reveladores: Quatro maneiras de demonstrar que os cinco factores no so fundamentais (Eysenck, 1992) e Quatro maneiras de demonstrar que os cinco factores so fundamentais (Costa & McCrae, 1992b). Mais problemtico que a aceitao de uma estrutura universal so os problemas relativos ao contedo dos domnios de ordem elevada (Zuckerman et al., 1991, 1993), bem como relativamente natureza da relao entre os traos de ordem elevada e os traos de segunda ordem. Ao considerarmos como exemplo o cluster de traos designado de impulsividade-procura de novidade apercebemo-nos de uma srie de divergncias. Para Zuckerman et al. (1991, 1993) estes traos definem um factor de ordem elevada separado que se assemelha ao psicoticismo de Eysenck e ao constrangimento de Tellegen (Hansenne, 2005). Em contraste, o modelo dos cinco factores de Costa e McCrae (1992a) enquadra a impulsividade e a procura de novidade em domnios separados. A impulsividade considerada uma faceta do neuroticismo e a procura de excitao considerada uma faceta da extroverso. Tal significa que as definies dos constructos major, como o neuroticismo e a extroverso, diferem consoante os modelos. Estes problemas de definio revelam incertezas bsicas relativamente taxonomia dos traos de personalidade e comprometem a assumpo de que o Modelo dos Cinco Factores fornece a estrutura adequada. A persistncia destes problemas sugere tambm que as anlises psicomtricas e fenotpicas tpicas usadas para descrever a estrutura dos traos podem no ser suficientes para resolver as questes relativas definio (Livesley & Jang, 2005). Tais anlises recaem em constructos que so na sua natureza imprecisos, como ilustrado pela confuso relativa aos componentes da extroverso (Depue & Collins, 1999; Watson & Clark, 1997). As concepes de extroverso incluem sociabilidade ou afiliao, actividade, procura impulsiva de sensaes, emoes positivas e optimismo. Dada esta grande variedade de contedos, no pois surpreendente que os estudos relativos estrutura fenotpica gerem resultados

27 inconsistentes. Esta impreciso que provavelmente uma consequncia de se usarem conceitos da linguagem natural para descrever comportamentos complexos, contribui para a considervel variabilidade dos fentipos de personalidade.

6. ESTABILIDADE DA PERSONALIDADE Vrios autores questionaram a ideia de estabilidade da personalidade. Por exemplo, os tericos ambientais, como Dollard e Miller e Skinner defenderam que a situao ou o conjunto de contingncias comportamentais determinavam o modo como cada um se comportava numa situao particular e que as estruturas da personalidade duradouras ou disposies eram, na melhor das hipteses, irrelevantes, sendo mais provavelmente inexistentes, como defendia Mischel (Maiden et al., 2003). Epstein (1980), contudo, defendia uma consistncia considervel nos traos de personalidade quando era realizado um nmero de observaes comportamentais ao longo de um nmero de situaes e condies. Alguns estudos fornecem algum suporte para a base temperamental da personalidade (Caspi & Silva, 1995; Block & Kremen, 1996). Na idade adulta, alguns autores defendem a imutabilidade da personalidade (McCrae & Costa, 1999), enquanto outros sustentam que os traos de personalidade continuam a desenvolver-se para l da meia-idade e na velhice (Field & Millsap, 1991; Helson et al., 2002). Deste modo, a estabilidade versus mutabilidade da personalidade um dos problemas centrais do desenvolvimento da personalidade do adulto. De acordo com Simes (1999) so inmeras as questes relativamente a este ponto, as quais ilustram a complexidade do problema. Efectivamente, o que que se quer dizer com o termo estabilidade? estvel a personalidade, no sentido de que se revela imutvel, de uma situao para a outra ou de que se mostra consistente, de uma circunstncia temporal para outra? Que quantidade de mudana que considerada mudana? Existe uma continuidade/mudana, durante todo o perodo da vida adulta, ou ela limita-se a uma fase da mesma? Considera-se a mudana, ao nvel das caractersticas especficas ou ao nvel da estrutura factorial global da personalidade? Como que se reconhece a continuidade subjacente (genotpica) apesar da descontinuidade aparente (fenotpica)? Quais so os factores explicativos da estabilidade/mudana? H certos aspectos da personalidade mais mutveis do que outros? A personalidade de certas pessoas revela-se mais estvel do que a de outras? Assim, de acordo com o autor esta lista (incompleta) de

28 questes ilustra bem a extrema complexidade do problema e revela tambm a necessidade de fixar terminologias e de definir conceitos.

7. PERFECCIONISMO 7.1. CONCEITO O conceito de perfeccionismo 9 tem sido objecto de interesse e de ateno crescente, por parte dos investigadores e clnicos (Hamachek, 1978; Hollender, 1965). Contudo, e uma vez que este trao tem sido estudado mediante o uso de uma variedade de instrumentos de avaliao, ainda difcil compreender o seu significado, apesar das vrias tentativas no sentido da sua definio. A ttulo de exemplo, Horney em 1950 (Hewitt & Flett, 2002) descreveu o perfeccionismo como a tirania do dever (the tyranny of the shoulds). Por sua vez, Hollender (1965) considerou-o como a prtica de exigir a si prprio ou aos outros um desempenho qualitativamente elevado, maior do que o requerido pela situao. Burns (1980) postulou que o perfeccionismo como uma rede de cognies que inclui expectativas, interpretao dos acontecimentos e avaliao de si e dos outros. Segundo este autor os indivduos perfeccionistas estabelecem padres irrealistamente elevados, aderem rigidamente a eles, interpretam os acontecimentos de forma distorcida e definem o seu valor pessoal em funo da sua capacidade para atingir esses mesmos padres. Patch (1984) definiu o perfeccionismo como o estabelecimento de padres de desempenho elevados acompanhado de auto-avaliaes crticas. J o Obsessive Compulsive Cognitions Working Group (1997) definiu o perfeccionismo como a tendncia para acreditar que existe uma soluo perfeita para todos os problemas e de que fazer tudo de forma perfeita, no s possvel, como necessrio, sendo que o mais pequeno erro acarretar srias consequncias. Outras questes importantes, que sero desenvolvidas mais adiante, relacionam-se com a natureza uni ou multidimensional do perfeccionismo e com a delimitao dos aspectos positivos e negativos que integra. O grande interesse que o perfeccionismo tem motivado relaciona-se com a hiptese deste trao de personalidade estar relacionado com comportamentos maladaptativos de reaco ao stresse e de poder desempenhar um papel importante na etiologia, manuteno e curso de vrios quadros clnicos incluindo depresso (Hewitt &9

O termo perfeccionista provm do latim perfectione, significando vontade obsessiva de atingir a perfeio, tendncia para exigir a perfeio (Porto Editora, 2008).

29 Flett, 1991a, Hewitt et al., 1996), comportamentos suicidas (Hamilton & Schweitzer, 2000; Hewitt et al., 1994, 1997), perturbao obsessivo-compulsiva (Frost & Steketee, 1997; Maia et al., 2009), perturbaes do comportamento alimentar (Bardone-Cone, 2007; Maia et al., 2009; Macedo et al., 2007; Soares et al., 2009) e insnia (Azevedo et al., 2009, 2010).

7.2. DIMENSES Uma das formas de distino entre as vrias conceptualizaes do perfeccionismo diz respeito ao seu carcter unidimensional ou multidimensional. Historicamente, o campo unidimensional enfatizava os aspectos intra-pessoais na forma de factores cognitivos, como crenas irracionais (Ellis 10, 1962) ou atitudes disfuncionais (Burns, 1980; Weissman & Beck, 1978). No incio da dcada de 90 do sculo XX, em oposio viso anterior, comea a desenvolver-se uma perspectiva multidimensional do perfeccionismo. Esta mudana assentou em dois aspectos: 1) as descries clnicas dos indivduos com perfeccionismo referiam que se tratavam de indivduos muito preocupados com os erros, que duvidavam da qualidade do seu desempenho, que atribuam um valor considervel s expectativas parentais e que enfatizavam a ordem (Frost et al., 1990) e 2) as observaes clnicas independentes revelaram que o perfeccionismo tambm englobava aspectos interpessoais e que estes eram importantes nas dificuldades de ajustamento (Hewitt & Flett, 1991b). Em resposta insatisfao com as conceptualizaes unidimensionais do perfeccionismo foram desenvolvidos instrumentos de avaliao como as duas escalas que partilham a mesma designao: Multidimensional Perfectionism Scale11 de Frost et al. (MPS-F; 1990) e de Hewitt et al. (MPS-H&F; 1991a), que conceptualizaram o perfeccionismo como um constructo multidimensional. O aparecimento destas duas medidas foi significativo, por ter promovido a noo de que, sendo o perfeccionismo uma entidade complexa e multidimensional, as abordagens unidimensionais podiam negligenciar alguns aspectos chave desta orientao da personalidade. Embora as conceptualizaes subjacentes aos dois instrumentos no sejam iguais, a necessidade de diferenciar as facetas do comportamento perfeccionista um tema comum. Os autores sugerem que a focalizao exclusiva nos componentes cognitivos 10 11

Ellis foi o primeiro autor a referir o perfeccionismo como uma crena irracional central. Traduzida para Portugus como Escala Multidimensional do Perfeccionismo (EMP).

30 restritiva e que os factores interpessoais e motivacionais devem ser tidos em conta (Hewitt & Flett, 1990; Hewitt et al., 1991a). A MPS-F uma medida de seis factores que avalia quatro aspectos do perfeccionismo direccionados para o self, a saber: Padres Pessoais elevados, Dvidas acerca da Aco, Preocupao com os Erros e Organizao e dois aspectos do perfeccionismo que reflectem a percepo de exigncias parentais relativamente ao prprio (Expectativas Parentais Elevadas e Crtica Parental). Os autores excluram a subescala da Organizao do score total devido s baixas correlaes que apresentava com as restantes cinco subescalas. A questo sobre se a Organizao deve ser considerada como parte do constructo do perfeccionismo permanece por resolver (Flett & Hewitt, 2002). A MPS-H&F identifica dimenses intra-pessoais (i.e. perfeccionismo dirigido ao prprio), como o Perfeccionismo Auto-Orientado (PAO), bem como aspectos interpessoais, quer na forma de perfeccionismo dirigido aos outros (Perfeccionismo Orientado para os Outros - POO), quer na forma de perfeccionismo dirigido ao prprio, que radica nas crenas ou percepes de que os outros impem exigncias irrealistas face ao self (Perfeccionismo Socialmente Prescrito - PSP). O PAO uma dimenso intra-individual que envolve comportamentos perfeccionistas que derivam do self e que para ele so direccionados. O indivduo com elevado PAO cria as suas prprias expectativas perfeccionistas e exige a perfeio a si prprio. Esta dimenso inclui uma forte auto-motivao para ser perfeito, a manuteno de expectativas irrealistas face ao fracasso, auto-avaliaes exigentes que se focam nas prprias falhas e generalizao das expectativas irrealistas e avaliaes para os diversos domnios comportamentais. Esta dimenso pode estar relacionada com perturbaes e sintomas que envolvem o auto-conceito, como a depresso e as perturbaes do comportamento alimentar (Hewitt & Flett, 2001). O POO uma dimenso interpessoal do perfeccionismo que tambm surge do self, mas as exigncias perfeccionistas so direccionadas para os outros. Isto , integra fortes motivaes para que os outros sejam perfeitos em vrios domnios do funcionamento, expectativas irrealistas e avaliaes exigentes dos outros. Esta dimenso pode no produzir necessariamente perturbaes relacionadas com o self ou sintomas para o indivduo perfeccionista. No entanto, produz insatisfao ou dificuldades para os indivduos que so alvo destas exigncias. Estes ltimos podem sentir-se criticados e expressam o seu ressentimento por serem tratados de forma hostil. Assim, o

31 perfeccionista com um elevado POO pode vivenciar problemas interpessoais, bem como a perda de relaes importantes (Hewitt & Flett, 2001). O PSP outra dimenso interpessoal e envolve exigncias irrealistas que so percebidas como emanadas dos outros e direccionadas para o self. Por exemplo, envolve a crena na incapacidade pessoal para conseguir atingir as expectativas e as exigncias perfeccionistas percebidas. Assim, incorpora a percepo de que os outros impem exigncias irrealistas para o self e de que os outros s estaro satisfeitos quando aquelas forem atingidas. Esta dimenso envolve a preocupao com a falta pessoal de perfeio. Contudo, e talvez mais importante a forte preocupao destes perfeccionistas em obter e manter a aprovao e a considerao das outras pessoas e um sentido de pertena que poder ser alcanado se aos olhos dos outros se conseguir ser perfeito (Hewitt & Flett, 2001). O contedo dos itens da MPS-H&F foi baseado em descries de casos e na literatura, bem como na experincia clnica dos autores. As trs dimenses do perfeccionismo actuam como factores de vulnerabilidade nucleares e esto distintamente associadas a vrios tipos de psicopatologia (Hewitt & Flett, 1991b). As dimenses podem estar envolvidas, quer no incio das perturbaes psicolgicas, quer na exacerbao da gravidade dos sintomas, uma vez que reflectem vulnerabilidades especficas para perturbaes particulares que se manifestam na presena de acontecimentos ambientais especficos, situaes ou caractersticas da personalidade. As facetas trao tambm podem funcionar ao manterem nveis elevados de sintomas por influenciarem os mecanismos de coping. Deste modo, podem desempenhar um papel mediador 12 ou moderador 13 no desenvolvimento e manuteno da psicopatologia, ao influenciar os fracassos stressantes percebidos. A ampla aplicao em numerosos estudos destes dois instrumentos de avaliao veio fortalecer a noo de que o perfeccionismo uma entidade complexa e multidimensional e conduziu alguns investigadores a reexaminar as medidas unidimensionais, de modo a verificar se era possvel a identificao de subfactores. Joiner e Schmidt (1995) efectuaram uma anlise factorial dos seis itens da subescala do perfeccionismo do Eating Disorders Inventory (EDI; Garner et al., 1983) e encontraram

12

Os factores mediadores so factores de risco que ligam o factor de risco de interesse doena; explicam como e porqu outros factores so predictivos de psicopatologia (Susser & Schwartz, 2006). 13 Um factor moderador afecta a relao entre o factor de risco de interesse e a doena.

32 dois factores. O primeiro possua um contedo de itens que explorava o PAO e o segundo possua um contedo de itens que explorava o PSP. Porm, relativamente a esta questo da uni ou multidimensionalidade do constructo do perfeccionismo, ainda no foi alcanado um completo consenso. Shafran et al. (2003) postularam que se deve voltar a uma abordagem unidimensional para estudar o perfeccionismo, uma vez que as dimenses interpessoais descritas por Hewitt et al. (1991b) e por Frost et al. (1990) devem antes ser encaradas como meros correlatos 14 e no como aspectos centrais do perfeccionismo clnico. Defendem, tambm, que os actuais instrumentos de avaliao do perfeccionismo avaliam uma grande variedade de caractersticas alm das descritas pelos trabalhos anteriores; no avaliam o perfeccionismo per se mas, antes, constructos relacionados. Assim, apenas as subescalas PAO (MPS-H&F), Padres Pessoais (MPS-F) e alguns dos itens da subescala Preocupao com os Erros (MPS-F) se aproximam da avaliao do constructo do perfeccionismo tal como este tem sido descrito e mesmo estes possuem alguns itens que se referem auto-avaliao. O POO e o PSP da MPS-H&F so, ento, encarados como constructos que podem estar associados ao perfeccionismo, em vez de serem elementos integrais do mesmo. Esta perspectiva defendida por Shafran et al. (2003) est em contracorrente e ignora os principais achados da investigao na rea. Desde h mais de uma dcada que os aspectos interpessoais do perfeccionismo so essenciais compreenso do constructo. Os padres e exigncias auto-impostos so sem dvida importantes, impulsionados pela motivao central do perfeccionismo negativo que o medo de falhar. No entanto, igualmente essencial entender que este medo mrbido de errar se relaciona com o valor pessoal contingente aceitao pelos outros, com base num elevado desempenho. aqui que radica a importncia dos aspectos interpessoais. Em boa parte, o perfeccionista pensa que s vai ser estimado e considerado pelos outros se for perfeito nos seus padres e desempenhos, o que foi evidenciado por Campbell e DiPaula (2002). Neste estudo, foi explorada a soluo factorial da MPS-H&F (PAO e PSP), numa amostra de estudantes universitrios, com o intuito de melhor compreender os concomitantes das diferentes auto-crenas. Estes autores ao avaliarem o PSP encontraram dois tipos distintos de auto-crenas representadas nos itens. Uma era a crena de que ser amado e aceite pelos outros era contingente a um elevado desempenho e a outra era a crena de que as outras pessoas apresentavam padres ou expectativas14

Um correlato uma varivel que est associada ao resultado de interesse ( outcome). Porm, no um factor de risco confirmado por no se demonstrar a precedncia em relao a este.

33 elevadas para o self. Estes autores encontraram tambm dois tipos distintos de autocrenas na subescala PAO: 1) importante ser perfeito e 2) crena de que lutamos activamente pela perfeio. Para determinar em que medida estas diferenas se reflectiam na estrutura da MPS, os autores efectuaram uma anlise factorial, aps a administrao das duas subescalas a uma amostra no clnica de estudantes universitrios. Desta emergiram dois factores para cada uma das dimenses de perfeccionismo. O PSP subdividiu-se em Aceitao Condicional (PSP-Ac) e Percepo de que os Outros impem Padres Elevados para o self (PSP-PpO) e o PAO em Importncia de ser Perfeito e Procura da Perfeio. De seguida, os autores correlacionaram estas escalas com uma bateria de outras medidas como o BDI (Beck, 1967), uma verso abreviada do inventrio dos cinco factores (Costa & McCrae, 1989) e uma escala de afectividade positiva/negativa (Watson et al., 1988). Como esperado, os autores verificaram que o PSP estava positivamente correlacionado com a depresso, neuroticismo e afectividade negativa. O PSP-Ac encontrava-se positivamente correlacionado com a depresso, neuroticismo e afecto negativo e negativamente correlacionado com a auto-estima, extroverso, amabilidade, conscienciosidade, abertura experincia e afecto positivo. J o PSP-PpO apresentou correlaes positivas com a depresso e negativas com a amabilidade. Mais importante, a anlise de correlaes das duas subescalas construdas mediante os itens do PSP mostrou que os concomitantes deletrios do PSP pareciam derivar quase exclusivamente da percepo de que a aceitao por parte dos outros era condicional ao alcance de um desempenho superior. Por sua vez, o PSP-PpO no parecia em si mesmo ser um factor importante para a contribuio dos aspectos problemticos do PSP. Por seu lado, as duas subescalas do PAO no se mostraram correlacionadas com aspectos negativos substanciais. Recentemente explormos a estrutura factorial da MPS-H&F (PAO e PSP) numa amostra de mulheres grvidas e encontrmos duas solues factoriais (Macedo et al., 2009). A primeira engloba o PAO e PSP e a segunda alm de englobar o PAO, integra tambm uma subdiviso do PSP em Percepo de que os Outros impem Padres Elevados para o self (PSP-PpO) e Aceitao Condicional (PSP-Ac). Na seco da Metodologia (Captulo IV: Estudo Emprico) encontram-se descritos, em pormenor, estes subcomponentes, uma vez que os consideramos na anlise estatstica.

34 7.3. PERFECCIONISMO POSITIVO E NEGATIVO Tem sido sugerido que o campo do perfeccionismo sofre do mesmo enviesamento que caracteriza a psicologia em geral, isto , uma tendncia para focar a ateno nos aspectos negativos, sem reconhecer os aspectos positivos do constructo (e.g. Slaney et al., 1995). Deste modo, emergiram tentativas adicionais de melhor conceptualizar o perfeccionismo com o intuito de identificar os seus aspectos positivos. J Hamachek, em 1978, tinha sugerido que o perfeccionismo podia ser normal e neurtico. O perfeccionismo normal era definido como uma luta por padres razoveis e realistas que conduziam a um sentido de auto-satisfao e que aumentavam a auto-estima; o perfeccionismo neurtico era consubstanciado por uma tendncia para lutar por padres excessivamente elevados, motivado pelo medo de falhar e pela preocupao em no desiludir os outros. Deste modo, as pessoas com perfeccionismo normal estabeleciam padres elevados de forma similar s pessoas com perfeccionismo neurtico. No entanto, sentiam-se satisfeitas quando estes padres eram alcanados e retiravam prazer dos seus esforos direccionados para atingir os resultados. Todavia, a ideia de que o perfeccionismo era predominantemente negativo imperou na dcada seguinte. Burns (1980) defendia uma concepo negativa do mesmo, realando como caracterstica central dos perfeccionistas, a auto-avaliao realizada em funo do sucesso nos desempenhos. Pacht (1984) partilhava uma concepo inteiramente negativa, postulando que a procura da perfeio era um objectivo indesejvel e debilitante, que reflectia uma motivao que no era saudvel. Segundo este autor, esta procura por uma perfeio que no existe, que se torna perturbadora e que est associada a um nmero significativo de problemas psicopatolgicos. Actualmente, volvidos cerca de 30 anos aps o artigo de Hamachek, tem-se acumulado um substancial conjunto de dados que confirma existirem facetas positivas e negativas de perfeccionismo. Esta dicotomia foi retomada a partir da dcada de 90 por vrios autores, aps o aparecimento das conceptualizaes multidimensionais, sob diferentes designaes 15 . Apesar das aparentes diferenas entre as duas medidas do perfeccionismo em termos da natureza e nmero de facetas e caractersticas associadas, estas mostram ter dimenses comuns subjacentes. O trabalho pioneiro de Frost et al.15

Positive striving e maladaptative concerns (Frost et al., 1993), perfeccionismo activo e passivo (Adkins & Parker, 1996), perfeccionismo positivo e negativo (Terry-Short et al., 1995), perfeccionismo adaptativo e mal-adaptativo (Rice et al., 1998), perfeccionismo funcional e disfuncional (Rhaume et al., 2000), perfeccionismo saudvel e no saudvel (Stumpf & Parker, 2000), personal standards e evaluative concerns (Blankstein & Dunkley, 2000).

35 (1993) relativo anlise factorial das nove subescalas das duas MPSs revelou uma soluo de dois factores, designados como Maladaptative Evaluative Concerns (MEC) e Positive Striving (PS). Os autores concluram que o PS representava o aspecto adaptativo da motivao pessoal. Porm, estudos posteriores seguindo o mesmo mtodo implementado por Frost et al. (1993) verificaram que o PS estava relacionado tanto com caractersticas positivas, como negativas (e.g. Bieling et al., 2004). Mais recentemente, Stoeber e Otto (2006) efectuaram uma reviso sobre o carcter positivo e negativo do perfeccionismo que mostra que apesar das diferentes concepes e das duas abordagens bsicas (dimensional ou baseada em grupos) h considervel acordo para as duas formas de perfeccionismo: Positive Perfectionistic Strivings que inclui as dimenses Padres Pessoais elevados da MPS-F e PAO da MPS-H&F e Negative Perfectionistic Concerns que inclui as dimenses Preocupao com os Erros e Dvidas acerca da Aco da MPS-F, PSP da MPS-H&F e discrepncia percebida entre os desempenhos actuais e as expectativas elevadas (abordagem dimensional). Esta reviso revela ainda, tendo em conta uma abordagem baseada em grupos, que os perfeccionistas saudveis (healthy perfectionists) so indivduos com nveis elevados de perfectionistic strivings e nveis baixos de perfectionistic concerns e que os perfeccionistas no saudveis (unhealthy perfectionists) possuem nveis elevados de perfectionists strivings e nveis elevados de perfectionistic concerns, sendo que os no perfeccionistas apresentam nveis baixos de perfectionistic strivings. Assim, as concepes seguindo uma abordagem dimensional e as concepes seguindo uma abordagem baseada em grupos podem ser combinadas e comparadas de acordo com uma estrutura conceptual comum. Apesar destes resultados, a grande maioria da investigao suporta a viso de que os perfectionistic strivings esto associados a caractersticas positivas, particularmente quando as preocupaes perfeccionistas so controladas (no caso das concepes dimensionais: perfectionistic striving e perfectionistic concerns) ou quando estas apresentam nveis baixos (no caso das concepes baseadas nos grupos). Existe considervel acordo de que o perfeccionismo no tem de ser apenas

negativo, podendo igualmente ter aspectos positivos. Contudo, h ainda alguns autores que tm fortes dvidas quanto ao carcter positivo, saudvel ou funcional (j para no referir adaptativo) do perfeccionismo (e.g. Flett & Hewitt, 2002, 2005). Na distino entre perfeccionismo adaptativo e mal-adaptativo importante compreender a motivao subjacente a cada um deles. O perfeccionismo positivo, tal como descrito por

36 Terry-Short et al. (1995) um comportamento que funo do reforo positivo e inclui a disposio para se aproximar do estmulo. Em contraste, o perfeccionismo negativo funo do reforo negativo e envolve o desejo de evitar resultados indesejveis. Assim sendo, o perfeccionismo positivo acompanhado de uma baixa preocupao com a rejeio pelos outros, elevada auto-estima e auto-eficcia percebida, sendo a motivao primria atingir o sucesso. O perfeccionismo negativo, por sua vez, est associado a dvidas relativas qualidade do desempenho pessoal, a baixa auto-estima e a preocupaes excessivas com a possvel rejeio pelos outros, sendo a motivao primria evitar falhar. Em suma, a distino entre perfeccionismo adaptativo e mal-adaptativo de grande relevncia. No entanto, Hewitt e Flett (2002) referem que este aspecto est longe da resoluo, devido ao facto de no ter sido avaliado um conjunto de aspectos relacionados, os quais apresentamos em pormenor nos subtpicos seguintes.

7.4. PERFECCIONISMO E O ALCANCE DA PERFEIO Outro aspecto chave na literatura do perfeccionismo envolve a necessidade de reconhecer a distino entre o estabelecimento de padres perfeccionistas e o atingir desses mesmos padres. Tendo em conta este aspecto, Slaney et al. (2001) optaram por incluir uma medida separada de discrepncia como parte da sua Almost Perfect ScaleRevised. O conceito de discrepncia envolve a percepo pessoal da forma como os padres perfeccionistas foram alcanados. Assim, tal como postulado por alguns autores, as percepes de discrepncia desempenham um papel importante na experincia de distress (Higgins, 1987). De acordo com Slaney et al. (2002) a discrepncia um aspecto central no constructo do perfeccionismo. Flett e Hewitt (2002) referem, a este respeito, que as definies de perfeccionismo se devem restringir procura da perfeio e que as diferenas individuais nas discrepncias percebidas devem ser vistas como parte de um constructo relacionado, embora distinto, que enfatiza a auto-avaliao. Segundo os autores, as discrepncias e o trao perfeccionista podem diferir a vrios nveis, sendo que a diferena chave envolve factores temporais. Enquanto o perfeccionismo visto como um constructo da personalidade relativamente estvel, as discrepncias podem flutuar substancialmente em funo do feedback do desempenho, experincias de vida, etc.

37 Um estudo realizado por Hankin et al. (1997) avaliando a associao entre as dimenses do perfeccionismo e as auto-discrepncias numa amostra de estudantes, encontrou que o PAO no se mostrava correlacionado com as medidas de discrepncia ideal e actual. Por sua vez, o PSP mostrou-se positiva e significativamente associado com a avaliao da discrepncia. Assim, os autores sugeriram que as dimenses do perfeccionismo e as auto-discrepncias podem diferir conceptual e empiricamente, uma vez que o perfeccionismo, tal como conceptualizado na MPS-H&F, avalia a magnitude dos padres individuais independentemente da capacidade para os atingir (Flett & Hewitt, 2002). A necessidade de distinguir entre perfeccionismo e auto-avaliao tambm evidente na investigao do perfeccionismo e da auto-eficcia. As investigaes experimentais no estabelecimento de padres e auto-eficcia so baseadas na premissa de que desejvel e faz sentido distinguir entre padres e capacidade pessoal percebida para atingir esses mesmos padres (Wallace & Alden, 1991). A potencial utilidade da distino entre o perfeccionismo e as tendncias auto-avaliativas ilustrada pelo estudo do perfeccionismo, auto-estima e depresso. Alguns estudos tm avaliado a possibilidade da auto-estima mediar a ligao entre o perfeccionismo e a depresso (Preusser et al., 1994; Rice et al., 1998). Embora os dados relativos aos efeitos da mediao sejam mistos, uma implicao clara para a investigao de que possvel, e teoricamente significativo, distinguir o perfeccionismo e a valncia de auto-julgamentos.

8. MODELOS DO DESENVOLVIMENTO DO PERFECCIONISMO Vrios investigadores tm sugerido que o ambiente familiar e, em particular os comportamentos dos pais, desempenha um papel crucial no desenvolvimento do perfeccionismo (e.g. Blatt, 1995; Hamachek, 1978; Pacht, 1984; Shafran & Mansell, 2001).

8.1. MODELO DAS EXPECTATIVAS SOCIAIS Quer Hamachek (1978), quer Missildine (1963) discutiram o desenvolvimento do perfeccionismo em resposta contingente aprovao parental, ou seja, as crianas aprendem que a aprovao parental manifestada se forem perfeitas. Esta ideia deriva do trabalho de Rogers (1951) sobre as condies do valor. O autor defendia que as crianas estavam propensas a uma baixa auto-estima quando a aprovao dos pais era contingente concretizao das expectativas parentais. No caso do perfeccionismo,

38 acredita-se que os padres parentais so demasiado elevados; esta nfase reflectida no contedo dos instrumentos do perfeccionismo (Expectativas Parentais e Crtica Parental da MPS-F). Implcito no modelo das expectativas sociais est a noo de que as crianas que no so capazes de atingir as expectativas parentais iro vivenciar um sentimento crnico de desesperana como resultado da sua incapacidade para atingir os padres que lhes so impostos. Um sentido de valor pessoal contingente tambm um aspecto central do PSP, tal como descrito por Hewitt e Flett (1991). As pessoas que tm nveis elevados de PSP tm uma maior probabilidade de terem sido expostas a condies de valorizao contingente, sendo altamente vulnerveis a sentimentos de desnimo (helplessness) em resposta ao feedback negativo pelos outros. Enquanto Frost e colaboradores se focaram especificamente nas Expectativas Parentais, Hewitt e Flett conceptualizaram o PSP de modo a incluir a influncia dos membros da famlia, mas tambm presses sociais mais abrangentes, incluindo pares e professores. A um nvel mais amplo, esta viso iria envolver a noo de contingncia da sociedade como um todo (e.g. o ideal social de ter a aparncia fsica perfeita).

8.2. MODELO DA APRENDIZAGEM SOCIAL O modelo da aprendizagem social foca a ateno no papel da imitao, isto , a criana ter tendncia a imitar os comportamentos perfeccionistas que observa nos pais. O possvel papel da aprendizagem social na aquisio de tendncias perfeccionistas foi demonstrado na investigao clssica conduzida por Bandura (1986). A sua investigao demonstrou que as crianas tendem a imitar e a adoptar os padres avaliativos modelados pelos outros. Por exemplo, no trabalho de Bandura e Kupers (1964, cit. por Flett et al., 2002), as crianas foram expostas a um modelo adulto que tinha padres altos e baixos que tinham de ser alcanados de forma a resultar em recompensa. Os autores verificaram que as crianas expostas a modelos que as recompensassem s depois de atingir os elevados padres tinham uma menor probabilidade de se auto-recompensarem a menos que tambm atingissem padres elevados. Em contraste, crianas expostas a modelos que as recompensavam por atingirem padres mais baixos, imitavam o padro de auto-recompensa. Os investigadores do perfeccionismo tm testado indirectamente a perspectiva da aprendizagem social ao avaliarem os nveis de perfeccionismo nos pais e nos filhos. Frost et al. (1991) avaliaram a ligao entre duas amostras de estudantes universitrias e

39 as suas mes e pais. Os resultados indicaram que o perfeccionismo nas mes, mas no nos pais, estava associado ao perfeccionismo nas filhas. Vieth e Trull (1999) conduziram uma investigao semelhante, mas usando a MPS-H&F para avaliar os nveis de perfeccionismo em estudantes universitrios e nos seus pais. Os autores verificaram que o PAO nas filhas estava correlacionado com o PAO nas mes, mas no nos pais. O PAO nos filhos estava positivamente associado com o PAO nos pais e negativamente com o PAO nas mes. O PSP estava correlacionado nas filhas e nas mes. Estes dados sugerem que o papel da imitao no perfeccionismo pode estar especificamente relacionado com o progenitor do mesmo gnero.

8.3. MODELO DA RESPOSTA/REACO SOCIAL O modelo da reaco social baseia-se na premissa de que a criana se torna perfeccionista em consequncia de ter sido exposta a um ambiente adverso (e.g. abuso fsico ou maus tratos psicolgicos, incluindo carncia de amor ou exposio a vergonha ou ambiente familiar catico). A criana pode reagir ou responder a este ambiente tornando-se perfeccionista, como um mecanismo de coping. O perfeccionismo como uma reaco social ou resposta adversidade pode envolver vrios objectivos inter-relacionados. A criana pode tornar-se perfeccionista numa tentativa de escapar ou de minimizar o abuso futuro ou de reduzir a exposio vergonha e humilhao (e.g. se eu for perfeccionista, ningum me ir magoar). Alternativamente, a criana pode tornar-se perfeccionista como uma forma de tentar estabelecer um sentido de controlo e de previsibilidade a um ambiente imprevisvel. Relativamente poucos estudos testaram directamente este modelo. No entanto, a investigao sobre as perturbaes do comportamento alimentar consistente com a noo de que algumas pessoas se tornam perfeccionistas de forma a lidarem com ambientes hostis (Kaner et al., 1993; Kinzl et al., 1994).

8.4. MODELO DA EDUCAO PARENTAL ANSIOSA O modelo da educao parental ansiosa constitui outra via pela qual se pode desenvolver o perfeccionismo. Neste modelo a criana exposta a uma preocupao parental excessiva por no ser perfeita. A sobreproteco pode-se tornar numa forma especfica dos pais estarem constantemente a lembrar criana sobre a necessidade de evitar possveis erros. Esta educao ansiosa promove o desenvolvimento de tendncias

40 perfeccionistas e a orientao futura que envolve a necessidade de evitar ameaas associadas com erros antecipados. A investigao sobre o desenvolvimento das perturbaes de ansiedade comeou a ter em conta o papel da exposio a uma educao parental ansiosa. Gruner et al. (1999) desenvolveram uma medida de educao ansiosa e administraram-na a uma amostra de crianas em idade escolar. Os autores verificaram que a exposio a uma educao ansiosa contribua para uma varincia nica numa variedade de ndices de ansiedade (e.g. fobia social, ansiedade de separao, ansiedade generalizada). Flett et al. (2002) administraram esta medida de educao ansiosa e a MPS a uma amostra de estudantes universitrios. Apenas o PSP se mostrou significativamente associado a uma educao parental ansiosa. Este modelo merece claramente investigao futura. A exposio a uma educao parental ansiosa pode contribuir, em parte, para a relao consistente entre certas dimenses do perfeccionismo e a ansiedade.

9. PERFECCIONISMO E O MODELO DOS CINCO FACTORES As primeiras discusses sobre as origens do perfeccionismo enfatizavam o papel do neuroticismo. Por exemplo, assumia-se que o perfeccionismo surgia, em parte, de uma necessidade neurtica de agradar aos outros significativos, do medo de falhar, baseando-se na ansiedade e na dvida sobre o seu valor pessoal (Adler, 1956; Hamachek, 1978). Mais recentemente, vrios investigadores tm avaliado

empiricamente a relao entre o neuroticismo e o perfeccionismo usando anlises de correlaes. Flett et al. (1989) avaliaram a relao entre a Burns Perfectionism Scale e o neuroticismo/estabilidade emocional e a extroverso/introverso usando o EPI num grupo de estudantes. No foram encontradas correlaes significativas entre a extroverso/introverso e o perfeccionismo. O neuroticismo correlacionou-se

significativamente (r=.16) com a escala unitria do perfeccionismo e o perfeccionismo foi usado para predizer o neuroticismo atravs da interaco com o stresse de vida. A interaco mostrou que um elevado perfeccionismo associado a um elevado stresse de vida era significativo na predio do trao de ansiedade e, em menor extenso, do estado de ansiedade. Hewitt et al. (1991b) testaram a hiptese de que o PAO e o PSP (mas no o POO) estariam associados ao neuroticismo em amostras de estudantes e doentes psiquitricos

41 e, de facto, foram encontradas correlaes moderadas entre o neuroticismo do EPQ e o perfeccionismo em ambas as populaes. Frost et al. (1993) usaram uma medida diferente de afectividade positiva e negativa (Positive Affect-Negative Affect Scales; Watson et al., 1988) na comparao das duas MPSs. Num grupo de estudantes encontraram correlaes fracas a moderadas (r=.21 a .28) entre a afectividade negativa e a Preocupao com os Erros, Dvidas acerca da Aco, Crtica Parental e PSP. A afectividade positiva mostrou-se correlacionada com os Padres Pessoais, a Organizao e o PAO. Mais recentemente, o Modelo dos Cinco Factores tem ganho relevncia como uma estrutura de factores de ordem elevada para caracterizar e melhor entender outros constructos de personalidade (Costa & McCrae, 1992a). De acordo com uma reviso da literatura levada a cabo por Enns e Cox (2002) so dois os estudos que descrevem a relao do perfeccionismo com o Modelo dos Cinco Factores. Hill et al. (1997) estudaram a relao entre as dimenses da MPS-H&F e o Modelo dos Cinco Factores usando o NEO-Personality Inventory-Revised (NEO-PI-R; Costa & McCrae, 1992a) num grupo de estudantes universitrios. O PAO mostrou estar fortemente correlacionado com a conscienciosidade, particularmente com as facetas de esforo de realizao, obedincia ao dever e auto-disciplina, associaes que reflectem os aspectos adaptativos do PAO. Contudo, esta dimenso do perfeccionismo tambm se mostrou modestamente associada ao neuroticismo, sobretudo com as facetas de ansiedade e de hostilidade, reflectindo os aspectos potencialmente mal-adaptativos do PAO. Encontrou-se tambm uma pequena correlao entre o PAO e a amabilidade. Em contraste, o PSP mostrou-se fortemente associado com a subescala de depresso do neuroticismo, no apresentando qualquer associao com os traos adaptativos deste modelo. A terceira dimenso da MPS, o POO, apresentou uma correlao moderadamente negativa com a amabilidade e uma correlao fraca com a conscienciosidade; a relao inversa com a amabilidade, juntamente com uma associao com a faceta de hostilidade do neuroticismo, pode reflectir o potencial que uma pessoa com um POO elevado poder ter para vivenciar problemas interpessoais, assentes na competitividade, facilidade em expressar raiva e atitudes auto-centradas ou narcsicas (Costa & McCrae, 1992a; Hill et al., 1997). Parker e Stumpf (1995) avaliaram as correlaes entre as subescalas da MPS-F e as pontuaes do NEO-PI-R numa grande amostra de crianas sobredotadas. De salientar o facto de se terem encontrado correlaes moderadas entre o neuroticismo e

42 vrias subescalas do perfeccionismo (i.e., Dvidas acerca da Aco, Preocupao com os Erros e Crtica Parental). A conscienciosidade apresentou uma correlao moderada com os Padres Pessoais e uma correlao forte com a Organizao. Deste modo, as dimenses da MPS-F apresentaram uma relao diferencial clara com os factores de personalidade de ordem elevada. As dimenses que revelaram as associaes mais fortes com o neuroticismo foram, no surpreendentemente, as mesmas dimenses que apresentaram correlaes fortes com sintomas psicopatolgicos noutros estudos. Estas observaes interessantes forneceram, segundo Enns e Cox (2002) o mpeto para a explorao posterior desta relao. Enns e Cox (2002) tentaram replicar e alargar os resultados de Hill et al. (1997) e de Parker e Stumpf (1995) ao comparar ambas as medidas da MPS com o Modelo dos Cinco Factores numa amostra clnica. Os sujeitos, doentes no psicticos em ambulatrio, com perturbaes do humor e de ansiedade, completaram as duas MPSs e o NEO-PI-R (Costa & McCrae, 1992a). Os diagnsticos primrios (DSM-IV) eram depresso major (51%), distimia (12%), perturbao bipolar (6%), perturbao de pnico (16%), outras perturbaes de ansiedade (5%), abuso de substncias (2%) e outros diagnsticos do Eixo I e do II (8%). As correlaes observadas encontram-se descritas no Quadro I.2. Os padres de relao entre a MPS-H&F e os factores do Big Five foram quase similares aos observados por Hill et al. (1997) na amostra de estudantes. O PAO apresentou uma correlao fraca com o neuroticismo e com a conscienciosidade na amostra psiquitrica de Enns e Cox (2002), sugerindo que o PAO desempenha um papel menos adaptativo em doentes com perturbao psiquitrica. Em comparao com os estudos envolvendo amostras de estudantes, o PSP mostrou uma correlao forte com o neuroticismo e uma correlao negativa forte com a amabilidade e com a conscienciosidade enfatizando, mais uma vez, o papel predominantemente maladaptativo deste trao em doentes psiquitricos. As subescalas da MPS-F tambm apresentaram relaes amplamente discrepantes com os factores do Big Five. Este resultado mais aparente na relao com o neuroticismo e a conscienciosidade. A correlao entre as diferentes subescalas e o neuroticismo variaram de .58 para a Preocupao com os Erros, a uma relao inversa com a Organizao (-.14). Tendo em conta a correlao entre as subescalas e a conscienciosidade esta seguiu quase exactamente a ordem inversa: a conscienciosidade apresentou uma correlao forte com a Organizao e uma relao inversa substancial com a Preocupao com os Erros e as Dvidas acerca da Aco. A Preocupao com os

43 Erros e as Dvidas acerca da Aco tambm apresentaram uma relao inversa com a Extroverso e a Amabilidade, o que se mostra consistente com a associao a sintomas psicopatolgicos. Quadro I.2: Correlaes entre as MPSs e o NEO-PI-RNeuroticismo MPS H&F PAO PSP POO Frost PE DA CP EP PP O Extroverso Escalas do NEO-PI-R Abertura Amabilidade Experincia .10 .10 .03 .00 .01 .20 .20 .17 .13 -.16 -.38 -.39 -.32 -.21 -.23 -.07 -.07 -.03 Conscienciosi dade .22 -.11 .07 -.21 -.40 -.02 .08 .30 .51

.17 .36 .06 .58 .57 .27 .15 .11 -.14

-.11 -.22 -.17 -.29 -.35 -.05 .04 .06 .01

PAO: Perfeccionismo Auto-Orientado; POO: Perfeccionismo Orientado para os Outros; PSP: Perfeccionismo Socialmente Prescrito; PE: Preocupao com os Erros; DA: Dvidas acerca da Aco; CP: Crtica Parental; EP: Expectativas Parentais; PP: Padres Pessoais; O: Organizao.

Em suma, foi demonstrado, em diferentes estudos, que o perfeccionismo se encontra relacionado com diferentes factores de personalidade. O neuroticismo foi um preditor positivo significativo de PAO e PSP; a amabilidade foi um preditor negativo significativo de PAO e de POO e a conscienciosidade foi um preditor positivo significativo de PAO e de POO (Hill et al., 1997).

10. ESTABILIDADE DO PERFECCIONISMO O facto de aceitarmos que os traos de personalidade so entidades duradouras e estveis, depende, em larga medida, da forma como a estabilidade avaliada. Para se estabelecer se o perfeccionismo , de facto, estvel tem que se avaliar a estabilidade relativa e a estabilidade absoluta. Os estudos clnicos avaliam tipicamente a estabilidade da personalidade avaliando a mudana das pontuaes ao longo do tempo. Os investigadores tm-se focado quase exclusivamente na quantidade de estabilidade absoluta (ou mudana) ao estabelecerem concluses sobre a estabilidade da personalidade e depresso e, geralmente, esperam uma maior estabilidade absoluta. Assim, quaisquer mudanas nas pontuaes da personalidade acompanhadas de mudanas nas pontuaes de depresso tm sido

44 geralmente assumidas como fornecendo suporte para a assumpo de que a personalidade no estvel. Poucas foram as tentativas no sentido de diferenciar estabilidade absoluta de estabilidade relativa (e.g. Duggan et al., 1991). Os estudo