pequena história da inquisição

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, Joao Bernardino Gonzaga

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inquisição

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  • ,Joao Bernardino Gonzaga

  • NOSSA SENHORA DA Luz DOS PINHAIS

  • Joo Bernardino Gonzaga

    Tendo-se iniciado no scu-lo XIII e vigorado at o scu-lo XIX, a Inquisio continuasendo um dos temas mis pol-micos da Histria da Humani-dade. Definida como semeado-ra do terror e embrutecedorados espritos, seus procedimen-tos processuais e penais soatualmente considerados violen-tos, reprovveis, intolerantes,prepotentes e cruis.

    Se, porm, lembrarmos queum dos princpios bsicos dahistoriografia que a anlisede qualquer fato histrico de-ve ser feita dentro do contextoem que se desenvolveu, observa-remos haver incongruncia nascensuras apresentadas contra aInquisio: seus crticos insistemem transport-la em bloco pa-ra . o nosso tempo como umacontecimento isolado e, dessemodo, a julgam dentro de pa-dres contemporneos, radical-mente diferentes do universoem que ela atuou. Ora, o San-

    Icm. Seu

    .f a

  • Joao Bernardino Gonzaga

    Jruluisierd olent Seu Mundo

    edio -- 1993

    Fla glArlaA I VA

  • ISBN 85-02-01267-3

    Copyright 1993, Joo Bernardino Garcia Gonzaga

    Todos os direitos reservados

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Gonzaga, Joo Bernardino GarciaA Inquisio em seu mundo / Joo Bernardino Garcia

    Gonzaga. 4. ed. So Paulo : Saraiva, 1993.

    Bibliografia.

    ISBN 85-02-01267-3

    1. Inquisio -I. Titulo.

    93-2169 CDD-272.2

    indices para catlogo sistemtico:

    1. Inquisio : Perseguies religiosas 272.2

    Maura Helena, minha esposa,e d Maria Elisa, minha filha,

    ddivas muito queridas,dedico este trabalho.

    QN editoraSARAIVA Av. Marquis de Sio Vicente, 1697 CEP 01139-904 Berra Funda Tel.: PABX (0111 828-8422Caixa Postal 2382 Telex 1126789 FAX (011) 826-0606 FAX Vendas: (011)825-3144 Sio Paulo-SP

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    Floriantopolis: 10482) 22-9425Fortaleza: 1085) 231-3820 / 231.7881Goiania: (062) 225-2882 / 212-2806Joinville : (04741 22-8777londrina: 10432) 39-1555Maui: (082) 221-9559Manaus: 1092) 234-4864Maring: (0442) 24-4485 / 22-6911Natal: 10841 222-5521Porto Alegra: 10511 343-1487Porto VNto: (069) 221-6063

    Recife: 1081) 421-4246 / 421-2474Relio Pieto:10161834-0546 / 836-9677Rio Branco: 1088) 224-3432Rio de Janeiro: (021) 201-7149Salvador: 1071) 233-5854 / 255-0959Sao Joint do Rio Preto: 10172) 27-3819no Luis: 10981 222-5863 / 222-5836Teresina: 10881 223-0474Ubedfadla: 10341 238-4107Vile Volta: (0271 2294835Vittoria: 1027) 227-6933 / 222-1044

  • NDICE

    APRESENTAO 11

    INTRODUO 17

    I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 211. Necessidade aqui do seu exame, 21; 2. Justia feudal, 22; 3. Jus-tia Eclesistica, 24; 4. Reaparecimento do Direito romano e sistemaprocessual inquisitrio, 25; 5. Absolutismo do poder real, 26; 6. Ine-xistncia do princpio de igualdade, 26; 7. Cerceamento da defesa,27; 8. Priso processual, 28; 9. Sistema das provas legais, 29; 10.Tortura, 31; 11. Princpio da legalidade dos delitos e das penas, 34;12. Princpio da personalidade da responsabilidade criminal, 35; 13.Princpio da proporcionalidade entre o crime e a pena, 36.

    II. MEDIDAS PUNITIVAS DO DIREITO COMUM 371. Penas privativas da liberdade, 37; 2. Penas restritivas da liberda-de, 38; 3. Penas privativas de direitos, 40; 4. Penas patrimoniais,40; 5. Penas corporais, 40; 6. Reforma humanizadora, 45.

    III. EXPLICAES PARA O RIGOR JUDICIAL 471. Geral aceitao do rigor, 47; 2. A proliferao de crimes, 48; 3.Dificuldades para a sua apurao, 48; 4. Finalidades das penas, 49.

    IV. CONDIES DE VIDA DO POVO 511. As cidades e as moradias, 51; 2. Presena da morte, 52; 3. Fome,peste, guerra, 53; 4. A Medicina, 55; 5. Insensibilidade, 56; 6. Asnavegaes martimas, 56.

    V. A PRESENA E O PROBLEMA DA RELIGIO 591. Religiosidade popular, 59; 2. Lutas religiosas, 61; 3. Os ciganos, 64.

  • JOO BERNARDINO GONZAGA

    VI. O MISTRIO JUDEU 651. 0 "povo eleito" e a dispora, 65; 2. Perseguies em Roma, 66;3. As cruzadas, 68; 4. "0 inferno da Idade Mdia", 69; 5. Restri-es impostas, 70; 6. Generalizada malquerena popular, 71; 7. Fun-damentos religiosos, 71; 8. Fatores sociais, 74; 9. Fatores econmi-cos, 75; 10. Responsabilidade coletiva, 77; 11. Idade Moderna, 77.

    VII. DIREITO PENAL E RELIGIO 791. O mutvel campo do Direito Penal, 79; 2. Estreitos vnculos coma religio, 80; 3. Sistema teocrtico puro, 80; 4. Pena apaziguadorada ira divina, 80; 5. Princpio poltico nacionalista, 81; 6. Crimesreligiosos, 82.

    VIII. DIREITO PENAL CANNICO 851. Formao do Direito Cannico, 85; 2. Direito Penal Cannico,85; 3. Regras processuais, 87; 4. Adoo da tortura, 87; 5. Conflun-cia de jurisdies, 90.

    IX. ANTECEDENTES E NASCIMENTO DA INQUISIO 921. Heresias no imprio romano, 92; 2. Idem, na Idade Mdia, 93;3. Reaes da Igreja, 95; 4. Nascimento da Inquisio, 97.

    X. EXAME CRTICO DA INQUISIO 1001. Interesse que o tema desperta, 100; 2. Acusaes Inquisio,103; 3. F da Igreja em sua misso, 106; 4. Princpio da unidadereligiosa, 107; 5. As crenas herticas, 109; 6. Cerceamento liber-dade religiosa, 112; 7. Perspectiva jurdico-penal do problema, 116;8. 0 pensamento de Santo Agostinho, 116.

    INDICE 9

    XIII. A INQUISIO NA ITALIA E NA FRANA 142

    1. Itlia, 142; 2. Judeus italianos, 147; 3. A crise franciscana, 148;4. Frana, 152; 5. 0 processo dos templrios, 155; 6. Joana D'Arc,156.

    XIV. A INQUISIO NA ALEMANHAE EM OUTROS PASES. MAGIA E BRUXARIA

    1591. Alemanha, 159; 2. Outros pases, 161; 3. Magia e bruxaria, 161.

    XV. A ESPECIAL SITUAO DA ESPANHA 1701. Invaso muulmana, 170; 2. Inquisio medieval, 171; 3. A Recon-quista, 172; 4. Unificao nacional, 173; 5. Presena da religio naReconquista, 174; 6. Difcil posio da Igreja, 176; 7. Nascimentoda moderna Inquisio espanhola, 180.

    XVI. A MODERNA INQUISIO ESPANHOLA.PRIMEIROS MOVIMENTOS

    1831. Incio da atividade inquisitorial, 183; 2. Torquemada, 185; 3. 0problema dos infiis, 186; 4. Judeus e marranos, 189; 5. Mouros emouriscos, 197; 6. Observaes complementares, 202; 7. Regras pro-cessuais e medidas repressivas, 204.

    XVII. A MODERNA INQUISIO ESPANHOLA.NOVOS PROBLEMAS 2071. Anseios de liberdade, 207; 2. Erasmo de Rotterdam, 208; 3

    Mis-ticismo, 209; 4. Magia e bruxaria, 212; 5. A Reforma protestante,212; 6. Crescimento da censura, 215; 7. Correntes liberais, 219; 8.Caminho do ocaso, 221.

    XI. O PROCEDIMENTO INQUISITORIAL 119 XVII. A INQUISIO EM PORTUGAL 2221. Modelos do Direito laico, 119; 2. Organizao do tribunal e atosprocessuais, 120; 3. Regras processuais de Direito comum e de Direi-to Cannico, 122; 4. Interrogatrio dos acusados e tortura, 124; 5.Cerceamento defesa, 128; 6. Classificaes dos hereges, 129.

    XII. O SISTEMA PENAL DA INQUISIO 1311. Finalidades das penas seculares e cannicas, 131; 2. Sanes impos-tas pela Igreja, 133; 3. Freqentes mitigaes, 136; 4. Pena de mor-te, 136,E 5. Medidas patrimonais, 141.

    1. Perodo medieval, 222; 2. Ainda e sempre, os judeus, 223; 3. Es-tabelecimento da Inquisio, 227; 4. Os trabalhos inquisitoriais, 230;5. Oscilaes no relacionamento com o Estado, 233; 6. Perodo Pom-balino, 236; 7. Triunfo do liberalismo e extino do Santo Ofcio, 237.

    EPLOGO 238

    OBRAS CONSULTADAS 240

  • APRESENTAO

    Eis mais um livro sobre o candente tema da Inquisio. Pode--se dizer, porm, que obra um tanto diferente das congneres.O autor, Prof. Dr. Joo Bernardino Gonzaga, advogado famo-so e docente de Direito Penal h muitos anos. Em seus estudos,deparou com o fenmeno "Inquisio"; esta, famigerada como ,mereceu-lhe especial ateno. Certo que se estendeu por centrias,ou seja, desde o sculo XII at o sculo XIX; comeou, pois, naIdade Mdia Ascendente, atravessou o perodo do Renascimento eprolongou-se pela Idade Moderna. Como entender tal fenmeno,comentado geralmente com antemas e censuras passionais?

    A fim de compreender os acontecimentos, o autor quis recorrera um autntico princpio de historiografia: no se podem compreen-der os antepassados e seus feitos com objetividade e justia se nose reconstituem as grandes linhas de pensamento da respectiva po-ca; cada ser humano filho do seu tempo e, por isto, profunda-mente marcado pela cultura do seu sculo.

    O Prof. Joo B. Gonzaga realizou a sua tarefa com especial co-nhecimento de causa, pois estudou os procedimentos penais da justi-a medieval e ps-medieval. No livro agora entregue ao pblico, elededicou no menos do que os oito primeiros captulos d recompo-sio das condies de vida do povo na Idade Mdia e d descriodas medidas punitivas da poca. Ele o fez com mincias muito vivase coloridas, que talvez surpreendam o leitor contemporneo, masque no impressionavam os homens de outrora; para estes, o rigorjudicirio era um elemento de sua cultura. E por qu? Como?

    Aqui se acha algo de importante, que bem distingue a mentali-dade moderna da medieval. Os medievais eram mais dados ao ri-gor da Lgica e s verdades metafsicas do que d ternura dos sen-timentos; o raciocnio abstrato e rgido neles prevalecia sobre o sen-so psicolgico (ainda no conheciam a moderna psicologia das pro-fundidades!)'. Em nossos dias verifica-se quase o contrrio: muito

    (1) Tenham-se em vista as grandes Sumas, tpicas da Idade Mdia; sio constru-es arquitetnicas movidas pelo raciocnio e seus silogismos rigorosamente concate-nados.

  • 12 JOO BERNARDINO GONZAGA APRESENTAO 13

    se apela para a psicologia e o sentimento, por vezes com detrimen-to de princpios perenes; estes cedem no raro a critrios subjeti-vos e relativistas. De modo especial, o senso metafsico dos medie-vais se revelava na valorizao da alma e dos bens espirituais. Togrande era o amor f (esteio da vida espiritual) que se considera-va a deturpao da f pela heresia como um dos maiores crimesque o homem pudesse cometer 2.

    Isto no quer dizer que os medievais, fossem insensveis ou br-baros. Dentro da sua fidelidade verdade e das suas categoriasculturais, procuravam cultivar a justia e a benevolncia. Um dostextos mais tpicos a propsito o retrato do Inquisidor traadopor Bernardo de Gui (sculo XIV), tido como um dos mais seve-ros inquisidores:

    "O inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pelaverdade religiosa, pela salvao das almas e pela extirpao dasheresias. Em meio s dificuldades permanecer calmo, nunca cede-r clera nem indignao. Deve ser intrpido, enfrentar o peri-go at a morte; todavia no precipite as situaes por causa da au-dcia irrefletida. Deve ser insensvel aos rogos e s propostas da-queles que o querem aliciar; mas tambm no deve endurecer oseu corao a ponto de recusar adiamentos e abrandamentos daspenas conforme as circunstncias. Nos casos duvidosos, seja circuns-pecto; no d fcil crdito ao que parece provvel, e muitas vezesno verdade; tambm no rejeite obstinadamente a opinio con-trria, pois o que parece improvvel, freqentemente acaba por sercomprovado como verdade... O amor da verdade e a piedade, quedevem residir no corao de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fimde que suas decises jamais possam parecer ditadas pela cupidez ea crueldade" (Prtica VI, Douis 232s).

    Alm disto, de notar que muitos dos rus sentenciados podiamgozar de indulto, que os dispensava total ou parcialmente da suapena. Podiam tambm usufruir de licena para sair do crcere eir tirar frias em casa; em Carcassonne (Frana), por exemplo, aos

    (2) E esta concepo que explica o seguinte texto de So Toms de Aquino:"E muito mais grave corromper a f, que a vida da alma, do que falsificar amoeda, que o meio de prover vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moe-das e outros malfeitores so, a bom direito, condenados morte pelos prncipes se-culares, com muito mais razo os hereges, desde que sejam comprovados tais, po-dem no somente ser excomungados, mas tambm em toda justia ser condenados morte ' ' (Suma Teolgica II-Il, 11, 3c); essa f era to viva e espontnea que difi-cilmente se admitia viesse algum a negar com boas intenes um s dos a rtigosdo Credo.

    13 de setembro de 1250, o Bispo deu a uma mulher chamada Ala-zais Sicrela permisso para sair do crcere e ir aonde quisesse ata festa de Todos os Santos (1 de novembro), ou seja, durante se-te semanas. Licena semelhante foi dada por cinco semanas a umcerto Guilherme Sabatier, de Capendu, na ocasio de Pentecostes(9/05/1251). Raimundo Volguier de Villar-en-Vai obteve uma licen-a que expirava no dia 20/05/1251, mas que lhe foi prorrogadaat o dia 27. Outro caso o de Pagane, viva de Pons Arnaudde Preixan, que, encarcerada, obteve licena para frias de 15/06a 15/08 de 1251.

    Os prisioneiros tinham o direito de se afastar do crcere paratratamento de sade por quanto tempo fosse necessrio. So nume-rosos os casos de que se tem notcia: assim, aos 16/04/1250, Ber-nard Raymond, de Conques, obteve a autorizao para deixar asua cela propter infirmitatem. Aos 09/08 seguintes, a mesma per-misso era dada a Bernard Mourgues de Villarzel-en-Razs, com acondio de que voltasse oito dias aps obter a cura. A 14/05 amesma concesso era feita a Armand .runet de Couffoulens; e a15/08 a Arnaud Miraud de Caunes. A 13/03/1253 Bernard Borreifoi posto em liberdade propter infirmitatem, devendo voltar ao cr-cere quinze dias aps a cura. A 17/08 seguintes, Raine, filha deAdalbert de Couffoulens, foi autorizada a permanecer fora do cr-cere quousque convaluerit de aegritudine sua (at que ficasse boada sua doena)... A repetio de tais casos a intervalos breves, es vezes no mesmo dia, mostra que no se tratava de excees,mas de uma rotina bem definida.

    Tambm havia autorizao aos presos para ir cuidar de seusfamiliares em casa. s vezes os problemas de famlia levavam osInquisidores a comutar a pena de priso por outra que permitisseatendimento famlia. At mesmo os mais severos praticavam talgesto; sabe-se, por exemplo, que o rigoroso juiz Bernard de Cauxem 1246 condenou priso perptua um herege relapso, chamadoBernard Sabatier; na prpria sentena condenatria, observava que,o pai do ru sendo um bom catlico, ancio e doente, o filho po-deria ficar junto do pai enquanto este vivesse, a fim de lhe dispen-sar tratamento.

    Acontece tambm que as penas infligidas aos rus eram abran-dadas ou mesmo supressas: a 3/09/1252, P. Brice de Montreal ob-teve a troca da priso por uma peregrinao Terra Santa. Aos27/06/1256 um ru que devia peregrinar d Terra Santa, recebeuem troca outra pena: pagaria 50 soldos de multa, pois no podiaviajar propter senectutem (por causa da idade anci). So conheci-

  • 14 JOO BERNARDINO GONZAGA APRESENTAO 15

    dos tambm os casos de indulto total: o Inquisidor Bernardo deGui, em seu Manual, apresenta a frmula que se aplicava para agra-ciar plenamente o ru. O mesmo Bernardo de Gui reabilitou umcondenado para que pudesse exercer funes pblicas; a um filhode condenado que cumprira pena, reconheceu o direito de ocuparo consulado e exercer funes pblicas.

    No h dvida, registraram-se tambm abusos de autoridadepor parte de Inquisidores. Deve-se, porm, observar que os Pa-pas e os Bispos, sempre que informados, infligiram censuras aosoficiais imoderados. Assim, seja citado m exemplo entre vriosoutros:

    Em 1305 o Inquisidor de Carcassonne provocou, por seus rigo-res, a revolta da opinio pblica: os habitantes de Carcassonne,Albi e Cordes (Frana) dirigiram-se Santa S. As suas queixasforam acolhidas pelo Papa Clemente V, que aos 13/03/1306 nomeouos Cardeais Pierre Taillefer de la Chapelle e Branger Frdol parafazer um inqurito do que ocorria na regio; enquanto este se pro-cessava e as prises eram inspecionadas, estava suspensa toda per-quisio de hereges. Os dois prelados iniciaram a visita aos crce-res de Carcassonne nos ltimos dias de abril; encontraram ai qua-renta prisioneiros que se queixavam dos carcereiros; estes foram lo-go substitudos por outros mais humanitrios; aos detidos foramassinaladas celas recm-reformadas e foi permitido passear per car-rerias muri largi ou em espao mais amplo; os guardas receberama ordem de entregar aos prisioneiros tudo o que fosse enviado pelorei ou por seus amigos para a sua manuteno. Os dois Cardeaisvisitaram outrossim os crceres de Albi aos 4/05/1306; mandaramretirar as correntes que prendiam os encarcerados, designaram ou-tros guardas, mandaram melhorar as condies sanitrias das pri-ses, abrindo janelas para a penetrao de luz e ar.

    Bonifcio VIII, tido como um Papa austero, mandou rever v-rios processos de condenao de hereges; com efeito, trs mesesaps assumir o pontificado, aos 29/03/1295, mandou revisar o pro-cesso do franciscano Paganus de Pietrasanta; aos 13/02/1297 anu-lou a condenao, por heresia, de Rainero Gatti de Viterbo e seusdois filhos, porque fora proferida na base de um testemunho man-chado por perjrio. Em 1298 o mesmo Papa mandou restituir aosfilhos de um herege os bens confiscados pela Inquisio. Intimoutambm aos Inquisidor da provncia de Roma, Ado de Coma,que deixasse de perseguir um cidado de Orvieto j absolvido pordois Inquisiddres.

    Sabe-se tambm que o Papa Hon6rio IV (1285-87) aboliu, na

    Toscana, as terrveis Constituies que o Imperador Frederico IIhavia editado contra as heresias.

    Este fato nos leva a considerar outro aspecto do fenmeno `In-quisio ":

    A Inquisio nunca foi um tribunal meramente eclesistico; sem-pre teve a participao (e participao de vulto crescente) do poderrgio, pois os assuntos religiosos eram, na Antiguidade e na Ida-de Mdia, assuntos de interesse do Estado; a represso das here-sias (especialmente dos ctaros, que pilhavam e saqueavam as fa-zendas) era praticada tambm pelo brao secular, que muitas vezesabusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais opoder rgio se ingeria no tribunal da Inquisio, servindo-se da re-ligio para fins politicos. Dois casos significativos a tal propsitoforam: 1) em 1312 a condenao dos Templrios, contra os quaiso rei Felipe IV o Belo da Frana (1285-1314) moveu a Inquisio,desejoso de possuir os bens da Ordem dos Templrios, quando con-denada e abolida; 2) em 1431 a condenao de Joana d'Arc, a jo-vem guerreira que incomodava a Coroa da Inglaterra . pelo seu ze-lo cristo e patritico.

    Alis, quanto mais a histria avanava, tanto mais absolutistasse tornavam os reis do Ocidente europeu, de tal modo que nopodiam tolerar outra instncia judiciria autnoma (a eclesistica)ao lado da instncia judiciria civil; esta deveria mais e mais valer--se dos tribunais eclesisticos para implantar os interesses dos mo-narcas. A prepotnc;a comeou com Felipe IV o Belo da Franae atingiu o seu auge na Espanha e em Portugal a partir do sculoXVI: o desejo de unificar a populao da peninsula ibrica, com-posta de cristos, judeus e muulmanos, levou os reis daquelesdois pases a pedir e obter do Papa a instalao da Inquisio emseus territrios; os soberanos acionavam a Inquisio segundo osseus propsitos, mediante homens por eles nomeados, provocandosrios conflitos com a Santa S, que mais de uma vez se recusoua reconhecer o procedimento da Inquisio na peninsula ibrica;alis, no final da vigncia desta instituio, j no se dizia Inquisi-o Eclesistica, mas sim Inquisio Rgia.

    A estes fatos outros se poderiam acrescentar. Um juizo justosobre o passado exige que se apontem tambm os elementos ate-nuantes e as justificativas daqueles que foram responsveis pelosprocessos da Inquisio.

    O Prof. Joo Bernardino deu provas de sincero amor verda-de procurando retratar imparcialmente os traos caractersticos da

  • 16 JOO BERNARDINO GONZAGA

    Inquisio. Quis oferecer ao grande pblico os elementos indispen-sveis para uma avaliao justa e objetiva dos fatos histricos.Possam os leitores desta obra beneficiar-se das coordenadas que oautor lhes apresenta na base de muita leitura e pesquisa! E possao prprio mestre regozijar-se por ter elaborado uma obra valiosae original sobre tema to complexo!

    Pe. Estvo Tavares Bettencourt O.S.B.

    INTRODUO

    A Inquisio tema que no morre. Nos ataques dirigidos Igreja Catlica, ela aparece sempre, qual perptuo ritornello a gi-rar com as mesmas frases, as mesmas imagens, as mesmas crticas.Estas so verossmeis, porque fundadas em fatos histricos objeti-vos, colhidos na vida real, e, fora de repetidas, adquirem apa-rncia de incontestvel verdade.

    Rememoremos o quadro estereotipado que os opositores descre-vem. Nascida oficialmente no comeo do sculo XIII e durandoat o sculo XIX, a Inquisio dedicou-se, dizem eles, a semear oterror e a embrutecer os espritos. Adotando como mtodo de trabalho,a pedagogia do medo, reinou, de modo implacvel, para im-por aos povos uma ordem, a sua ordem, que no admitia divergn-cias, nem sequer hesitaes. Ao mesmo tempo, pretende-se que oque havia por detrs dela, nos bastidores, era um clero depravado,ignorante e corrupto, em busca apenas do poder poltico e da ri-queza material.

    Intil tentar algum escapar-lhe. Dotado de natureza tentacular,o Santo Ofcio via tudo, se infiltrava por toda parte, at no reces-so dos lares, onde as paredes tinham ouvidos. Obrigava os fiis ase tornarem espies e ' delatores, dessa maneira montando densa re-de de informantes ocultos. Graas a isso, manteve perfeito contro-le social, exigiu modelos de comportamentos, impediu o livre deba-te e o livre arbtrio, sufocou dissidncias, exerceu a censura e assim

    eis a absurda concluso que nos impingem a Igreja teria con-seguido entravar por longo tempo o desenvolvimento cultural dahumanidade.

    As censuras, oferecidas com requintes de exagero, so de duasordens: policiamento ideolgico e crueidade. Servindo-se da Inquisi-o, a Igreja submeteu os povos sob seu domnio a verdadeira ca-misa de fora, devassou o ntimo das pessoas e transformou emcrime, passvel de fogueira, o simples ato de pensar em desacordocom ela. Abolido ficou o sadio direito, que cada ser humano de-ve possuir, de fazer suas opes.

    Prosseguem os adversrios, sempre montando quadros muito co-

  • loridos: a arma utilizada para submeter as pessoas era o terror.Para que algum fosse preso, bastava mera denncia secreta. Apartir da, o acusado se via submetido a alucinante processo, fei-to sob a gide do segredo e da dor: desconhecia a identidade dequem o delatara e das testemunhas que contra ele depunham; es-condiam-lhe as provas colhidas; ignorava o contedo das acusaes,mas, sem embargo, exigiam-lhe se confessasse culpado e admitisseque, no recndito da sua alma, era um herege. Negavam-lhe a as-sistncia de um advogado, o ru devia permanecer totalmente sozi-nho, merc dos algozes. Para extorquir-lhe o reconhecimento doseu crime (o crime de ter pensamentos prprios!), submetiam-noafinal tortura. Tudo isso se passava sombra, nos pores dasmasmorras inquisitoriais. O pobre infeliz que fosse apanhado ingres-sava em escuro labirinto, onde desaparecia para dele nunca maisse ter notcia; ou, quando acaso ressurgia luz do sol, muito tem-po depois, era para ser conduzido fogueira, na praa pblica,em meio a festivo auto-de-f. Todos os bens que ele e sua famliapossuam eram confiscados. O historiador francs Jean-Pierre De-dieu declara que, "ao ler a descrio de certos casos, chorou deemoo diante da grandeza de um mrtir, ou de raiva ao ver oque se fazia em nome de Cristo" (op. cit., pg. 8).

    Fala-se em centenas de milhares, alguns escritores avanam ou-sadamente at "milhes" de pessoas sacrificadas pela intolerncia.Os judeus foram atingidos duramente, em massa, trucidados, expul-sos dos seus lares e reduzidos misria. Com freqncia os subme-teram ao tremendo dilema de escolher entre o batismo forado oua morte. Na Espanha, a Inquisio atingiu o clmax do seu desen-volvimento e nela paira, como ave de mau agouro, a sinistra figu-ra de Torquemada, convertido pelos detratores em prottipo decrueldade fantica.

    riqussima a bibliografia que se compraz nessas evocaes,com livros cujos ttulos freqentemente j predispem o espritode quem os vai ler. Citemos dois deles: Martini del Libero Pensie-ro e Vittime delta Santa Inquisizione, de Antonino Bertolotti, eGli Orrori della Inquisizione, de Di Fral, E. Briffault e M. deCuendias. To cerrada e tenaz campanha montada sobre esse espec-tro de violncias acaba in fluenciando at mesmo estudiosos catli-cos do mais alto tomo.

    O que haver, ou no haver, de verdadeiro nisso tudo e deque modo deveremos interpretar aquilo que verdade? Lecionan-do Direito Penal desde h muitos anos e interessados no estudoda Histria desse ramo jurdico, sempre nos sentimos atrados pe-

    lo enigmtico problema da Inquisio, que, afinal de contas, cons-tituiu uma manifestao da Justia Criminal do seu tempo. Decidi-mo-nos por fim a enfrentar o desafio quando deparamos com es-ta contundente observao de Andr Frossard, que tanto admira-mos, em sua excelente coletnea Dieu en Questions: na Inquisio,escreve ele, "no se vislumbra qualquer trao de cristianismo".

    Como a explicaremos pois? Parece-nos muito intrigante o seguin-te: os tribunais de f, inegvel, foram violentos, usaram mtodosprocessuais e penais que consideramos reprovveis; levaram efetiva-mente a padecimentos e morte multides de pessoas, somenteporque elas ousavam ter suas convices. Tudo isso nos causa ans, hoje, forte repulsa. Como ento conciliar, eis a questo, tan-ta prepotncia e tanta maldade com a suave figura de Jesus deNazar; com a virtude da caridade, que deve ser o farol mximoa iluminar o caminho da Igreja?

    Prosseguindo: como entender o fato de que com a Inquisio,a despeito do acima dito, no fluir dos sculos conviveram tantospapas, tantos doutores, tantos santos, tantos piedosos sacerdotes eleigos, tanta gente boa enfim, que a dirigiram, que a apoiaram,que dela participaram, que a defenderam, ou, pelo menos, que apresenciaram com naturalidade, sem protestar? O grande So Do-mingos de Gusmo considerado um dos seus inspiradores. Teriamtodos o corao cheio de fel e estaria toda essa gente embrutecidapela m f? Ser crvel-que, durante to largo tempo, a Igreja ha-ja abandonado Cristo? Os trabalhos inquisitoriais ficaram sobretu-do a cargo, como seus principais responsveis e artfices, dos "fra-des brancos" pregadores, os dominicanos, e dos "frades menores",os humildes seguidores do poverello de Assis. Impossvel imagi-nar a cena de um frade franciscano, supostamente pleno de amor,alegria e compreenso, a torturar ferozmente algum infeliz; e, noobstante, isso aconteceu.

    Tantos aparentes paradoxos, conclumos, tm como causa ini-cial de incompreenso este grave erro: transporta-se em bloco a In-quisio pata a atualidade, a fim de julg-la dentro da atmosfera,das necessidades e das categorias mentais modernas, radicalmentediferentes do universo em que ela viveu. Desse modo, torna-se im-possvel aceit-la e forosamente ela horroriza. Ai precisamente,alis, residem a malcia dos seus atacantes e o interesse que mos-tram pelo assunto. Partindo da correta idia de que a Igreja se pro-clama "imutvel", eles alertam para o perigo de deix-la tomar denovo as rdeas do Poder, com o que voltariam as perseguies in-quisitoriais, com suplcios e fogueiras. Dessa forma, est-se confun-

    18 JOO BERNARDINO GONZAGA INTRODUO 19

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    dindo o essencial com o acidental. bvio que a imutabilidadedo dogma catlico nada tem a ver com a disciplina eclesistica,que pode perfeitamente variar, conforme as circunstncias de cadamomento histrico.

    A Inquisio, enquanto instituio humana, nasceu e permane-ceu imersa no mundo que a envolvia, que a explica e que a mode-lou. Logo, sem conhecer esse mundo, no poderemos julg-la. Porisso, quisemos proceder metodicamente na nossa investigao. Co-mo o Santo Ofcio integrou a Justia Criminal da sua poca, tor-na-se preciso saber de que modo se comportava essa Justia. Emseguida, verifica-se que a inteira Justia, tanto a comum como aeclesistica, esteve sob a influncia de um complexo de fatores,que criavam toda uma peculiar formao cultural. Eram condiesculturais, polticas, sociais, econmicas, religiosas, cientficas, quemoldavam certo estilo de vida, muito diferente do nosso. Com opresente estudo, tentamos desvendar essa trama.

    Impe-se igualmente lembrar a envolvente religiosidade da po-ca. Ao homem de hoje, forjado por intenso processo de seculariza-o que se iniciou com a Idade Moderna na civilizao ocidental,torna-se incompreensvel que a religio, outrora, haja assumido opapel de poderoso e efetivo ordenador da vida social. Tambmmerece ser exposta a sina do povo judeu, que se apresenta comfreqncia na linha de frente dos que ixosos contra o Santo Ofcio.

    Os historiadores que examinam a Inquisio se tornam muitasvezes enfadonhos devido excessiva meno, que fazem por deverde ofcio, de nomes, datas e episdios. Isso procuramos evitar oquanta possvel, a fim de aligeirar nosso trabalho. Mais do queum relato exaustivo, com elenco de fatos, o que buscamos foi en-tender o fenmeno histrico.

    Tal sendo nosso objetivo, cingimo-nos a examinar a Inquisioeuropia, deixando de lado suas manifestaes nas Amricas, quedaquela foram simples apndices. Essa extenso de pesquisa pare-ceu aqui dispensvel.

    No curso do relato, ao mencionarmos algum escritor, sua obraque citamos a indicada na bibliografia final. A Bblia Sagradade que nos servimos a traduo feita pelo Pe. Antnio Pereirade Figueiredo, edio Barsa, 1965.

    I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM

    1 Necessidade aqui do seu exame. 2. Jus-tia feudal. 3. Justia eclesistica. 4. Reapare-cimento do Direito romano e sistema proces-sual inquisitrio. 5. Absolutismo do poderreal. 6. Inexistncia do princpio de igualda-de. 7. Cerceamento da defesa. 8. Priso pro-cessual. 9. Sistema das provas legais. 10. Tor-tura. 11. Princpio da legalidade dos delitose das penas. 12. Princpio da personalidadeda responsabilidade criminal. 13. Princpioda proporcionalidade entre o crime e a pena.

    1. As censuras apresentadas contra a Inquisio giram, invari-vel e incansavelmente, em torno das idias de intolerncia, prepo-tncia, crueldade; mas, ao assim descrev-la, os crticos abstraem,ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu. 'Forampor trat-la quase como um acontecimento isolado e, medida pelospadres da atualidade, se torna incompreensvel e repulsiva parao expectador de hoje.

    Sucede porm que esse fenmeno foi produto da sua poca, in-serido num clima religioso e em certas condies de vida, submeti-do fora dos costumes e de toda uma formao cultural e men-tal, fatores que forosamente tiveram de moldar o seu comporta-mento. Por isso entendemos indispensvel suprir grave lacuna: an-tes de examinar a Inquisio, preciso conhecer de perto o mun-do que a envolveu, to diferente do nosso. Sobretudo, no nos ol-videmos de que o Santo Ofcio equivaleu a uma Justia Criminal,de sorte que no possvel entendermos o seu procedimento sempreliminarmente saber como ati{ava a Justia Criminal comum, oulaica, - que lhe foi contempornea e que lhe serviu de modelo. Es-ta era uma Justia assinalada por profundo atraso, com mtodostoscos e violentos, mas por todos encarada com naturalidade, apro-vada e defendida pelos mais sbios juristas de ento.

    Neste e no seguinte captulo, traaremos pois um quadro, que

  • 22 JOO BERNARDINO GONZAGA I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 23

    merece ser minucioso, da situao judiciria secular. Recuando amomento histrico anterior, faremos primeiro uma sntese muitoapertada da Justia feudal e da primitiva Justia eclesistica, paradepois examinar detidamente a longa fase do Direito comum que seestendeu desde o sculo XIII at fins do sculo XVIII. So cerca deseis centrias, que a Histria do Direito Penal designa como "pe-rodo da vingana pblica", porque se caracterizou marcantemen-te pelo desprezo s garantias individuais e por extrema brutalidade.

    2. No regime feudal a jurisdio pertencia ao senhor da terrae se exercia sobre todas as pessoas que nesta viviam.

    As regras processuais adotadas eram costumeiras e basicamen-te as mesmas, tanto nos assuntos civis como nas questes de natu-reza criminal. Vigorava o chamado "sistema acusatrio", reduzin-do-se o julgamento a um confronto, em termos de rigorosa igualda-de, entre dois particulares, nobres ou homens livres.

    No se formara a noo do interesse pblico em punir os c ri-mes. Conseguintemente, o direito de acusao somente pertencia

    pessoa lesada, ou, se esta houvesse morrido, sua linhagem. Sema presena de uma vtima, queixando-se, no era possvel instauraro pleito.

    O procedimento era pblico, oral e formalista. No dia fixado,as partes compareciam pessoalmente perante a assemblia formadapelos seus pares, sob a presidncia do senhor feud al ou de um seurepresentante. O autor apresentava sua queixa de viva voz, atravsde rgidas frmulas tradicionais, sem cometer nenhuma falha quepermitisse ao adversrio proclamar nula a demanda. Em seguida,competia ao acusado responder de imediato, uma vez que o siln-cio equivalia a uma confisso. A defesa tinha de consistir em nega-es exatamente ajustadas aos termos da acusao, refutando-a pa-lavra por palavra, de verbo ad verbum.

    Os litigantes deviam tambm prestar o juramento de que diziama verdade, sempre que possvel acompanhados de pessoas de bem,que endossassem suas posies. Eram os conjuratores. A prova tes-temunhal, caso existisse, era igualmente formalista: as testemunhasdepunham oralmente, diante das partes e da assemblia, limitando--se a pronunciar certas frmulas indicativas de que a razo estavacom este ou aquele contendor.. Mais do que o contedo das suasdeclaraes, o que importava era apenas o nmero de testemunhasconcordes. As regras indicavam quantos depoimentos bastavam pa-ra que se desse como provado certo fato.

    Na hiptese de os juramentos no serem aceitos e de inexistiremtestemunhas suficientes, restavam dois outros expedientes, oriundosdo antigo Direito germnico: o duelo e os "Juzos de Deus" ouordlios. Ambos se baseavam na mesma crena, de um Deus sem-pre presente no mundo, a interferir nos negcios humanos.

    Provo-cava-se pois a interveno divina, para que apontasse o culpado eno permitisse a condenao de um inocente.

    No duelo, batiam-se acusador e acusado, reconhecendo-se razoquele que vencesse. No deixava de haver a alguma perspiccia:esperava-se que o mentiroso, sabedor da prpria culpa, que Deustambm conhecia, lut asse com menor ardor, mais facilmente sen-do derrotado.

    Finalmente, se por qualquer motivo no conviesse o duelo, re-corria-se aos ordlios. Se o acusado insistisse na sua inocncia, eraele (e s vezes tambm suas testemunhas) submetido a alguma pro-va que ensejasse a Deus a revelao da verdade. Os mtodos varia-ram muito, mas em regra consistiram na "prova do

    fogo" ou na

    "prova da gua". Por exemplo, o ru devia transportar com asmos nuas, por determinada distncia, uma barra de ferro incan-descente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer cer-to nmero de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessemdesaparecido, considerava-se inocente o acusado; se se apresentas-sem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemen-te ocorria na "prova da gua", em que o ru devia por exemplosubmergir, durante o tempo fixado, seu brao numa caldeira cheiade gua fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpa-do, acreditando no ordlio e por temor a suas conseqncias, pre-ferisse desde logo confessar a prpria responsabilidade, dispensan-do o doloroso teste.

    Se o imputado fosse nobre de muito alto nvel, um prncipe,um conde, era-lhe permitido indicar algum subordinado seu paraparticipar dessas provas.

    Graas todavia firme oposio da Igreja, a utilizao dos or-dlios foi declinando, para praticamente desaparecer no sculo XIV.

    Em suma, no regime feudal o juiz se reduzia a mero rbitro,limitando-se a verificar a presena ou no de provas formais con-cludentes. O julgamento era imediato, or al

    e dele no cabia recur-so. Reconhecida a culpa do ru, as sanes aplicad as

    eram normal-mente de natureza pat rimonial.

    Firmou-se assim um sistema processual conhecido como "acusa-trio", dotado das seguintes caractersticas: necessidade de iniciativa

  • 24 JOAO BERNARDINO GONZAGA I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 25

    da vtima, sem o que o processo no se instaura; igualdade de di-reitos entre as partes, com instruo contraditria e pblica; forma-lismo; processo, por fim, endereado somente a satisfazer o interes-se individual lesado, e no o interesse pblico de represso aos cri-mes.

    Como bem se compreende, tudo quanto acima est exposto uni-camente se aplicava aos nobres, aos cavaleiros, aos homens livres.Os membros das classes servis estavam inteiramente submetidos vontade dos seus senhores, sujeitando-se a medidas punitivas discri-cionrias.

    3. Concomitantemente, se foi estruturando a Justia da Igreja,dotada de esprito por inteiro diverso.

    De comeo, somente se aplicava ao clero. O religioso que co-metesse alguma falta devia purg-la. A alma transviada precisavaser reconduzida ao rebanho. Os objetivos a alcanar eram, pois,a recuperao do faltoso e, qui, a tranqilizao da comunida-de.

    Tratava-se mais propriamente de uma Justia disciplinar do quejudiciria; e, vista dos seus objetivos, natural que adotasse re-gras com eles condizentes; a apurao dos fatos devia ser discreta,isto , secreta, para o bem do acusado e. para evitar escndalo p-blico. A confisso do ru passou a ter importncia capital, vistoconstituir indcio de arrependimento, suscitando esperana da alme-jada regenerao.

    Tudo enfim se passava em outro plano, totalmente distinto dasjurisdies feudais. Para ter incio o processo, admitiu-se a denun-tiatio de qualquer fiel. Logo, porm, o Direito Cannico preferiuo procedimento de ofcio, em que a autoridade eclesistica desenca-deava as investigaes to logo percebesse a possibilidade de algu-ma irregularidade. Com o papa Inocncio III, no sculo XIII, ecom o quarto Concilio de Latro, em 1216, firmou-se o mtododa inquisitio. No procedimento per inquisitionem, permitia-se aojuiz, mesmo sem acusador, abrir um processo e nele livremente co-lher as provas conducentes ao julgamento.

    Na Igreja nasce, desse modo, o que se veio a chamar de "siste-ma processual inquisitrio", caracterizado ento por estas notas:a autoridade dispe de poderes para, por sua iniciativa, encetaruma ao penal; liberdade do juiz para colher as provas que enten-da necessrias; procedimento secreto, em que avulta o interesse emobter a confisso do ru.

    4. Voltando ao Direito comum, acrescentemos que o empiris-mo da Justia feudal, com seu sistema acusatrio, a foi tornando,no passar do tempo, inaceitvel. Vrias foras concorreram paraextingui-la.

    O crescimento das cidades levou cada vez mais ao desenvolvi-mento de jurisdies municipais, com regras prprias e outras

    for-mas de julgamento. Foi-se tambm fortalecendo o Poder central,dos reis, que comearam a se impor inclusive

    na administrao daJustia. O meio inicial para dominar as cortes senhoriais consistiuna criao de recursos: das decises proferid as nos feudos, come-ou a caber apelo para o rei, o que desde logo obrigou adoode processos escritos. Mais adiante, foram os juizes reais que passa-ram a conhecer das causas, ab initio.

    Nesse nterim, no sculo XII, a Universidade de Bolonha ressus-citou o Direito romano, ou seja, o Direito imperial consolidadono Corpus Juris Civilis, que havia cado no olvido. E o que seveio a chamar "renascimento do Direito romano",

    que rapidamen-te suscitou enorme entusiasmo e se expandiu por vrios pases.Compreende-se: enquanto os costumes feudais eram rudimentares,no merecedores de confiana, os juristas medievais encontraramno Corpus Juris um conjunto prtico, completo e coeso de normassbias. Acresce que o Direito imperial romano estava montado so-bre a idia de centralismo poltico, o que muito convinha a umaEuropa que nessa altura tendia ao predomnio do poder real.

    Os romanos erigiram obra monumental sobretudo no campodo Direito Civil, enquanto o seu Direito Penal permaneceu de qua-lidade marcantemente inferior. Ambos foram todavia tomados embloco pelos juristas medievais, para reformularem os seus princ-pios e os mtodos judicirios.

    O ingresso desse Direito representou, certo, conquista magnfi-ca, acarretando enorme progresso.'Dentro dele, porm, havia umfruto venenoso, que acabou sendo tambm colhido: a tortura. Dora-vante, toda a instruo criminal, at o sculo XVIII, ser marcadapelo denodo na idia da confisso do acusado extorquida pela dor.

    Firmou-se dessa maneira nova orientao na Justia Criminalsecular, em que se mesclaram influncias do Direito Cannico edo Direito romano. Teve inicio ento o tenebroso perodo depois de-signado como "da vingana pblica", calcado num sistema inquisi-trio, tal como existia na Igreja, mas com estes acrscimos: proces-so secreto e escrito, defesa inexistente ou fortemente cerceada, lar-go emprego da tortura.

  • Passaram outrossim a coexistir trs jurisdies penais: a central,exercida pelos juizes do rei; a local, de cidades ou, conforme opas, de regies mais ou menos extensas; a eclesistica, restrita squestes que importavam Igreja.

    Ressalvemos que a Inglaterra constituiu uma exceo na Euro-pa ocidental, porque permaneceu imune ao Direito romano. Mante-ve-se ali o sistema acusatrio, com a publicidade dos processos, aoralidade dos debates e com a instituio do Jri, em que o ru julgado por seus pares. Em regra, esse pas no empregou a tortura.

    5. A Justia comum do longo perodo em exame (sculos XIIIa XVIII) desconheceu quase todas as garantias individuais que per-meiam as ordens jurdicas da atualidade.

    Comeando pelo plano constitucional , lembremos que a triparti-o poltica dos Poderes do Estado somente veio a ingressar nomundo civilizado em fins do sculo XVIII, por influncia de Mon-tesquieu: o Estado repartido entre : Poderes Legislativo, Executivoe Judicirio, cada qual soberano e independente na sua rea decompetncias. Isso, sem dvida, propicia no s a liberdade daJustia, mas tambm lhe permite agir com mais equilbrio e impar-cialidade.

    Antes, o rei enfeixava em suas mos todas as funes: deleemanavam as leis;. ele as aplicava depois, administrando; e, porfim, ao rei cabia tambm julgar, pessoalmente ou por seus dele-gados, as violaes daquelas leis. Tamanha concentrao de po-deres, j de per si teria de acarretar maior rigor na punio doscrimes, encarados como intolerveis ofensas s ordens do sobera-no, que as julgava. De imediato, tambm, o absolutismo re al le-vou a espantoso alargamento do crime de lesa-majestade. Todosos comportamentos que atingissem, ainda que longinquamente, osinteresses do monarca, ou de membros da sua C asa, eram castiga-dos com requintado rigor, qu ase invariavelmente recebendo a pe-na capital .

    6. Faltava o princpio, hoje constitucional, da igualdade de to-dos perante ;a lei e a Justia.

    Por expressas disposies legais, as pessoas eram tratad as diver-samente, no processo e nos mtodos punitivos, de acordo com aclasse social a que pertencessem.

    Aos nobres, di ficilmente se aplicava a tortura. ,As penas eramtambm executadas

    diferentemente. Por exemplo, a de morte, para

    os nobres, consistia na decapitao, enquanto o plebeu era levado forca.

    Cominavam-se, isto , indicavam-se na lei sanes distintas, con-forme a categoria do acusado. Eloqente exemplo disso o LivroV, Ttulo XXV, sobre o crime de adultrio, das Ordenaes Filipi-nas, que Felipe III de Espanha outorgou a Portugal em 1603: "Man-damos, que o homem, que dormir com mulher casada, e que emfama de casada stiver, morra por ello. Porm ' se o adultero forde maior condio, que o marido della, assi como, se o tal adulte-ro fosse Fidalgo, e o marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adulte-ro Cavalleiro, ou Scudeiro, e o marido peo, no faro as Justiasnelle execuo, at nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nossomandado".

    7. Eram tambm ignorados princpios, que reputamos bsicos,de Direito Processual e de Direito Penal. No Direito Penal encon-tra-se a indicao dos fatos considerados criminosos e as respecti-vas penas. No Direito Processual Pen al esto as regras que devempautar a apurao do crime e sua autoria.

    No Direito moderno, uma ao penal se deve compor necessa-riamente com trs personagens: o acusador, quase sempre represen-tado pelo Ministrio Pblico, o defensor e o juiz, eqidistante daspartes, que preside a colheita das provas por elas indicadas, even-tualmente ordena outras provas e, aps ouvir os debates, proferesua deciso. Bem se entende que essa posio sobranceira do ma-gistrado lhe facilita julgar com inteira imparci alidade.

    Ademais, vigoram atualmente o princpio da publicidade do pro-cesso, no sentido de que as partes tm total direito de acesso a to-dos os atos nele produzidos, e o princpio da plenitude da defesa,que de nenhum modo pode ser cerceada.

    Outrora, nada disso existia. O juiz dispensava a presena deum acusador e de um defensor. No Direito da Igreja, tambm eletratava diretamente com o suspeito, o que era compreensvel dian-te do objetivo visado, de promover o bem da pessoa que se trans-viara e perante quem o juiz atuava mais propriamente como umguia espiritual. Por manifesto sofisma, transportou-se o mesmo sis-tema para a Justia comum, em que a meta a alcanar era muitodiferente, ou seja, o puro e simples castigo do criminoso.

    No se admitia pois a presena de um advogado, ou, quandoisso veio mais tarde a ocorrer, a defesa era cuidadosamente entra-vada. O ru devia defender-se sozinho. As Ordenaes frances as de

    I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 2726 JOO BERNARDINO GONZAGA

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    1539 advertiam expressamente no art. 162 que "en matires crimi-nelles ne seront les parties aucunement ouyes par le conseil ne mi-nistre d'aucune personne; mais rpondront par leur bouche descas dont ils sont accusez".

    O processo freqentemente tinha origem em acusaes secretas,ocultando-se a identidade dos delatores. Todos os atos subseqen-tes eram mantidos tambm em segredo, de tal sorte que o ru nos ignorava a origem e o contedo da acusao que lhe faziam,mas desconhecia igualmente as provas produzidas. Nos primrdiosdo sistema inquisitivo, no era assim, porque, seguindo os usosdo Direito Cannico, as acta inquisitionis eram transmitidas ao acu-sado. Isso determinavam, por exemplo, as Ordenaes francesas de1254. Depois, o segredo se imps, e todo o material acusatrio pas-sou a ser escondido. Como diziam as Ordenaes francesas de 1498no art. 110, "quant aux prisonniers et autres accusez de crime,ausquels faudra faire procs crimine!, ledit procs se fera le plusdiligemment et secrtement que faire se pourra, en manire que au-cun n'en soil averti, pour viter les subornations et forgements quise pourroient faire en telles matires". Portanto, justificava-se aocultao com a necessidade de impedir que o ru, conhecendo asprovas , as viesse a adulterar. Um escritor da poca defendia tam-bm o sigilo para evitar a fuga do ru e a impunidade dos crimes:quando o culpado "sauroit que le crime est prouv contre luy, ils'en pourroit fouyr et ainsi demourroient les delicts impunis".

    Como conclui Esmein (op. cit., pg. 153), "todas as garantiasda defesa desapareciam pouco a pouco. O processo se tornara ab-solutamente secreto, no somente no sentido de que tudo se passa-va longe dos olhos do pblico, mas tambm no sentido de que ne-nhuma comunicao das peas era feita ao acusado. A este se foisucessivamente retirando a assistncia de conselheiros e a livre fa-culdade de arrolar testemunhas de defesa. Submetido a interrogat-rios hbeis e freqentemente prfidos, ameaado de tortura, ele fi-cava preso em terrvel engrenagem. Verifica-se mesmo que apsas Ordenaes de 1498 a presso se tornou mais forte; as Ordena-es de 1539 consagram novos rigores".

    8. Conhecemos duas espcies de priso: a penal, que se seguea uma condenao, como medida adequada ao crime; e a proces-sual (ou preventiva). Esta ltima no pena, mas tem objetivosexclusivamente processuais (garantir a presena do ru na Justia,evitar que ele fuja ante a perspectiva de prxima condenao, im-pedir que ameace ou corrompa testemunh as , etc.).

    I. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 29

    A priso processual pode portanto atingir pessoa inocente, queser depois absolvida. Exigem-se, de conseguinte, extrema prudn-cia e parcimnia na sua decretao, que as

    leis atuais costumamcercar de muitas cautelas, inclusive somente a permitindo em casosgraves. Em regra, o ru se deve defender solto.

    Antigamente, havia indiscriminado emprego dessa medida, bas-tando quaisquer pequenos indcios para que fosse imposta. Ao con-trrio do que sucede hoje, em princpio todo acusado devia perma-necer detido durante o processo.

    Ainda em 1764, Beccaria clamava contra o abuso, que persistia,consistente em dar total arbtrio aos magistrados "de aprisionarum cidado, de tirar a liberdade a um inimigo por frvolos pretex-tos, e deixar impune um amigo a despeito de haver indcios maisfortes de culpa". Queria esse autor que as leis estabelecessem compreciso quais as hipteses em que o acusado poderia ser presopreventivamente, e ressaltava a gravidade do problema lembrandoque os crceres do seu tempo continuavam sendo "a horrvel man-so do desespero e da fome".

    Anotemos tambm que as pesso as ficavam entregues aos capri-

    chos das autoridades, porque faltavam meios processuais expeditospara cortar os abusos. No havia qualquer providncia legal, co-mo o atual habeas corpus, apta a fazer cessar prontamente os cons-trangimentos ilegtimos.

    9. No curso de um processo criminal , colhem-se vrias provas.Como apreci-las na fase do julgamento? Eis outro ponto em queo Direito antigo se encontrava em profundo atraso.

    Vigora presentemente o sistema chamado "da livre convico":o juiz possui inteira autonomia para avaliar as provas, dando acada uma o peso que melhor lhe aprouver; mas em seguida temessa liberdade cerceada, porque lhe imposto o dever, sob penade nulidade, de justi ficar na sentena suas preferncias e a conclu-so firmada. Como exceo, conserva-se tambm o antigo "siste-ma da ntima convico", em que a liberdade plena, porque ojulgador fica dispensado de explicar seu veredicto. No Brasil, talsegundo mtodo adotado somente nos julgamentos, pelo Jri,dos crimes dolosos contra a vida (homicdio, induzimento, instiga-o ou auxlio a suicdio, infanticdio e abortamento), quando osjurados leigos, ou juizes de fato, se limitam a responder secamen-te a quesitos, com apenas um "sim" ou um "no".

    Em qualquer dos dois sistemas acima, as provas no possuem

  • pesos predeterminados pela lei, mas devem ser avaliadas caso a ca-so. Nem mesmo confisso do ru hoje atribuda eficcia absolu-ta, porque se sabe que ela pode ser falsa: o ru admite o crimepor erro, por coao, em virtude de desequilbrio mental, etc., eat mesmo pelo altrustico propsito de inocentar o verdadeiro cul-pado, que ele deseja proteger. Inexistem, no moderno Direito Pro-cessual Penal, restries prova testemunhal. Qualquer pessoa po-de depor em Juzo, inclusive as pessoas ligadas ao ru ou vti-ma pelos laos do casamento, do parentesco, da amizade ou inimi-zade. Idem os menores e os pobres de esprito, desde que saibamexpressar seus pensamentos. O juiz atribuir depois, a cada depoi-mento, a credibilidade que merecer.

    A antiga Justia Criminal comeou adotando o princpio "dantima convico", com absoluta liberdade dos julgadores. Genera-lizou-se ento o arbtrio e, para evit-lo, surgiu outro sistema opos-to, muito rgido, conhecido como "das provas legais": o legisladore os jurisconsultos, a priori, em abstrato, indicavam o exato valorde cada prova. Presentes tais ou quais provas na instruo da cau-sa, o juiz devia chegar a tais ou quais concluses.

    A inovao nasceu portanto com bons intuitos, mas produziupssimos resultados. Era impossvel ao legislador prever a infinitavariedade de situaes da vida real.

    Quanto sua natureza, o antigo Direito classificava as provasem testemunhos e confisso, ou prova vocal; escritos e objetos,ou prova instrumental;. presunes, ou prova conjectural. Quantoa cada espcie, distinguiam-se as provas perfeitas, ou plenas, e im-perfeitas ou semi-plenas. Havia as presunes invencveis, chama-das de indcios manifestos, e as vencveis. Os indcios, a seu tur-no, podiam ser prximos ou remotos e, no final da escala, figura-vam os adminicules, indcios que s valiam como apoio a outrasprovas (v.g., inconstncia das explicaes do acusado, tremor navoz, sua m fisionomia, etc.). Separavam-se ainda as provas e osindcios em gerais, porque, vlidos para qualquer crime, e especiais,porque somente eficazes quanto a certos crimes.

    A seguir, vinham as regras disciplinadoras das incontveis com-binaes possveis entre os vrios tipos de provas, dai surgindo com-plicadissima trama de hipteses. Como ironizou Voltaire, "admi-tem-se quartos e oitavos de provas. Pode-se encarar, por exemplo,um ouvir dizer como um quarto, um outro ouvir dizer mais vagocomo um oitavo, de sorte que oito rumores, que no passam deeco mal fundado, se podem tornar uma prova completa".

    A prova testemunhal foi cuidadosamente regulamentada, distin-guindo-se vrias categorias de testemunhas. Para aceitar como de-monstrado certo crime, era prefixado o nmero de depoimentosconcordes. Em geral, um s depoimento, por melhor que fosse,no bastava: testis unus, testis nullus. Inmeras pessoas no eramadmitidas a depor, notadamente as mulheres e os criminosos. Nosculo XVIII, Muyart de Vouglans ainda apresentava longa listade testemunhas inaceitveis, terminando com "os pobres e os

    men-digos".

    Chegamos desse modo a absoluto e inquo automatismo na apre-ciao das provas, em que nada importava a opinio do juiz. Mes-mo que este se achasse convencido da inocncia do ru, era obriga-do a conden-lo, se estivessem presentes as provas teoricamente re-putadas para isso suficientes.

    Tal sistema gerou tambm, como conseqncia inexorvel, o in-teresse em conseguir a confisso do ru, considerada a rainha dasprovas, a probatio probatissima, visto que a sua presena bastavapara condenar. Para alcan-la, recorria-se tortura. Est claro:se a confisso se tornara fruto to cobiado, tornava-se difcil re-sistir tentao de sacudir a rvore a fim de obt-la. Conformeanotam os historiadores, os juizes provincianos, principalmente,perdidos diante da complexidade das regras sobre o material proba-trio, optavam pela sada mais fcil e segura da tortura, que, le-vando confisso, tudo simplificava. Transformava-se o ru emjuiz da sua prpria causa, resistindo aos tormentos, para salvar-se,ou a eles cedendo, para perder-se.

    Vigorou por acrscimo este princpio, que hoje causa imensoespanto e que se enunciava em latim: "In atrocissimis leviores con-jecturae sufficiunt, et licet judici jura transgredi". Vale dizer, noscrimes atrozes, geralmente os mais difceis de apurar devido aoscuidados que tomam seus autores, o juiz ficava liberto das regraslegais sobre as provas necessrias, e podia condenar com base emelementos precrios.

    10. A nota judiciria mais caracterstica dos sculos que esta-mos estudando foi no entanto o indiscriminado, geral e tranqiloemprego da tortura, tambm chamada "questo". A tortura deque agora falamos no possua a natureza de pena, mas era ummeio processual de apurao da verdade. "Quaestio est veritatis in-dagatio per tormentum".

    Foi contra ela, ainda existente no seu tempo, que Beccaria, em

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    1764, reservou os mais candentes ataques Justia, repetidamentequalificando-a de "fria atrocidade", "industriosa crueldade", "in-til prodigalidade de suplcios".

    Parece que, em maior ou menor grau, essa violncia foi utiliza-da por todos os povos da Antigidade. O texto mais velho quedela nos d notcia acha-se em fragmento egpcio relativo a um ca-so de profanadores de tmulos, no qual aparece consignado que"se procedeu s correspondentes averiguaes, enquanto os suspei-tos eram golpeados com bastes nos ps e nas mos".

    Dir-se- que a tortura talvez constitua eterna fatalidade do g-nero humano e que prossegue hoje existindo. Sim, exato, bastalembrar o que ocorreu nos regimes totalitrios da Alemanha nazis-ta, da Itlia fascista, da Rssia comunista. Os franceses supliciaramprisioneiros na guerra de libe rtao da Arglia. Os agentes policiais,mesmo em pases civilizados, continuam utilizando tal recurso, eclebre ficou, nesse sentido, o "Third degree" da Polcia norte-ame-ricana.

    Sucede todavia que hoje a tortura s se pratica clandestinamen-te, com repulsa do Direito e da opinio pblica. As leis modernasa qualificam como crime, ameaando com severssimas pen as seusautores. Mesmo quando adotada por governos autoritrios, ela sefaz oficiosamente, s ocultas, e tem a sua existncia negada.

    Nos sculos passados, ao contrrio, os suplcios foram pacifica-mente aceitos, como recurso normal da Justia, e regulamentadospelo legislador. Na Espanha, em meados do sculo XIII, AfonsoX, o Sbio, tranqilizava seus sditos explicando no Cdigo dasSete Partidas que a tortura se justificava porque fora adotada pe-los sbios antigos (ou seja, pelos juristas romanos). Part. VII, tit.30, De Los Tormentos: "Porende tenieron por bien los sabios anti-guos que fizieron tormentar a los ornes, por que pudiessen saberla verdad ende dellos".

    Na Alemanha, na Itlia, na Espanha, em Portugal, por todaparte torturavam-se normalmente os acusados e, s vezes, tambmas testemunhas no merecedoras de f. Em Frana, as Ordenaesde 1254 e todas as subseqentes adotaram oficialmente a questo,o u interrogatrio com tormentos.

    Os escopos visados eram obter a confisso do suposto delinqen-te, a descoberta de cmplices e a verificao da eventual existnciade outros crimes que o ru pudesse ter acaso praticado. Assim,mesmo quando este confessava os fatos do processo, o juiz aindao podia continuar supliciando, para verificar se mais malfeitorias

    existiam. No Direito germnico, ao tempo da clebre ConstitutioCriminalis Carolina, promulgada em 1532 por Carlos V, expressa-mente se advertia que deviam ser empregados tormentos no proces-so, mesmo que se tratasse de fato manifesto, como na hiptesede um ladro preso em flagrante delito e com o objeto furtado ain-da em seu poder.

    As leis se limitavam a ordenar ou permitir a tortura, fixandoalgumas regras

    gerais para o seu uso, mas no especificavam noque ela poderia consistir. A forma e os meios a serem empregadospara produzir a dor seriam aqueles que os costumes indicassem,ou que fossem inventados por executores imaginosos. Facilmente,pois, ocorriam excessos. Toms y Valiente, em sua obra sobre oDireito Penal espanhol da monarquia absoluta, transcreve, pg.153, longo relatrio datado de 1598, em que os Procuradores dasCortes castelhanas se que ixaram ao rei contra a crueldade dos ju-zes, acusando-os de criarem "novos gneros de tormentos refina-dos, que, por serem to cruis e extraordinrios, nunca jamais osimaginou a lei".

    Uma tpica sesso de interrogatrio transcorria, em linhas ge-rais, deste modo. Algumas leis dispunham que o ru somente deve-ria ser supliciado vrias horas aps haver ingerido alimentos, quan-do j se achasse portanto enfraquecido. Exigiam-lhe ento, primei-ro, o juramento de que diria a verdade. Em seguida, lhe apresenta-vam os instrumentos que seriam utilizados, com explicaes sobreo seu funcionamento. Se, para evitar o tormento, ou no seu desen-rolar, o paciente confessasse o que lhe era exigido, levavam-no pa-ra outro lugar, seguro e confortvel, onde ele deveria ratificar aconfisso. Se esta no fosse ratificada, voltava-se tortura, emdias subseqentes.

    Em alguns sistemas legais, como por exemplo no espanhol dasSete Partidas, a questo podia ser repetida indefinidamente, seusnicos limites estando na obstinao do juiz e na fora de resistn-cia do paciente. Geralmente, porm, era estabelecido um nmeromximo, que costumava ser de quatro sesses. No sculo. XV, naFrana, explicava-se que se o suspeito "par question de gesne neveut riens dire ni confesser d la premire fois le juge le peut bienmettre au second jour; et puis au troisiesme, et puis au quatries-me, s'il volt que le cas le require, et il y ait si grande prsomp-lion et le prisonnier soil de fort courage".

    Equivalentemente dispunham as Ordenaes Filipinas, que vigo-raram em Portugal desde 1603: "Quando o accusado for mettidoa tormento, e em todo negar a culpa, que lhe posta, ser-lhe-a re-

  • petido em trs casos: o primeiro, se quando primeiramente foi pos-to a tormento, havia contra elle muitos e grandes indicios, em tan-to que, aindaque elle no tormento negue o maleficio, no deixa oJulgador de crer, que elle o fez; o segundo caso , se depois queuma vez foi mettido a tormento, sobrevieram contra elle outrosnovos indicios; o terceiro caso , se confessou no tormento o male-ficio, e depois quando foi requerido para ratificar a confisso emJuizo, negou o que no termo tinha confessado. E em cada um des-tes casos pde e deve ser repetido o tormento ao accusado, e ser-lhe-ha feita a repetio assi e como ao Julgador parecer justo; oqual ser avisado, que nunca condene algum, que tenha confessa-do no tormento, sem que ratifique sua confisso em Juizo, o qualse far fora da casa, onde lhe foi dado o tormento. E ainda sedeve fazer a ratificao depois do tormento per alguns dias, demaneira que j o accusado no tenha dor do tormento; porquede outra maneira presume-se per Direito, que com dor e medo dotormento, que houve, a qual ainda nelle dura, receando a repetio,ratificar a confisso, ainda que verdadeira no seja" (Livro V, tt.CXXXIII).

    Enfim, conforme assinala Cesare Cantu, os jurisconsultos deter-minavam para a tortura "diferentes modos, com o sangue-frio docirurgio que classifica e divide as operaes praticadas nos enfer-mos. Mas , enquanto nos esforamos para abreviar a durao dasoperaes cirrgicas e diminuir as dores que elas ocasionam, fazia--se o contrrio ao infligir a tortura; procurava-se somente no le-var morte ou a desfalecimentos, que impediriam atingir o resulta-do perseguido" (op. cit., pg. 44).

    Confirma-o G. Aubry (op. cit., pgs. 186-7): "Na maioria doscasos, um cirurgio ou um barbeiro assistia a aplicao da tortu-ra para apreciar o grau de sofrimento do paciente e julgar se elese achava em estado de suportar mais. No constitua isso umaao humanitria, mas no se queria que o acusado expirasse an-tes de haver expiado inteiramente sua falta".

    11. Passando da rea processual para a do Direito Pen al , ob- 0servamos que neste, desde o sculo XIX, se inscrevem trs princ-pios cardeais de garantia individual : o princpio da legalidade dosdelitos e das penas, o da person alidade da responsabilidade crimi-nal e o da proporcionalidade entre c rime e pena.

    latino que lhe deu Feuerbach: "Nullum crimen, nulla poena sinepraevia lege".

    Uma conduta s pode ser considerada como crime, pela Justi-a, se, ao tempo em que foi exercida, ela j estivesse assim qualifi-cada pela lei; e a pena a aplicar ser tambm aquela contida emlei anterior conduta delituosa. O indivduo, em suma, no podeser surpreendido pela Justia Criminal.

    Da se seguem, como corolrios: a lei penal deve ser rigorosa-mente precisa na delimitao do campo da ilicitude; ela no podeser retroativa; e est banido, da tarefa repressiva, o recurso ana-logia.

    Fiel a essas idias, o legislador dos nossos dias apresenta-se cla-ro e sucinto. Com economia de palavras, procura oferecer exatacompreenso de cada figura delituosa, como verificamos por exem-plo nesta lapidar frmula com que o presente Cdigo Penal brasi-leiro define o furto: "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheiamvel".

    Antes, no era assim. As leis penais se apresentavam confusas,prolixas e obscuras. O legislador no se limitava a definir o crime,mas ia alm, exemplificando, admoestando o leitor, oferecendo con-selhos e explicaes, muitas vezes por pginas e pginas, de talmodo que, por fim, no se sabia mais no que efetivamente consis-tia aquele crime.

    Somente a ttulo de curiosidade, veja-se, como amostra, estapassagem das Ordenaes Filipinas, que pelo menos tem o excepcio-nal mrito de ser sinttica. O nome do crime "Dos Mexeriquei-ros": "Por se evitarem os inconvenientes, que dos mexericos nas-cem, mandamos, que se alguma pessoa disser a outra, que outremdisse mal delle, haja a mesma pena, assi cvel, como crime, quemereceria, se elle mesmo lhe dissesse aquellas palavras, que diz,que o outro terceiro delle disse, postoque queira provar que o ou-tro o disse" (Livro V, tt. LXXXV).

    A impreciso conceitual e a obscuridade das leis muito favore-ciam o arbtrio dos julgadores. Inexistia qu alquer segurana paraos acusados, visto que o juiz, a pretexto de interpretar os textos,facilmente podia considerar como punvel, ou no, certo comporta-mento. Para completar supostas lacunas da lei penal , era autoriza-do o recurso analogia e, eventualmente, aos costumes.

    12. Pelo princpio da personalidade, unicamente deve pagar porum fato ilcito a pessoa (ou pessoas , em caso de co-autoria) pelo

    Consoante o princpio da legalidade, no h c rime sem lei ante- L,rior que o defina, no h pena sem prvia cominao legal. A suarpida difuso, no sculo passado, foi facilitada por este enunciado

    34 JOO BERNARDINO GONZAGA 1. A JUSTIA CRIMINAL COMUM 35

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    mesmo efetivamente responsvel; isto , somente quem estiver liga-do ao resultado danoso por duplo vnculo: da causalidade fsica eo psicolgico, da culpabilidade.

    No passado no havia tais exigncias, sendo freqente a penatornar-se transpessoal, comunicando-se a terceiros inocentes. Portaxativas disposies legais, podiam ser punidos, junto com o efeti-vo criminoso, seu cnjuge, parentes colaterais, ascendentes e descen-dentes.

    As sobreditas Ordenaes Filipinas, antes de descrever longamen-te o crime de lesa-majestade, apresentam um intrito explicativo,com este raciocnio evidncia sofstico: "Lesa Majestade quer di-zer traio commettida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Sta-do, que he to grave e abominvel crime, e que os antigos Sabedo-res tanto estranharam, que o comparavam lepra; porque assi co-mo esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se po-der curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem e aosque com elle conversam, polo que he apartado da communicaoda gente: assi o erro da traio condena o que a commette, e em-pece e infama os que de sua linha descendem, postoque no te-nham culpa" (Livro V, tt. VI). Portanto, os descendentes do cri-minoso tambm seriam alcanados, mesmo que nada tivessem aver com o ocorrido.

    Havia duas penas muito cruis, que se tornavam fatalmentetranspessoais: a confiscao de bens e a chamada "morte civil".Ambas reduziam misria no s o condenado, m as tambm to-dos os que dele dependessem economicamente.

    13. No af de castigar com severidade, o legislador no se preo-cupava em estabelecer o indispensvel equilbrio, que deve existir,entre o mal do crime e o mal da pena. Notadamente, a sanomais comumente infligida era a capital, que alcanava at mesmodelitos que hoje consideraramos de escassa importncia.

    A esto os princpios, aos nossos olhos absurdos, que regeramo Direito Penal e o Processual Penal, nas naes mais civilizadasdo mundo, at, digamos, a revoluo francesa. Resta agora verifi-car quais as medidas punitivas que eram utilizadas.

    II. MEDIDAS PUNITIVASDO DIREITO COMUM

    1. Penas privativas da liberdade. 2. Penasrestritivas da liberdade. 3. Penas privativasde direitos. 4. Penas patrimoniais. 5. Penascorporais. 6. Reforma humanizadora.

    1. Falemos .por fim dos castigos aplicados pela Justia comum.Conforme o bem do condenado que atingem e a intensidade comque o fazem, as penas se classificam em: a) privativas ou restriti-vas da liberdade de locomoo; b) privativas ou restritivas de direi-tos outros; c) patrimoniais; d) corporais.

    Com as penas privativas da liberdade, afasta-se o criminoso doambiente social, mediante a sua segregao em local para isso des-tinado. Ao contrrio do que se possa imaginar, a priso, como pe-na, constitui algo muito recente na Histria do Direito Penal. Ath pouco tempo, ela quase s existia como medida processual, oupreventiva, mantendo-se custodiado o ru espera do castigo, deoutra natureza, que lhe seria imposto no julgamento. Era a "pri-so processual", de que j falamos. Havia tambm a odiosa prisopor dvida, que pertencia porm aos domnios do Direito Civil.

    Inexistiam prdios especialmente construdos para servirem priso processual, mas se aproveitavam estabelecimentos comuns,que oferecessem segurana e aos quais era atribuda mltipla finali-dade. Tais presdios se transformavam em verdadeiros depsitoshumanos, onde no penetrava nenhuma preocupao de tratamen-to humanitrio. O' Poder Pblico sequer se sentia no dever de ali-mentar os seus prisioneiros ou de lhes dispensar cuidados nas doen-as. Isso devia ser providenciado pelos familiares e, para acudiros rus pobres, que no tinham ningum por si, havia religiosos ereligiosas que saam esmolando pel as

    ruas , em busca de alimentose remdios.

    Algumas instituies melhores e especiais para esse objetivo co-mearam a surgir, desde o final do sculo XVI, m as

    foram raras.A primeira foi em Amsterdo em 1595, para homens, a que se se-guiu logo aps outra, para mulheres. A fama dessas casas se difun-

  • diu, de modo que aos poucos outras anlogas comearam a apare-cer, em vrios pases. Em 1704, o papa Clemente XI fundou emRoma o asilo de So Miguel, destinado correo de delinqentesjovens e a servir de abrigo para menores rfos e ancios invli-dos. Estabelecimento semelhante, para mulheres, foi erigido em 1735pelo papa Clemente XII.

    Instituies como essas foram todavia muito excepcionais. Nogeral, o que havia eram locais em que se aglomeravam no s cri-minosos espera de julgamento, mas tambm m assa heterogneade pessoas que, por qualquer motivo, deviam permanecer segrega-das.

    A verdadeira reforma prisional somente se iniciou ao findar osculo XVIII, quando o filantropo ingls John Howard percorreuos crceres do seu pas e viajou depois, de 1775 at 1790, visitan-do os presdios existentes no continente europeu. Recolhidas as in-formaes, ele escreveu o livro State of Prisons, onde descreve oque viu. As condies por toda parte encontradas eram semprehorrveis. Num mesmo ambiente se amontoavam homens e mulhe-res, em total promiscuidade. Junto com rus de processos crimi-nais, alguns j criminosos empedernidos, conviviam crianas, men-digos, enfermos mentais, prostitutas e, inclusive, pessoas sujeitasapenas a priso civil por dvida. Devido absoluta falta de higie-ne, as febres grassavam livremente, dizimando os reclusos. O pr-prio Howard, alis, veio a falecer em 1790, vitimado por uma fe-bre carcerria que contrara na Rssia.

    Ao contrrio do Direito comum, o da Igreja logo adotou a pri-vao da liberdade como pena, recolhendo-se o condenado a umacela para expiao da falta cometida, para meditao e estudo. Is-so acabou influenciando o legislador laico, de tal sorte que, a par-tir do sculo XIX e at hoje, as penas privativas da liberdade seacabaram convertendo no eixo central dos modernos sistemas repres-sivos. Como lembrana da sua origem, nossos presdios conservamo nome de "penitencirias", e neles as cel as reproduzem as celasmonsticas que os mosteiros destinavam s penitncias.

    2. Com as penas restritivas da liberdade no se aprisiona o con-

    denado, mas unicamente ele tem limitada a liberdade de locomo-o. Elas outrora gozaram de muito prestgio e se cumpriam demodo extremamente duro.

    A meio caminho entre as restritivas e as privativas de liberda-de, foi de largo uso a pena de trabalhos forados, em que os cri-

    minosos, acorrentados, se destinavam pelo resto da vida a serviosparticularmente penosos, em minas, embarcaes, etc Medida res-tritiva da liberdade foi tambm o envio dos condenados a territ-rios distantes, de alm-mar, para contriburem na sua colonizao.Nessa categoria existiram penas de exlio, degredo, desterro, relega-o, transportao, etc., que possuam aquele trao comum, masque se distinguiam entre si por algumas peculiaridades. Os pasescolonizadores utilizaram amplamente essas penas, particularmenteseveras nos primeiros tempos das conquistas de regies longnquas,onde os condenados ficavam entregues prpria sorte.

    Tratava-se geralmente de penas perptuas e de alta desumanida-de. Com elas, o que se queria era obter mo-de-obra escrava ou ga-rantir a posse das colnias. Aceitaramos de bom grado a sua utili-zao naqueles tempos, todavia, no fosse a circunstncia delas se-rem em regra aplicadas no a crimes graves, mas mesmo a infraesde escassa importncia: Um banal furto ou at mesmo uma simplestentativa de furto bastavam para que se impusesse ao seu autor,pelo resto da vida, o trabalho escravo ou o envio s colnias 2 .

    (1) Cuello Caln (op. cit., pg. 153) conta que na Espanha existiu a pena con-sistente em remar nas galeras, "que se pode considerar como uma pena de priso,pois os condenados ficavam presos em argolas na galera, tornando-se esta assimseu crcere, um crcere flutuante. Instituiu-se tal pena por ordem de Carlos I, em31 de janeiro de 1530". A partir de ento, prossegue, "devido a numerosos empreen-dimentos militares e martimos e crescente necessidade de braos para remar nasgaleras reais, apareceram vrias disposies emanadas do mesmo monarca, de Feli-pe II, Felipe IIl e Felipe IV, que comutavam as penas corporais pelo trabalho nes-sas embarcaes". As sentenas consignavam que o ru era condenado a "servir aremo, sem soldo". Tambm na Frana, diz G. Aubry (op. cit., pgs. 192-3), talpena foi comunssima, aplicando-se a crimes de

    mediana gravidade. A ela se recor-ria sempre que a marinha real francesa necessitava de mo-de-obra. Os condenadospassavam por um simulacro de exame mdico, que os considerava "bons para asgaleras", embora alguns, para escapar, houvessem amputado uma das mos. Emseguida, marcavam-se os condenados na espdua com o infamante monograma"GAL", e acorrentava-se cada um ao seu banco. Essa pena foi comunssima, acres-centa G. Aubry, inclusive durante o reinado de Lus XVI, no sculo XVIII.

    (2) Mostram-no as Ordenaes Filipinas: "Mandamos, que qualquer pessoa,que furtar um marco de prata, ou outra cousa alhea, que valer tanto, como o di-to marco, estimada em sua verdadeira valia, que a dita prata valer ao tempo dofurto, morra por isso. E se for provado que alguma pessoa abrio alguma porta,ou entrou em alguma casa, que stava fechada, per a porta, janella, telhado, ou perqualquer outra maneira, e que furtou meio marco de prata, ou sua valia, ou dahipara cima, morra por isso morte natural. E postoque se lhe no prove, que furtoucousa alguma de dita casa, queremos que somente polo abrir da porta, ou entrarem casa com animo de furtar, seja aoutado publicamente com barao e prego, edegradado para sempre para o Brasil".

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    3. Dentre as medidas que atingem direitos outros, que no ode locomoo, muito utilizada foi a pena de "infmia". Por expres-sa disposio da sentena condenatria, o ru era oficialmente pro-clamado "pessoa infame", destituda de honra.

    Realmente brutal, como supressiva de direitos, foi entretanto apena de "morte civil". Com ela, convertia-se o condenado nummorto-vivo. Poupava-se-lhe a vida biolgica; mas, para todos osefeitos jurdicos, ele era tido como morto. Nestes termos a des-creve Cuello Caln: "Nenhuma pena privativa de direitos chegou monstruosidade da que as antigas legislaes instituram com onome de morte civil. Quem a sofria era considerado mo rto pa-ra a sociedade, sua participao na vida poltica e civil cessava porcompleto. Essa brbara fico desatava os laos de famlia, desa-pareciam a autoridade marital e o ptrio poder; o condenado dei-xava de ser cidado e at perdia seus direitos patrimoniais, abria--se sua sucesso a favor dos herdeiros naturais; tampouco podiaadquirir a ttulo gratuito, por doao entre vivos, nem por testa-mento, nem podia dispor dos bens que adquirisse com seu traba-lho. Esta pena foi suprimida em toda parte, no s por ser imo-ral, mas tambm por lesar os direitos de pessoas inocentes, vio-lando assim o princpio to firmemente proclamado da personalida-de das penas. No obstante sua inconcebvel injustia, chegou atquase a metade do sculo XIX; em Frana, por exemplo, esteveem vigor at a lei de 5 de maio de 1854, que a aboliu" (op. cit.,pg. 257).

    Para pequenas infraes, havia o pelourinho, sem dvida mui-to aviltante. O malfeitor nele permanecia exposto ao pblico, ata-do pelos ps e mos, portando um ca rtaz que revelava o seu maucomportamento; e assim sofria toda so rte de abusos por parte dapopulaa que ali se aglomerava.

    4. Na categoria das sanes patrimoniais, inscreviam-se a penade multa e a temida confiscao de bens, em que todos os haveresdo sentenciado passavam para o Tesouro real. Pena cruel, porque,com ela, ficavam reduzidos misria no s o delinquente, mastambm todos aqueles que dele dependiam economicamente.

    5. Por derradeiro, falemos das penas corporais, ou seja, aque-las que recaem sobre o corpo do condenado, produzindo-lhe dor,lesando-lhe a integridade fsica ou privando-o da vida.

    Foram medidas tremendas, que constituram a principal arma do

    arsenal repressivo da Justia. Ser til conhec-las, para melhorcompreendermos o esprito da poca.

    Somos naturalmente levados a imaginar nossos antepassados co-mo pessoas dotadas da mesma sensibilidade que possumos. Muitoao contrrio, todavia, eram homens de sensibilidade e de costumesenormemente diferentes dos de hoje. Examinar os castigos fsicosque conceberam e que impuseram a seres humanos percorrer es-pantosa galeria de horrores. O escopo requintadamente procuradofoi, sempre, obter o mximo possvel de medo, de dor, de sofri-mento. As penas corporais se aplicavam no s a adultos, mas tam-bm a adolescentes. Os carrascos eram profissionais que almejavamadquirir faina de habilidosos executores de uma arte, a arte de fa-zer sofrer.

    A Justia atuava sobre o corpo de algum por quatro razes.Primeiro, com o recurso processual da tortura, que j referimos,destinada apurao d verdade. Depois, havia o castigo corporalpropriamente dito, como sano nica ou como providncia puniti-va acessria, preliminar pena de morte. Por fim, existiram medi-das corporais com finalidade, digamos, acautelatria.

    Na Frana, a questo, ou interrogatrio com tormentos, chama-va-se "question prparatoire"; o suplcio que antecedia a execuocapital era a "question pralable". As duas medidas somente foramnesse pas abolidas respectivamente em 1780 e em 1788.

    Os castigos fisicos foram variadssimos, dependendo da imagina-o dos que os aplicavam. Muito se utilizaram, por toda parte,os aoites' e as

    mutilaes. Arrancavam-se os dentes ou os olhosdo condenado; cegavam-no com ferro incandescente; cortavam-seps ou pernas, mos ou braos; esmagavam-se membros. Ou entoa pena podia consistir na amputao das orelhas, do nariz, da ln-gua ou dos lbios, superiores e inferiores 4 .

    (3) Bernard Lecherbonnier assim descreve a aplicao de aoites: "Entre as pu-nies menores, a flagelao, muito apreciada pelo pblico, sobretudo quando sochicoteadas prostitutas de esquinas. Suplcio humilhante, que se pratica com umchicote de correias ou de varas. Para a flagelao pblica o paciente, nu da cintu-ra para cima, amarrado rabeira da carroa, arrastado pelas praas pblicas ato pelourinho, onde recebe das mos do executor o nmero de chicotadas determina-do pela sentena" (op. cit., pg. 23).

    (4) Cuello Caln refere essas mutilaes como tendo existido na Espanha, des-de o velhssimo Fuero Juzgo, e que se repetiram nos inmeros estatutos regionais.Depois, as Sete Partidas mantiveram as mesmas penas, acrescentando esta curiosida-de: o paciente era desnudado, untavam o seu corpo de mel e o deixavam sob osol, exposto s moscas (op. cit., pgs. 93-4). Na Frana, diz Lecherbonnier, "na sex-

  • 42 - JOO BERNARDINO GONZAGA II. MEDIDAS PUNITIVAS DO DIREITO COMUM 43

    Como escrevemos acima, aplicavam-se outrossim medidas corpo-rais com sentido preventivo. Certas amputaes indicavam o tipode infrao pela qual o seu portador j havia sido condenado, oque era til Justia saber na hiptese de reincidncia. Ou entoeram gravadas marcas indelveis no corpo ou no rosto do pacien-te, com ferro em brasa: ora um sinal que simbolizava o crime co-metido, ora as iniciais do crime. Desse modo, no s as autorida-des, mas tambm as pessoas podiam se acautelar contra o delinqen-te. As queimaduras a ferro podiam ser feitas tambm para consig-nar o local de origem do malfeitor, onde era conhecido seu passa-do reprovvel.

    A punio por excelncia no entanto, de que larguissimamentese serviram nossos antepassados, foi a pena capital. Ela era farta-mente cominada, sem nenhuma economia, no s para os delitosmais graves, mas tambm para infraes secundrias, que hoje re-ceberiam pequenina reprimenda. Raymond Charles consigna quena Frana, ainda no sculo XVIII, mais de uma centena de crimeseram ameaados com a sano mxima (op. cit., pg. 83). NasOrdenaes Filipinas de Portugal, contamos perto de oitenta moda-lidades delituosas merecedoras da morte, alcanando, por exemplo,feiticeiros, alcoviteiros, pesso as que falassem mal do rei, aquelesque feriam por dinheiro ou que praticavam adultrio com mulhe-res casadas (e essas mulheres, especificavam as Ordenaes, podiamser casadas "de feito" ou "de direito"). Idem os crimes de furto,de violao de domiclio para furtar; o falso testemunho, o usode pesos ou medidas falsos, etc., etc.

    Carpzov, o grande jurisconsulto alemo do sculo XVII, se van-gloriava de, na sua carreira de magistrado, haver enviado mortemais de vinte mil pessoas.

    Exatamente porque esse castigo extremo abarcava longa listade infraes, de muito varivel importncia, ele no se podia limi-tar sempre mera supresso da vida. A gravidade maior ou me-nor do crime devia traduzir-se nos caminhos, de menor ou maiorseveridade, pelos quais se levava o ru mo rte. Da a instituio detodo um cortejo de suplcios que antecediam o desenlace fatal, e cu-

    _ta reincidncia os blasfemadores tm o lbio superior cortado, na stima o lbio in-ferior. Perseveram? Corta-se-lhes a lingua. O desoreihamento amputao da ore-lha , em uso desde os primeiros tempos de nossa histria, castigo tradicional da-do ao servo que descontentava o senhor, perpetua-se da mesma forma que a ampu-tao do nariz, vitimando mulheres alegres, desertores e moos culpados do raptode alguma jovem" (op. cit., pg. 23).

    ja crueldade aumentava, na medida em que os crimes eram demaior monta.

    O que se buscava, mais do que a perda da vida, era o sofri-mento do condenado. Em conseqncia, observa Calamandrei (op.cit., pg. 98), "a morte, em vez de se apresentar como o castigomais terrvel, se convertia no almejado fim de outros tormentosmuito mais cruis, com os quais se procurava manter com vida ocondenado e lhe prolongar a agonia, para faz-lo sofrer mais".

    Na Itlia, chegou-se a criar uma forma de execuo que duravao nmero simblico de quarenta dias. Dia aps dia, tudo meticulo-samente estudado, cortava-se um pedao do corpo do paciente, demodo a que somente no quadragsimo dia ele afinal expirasse.

    As execues se faziam em praa pblica, aos olhos do povo.Para l transportava-se o sentenciado em carroa, o que constitua,tradicionalmente, sinal de ignomnia. Era proclamado ao pblicoo crime cometido e, a seguir, passava-se longa imposio de tor-mentos. Muito utilizado foi o "atenazamento", em que os carras-cos, com tenazes, arrancavam pores do corpo do condenado, elogo cobriam as feridas com chumbo derretido, piche ou cera fer-ventes, etc., a fim de evitar excesso de sangramento que apressas-se a morte. Aos homicidas, cortava-se a mo com que cometerao crime, ou a queimavam em fogo de enxofre.

    Na Frana, a pena capital era imposta de cinco maneiras: es-quartejamento, fogo, roda, forca e decapitao. Na Espanha, tevelargo emprego o garrote: enrolava-se no pescoo do condenadouma corda, na qual, por detrs, o carrasco passava curto bastode madeira; e, girando-o assim pelas cost as , produzia ento a mor-te, por estrangulamento. H notcia tambm de casos, em diferen-tes pases, em que o sentenciado era exposto a animais bravios,para que o trucidassem ou o devorassem, tal como havia sido fei-to, nos circos romanos, com os mrtires dos primeiros tempos daIgreja. Von Hentig, em sua excelente obra sobre as penas, descre-ve inmeras formas de matar que existiram por toda a Europa, ca-racterizadas, sempre, pela extrema crueldade.

    O suplcio da roda (que lembrava a crucificao dos antigos ro-manos) foi dos mais temidos: amarrado o paciente a uma roda decarro, o algoz, com uma barra de ferro, lhe golpeava a regio dosrins e lhe rompia os braos e as pernas em dois lugares, no altoe em baixo. Depois, ali permanecia o condenado, com o rosto vol-tado para o cu, at falecer. Isso explicou uma Ordenao de Fran-cisco I, em 5 de fevereiro de 1534: "Les bras seront briss et rom-

  • pus en deux endroits, tant haut que bas, avec les reins, lambes etcuisses, et mis sur une roue haute plante et leve, le visage con-tre le ciel, o ils demeureront vivants". Era expressamente proibi-do ao pblico tocar, socorrer ou de qualquer forma ajudar o supli-ciado. Desejava-se que a agonia na roda se prolongasse o mais pos-svel, por muitas horas ou mais de dia. Em casos merecedores deespecial complacncia, no entanto, os juizes emitiam a clusula deretentum, isto , autorizavam o executor a apressar a morte, estran-gulando o condenado.

    Foi tambm costume imergir a pessoa em chumbo fundido, guaou azeite ferventes. As bruxas e os feiticeiros eram implacavelmen-te conduzidos " fogueira. Joana d'Arc foi queimada viva pelos in-gleses, em 1431, sob acusao de bruxaria.

    A pena de esquartejamento era igualmente brutal: prendia-se ocondenado, pelas pernas e braos, a quatro cavalos, que se lana-vam ao mesmo tempo em diferentes direes; ou era ele amarra-do a quatro fortes galhos de rvores, que se mantinham abaixadoscom cordas e que, num momento dado, se soltavam. Para obterque os membros mais facilmente se desprendessem do tronco, ocarrasco podia romper as articulaes com uma barra de ferro.Observa Bernard Lecherbonnier (op. cit., pg. 70) que esse tipode execuo, com as providncias que exigia, costumava durar pe-lo menos duas horas de esforos dos executores e era ademais ante-cedido por toda uma srie de suplcios.

    A decapitao por espada ou machado, embora parea um meiocomparativamente mais suave de tirar a vida, apresentava freqen-tes problemas, porque o carrasco, naturalmente enervado e subme-tido presso do pblico, facilmente errava os golpes, atingindodiferentes partes do corpo, o que transformava a execuo em bru-tal carnificina. A guilhotina, que comeou a ser empregada na Fran-a em 1792, constituiu grande avano no sentido humanitrio, pe-la rapidez e eficincia com que funcionava. A sua lmina, sendooblqua, secciona com facilidade o pescoo do paciente, enquantoa espada, de lmina reta, o corta por esmagamento.

    Se o condenado conseguia fugir, ou se se suicidava para esca-par dos tormentos que o aguardavam, nem por isso ficava cancela-do o espetculo. A execuo se fazia no seu cadver, ou, se issono fosse possvel, o sentenciado era executado em efgie, substitu-do no patbulo por uma figura que o representava.

    A sano capital se seguia geralmente, como medida acessria,a confiscao de bens.

    Consumada a morte, foi de uso muito difundido despedaar ocorpo do condenado, para expor suas partes em diferentes locaispblicos. Isso fizeram com nosso heri nacional Joaquim Jos daSilva Xavier, o Tiradentes: condenado por traio ao rei de Portu-gal, enforcaram-no em praa pblica, dividiram o seu corpo emquatro pores, que permaneceram pregadas em postes, e a cabe-a foi levada para Ouro Preto, onde a colocaram sobre um mastrona praa principal. Sua casa foi arrasada e salgado o terreno, pa-ra que nele vegetao nenhuma brotasse.

    Alis, quando o crime possua conotaes polticas, a brutalidadeultrapassava os limites do imaginvel. A responsabilidade, com fre-qncia, se tornava coletiva, comunicante. Veja-se esta ocorrnciaque se passou em Npoles, no ano de 1585, conforme a descreveCesare Cantu (op. cit., pg. 14): assassinada uma autoridade eleita,"quinhentas pessoas foram presas, das quais se enforcaram e depoisesquartejaram trinta e seis; quatorze foram tambm atenazadas; aalgumas deceparam as mos, duas foram chicoteadas, setenta e umaenviadas s galeras. Das doze mil pessoas que por isso fugiram,trezentas foram condenadas ao degredo, sob pena de morte se vol-tassem, e fortes prmios foram prometidos a quem as matasse".

    Quase dois sculos aps, em, 1757, um tal Roberto F ranciscoDamiens; homem mstico e visivelmente desequilibrado, praticou,em Versalhes, absurda tentativa contra a vida de Lus XV, que fi-cou apenas levemente ferido. Para arrancar-lhe a delao de inexis-tentes cmplices, o sujeitaram s mais requintadas torturas; e, porfim, a conselho dos mdicos que consideravam ser este o meiomais doloroso, o submeteram s "botinas", consistentes em duaspranchas de madeira, que, lentamente apertadas, esmagavam aspernas do paciente. Afinal