lissovsky, mauricio- a fotografia e a pequena história de walter benjamin

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    M A U R I C I O L I S S O V S K Y

    A FOTOGRAFIA E APEQUENA HISTRIA DE

    WALTER BENJAMIN

    Dissertao de Mestrado emComunicao apresentada Coordenaodos Cursos de Ps-Graduao da Escolade Comunicao da Universidade Federaldo Rio de Janeiro.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - ESCOLA DE COMUNICAO

    ORIENTAO: PROFESSOR DOUTOR MRCIO TAVARES D'AMARAL

    RIO DE JANEIRO - 1995

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    Pgina de Aprovao

    Universidade Federal do Rio de JaneiroCentro de Filosofia e Cincias HumanasEscola de Comunicao

    ORIENTADOR ________________________________Professor Doutor Mrcio Tavares D'Amaral

    BANCA EXAMINADORA ________________________________Professora Doutora Beatriz Jaguaribe

    ________________________________Professor Doutor Henrique Antoun

    Rio de Janeiro, 1995

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    AGRADECIMENTOS

    Ao CNPQ, pela bolsa.

    Escola de Comunicao da UFRJ, por sua acolhida, e pelo incentivo e amizadede seu corpo docente.

    A meus colegas de curso, particularmente Fernanda Bruno e Paulo Blank, porreviverem em mim a agradvel camaradagem dos bancos escolares.

    A meus confrades do Programa IDEA - Andr Martins, Lus Alberto Oliveira,Paulo Vaz e Rosa Pedro -, por isto em que me enredam e pelo que ali se engendra.

    A J Gondar, Henrique Antoun e Auterives Maciel, por sua amizade e pelo

    desvlo em manter acesa a tnue chama do pensamento durante meu longoinverno rtico.

    A Nadja Pellegrino, por ter "encomendado" um workshop sobre a "PequenaHistria", h alguns anos, e por cultivar em mim o gosto de falar sobre fotografia.

    A Ana Maria Galano e Ligia Segalla, pelo cacife de afeto com que bancaram asprimeiras apostas neste trabalho.

    A meus colegas no ISER, por relevar gentilmente minha presena matinal

    sonolenta aps seguidas madrugadas redigindo este trabalho.

    Ao Prof. Mrcio Tavares d'Amaral, por sua confiana herica - muito alm dodever - nos esforos deste seu orientando, pelo inestimvel apoio e pela delicadezacom que constri um ambiente saudavelmente acadmico junto a si.

    A minha filha, Clarice, por seu brilho em minha vida.

    A minha irm, Elisabeth, paciente e gentil revisora deste texto, e a meus pais, porsua dignidade e amor pelas coisas belas.

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    Sumrio

    Pag.

    Abreviaturas ................................................................................... 6

    Introduo ...................................................................................... 7

    Cap. 1 - A Pequena histria e o fragmento cintilante ....................... 12

    Cap. 2 - Benjamin e a vanguarda fotogrfica alem ........................ 30

    Cap. 3 - Fotografia e aura ............................................................... 46

    Cap. 4 - Utilidade e desvantagem da fotografia(para a histria e para a vida) ............................. 62

    Cap. 5 - A Mnada fotogrfica ........................................................ 87

    Concluso - A Quase-fbula do tigre e da lontra ............................. 110

    Bibliografia ..................................................................................... 120

    Resumo .......................................................................................... 126

    Abstract ........................................................................................ 127

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    Abreviaturas

    Foram utilizadas as seguintes abreviaturas para indicar os textos de Walter

    Benjamin mais frequentemente citados neste estudo:

    ACP - O Autor como Produtor

    AIP - A Imagem de Proust

    CM - A Capacidade Mimtica

    DS - A Doutrina das SemelhanasIB - Infncia em Berlim por volta de 1900

    IP - Imagens do Pensamento

    OAR - A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica

    ODB - Origem do Drama Barroco Alemo

    PCS - Paris, Capital do Sculo XIX

    PHF - Pequena Histria da Fotografia

    SCH - Sobre o Conceito de Histria

    SLG - Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana

    STB - Sobre Alguns Temas em Baudelaire

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    INTRODUO

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    A "Pequena Histria da Fotografia" no , de fato, um texto grande. Somenos de sete mil palavras, dezessete pginas na edio brasileira. H cerca de

    seis anos, a equipe da Funarte que organizava a VIII Semana Nacional de

    Fotografia convidou-me a coordenar uma oficina sobre ele. Preparei um roteiro

    para 12 horas de aula. Pareceram-me insuficientes, na poca. E, no entanto,

    lembro-me bem da reao espantada de um colega: "como que voce conseguiu

    tirar uma semana de curso disto?"

    Tendo retornado a este tema, por ocasio do estudo que aqui introduzo,

    ainda no estou certo se as pouco mais de uma centena de pginas que as

    dezessete de Benjamin desdobraram em mim j so afinal suficientes. Se Michel

    Lwy tem razo em apontar a "irredutibilidade" do filsofo alemo s matrizes

    sociolgicas que apreendem seus contemporneos - sendo, deste ponto de vista,

    "estritamente inclassificvel" e situando-se "no cruzamento de todos os

    caminhos"1- ento eu talvez no exagere em postular que a "Pequena Histria" foi

    escrita no lugar preciso desta encruzilhada.

    Passagens importantes deste ensaio foram reutilizadas, literalmente oupouco modificadas, em textos posteriores: "A Obra de Arte na Era de sua

    Reprodutibilidade tcnica", "Franz Kafka. A Propsito do Dcimo Aniversrio de

    sua Morte", "A Doutrina das Semelhanas", "Sobre o Conceito de Histria", entre

    outros. Est igualmente atravessada pelos principais investimentos de Benjamin

    nos anos vinte: a "histria filosfica" e a "mnada" de Origem do Drama Barroco

    Alemo, a traduo deEm Busca do Tempo Perdido, e as primeiras investigaes

    sobre a Paris de Baudelaire.

    Este estudo, portanto, assume-se neste cruzamento, e desde a desdobra

    dois movimentos: um deles encharca a "Pequena Histria" com os temas

    fundamentais do pensamento de Benjamin que ela evoca; o outro persegue as

    ranhuras por onde, no conjunto da obra, a fotografia se infiltra. No ,

    1LWY, Michel.Redeno e Utopia. So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 85.

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    seguramente, exaustivo em nenhuma das duas direes. Mas pode servir a pelo

    menos dois objetivos: contribuir para uma compreenso mais fina daquilo que

    Benjamin espera pensar diante de uma fotografia e a natureza do olhar que ela

    mobiliza nele; e valer-se da fotografia para iluminar suas expectativas quanto

    natureza da histria e seu objeto.

    O resultado deste estudo est exposto em cinco captulos, cuja perspectiva

    de conjunto pode ser resumida pelo esquema abaixo:

    Cap. 1Cap. 2

    Cap. 3

    Cap. 4

    Cap. 5

    O captulo 3 - "Fotografia e Aura" - funciona como a encruzilhada

    propriamente dita. Sem dvida, o tema da aura celebrizou a reflexo de Benjamin

    sobre a fotografia e bastante conveniente coloc-lo no centro da exposio deste

    estudo. Esta posio confere-lhe ainda um papel especfico frente aos demais

    captulos: serve de passagem para as linhas que conectam os captulos 1 ao 5 e 2ao 4. Os captulos 1 e 5 concentram-se no fazer histrico, enfocando,

    respectivamente, o tema do fragmento - "A Pequena Histria e o Fragmento

    Cintilante" - e o tema da mnada - "A Mnada fotogrfica". J os captulos 2 e 4

    enfatizam as questes suscitadas diretamente pela fotografia. No captulo 2 -

    "Benjamin e a Vanguarda Fotogrfica Alem" - as preocupaes do filsofo so

    situadas em face do debate acerca da fotografia moderna; que se traduzem, no

    captulo 4 - "Utilidade e Desvantagem da Fotografia" -, em um programa

    benjaminiano para a imagem tcnica diante de seus limites e das propostas queformula para sua superao. Do ponto de vista desta encruzilhada, portanto,

    histria e fotografia so projetadas uma sobre a outra e transfiguradas pelo crivo

    da aura: monadizao do fragmento, literalizao da imagem.

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    Mas se a perspectiva acima exposta descreve o modo pelo qual este estudo

    se desdobra, convm ainda apontar como ele se desenvolve.

    No captulo 1, busca-se caracterizar a especificidade do fazer histrico de

    Benjamin, sublinhando o modo particular de descontinuidade que exprime.Confrontam-se os distintos modos de pensar por partes: os modelos

    reconstitutivos e reconstrutivos, referidos respectivamente s reparties dos

    detalhes e dos fragmentos. Procura-se observar, com um pouco mais de ateno, a

    natureza do fragmento em Benjamin - a centelha- e, face a isto, distingu-lo tanto

    das partes que resultam da anlise bem como daquelas que se produzem por

    desmontagem ou desconstruo.

    No captulo 2, o olhar de Benjamin sobre a histria da fotografia

    retomado; e o debate entre intelectuais, artistas e fotgrafos alemes nos anos

    vinte acerca da fotografia moderna organizado segundo conceitos desenvolvidos

    pelo autor da "Pequena Histria" - particularmente a distino entre as recepes

    visuale ttil. Assume-se como premissa que as reflexes de Benjamin acerca da

    imagem tcnica so elaboradas a partir deste debate e procuram assinalar os

    impasses que a Nova Fotografia no havia logrado transpor.

    No captulo 3, o conceito de aura discutido, enfatizando-se as

    preocupaes de Benjamin quanto s possibilidades de sua recuperao,reencontro e experincia, principalmente em relao fotografia. So investigadas

    as noes de perceptibilidade e receptividade como indicadores aurticos naspalavras e nas coisas.

    O captulo 4 realiza o percurso inverso do captulo 2. Enquanto naquele

    procura-se ler o campo da fotografia luz de Benjamin, agora importa identificar

    com preciso seu "programa" para a imagem tcnica, seus juzos e critrios de

    valorao e, principalmente, os recursos pelos quais imaginava ser possvel de

    superar tanto o debate intelectual descrito no captulo 2 como os limites que

    encontrava em seu prprio "programa".

    O captulo 5 procura investigar o conceito de mnadacomo operador de

    ligao entre as preocupaes de Benjamin com a fotografia e com a histria.

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    Ressaltando-se, em particular, o papel crucial desempenhado pelo "dom" de

    perceber e engendrar semelhanasna formao de imagens nestes dois domnios.

    A Concluso - "Quase Fbula do Tigre e da Lontra" - recolhe alguns

    resultados alcanados nos cinco captulos deste estudo com vistas a sugerir umachave de entendimento para as elaboraes tericas de Benjamin acerca da

    fotografia: as exigncias da composio de imagens numa "histria filosfica".

    Resumem-se ento os principais aspectos da recepo paradoxal de Benjamin

    diante do aparecer da imagem tcnica.

    Assim desdobrado e desenvolvido, nada resta a introduzir, e tudo mais

    ainda por dizer.

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    A PEQUENA HISTRIA E O FRAGMENTOCINTILANTE

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    As teses "Sobre o Conceito da Histria", de Walter Benjamin, so dezoito -

    e mais dois apndices. As epgrafes so seis: Hegel, Brecht, Scholem, Nietzsche,Dietzgen, Kraus. As dobras so quatro: de Nietzsche sobre Marx, de Fourier sobre

    Blanqui, da teologia sobre o materialismo histrico, do passado sobre o presente.

    Os heris so trs: o ano, o anjo e o Messias. Os inimigos so dois: Foustel de

    Coulanges e o Anticristo. O tempo o do Juzo, sob o signo do Tigre.

    A epgrafe retirada de Nietzsche : "Precisamos da histria, mas no como

    precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da cincia." 2 Acabo de me

    surpreender com isto, neste instante em que releio o texto. Nas notas que tomei

    sobre ele, h alguns anos, estava escrito:

    "Epgrafe das 'teses': 'De fato, est mais do que no tempo deavanar contra os descaminhos do sentido histrico, contra odesmedido gosto pelo processo em detrimento do ser e da vida'(Nietzsche)".

    Ambas as frases so extradas da "segunda intempestiva" (1874), uma das

    inspiraes profundas das "teses", e que Benjamin faz a coabitar com a "Crtica

    ao Programa de Gotha", redigida por Marx em maio de 1875.3 O engano trai e

    traduz, pois a "minha" epgrafe - a epgrafe que poderia ter sido - corresponde,

    ainda com mais preciso, "filosofia da histria" que anima as "teses".

    "Sobre o Conceito de Histria" um texto de revelao, e por isso a

    linguagem teolgica no lhe estranha. Aquilo que se revela um ano feio e

    corcunda, manipulando ocultamente os movimentos de um autmato enxadrista

    que disputa um jogo que a prpria histria.4 Se na histria h um "processo"

    2BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de Histria. In: Obras Escolhidas, v. 1. So Paulo: Brasiliense,1985. pp. 222-32.3NIETZSCHE, Friedrich. Da Utilidade e Desvantagem da Histria para a Vida. In: Obras Incompletas(Os Pensadores). So Paulo, 1983. pp. 58-70.4Eis o pargrafo que abre as "teses":

    "Conhecemos a histria de um autmato construdo de tal modo que podia responder acada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitria.Um fantoche vestido turca, com um narguil na boca, sentava-se diante de umtabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a iluso de que a

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    (dialtico, mecnico) - o autmato -, ela se define a cada lance. Aquele que se

    ope ao processo - no mesmo movimento que lhe garante a vitria -, o ano, o

    acontecimento. Dar conta do acontecimento igualmente vital para a poltica e

    para a histria. Que tipo de histria - pequena histria - surge do acontecimento?

    Que tipo de histria nos conta o ano? No a crnica, que supe o tempo comoum continuum (e os acontecimentos como uma infinitesimal sucesso), certamente

    no o processo, como uma reconstituio abstrata do continuum (sua mise-en-scne simblica). Mas aquela que faz "saltar pelos ares o continuum da histria".5

    Descontinuidade, portanto. Mas no a das estruturas, dos cortes. A

    descontinuidade de um salto agora, que ora visa uma coisa, ora outra: "um salto

    de tigre em direo ao passado... sob o livre cu da histria."6Salto que no um

    movimento unidirecional at a presa. O tigre sente-se igualmente visado por ela.

    Ele tambm foi escolhido. Tigre e presa so, no salto, um s movimento. Ento, j

    estamos bem longe de uma causalidade que institui o acontecimento histrico

    (causado por quem? causador de qu?). E ainda mais afastados das formas

    vulgares do subjetivismo. Se o "curso da histria" fosse "uma procisso em

    movimento", dizia E. H. Carr em uma de suas famosas conferncias na

    Universidade de Cambridge, em 1961, ento:

    "O historiador nada mais do que um figurante caminhando com

    dificuldade no meio da procisso. E medida que a procissoserpenteia, desviando-se ora para a direita, ora para a esquerda,algumas vezes dobrando-se sobre si mesma, as posies relativasdas diferentes partes da procisso esto constantemente mudando ...O historiador parte da histria. O ponto da procisso em que ele

    se encontra determina seu ngulo de viso sobre o passado".7

    mesa era totalmente visvel, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anocorcunda se escondia nela, um mestre de xadrez, que dirigia com cordis a mo dofantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosfica desse mecanismo. O fantochechamado 'materialismo histrico' ganhar sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio,

    desde que tome a seu servio a teologia. Hoje, ela reconhecidamente pequena e feia eno ousa mostrar-se."[BENJAMIN, W. SCH, p. 222]A explicao - falsa - sobre o funcionamento deste famoso autmato, Benjamin toma provavelmente deEdgar Allan Poe. De fato, em 1836, quando Poe testemunhou em Richmond a exibio do "autmatoenxadrista", ele era pilotado pelo exmio mestre alsaciano Wilhelm Schlumberger, que no era ano. [cf.LOSANO, Mario.Histrias de Autmatos. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 88-98] ComoRouanet observa, o mesmo autmato havia sido mencionado em um conto de Hoffmann.5BENJAMIN, W. SCH, p. 231.6Idem, p. 230.7CARR, Edward Hallet. Que Histria? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 35.

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    Mas o tigre no tem apenas um "ngulo de viso"; seus olhos so os do

    "anjo da histria": "Onde ns vemos uma cadeia de acontecimentos, ele v uma

    catstrofe nica, que acumula incansavelmente runa sobre runa e as dispersa a

    nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.Mas uma tempestade sopra do paraso e prende-se em suas asas com tanta fora

    que ele no pode mais fech-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para

    o futuro..."8No salto, o tigre no destaca um acontecimento da cadeia, mas faz

    dele a pedra de fecho de uma "catstrofe nica". O lugar de onde salta o presente

    - que sempre um agora "no qual se infiltram estilhaos do messinico".9

    O tigre com olhos de anjo que explode o continuumda histria junta cacos

    e recolhe estilhaos. De modo algum, uma coisa aps a outra. Explode quando

    junta, faz saltar pelos ares quando recolhe. O tigre com olhos de anjo faz o parto

    da pequena histria.

    , portanto, de cacos e estilhaos que primeiramente se trata.. E um modo

    adequado de principiar considerar aquilo a que cacos, estilhaos, vestgios,

    costumam ser primordialmente associados: a idia de parte.

    Omar Calabrese considera que a tradio crtica nos legou dois modos de

    pensar a parte em sua relao com o todo - uma vez que os termos sointerdefinidos.10A natureza desta relao primariamente uma diviso. Pode ser

    um corte, ento a parte um detalhe, ou pode ser uma ruptura, e a parte umfragmento. No primeiro caso, o todo precede a parte e pressupe um sujeito que

    corta o objeto, detalhando-o. No fragmento, o todo est in absentia, o objeto se

    rompe, e o fragmento "se oferece assim como , vista do observador, e no como

    fruto da ao de um sujeito". Em resumo, e em termos atuais, diz-se que o corte

    do detalhe obedece a uma "geometria plana", enquanto o fragmento, rompe-se em

    sua prpria geometria, fractalmente.

    Detalhe e fragmento correspondem a estratgias diferentes de aproximao

    do sistema de pertinncia da parte, remetendo a distintos modos de investigao,

    8BENJAMIN, SCH, p. 226.9Idem, p. 23210CALABRESE, Omar.La Era Neo Barroca. Madrid, Ctedra, 1989. pp. 84-92

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    descrio e explicao dos fenmenos. Aquilo que reconstituio no detalhe,

    torna-se reconstruo no fragmento. Segundo Calabrese, a anlise detalhada dos

    fenmenos tem carter hipottico-dedutivo, permitindo sempre reler o "sistema

    global" luz do detalhe que dele se extraiu provisoriamente. J o fragmento

    sustentaria uma investigao de tipo indutivo, obedecendo a um "modeloconjectural", nos termos de Ginzburg, uma vez que o sistema considerado como

    hiptese est ausente.

    A clareza do esquema proposto por Calabrese pode nos levar a ultrapassar

    muito rapidamente alguns dos problemas afeitos s relaes entre fragmento e

    detalhe na reconstituio/reconstruo de seus respectivos inteiros. Ele obscurece,

    por exemplo, que detalhe e fragmento podem frequentemente revezar-se no

    mesmo objeto quando se referem a inteiros distintos. Esta dupla remisso, em

    Calabrese, parece ocorrer apenas em casos como o da connoisseurship, quando

    esta "considera a obra momentaneamente annima como fragmento de um sistema

    do qual h que reconstruir o conjunto que falta", ou quando, mais precisamente,

    um "detalhe" de uma obra manifesta melhor que a obra completa o "pertencimento

    a um autor ou a um estilo ou a uma poca."11Em ambos os casos, no entanto, a

    transformao do detalhe em fragmento se faz por meio de uma ampliao do

    inteiro: de uma obra em particular, para o conjunto da obra de um autor, estilo ou

    poca. Tal transformao seria causada apenas pela mudana de escala, que acaba

    por reduzir o inteiro anteriormente considerado a fragmento cujo pertencimento aum outro inteiro que o subsume , de fato, a hiptese a ser verificada.

    Calabrese ir apontar outro tipo de transformao na tendncia -

    contempornea - de "perda da totalidade", na qual os detalhes se tornam "cada vez

    mais autnomos" em relao ao "inteiro de referncia". O exemplo citado

    bastante conhecido. Em Blow up, de Antonioni, um detalhe de uma imagem

    fotogrfica - vrias vezes ampliado - indica a ocorrncia de um crime, "com a

    moral conclusiva da impossibilidade de remontar ao conjunto".12Mas emBlow up

    - apesar do que sugere o ttulo - no o processo de ampliao do minsculo que

    leva fragmentao, transformao do detalhe em fragmento. A cada nova

    ampliao - corte, afinal - o detalhe segue sendo detalhe, se no da imagem, a

    11Idem, p. 92.12Idem, p. 99

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    cena fotografada, da granulao que constitui a imagem fotogrfica. Podendoportanto, remeter sempre a uma mesma totalidade, ou seja, fotografia. Prevalece

    aqui o mesmo engano de atribuir mudana de escala a propriedade exclusiva de

    transformar a natureza da parte. Mas, o que obviamente est acontecendo emBlow

    up, que o detalhe em questo, independente da ampliao e desde o incio doprocesso, teria sido sempre fragmento. No da imagem fotogrfica - ou da cena -,

    mas de um crime que se supe ter acontecido.

    A confuso de Calabrese acentua-se quando compara - a ttulo de

    corroborao - o filme de Antonioni com seu clone de Brian de Palma, Blow out.

    Teria sido mais proveitoso se houvesse tomado outra replicao da mesma

    situao:Blade Runner, de Ridley Scott.Neste, a mesma estratgia de ampliao

    do detalhe de uma imagem fotogrfica utilizada. Mas desta vez, o detalhe do

    incio - um reflexo no espelho - torna-se outro detalhe no final - a cobra tatuada no

    brao de uma andride. Detalhe de uma outra totalidade. O verdadeiro fragmento,

    no entanto, uma escama artificial de cobra encontrada na banheira. Ter podido

    distinguir claramente detalhe e fragmento pode afinal explicar porque a

    "investigao" de Ridley Scott foi bem-sucedida onde a de Antonioni fracassou.

    Os problemas do fragmento e do detalhe no se restringem queles

    suscitados por uma esttica de base semitica. No mbito da crtica de arte mais

    antiga, a questo do detalhe esteve constantemente referida a uma tica darepresentao, pelo menos, desde Leonardo da Vinci em suas polmicas com

    Miguelngelo, mas, principalmente, por meio de Diderot. No seu vituprio contra

    o maneirismo e a deformao do objeto "segundo as regras do gosto", o filsofo

    proclama a natureza causa suficiente de todas as formas: "A natureza no faz nada

    incorreto. Toda forma, bela ou feia, tem sua causa, e, de todos os seres que

    existem, no h um que no seja como deve ser."13

    A tica do detalhe, em Diderot, essencialmente uma tica das relaes

    com o todo, com o todo ltimo - a natureza - que a obra de arte deve

    verdadeiramente "imitar". Se no rosto h um "detalhe" - as rbitas vazadas na face

    de uma mulher que perdeu os olhos na juventude - a imitao deve fidelidade, no

    exclusivamente a este detalhe, mas ao rosto todo: "a alterao afetou todas as

    13DIDEROT, Denis.Ensaios sobre a Pintura. So Paulo, Papirus/Editora da Unicamp, 1993, p. 31.

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    partes do rosto, segundo sua distncia ou proximidade do lugar central do

    acidente." E no apenas ao rosto: "julgais que o pescoo foi totalmente

    preservado? E os ombros ou o colo?" Alteraes, algumas imperceptveis aos

    nossos olhos, podem ter-se passado em todas as partes do corpo. Mas natureza,

    nada escapa. Diante destas partes, ela dir: " o pescoo, so os ombros, agarganta de uma mulher que perdeu os olhos em sua juventude."14

    A ateno ao detalhe o modo pelo qual o artista devota sua fidelidade ao

    todo. Ao considerar cada detalhe, o pintor reconstitui a totalidade:

    "incessantemente ocupados com um conjunto e com um todo, conseguireis

    mostrar, na parte do objeto apresentada por vosso desenho, toda a correspondncia

    adequada quela que no se v". A reconstruo a partir de fragmentos, no

    entanto, uma tarefa que s a natureza, ela mesma, poderia lograr. Se, da figura

    de um corcunda, o desenhista dispe apenas dos ps, sua imitao dificilmente

    teria xito. Mas se a mesma tarefa fosse deixada a cabo da natureza "ficareis

    talvez surpreso ao ver nascer sob seu lpis apenas um monstro hediondo e

    disforme."15

    Nos dias que correm, consolidou-se a opinio que as novas tcnicas

    digitais, de base fractal, haviam alcanado a linguagem da natureza. Isto , seriam

    capazes de realizar a tarefa de reconstruo a partir de fragmentos que Diderot

    considerava um privilgio exclusivo da natureza. Em um outro filme -Sem sada-boa parte da ao se passa enquanto um computador recupera o rosto de um

    suposto espio a partir de borres registrados por uma polaroid. Mas, desde o

    programa para "envelhecer" pessoas em fotografias, patenteado por Nancy

    Burson, uma das pioneiras da imagem digital, em 1981 - e utilizado at hoje pelo

    FBI e pelo National Center for Missing and Exploited Children - s travessuras

    14Idem, pp. 32-315Idem, p. 33 A distino entre detalhe e fragmento j havia sido um dos temas importantes da

    "Monadologia", de Leibniz, texto que teve grande influncia sobre Benjamin. Para Leibniz, Natureza eArte distinguem-se pelo tipo de fragmento que geram:

    "o dente de uma roda de lato tem partes ou fragmentos que j no so algo de artificiale no contm mais nada que indique da Mquina relativamente ao uso a que a roda destinada. Mas as Mquinas da Natureza, isto , os corpos vivos, so ainda mquinasnas suas menores partes, at o infinito. isto que faz a diferena entre a Natureza e aArte."[ LEIBNIZ, G. W.Princpios de Filosodia ou Monadologia. Lisboa: ImprensaNacional/Casa da Moeda/Universidade Nova de Lisboa, 1987, p. 57.

    Entre detalhes e fragmentos, o que se destaca em Leibniz ainda um terceiro modo de lidar com asrelaes parte/todo: o modo mondico. Este tema ser desenvolvido no captulo cinco deste estudo.

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    trans-tnicas benettonianas com o etno-morphing software, estas tcnicas tm

    demonstrado, principalmente, sua capacidade de simular a natureza, mais do que

    reproduzi-la.No h mais ilusionismo nestas imagens que, no entanto, ainda

    perseguem a verossimilhana. A maravilha destas vises o terem sido possveis

    (e neste sentido, so radicalmente virtuais). Quando Nancy Burson, em 1993,interrompeu suas experincias com imagens compsitas de bonecas e seres

    humanos, e publicou Faces- um livro de fotografias no-compsitas de crianas

    com anomalias faciais - ela no estava apenas buscando revelar uma "beleza que

    subjaz deformidade", mas insistindo mais uma vez na verossimilhana de suas

    imagens: afinal, a natureza tambm produz monstros.

    Existe, de fato, toda uma teratologia do fragmento - Frankenstein que o

    diga - da qual no vamos nos ocupar. preciso ressaltar, porm, que fragmentos

    podem articular-se e compor-se segundo princpios bastante diversos. Entre os

    humanistas toscanos do sculo XV - Bruneleschi, particularmente - fragmentos do

    mundo clssico sero utilizados na construo de um lxico prprio. Como cada

    fragmento passa a remeter, necessariamente, sua articulao no lxico, e

    portanto a um novo inteiro, o fragmento torna-se detalhe. J a codificao do

    barroco, com Borromini, funda uma "colagem de memrias extrapoladas de seus

    contextos"16, onde o fragmento insere-se em uma estrutura cuja organicidade lhe

    autnoma. Muitos crticos e historiadores reconhecero, a partir da, uma

    linhagem secular de anacronistas, para os quais o fragmento desarqueologizado,jamais remetendo ao seu hipottico inteiro.

    Este a-historicismo do barroco tem por fundamento, paradoxalmente, uma

    aguda experincia da histria. Em seu estudo sobre o drama barroco alemo,

    Walter Benjamin afirma que "desde o incio, no esprito da alegoria, ele foi

    concebido como runa, como fragmento". na alegoria barroca que a experincia

    da histria e do tempo se inscrevem. Na "base da alegoria" est a "guinada da

    histria em direo natureza".17

    Na alegoria, a face da histria emerge como uma paisagem arcaica

    petrificada. um rosto extemporneo, sofrido, malogrado - sua fisionomia uma

    16TAFURI, Manfredo. Teorias e Histria da Arquitetura.Lisboa: Presena, 1979, p. 45.17BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemo. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 204.

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    runa. O cerne da viso alegrica a exposio dos sofrimentos do mundo. A

    natureza no se parece com um boto em flor, mas com a decadncia das

    criaturas.18Na sua caducidade, a natureza era identificada histria. O processo

    histrico imprime-se na natureza decada.19 Em contraste com o smbolo - que

    expressa no rosto transfigurado da natureza o fim da histria, a salvao - aalegoria a redeno da natureza, da histria e da arte.

    A beleza de uma obra de arte, tambm ela, efmera. Tambm perece:

    "Essa transformao do contedo factual em contedo de verdadefaz do declnio da efetividade de uma obra de arte, pela qual,dcada aps dcada, seus atrativos iniciais vo se desbotando, o

    ponto de partida para um renascimento, no qual toda belezaefmera desaparece, e a obra se afirma como runa. Na estruturaalegrica do drama barroco sempre se destacaram essas runas,

    como elementos formais da obra de arte redimida."20

    Benjamin reconhece naquilo "que jaz em runas, o fragmento significativo, o

    estilhao", a "matria mais nobre da criao barroca."21

    Ao contrapor redeno a salvao, Benjamin projeta sobre a runa e o

    fragmento barrocos uma distino caracterstica do messianismo judaico onde "a

    escatologia uma reinterpretao da mitologia do tempo originrio", onde o

    passado, do qual o futuro dependente, ele prprio "transformado e

    transfigurado pelo sonho explosivo da utopia".22Entende Gershom Scholem que aredeno, ao contrrio da salvao, " um acontecimento que se d

    necessariamente no palco da histria", e que o messianismo judaico " em sua

    origem e natureza uma teoria da catstrofe"23, pois o prprio mundo em que se

    vive tem sua origem na catstrofe (a shevirah), a "quebradura dos vasos",

    18Idem, p. 200.19Comenta Willi Bolle que a fisiognomia deste rosto "designa aqui uma representao da histriaenquanto histria natural: a caducidade, o sofrimento e mortificao so expressos pelas alegorias da runa,

    do cadver e da caveira". BLLE, Willi.Fisiognomia da Metrpole Moderna.So Paulo: EDUSP, 1994,p. 40.20BENJAMIN, W. ODB, p. 20421Idem, p. 200.22A afirmao de Sigmund Movinckel,apudLWY, Michael.Redeno e Utopia.So Paulo:Companhia das Letras, 1989, pp. 19-30. Neste livro, Lwy assume a perspectiva de Scholem, para quem a"idia messinica" judaica amalgama tendncias contraditrias, porm inseparveis: uma restauradora,outra utpica. (p. 20) Para Lwy, tanto Scholem quanto Benjamin so portadores de uma "espantosa figuraespiritual: o anarquismo teocrtico" (p. 24). Esta expresso foi cunhada pelo prprio Scholem, em 1919.23Cf. LWY, M., Op. cit., p. 22

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    produzida, segundo a doutrina do cabalista Isaac Luria, pela "coexistncia precria

    dos diferentes tipos de luz divina". Os vasos, "eles mesmos consistindo em

    misturas inferiores de luz", e destinados a "servir de recipientes e instrumentos da

    Criao", "despedaam-se" sob o "impacto" das "luzes" intensas do prprio "plano

    central da Criao"24:

    "Assim, desde aquele ato primordial[o "faa-se a luz"], todo ser temsido um ser em exlio, com necessidade de ser conduzido de volta eredimido. A quebradura dos vasos prossegue em todos os estdios

    subsequentes de emanao e Criao; tudo est de alguma formaquebrado, tudo tem algum defeito, tudo est inacabado."25

    A "quebradura dos vasos", no plano teosfico, tem seu correspondente

    antropolgico na queda de Ado: "a 'grande alma' de Ado, na qual estavaconcentrada toda substncia da alma de toda a humanidade", tambm se

    fragmentou. Centelhas da alma de Ado e centelhas da Criao, "dispersam-se,

    caem e entram em exlio, onde sero dominadas pelas 'cascas', as klipot"26, que

    passam a ocult-las. Esses fragmentos cintilantes esto em toda parte, em todos os

    cantos do mundo. Em "todo lugar" h uma centelha " espera de ser descoberta,

    apanhada e restaurada por um ato religioso" 27 "O propsito desta misso",

    observa Scholem, " resgatar as centelhas sagradas dispersas e liberar a luz divina

    e as almas sagradas do domnio da klipah, representada no plano terreno e

    histrico pela tirania e opresso."28 O sentido mstico profundo desta "utopiarestitucionista", como a chama Lwy, que atos estritamente humanos, e nem por

    isso menos mgicos, podem liberar as centelhas de seus invlucros, e desse modo

    24Cf. SCHOLEM, Gershom.A Cabala e seu Simbolismo. So Paulo: Perspectiva, 1978, p. 135.25Idem, p. 136.26Mais literalmente, "conchas", que representam tambm o "outro lado", isto , o Mal.27Idem, pp. 139-40. Comentava Israel Sarug, um dos principais divulgadores da doutrina lurinica noincio do sculo XVII: "Vestgios da luz divina aderiram aos fragmentos [dos vasos quebrados] como

    centelhas ou gotas. Isto pode ser comparado a um vaso cheio; se ele quebra e o leo derrama, parte dolquido vai aderir aos fragmentos em forma de gotas. Como em nosso caso, parte das centelhas de luzpermanece... E quando os fragmentos decaem para o fundo do [quarto e ltimo] mundo da assiah[mundodofazimento, das coisas feitas], eles l produzem os quatro elementos - fogo, ar, gua e terra - que, por suavez, geram os quatro graus das formas mineral, vegetal, animal e humana. Quando tudo isso se tornacompletamente materializado, algumas gotas ainda permanecem entre os elementos. Por essa razo deveser o objetivo de cada judeu destacar estas gotas de onde elas esto [aprisionadas] neste mundo e elev-las santidade pelo poder de sua alma." [citado em Scholem, G.Sabbatai Sevi, pp. 40-1]28 SCHOLEM, G. Sabbatai Sevi: The Mystical Messiah. Princeton: Princeton University Press, 1975, p.44.

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    restabelecer as luzes tanto no domnio do humano como no da natureza,

    facultando Criao, "sua primeira realizao plena".29

    Ao dobrar a teologia sobre a histria - ou sobre o "materialismo histrico"-

    na composio das "teses", Benjamin refaz, ao inverso, o movimento realizadopor Isaac Luria, que havia projetado a histria sobre a teologia. Cabalista do

    sculo XVI - cuja doutrina foi objeto de grande interesse do crculo de judeus

    alemes re-conversos da mesma "famlia espiritual" de Benjamin, como Scholem,

    Rosenzweig, Ernst Bloch30 -,. Luria inovou a cabala ao incorporar elementos da

    experincia histrica - particularmente a experincia do exlio e da opresso - em

    seus ensinamentos cosmognicos e teosficos:

    "... a inovao decisiva, qual se deve o apelo Lurinico em seu

    tempo, foi a transposio dos conceitos centrais de exlio e redenodo plano histrico para o csmico e mesmo divino. A visoescatolgica da redeno da opresso pelos gentios expande seuescopo de modo a abranger no s toda a criao mas, inclusive, ombito do divino."31

    Tal afinidade no de modo algum arbitrria, pois, assim como Benjamin

    procurou fazer com o "materialismo histrico", Luria rompeu, em sua doutrina,

    com a cosmogonia da "cabala clssica", fundada sobre o "progesso" e a

    "continuidade":

    "Antes de Luria, toda a Cabala via a criao como um processo emprogresso, que se movia sempre em uma nica direo; um processoque, emanando de Deus... alcanava o homem; um movimento emque cada estgio era estreitamente ligado ao estgio subsequente,

    sem grandes saltos para frente ou para trs. Em Luria, ao contrrio,a criao um processo surpreendentemente regressivo... onde acatstrofe sempre um evento central."32

    29SCHOLEM, G.A Cabala e seu Simbolismo,p. 140.30Este ltimo, em "O Esprito da Utopia", publicado em 1918, incorpora explictamente a "msticalurinica" a seu dar fundamento a uma "prxis" marxista.31SCHOLEM, G. Sabbatai Sevi, p. 26. Esta "transposio de conceitos" aparece para ns, de fato, comouma co-incidnciaentre o plano histrico e o teosfico e cosmognico. O exlio, por exemplo, sucede emambos os planos; mas, como veremos adiante, na experincia histrica do exlio reside a possibilidade deredeno do exlio divino.32BLOOM, Harold. Cabala e Crtica. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 48.

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    Quando Willi Blle prope a "alegoria barroca como precursora da

    moderna esttica do fragmento"33, ele reduz a perspectiva benjaminiana. Relega a

    segundo plano a nfase na funo redentora da alegoria, pois os fragmentos so

    acumulados nas obras literrias barrocas "na incansvel expectativa de um

    milagre".34Blle assume o risco de ressimbolizar a alegoria. Perder-se-ia ento, naalegoria, sua exploso transcendental, e no fragmento, seu "milagre". O fragmento

    de Benjamin no um smbolo arruinado. uma relquia. No possveldissociar sua interpretao da alegoria barroca da experincia romntica de uma

    natureza arruinada e que, ao mesmo tempo, seculariza a relquia. Benjamin deu-se

    conta disto enquanto preparava seu trabalho sobre Baudelaire. "A lembrana", diz

    ele, " a relquia secularizada":

    "A lembrana o complemento da 'vivncia', nela se sedimenta a

    crescente auto-alienao do ser humano que inventariou seupassado como propriedade morta. No sculo XIX, a alegoria saiu domundo exterior para se estabelecer no mundo interior. A relquia

    provm do cadver, a lembrana, da experincia morta que,eufemisticamente, se intitula vivncia".35

    Muito antes da "reprodutibilidade tcnica", os mrmores do Partenon foram

    transportados para Londres com base na tese que "a arte, no os lugares, que

    atribui s runas 'uma poeticidade antiga e moderna'"36A casa burguesa do sculo

    XIX constitui-se, ela prpria, assinala Benjamin, em um relicrio secular, cujoemblema mais significativo so os estojos de veludo ou pelcia, nos quais a

    experincia do vivido substituda pela marca/inscrio do objeto/mercadoria.37

    Do mesmo modo que o tema do detalhe remete tradio da histria da

    arte, o tema do fragmento remete arqueologia.38O livro de Bouche de Perthes,

    Antiguidades Celtas e Antediluvianas, publicado em 1847, considerado um

    marco na renovao da arqueologia. Nesta obra, "o objeto de arte excepcional"

    33BOLLE, W.Op. cit., p. 124.34BENJAMIN, W. ODB, p. 200.35BENJAMIN, Walter. "Parque Central". In: Obras Escolhidas III. So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 172.36Cf. CARENA, Carlo. "Runa/Restauro". In:Enciclopdia Einaudi (v. 1). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 109.37Cf. BENJAMIN, Walter. "Paris do Segundo Imprio". In: Obras Escolhidas III. So Paulo: Brasiliense,1989, pp. 43-4.38Cf. CALABRESE, O., Op. cit., p. 85.

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    substitudo pelo "objeto material comum e annimo", constituindo-se no "lao

    material com a civilizao" que se quer "entender".39

    Este toro na disciplina explica porque Gabriel Tarde, interessado em

    fundar, nos idos de 1890, uma sociologia, pensa em tomar o arquelogo comomodelo: " medida que mergulha num passado mais profundo, o arquelogo perde

    mais de vista as individualidades."40Tambm a nascente estatstica apresentava-se

    semelhante em seus mtodos. Tanto a sociologia, como a arqueologia e a

    estatstica seriam "cincias das similitudes", digamos, das similitudes sociais, pois

    h semelhanas de duas ordens: as semelhanas "vitais", derivadas da

    hereditariedade (homolgicas); e as semelhanas "sociais", derivadas da imitao

    (analgicas). Tarde entende que os arquelogos assumem o postulado que as

    semelhanas nunca so fortuitas, e que esto "obrigados, para relacionar o

    desconhecido ao conhecido, a procurar nas analogias mais distantes... os segredos

    das geraes desaparecidas".41A arqueologia seria a "coleo" e a "classificao"

    de "obras similares", e a estatstica, a "numerao" de "aes similares". Ambas

    tratam das "invenes e das edies imitativas que delas se fazem", mas o "campo

    da inveno parece mais especialmente prprio da arqueologia, e o da imitao da

    estatstica."42

    Com base nesta concepo, s haveria trs categorias de fatos histricos: "o

    progresso ou o declnio de um gnero de imitao"; "a apario de uma dessascombinaes de imitaes diferentes" (inveno); "as aes" (humanas ou

    naturais) que impem "condies novas propagao de quaisquer imitaes".43

    Em sntese, a histria poderia ser definida do seguinte modo:

    "A histria, tal como se ouve, no passa, em suma, do auxlioprestado ou do obstculo posto, por invenes no imitveis e deuma utilidade momentnea, a um conjunto de invenesindefinidamente imitveis e teis"44

    39

    Cf. BUCAILLE, Richard e PESEZ, Jean-Marie. "Cultura material". In: Enciclopdia Einaudi (v. 16).Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, pp. 12-15. Isto no quer dizer que a arqueologiaclssica, nascida na Renascena, tenha desaparecido. Os feitos de Schliemann - as escavaes de Tria(1871) e Micenas (1876) - pertencem ainda a esta tradio de uma "arqueologia ilustrativa", interessada emdemonstrar "onde o lugar".40TARDE, Gabriel de.As Leis da Imitao. Porto: Rs, s/d, p. 116.41Idem, pp. 125-126.42Idem, p. 129.43Idem, p. 166.44Idem, p. 118.

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    Em Tarde, a histria torna-se a histria das condies de repetio, das

    condies de propagao por meio daquilo que singular e irrepetvel. O tempo

    que se permite inferir desta histria, o tempo de seus acontecimentos,

    essencialmente velocidade e frequncia da irradiao das invenes, de suasrepeties e imitaes, seus "cortejos ondulatrios." Desse modo, a histria do que

    singular e irrepetvel e, portanto, sucessivamente linear, "marcando o tempo com

    um sinal distintivo", encontra-se com o que se repete e cumpre seu ciclo "de sries

    repetitivas (ou oscilatrias)".45

    Se para Gabriel Tarde a arqueologia sugere um mtodo de anlise, em

    Walter Benjamin ela uma imagem para a explorao da memria. O homem que

    busca o passado o homem que escava. Mas a memria no um "instrumento"

    para esta busca. Ela o prprio meio onde se busca: " o meio onde se deu avivncia, assim como o solo o meio no qual as antigas cidades esto soterradas".

    O objeto desta escavao no so os fatos; os fatos so as "camadas". O homem

    que escava o passado na memria "no deve temer voltar sempre ao mesmo fato,

    espalh-lo como se espalha a terra, revolv-lo como se revolve o solo". S a

    explorao cuidadosa recompensada com um "achado".46

    na perspectiva do achado que o fragmento opera a historiografia

    benjaminiana. Tambm neste aspecto, Willi Blle nos induz a um Benjamindespotencializado em sua transcendncia:

    "A historiografia alegrica consiste na desmontagem de textos e naremontagem dos fragmentos com vistas a uma nova constelaotextual, relacionando assim pocas diferentes; to importantequanto a identificao de suas afinidades eletivas, oreconhecimento de suas diferenas histricas."47

    Existe, por trs desta interpretao, a suposio que os fragmentos se

    produzem por "desmontagem", sendo, posteriormente, remontados para a histria.

    Jos Guilherme Merquior j havia observado que tal remontagem no era umobjetivo da operao histrica de Benjamin, pois este buscava "uma nova espcie

    de relao com o Todo", onde a "totalidade" s podia aparecer como um "claro",

    45GOULD, S.Seta do Tempo, Ciclo do Tempo. So Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 196.46BENJAMIN, Walter. "Imagens do Pensamento". In: Obras Escolhidas (v II). So Paulo: Brasiliense,1987, p. 239.47BLLE, Willi. Op. cit., p. 108.

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    no resultando do trabalho de composio de um "sistema".48 As implicaes

    mais crticas da tese de Blle so: descaracterizao do fragmento enquanto tal,

    pois sua produo torna-se dependente da ao de um sujeito; desvalorizao da

    reciprocidade - do olhar correspondido - como condio de reconhecimento do

    fragmento (e no de "suas diferenas histricas"); e, em ltima instncia, asubstituio do arquelogo - que se ilumina no e com o achado, cuja centelha

    descobre - por um telogo bizantino padecendo de dupla personalidade - uma

    iconoclasta, que fragmenta as imagens luz de sua hiper-viso interior (e anterior)

    e outra iconoflica, que cola os caquinhos conforme as urgncias do dia. Em

    resumo, a histria que se faria a contrapelo, eriando os acontecimentos, torna-se

    uma histria feita a marteladas (como a filosofia de um Nietzsche-Penlope, que

    remenda, de dia, parte do estrago que produz noite). Sim, h um Nietzsche em

    Benjamin. E h tambm um trabalho de Penlope. No da "Penlope da

    reminiscncia" - que rene lembranas, tecendo a trama de sua memria - mas de

    uma "Penlope do esquecimento", para a qual "a recordao a trama e o

    esquecimento a urdidura". O dia desfaz, "com suas reminiscncias intencionais",

    as "franjas da tapearia da existncia vivida, tal como o esquecimento a teceu"

    noite, como "arabescos entrelaados", "ornamentos do olvido."49

    A caracterizao da histria que escreve Benjamin como "historiografia

    alegrica", do modo como a entende Willi Blle, apia-se na confuso entre a

    continuidade dos acontecimentos histricos com a sua contiguidade - como osteria tecido a "Penlope da reminiscncia". Na historiografia barroca, da qual

    Leibniz um exemplo bastante significativo, a "doutrina da continuidade" servia

    de "princpio ontolgico informador", apoiada no "raciocnio analgico como

    princpio epistemolgico".50 Ressalta Deleuze que "as singularidades, os pontos

    singulares, pertencem plenamente ao contnuo, embora no sejam contguas" .51

    evidente que a histria de Benjamin no uma "analstica", como a de Leibniz,

    mas nem a deste ltimo foi a "tentativa fracassada" de quem "coligiu materiais,

    mas no os trabalhou", pois o sentido do acontecimento na "monadologia" o de

    "microcosmo do macrocosmo" e, seu "modo de compreenso", conforme

    48MERQUIOR, Jos Guilherme.Arte e Sociedade em Adorno, Marcuse e Benjamin. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1969, p. 116.49BENJAMIN, Walter. "A Imagem de Proust". In: Obras Escolhidas, v. I.So Paulo: Brasiliense, 1985, p.37.50WHITE, Hayden.Meta-histria; a imaginao histrica do sculo XIX. So Paulo: Edusp, 1992, p. 87.51DELEUZE, Gilles.A Dobra; Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991, p. 37.

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    esclarece Hayden White, a sindoque, isto , um modo essencialmente"integrativo" - da a iluso de uma "remontagem" -, referindo-se a relaes

    "intrnsecas" de "qualidades compartilhadas" entre partes que se integram em um

    "todo que qualitativamente diferente da soma das partes e do qual as partes so

    apenas rplicas microcsmicas".52Naquilo que a histria de Benjamin tem debarroca habita o princpio analgico da "correspondncia" - noo que era to cara

    a Benjamin quanto a Leibniz.53 Em Benjamin, esta "correspondncia" aquela

    que, fugazmente, permite ao escavador a viso de seu achado:

    "A verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado s sedeixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, nomomento em que reconhecido."54

    Como no perspectivismo barroco, "no o ponto de vista que varia com osujeito, pelo menos em primeiro lugar; ao contrrio, o ponto de vista a condio

    sob a qual um eventual sujeito apreende uma variao (metamorfose) ou algo = x

    (anamorfose)". No se trata portanto de um relativismo do acontecimento e da

    histria para com o presente de um sujeito - ao modo de Carr -, mas de uma

    apario singular cujo reconhecimento implica a reciprocidadede uma distncia

    indivisvel, e que, como tal, o sujeito no pode alterar. Trata-se, ensina Deleuze,

    "no de uma variao da verdade de acordo com um sujeito, mas da condio sob

    a qual a verdade de uma variao aparece ao sujeito."55 Como Lus Martins j

    observou em sua introduo edio portuguesa da Monadologia de Leibniz, a

    associao de dois "pontos de vista mondicos" no igual sua "soma

    aritmtica" ou sua "contiguidade fsica" mas, pelo contrrio, diferena de

    "ordens existenciais diversas", correspondentes - em termos leibnizinianos - a

    "graus diferentes de perfeio metafsica."56 Isto , trata-se de uma continuidade

    52WHITE, H.Op. cit., pp. 48-9 e 74.53"Leibniz afirmar sempre: uma correspondncia e mesmo uma comunicao entre os dois andares, entreos dois labirintos, entre as redobras da matria e as dobras da alma." DELEUZE, G. Op. cit., pp. 14-5.

    54BENJAMIN, W. SCH, p. 22455DELEUZE, G., Op. cit., p. 37.56 MARTINS, Lus. Introduo. In: LEIBNIZ, G. W.Princpios de Filosofia ou Monadologia.Lisboa:Imprensa Nacional/Casa da Moeda/Universidade Nova de Lisboa, 1987, p. 14. De fato, boa parte doempreendimento lgico de Leibniz distinguir - e no reduzir - continuidade a contiguidade. S contguoaquilo que infinitamente divisvel - o prprio clculo infinitesimal serviu-lhe de comprovao "fsica"para argumentar contra a substancialidade do espao e do tempo"; aquilo que indivisvel, como amnada, no deve confundir-se com o "tomo" - conforme tradicionalmente o entendemos -, no umaparte de um todo, obtida por repartio, mas a parte-todo que resulta de um ponto de vista, "parteexpressiva" do todo. Esta questo ser retomada no captulo cinco deste estudo.

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    dos distintos graus, aos quais cada ponto de vista corresponde a uma expresso

    particular e sempre distinta, e que, por isso, no se confunde com a contiguidade.

    O entendimento humano, em Leibniz, aquele que s atravs de "saltos mentais"-

    como o tigre de Benjamin - e "pontes subsequentes", consegue dar conta,

    "descontinuamente", do "contnuo ontolgico".57

    O achado do escavador Benjamin - no que tem de mnada leibniziana e

    fragmento cintilante - , tanto por sua correspondncia macrocsmica como por

    sua apario, uma relquia deste encontro: "imagens que, desprendidas de todas as

    conexes mais primitivas, ficam como preciosidades nos sbrios aposentos de

    nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador".58

    Como deve o escavador avanar no terreno da memria? Por um corte

    transversal, mas tambm tateando, no escuro. E depois, quem se limita

    simplesmente ao "inventrio dos achados", priva-se "do melhor"; pois preciso

    "assinalar no terreno de hoje o lugar onde conservado o velho". As verdadeiras

    lembranas valem menos pela informao de que so portadoras do que por

    "indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou delas."59E, neste aspecto, a

    escavao de Benjamin distingue-se daquela do arquelogo profissional, pois este

    sabe que "cada observao que se documenta, supe a perda definitiva de outras,

    porque toda escavao uma destruio de informaes."60 A lembrana em

    Benjamin no apenas recorda, como fornece uma imagem daquele que recorda,como uma escavao que registrasse no s "as camadas das quais se originam

    seus achados, mas tambm, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas

    anteriormente."61A imagem daquele que se lembra o seu percurso: sua imagem-

    de-si.62

    Tambm em Freud, a arqueologia sugere uma imagem para a explorao da

    memria. De modo geral, a imagem arqueolgica evocada em Freud a partir de

    uma analogia fundadora: a do analista como escavador. Mas enquanto ele inspira-

    57Idem, p. 19.58BENJAMIN, W. IP, p. 239.59Idem, p. 239.60MOBERG, Carl-Axel.Introduccin a la Arqueologa. Madri: Ctedra, 1987, p. 14. A passagem sinalizapara um curioso paradoxo: aquilo que resgata as runas , em si mesmo, um novo (e outro) arruinamento.61BENJAMIN, W., IP, p. 240.62O tema da "imagem-de-si" ser retomado no quinto captulo deste estudo.

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    se na arqueologia clssica - dos feitos de Schliemann e de Roma e seus

    monumentos -, Benjamin recorre a uma arqueologia do cotidiano - de cacos e

    fragmentos.63O sujeito da escavao em Freud o analista. Em Benjamin, mal

    comparando, o paciente. Sobre o achado benjaminiano predomina o ponto de vista

    - barroco - do colecionador, que se funde ao escavador. Se uma vez Freudimaginou-se, como analista, um arquelogo como Schliemann, ele prprio foi,

    como arquelogo, um tpico colecionador benjaminiano, povoando seu gabinete

    com peas dissociadas de seus contextos, confundindo pocas e estilos.

    Hannah Arendt assinala que, para Benjamin, o colecionador tem, em sua

    "atitude", algo do revolucionrio: "Colecionar a redeno das coisas que

    complementa a redeno do homem", uma vez que os objetos libertam-se do jugo

    de sua utilidade.64Ao comentar a declarada tentativa de Benjamin de "capturar o

    retrato da histria nas mais insignificantes representaes da realidade, seus

    fragmentos", chama a ateno para sua admirao por dois gros de trigo que

    integravam a seo judaica do Museu Cluny, "no qual uma alma piedosa

    escreveu o Shem Israelinteiro." Observa que, para ele, "quanto menor o objeto,

    mais este lhe parecia capaz de conter, da forma mais concentrada, tudo o mais."65

    Algo do gnero deve passar-se com a fotografia e sua pequena histria. Toda a

    histria, afinal, no seria necessariamente maior que um ou dois gros de trigo.66

    como histria do acontecimento que a pequena histria da fotografia seescreve: removendo as cascas que encobrem os estilhaos de luz. Revolvendo no

    presente os fragmentos de um passado que cintila na correspondncia de seu

    achado: "irrecupervel cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem

    que este presente se sinta visado por ela".67

    63E antes que se levantem as vozes da objeo, considere-se que ao lidar com "vestgios" - e mesmo com a"psicopatologia" do cotidiano - importa a Freud um modo de restaurao do que est incompleto. O que ,afinal, o inconsciente se no este grande anastilante, compondo o fragmento com isto que falta?64ARENDT, Hannah.Men in Dark Times. Nova York: Harcourt, Brace & World, 1968, p. 197.65Idem, p. 164. A tradio reconhece nos tres versos doshem a essncia do judasmo.66"O 'agora'", diz Benjamin, "que como no modelo do messinico abrevia num resumo incomensurvel ahitria de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela histriahumana." [SCH, p. 232]67BENJAMIN, W. SCH, p. 224.

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    BENJAMIN E A VANGUARDA FOTOGRFICAALEM

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    A "Pequena Histria da Fotografia" foi escrita em 1931. Percebem-se nelaas marcas do trabalho de traduo de Proust, concludo por Benjamin menos de

    dois anos antes, convergindo para um texto onde se ensaiam as proposies

    fundamentais dos grandes trabalhos de sntese da obra benjaminiana: "A Obra de

    Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica" (1935-36) e as teses "Sobre o

    Conceito da Histria" (1940) - a aura e a centelha. Mas tambm um "texto decentenrio", pois, como o prprio Benjamin anota, entre 1930 e 1931, as primeiras

    grandes retrospectivas dos "pioneiros" comeam a ser publicadas. As "tentativas

    de teorizao" que vinham sendo, at ento, demasiado "rudimentares", deveriam

    ser superadas por um pensamento que transformasse "o fascnio exercido pelos

    lbuns de velhas fotografias" em "compreenso real da essncia da arte

    fotogrfica".68

    Neste sentido, tanto a "Pequena Histria da Fotografia" como "A Obra de

    Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica" buscam recolher e transcender, do

    ponto de vista esttico e tambm poltico, um debate sobre a essncia da

    fotografia - sua especificidade- que envolveu os produtores de imagens tcnicas

    durante a "fase herica" da vanguarda fotogrfica alem, particularmente nos anosvinte.69Entre os principais marcos desta "fase herica" esto a publicao, em

    1925, deMalerei, Fotografie, Film, de Moholy-Nagy, e a monumental exposio

    FIFO - Film und Foto(1929), em Stutgart, reunindo 1000 fotografias de 218

    autores. O trao comum desta vanguarda o esforo para desvencilhar-se da

    tradio pictorialista na busca do puramente fotogrfico.

    Benjamin observa os cem anos da prtica fotogrfica como um ciclo que

    comporta trs perodos: apogeu, declnio e revitalizao. O tempo do apogeu

    coincide com suas primeiras duas dcadas de existncia como tcnica pr-

    68BENJAMIN, Walter. Pequena Histria da Fotografia. In: Obras Escolhidas, v. 1. So Paulo: Brasiliense,1985, p. 92.69Convm assinalar, com Ian Jeffrey, que nos anos vinte, a maioria dos "Novos Fotgrafos" eram daAlemanha, "onde o desenho das cmeras era bem mais avanado que no resto da Europa e os editoresexcepcionalmente ativos". JEFFREY, Ian.Photography; a concise history. Londres: Thames and Hudson,1989, p. 116.

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    industrial e "arte de feira".70 Pois todo "produto cultural" hesita um pouco antes de

    "se tornar mercadoria pura e simples". No seu confronto com a tcnica que lhe

    antecede, a inovao "assume durante algum tempo a forma da ...fantasmagoria:

    os mtodos de construo modernos do origem fantasmagoria das galerias, a

    fotografia faz nascer a fantasmagoria dos panoramas."71Uma "bno bblicaparece ter favorecido estes primeiros fotgrafos"72: Nadar (1820-1910), Hipolite

    Bayard (1801-1887) e David-Octavius Hill (1802-70), para quem ainda no h

    retrato, pois "o rosto humano era rodeado por um silncio em que o olhar

    repousava".73Por volta de 1850, o fotgrafo esta " altura" de seu instrumento -

    "pela primeira vez e, durante muito tempo, pela ltima."74

    O carte-de-visite inaugura a fase industrial da fotografia - "cujo primeiro

    produtor, sintomaticamente, tornou-se milionrio."75No perodo do declnio - da

    "decadncia do gosto" - homens de negcios tornam-se fotgrafos, o "mau pintor"

    vinga-se submetendo a imagem ao retoque e o ateli fotogrfico povoa-se de

    acessrios ridculos.76A "rigidez" da pose trai a "impotncia daquela gerao em

    face do progresso tcnico", correlata da "degenerescncia da burguesia

    imperialista", e traz consigo a "regra decadente": no se deve fitar a lente.77

    Principalmente por intermdio de Eugne Atget, a fotografia comea a ser

    revitalizada: ele "foi o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela

    fotografia convencional, especializada em retratos, durante a poca dadecadncia". Atget, o ator que tirou a mscara em virtude de problemas vocais,

    "desmascara a realidade": "nessas imagens a cidade foi esvaziada, como uma casa

    que ainda no encontrou moradores". Fotografia surrealista, "em que toda a

    intimidade cede lugar iluminao dos pormenores." 78Pois o "rosto humano" a

    70BENJAMIN, W. PHF, p. 9271BENJAMIN, Walter. "Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo" (Obras Escolhidas, v. III).So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 63.72BENJAMIN, W. PHF, p. 9773Idem, p. 95.74Idem, p. 96.75Idem, p. 92. O "primeiro milionrio" da fotografia , evidentemente, uma referncia a Disdri.76Idem, pp. 97-8.77Idem, p. 99.78Idem, pp. 101-2. Importante mencionar que uma coletnea de fotografias de Atget, organizada porBerenice Abbot, fora publicada na Alemanha exatamente em 1931. Atget, de fato, jamais considerou-se umsurrealista. Foi "resgatado do anonimato" por eles em 1926, um ano antes de sua morte, e permitiu quealgumas de suas imagens fossem reproduzidas em publicaes surrealistas, que o exaltaram como um

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    "ltima trincheira" do valor de culto, que recua, "em todas as frentes" - mas no

    sem "oferecer resistncia" - ante o valor de exposio: "o refgio derradeiro dovalor de culto foi o culto da saudade, consagrada aos amores ausentes e

    defuntos."79Um sinal dos novos tempos: pintores, como Moholy-Nagy (1895-

    1946), transferem-se para a fotografia: eles abandonam a pintura "na tentativa decolocar seus meios de expresso numa relao viva e inequvoca com a vida

    contempornea".80

    Conforme afirmado anteriormente, os textos de Benjamin, e

    particularmente a "Pequena Histria da Fotografia", tm por objetivo, alm da

    reviso terica dos problemas suscitados pelo desenvolvimento da fotografia,

    posicionar-se diante de uma longa polmica em torno do "especificamente

    fotogrfico" - polmica que, como outras que cindiam o campo intelectual alemo,

    tende a desaparecer, por razes notrias, aps 1934. Assim, por exemplo, os

    conceitos relativos aos dois "modos de viso", desenvolvidos inicialmente por

    Adolf Hildebrand em 1893, e retomados sucessivamente pelos mais eminentes

    historiadores da arte alemes das primeiras dcadas do sculo, como Wrringer e

    Wlfflin, so relidos por Benjamin em "A Obra de Arte na Era de sua

    Reprodutibilidade Tcnica", diante dos problemas novos que as imagens tcnicas

    colocam. Em Hildebrand, o modo "prximo" (Nachbild) corresponde " viso

    corrente de uma forma no espao do vivido", j o modo "distante" (Fernbild),

    corresponde " viso desta mesma forma segundo as leis especficas da arte."81Aesses dois modos, Hildebrand associava plos, entre os quais, culturas, escolas e

    estilos oscilavam: o plo ptico- o da viso de longe - e o plo hptico- da visottil. Em 1913, Wrringer refaz aproximadamente o mesmo percurso, redefinindo

    os termos desta oscilao em bases afetivas, agora entre abstrao- que remete a

    "um estilo claro, inorgnico, baseado na linha reta e na superfcie plana" e

    tatilidade - eEinfhlung - a "empatia", que em algumas tradues aparece como

    "natureza", remetendo ao tratamento naturalista e "orgnico" e portanto mais

    "precursor" - e assim que Benjamin o toma -, mas no consentiu que seu nome fosse includo entre osparticipantes do movimento.79BENJAMIN, W. "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica". In: Obras Escolhidas, v. 1.So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 17480BENJAMIN, W. PHF, p. 104.81HILDEBRAND, Adolf. The Problem of Form in Paiting and Sculpture. Nova York, Stechert, 1907.Este texto tambm pode ter influenciado Benjamin, como veremos em outra parte deste estudo, a concebera "aura" como uma "experincia".

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    "realista" e tico.82Em 1915, Heinrich Wlfflin publica a elaborao mais bem

    acabada desta tradio, ao enfocar "o problema da evoluo dos estilos na arte

    mais recente."Em Conceitos Fundamentais da Histria da Arte, os polos deixam

    de ser "formas de viso" para tornaram-se "formas de concepo visual": o linear

    e o pictrico, e novamente do visvel ao tangvel.83

    Em Benjamin, o ttil e o visual remetem a dois modos de recepo, de

    acolhimento das imagens, retomando, de certa forma, a concepo de Hildebrand,

    que no se restringia s criaes artsticas. Em "A Obra de Arte na Era de sua

    Reprodutibilidade Tcnica", recomenda que, mesmo sem pr de lado uma

    recepo das coisas pelo recolhimento, pela ateno, seria preciso valorizar

    tambm a recepo pelo hbito, a distrao.84

    A tradio nos deixou intelectualmente mais bem equipados para o

    primeiro tipo de acolhida, a recepo tica, mas seria necessrio reconhecer a

    oportunidade da segunda, a acolhida ttil. Este segundo tipo de percepo , em

    sua essncia, a apreenso do usurio onde, como no caso da arquitetura, "o hbito

    determina em grande medida a prpria recepo tica". Mas tambm a do

    espectador de cinema: ali onde as imagens se chocam, a "dominante ttil

    prevalece no prprio universo da tica". No diferente no trnsito - pois o

    "deslocar-se atravs do trfego implica para o indivduo uma srie de choqse

    colises" e "nos cruzamentos perigosos uma rpida sucesso de contraes opercorre, como descargas de uma bateria."85Ou ao tentar escapar de ser linchado

    por um grupo das S.A, uma vez que a tcnica - e a tcnica feita poltica -,

    submetiam "o sensrio do homem a um trainingcomplexo":86

    "... as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, emmomentos histricos decsivos, so insolveis na perspectiva

    82Cf. AUMONT, Jacques.A Imagem. Campinas (SP): Papirus, 1993, p.121. Convm assinalar, apenas,que as remisses dos estilos aos plos ttil e tico em Hildebrand e Wrringen so, com frequncia,divergentes.83WLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da Histria da Arte. So Paulo: Martins Fontes, 1989.Ver particularmente o Prefcio sexta edio e a Introduo.84Cf, BENJAMIN, Walter. OAR, pp. 192-4.85BENJAMIN, W. STB, p. 43.86Idem, p. 43.

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    puramente tica: pela contemplao. Elas se tornam realizveisgradualmente, pela recepo ttil, atravs do hbito."87

    No difcil relacionar os dois tipos de recepo a dois famosos fotgrafos:

    August Sander, o fotgrafo tico; Erich Salomon, o fotgrafo ttil. Quem observasuas obras, hoje em dia, disparatadas como so, tem dificuldade em reconhecer

    uma agenda comum de problemas. Mas, naqueles anos, a tarefa reservada s

    imagens tcnicas era suficientemente clara para todos. Kurt Wilhelm-Kstner,

    organizador de uma exposio em 1931, assim a resumiu:

    "O verdadeiro ideal da fotografia , antes de tudo, ensinar a nossosolhos - obscurecidos pelo saber e pela erudio - como observar ereconhecer o mundo que nos cerca, como incrementar nossacapacidade perceptiva"88

    Existe algo mais neste programa alm da ruptura com a tradio

    pictorialista das primeiras dcadas do sculo. Ou, o que praticamente a mesma

    coisa, a consolidao de um certo projeto moderno de imagem. A realidadeestava no centro dos interesses e, seja l o que significasse para eles, o certo que

    pareciam estar todos de acordo que o acesso a ela (mesmo s suas entranhas,como dizia Benjamin) era uma operao de desnudamento. Nua, mas no

    necessariamente crua, a realidade no se oferecia ao estupro da cmera, mas

    entregava-se, revelava-se afinal, diante de um corao verdadeiramente puro. Em1924, August Sander - ento apenas um bom retratista e fotgrafo industrial em

    Colnia - decide abandonar os papis texturizados em suas ampliaes em favor

    dostandard, liso e acetinado, de modo a obter "fotografias exatas".89Este seu

    primeiro gesto de purificao (do corpo e da alma) da imagem.

    87BENJAMIN, W. OAR, p. 193.88COKE, Van Deren.Avant-garde Photographique en Alemagne. Paris, SERS, 1982. p. 2089PHILLIPS, Christopher. "Ressurecting Vision". In: The New Vision; Photography between the WorldWars. Nova York, Metropolitan Museum of Art, 1989. Alguns anos antes, logo aps a guerra, na qualhavia atuado como diretor das "operaes de reconhecimento fotogrfico areo", o mestre do pictorialismonorte-americano, Edward Steichen, "queima seus antigos trabalhos prometendo-se nunca mais tocar em umpincel, abandonar toda inspirao pictural por uma redefinio da imagem diretamente inspirada pelafotografia instrumental e seus mtodos pragmticos." Cf. VIRILIO, Paul.A Mquina de Viso. Rio deJaneiro: Jos Olympio, 1994, p. 74.

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    Sander publica o lbum Os Alemesem 192990, contendo 60 retratos

    selecionados de uma srie de mais de 500 imagens que pretendiam recobrir a

    paisagem humana de seu pas. Julgava-se um classificadorfrio e implacvel: seus

    retratos estavam organizados em 45 tipos sociais bsicos, hierarquicamente

    definidos. Entre os tipos mais altos, artistas, mdicos e juristas; entre os maisbaixos, pobres, enfermos, mendigos, cegos, vagabundos: "do campons, ligado

    terra, ao mais alto pncaro da civilizao, e de modo descendente at s mais sutis

    categorias de idiotas".91

    Para a maioria dos admiradores de Sander, no certamente a sua

    sociologiaque interessa. Mesmo para o fotgrafo, a tipologia social era um

    problema essencialmente cartogrfico, isto , de um territrio a recobrir (um atlas,

    dir Benjamin diante do resultado deste inventrio92). Em alguma medida, o

    projeto de Os Alemesera herdeiro do trabalho de Sander como retratista

    mundano. Em um anncio de 1910, ele oferecia "retratos naturais que mostram os

    modelos em um ambiente correspondente sua prpria individualidade."93A

    fotografia estava a servio deste outro entendimento. neste sentido que Sander

    escreve, em 1925, a Erich Stenger, historiador e colecionador de fotografias, na

    tentativa de interess-lo no lbum que estava preparando. Deixa claro que, mais

    do que a fidelidade ao modelo, a ambio da fotografia puraera tornar-se um

    espelho do tempo:

    "A fotografia pura nos leva a criar retratos que tratam seus modeloscom absoluta verdade, tanto fsica quanto psicolgica. Este o

    princpio que fornece meu ponto de partida, uma vez que disse amim mesmo que podemos criar retratos que so verdadeiros,

    podemos desse modo criar um espelho dos tempos em que estesmodelos vivem."94

    90De fato, "Terra Alem, Povo Alemo" era o nome global do projeto. Apesar de conhecido como Os

    Alemes- provavelmente um apelido sugerido pela comparao com Os Americanos, de Robert Frank,editado em 1959 - este primeiro livro chamava-seAntlitz der Zeit(Face do Nosso Tempo).91Citado em JEFFREY, I. Op. cit., p. 133.92BENJAMIN, W. PHF, p. 10393Cf. JEFFREY, I. Op. cit., p. 132.94Citado em ESKILDSEN, Ute. "Photography and the State between the Wars: The Weimer Republic".In: LEMAGNY, Jean-Claude e ROUILL, Andr.A History of Photography: Social and CulturalPerspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 142. De modo geral, reconhece-se notrabalho de Sander uma dimenso crtica, que o nazismo no pode tolerar. Mas, acima disto, precisoobservar que esto em disputa modos concorrentes de se olhar a expresso de um rosto. Onde o fascismo

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    No pode haver uma tcnica mais distinta daquela de Sander do que a do

    inventor do fotojornalismo moderno (ou dospaparazziprofissionais), Erich

    Salomon. O fotgrafo ttil era a personificao da agilidade, do senso deoportunidade. Porm, mais do que uma distino entre o retrato posado de Sander

    e o flagrante de reportagem de Salomon, as duas tcnicas sinalizam para distintos

    papis da cmera fotogrfica. Enquanto em Sander a centralidade do aparelho

    fotogrfico, na situao do retrato, ainda mais radical que a do modelo, com

    Salomon a cmera est oculta, dentro do chapu ou no interior de uma valise.

    Na verdade, no trabalho de Salomon, ambos, cmera e fotgrafo, eram

    mestres do disfarce. A pequena Ermanox, fabricada em Dresden, utilizava chapas

    de 4,5 x 6,0 e podia operar com diafragma 1.8, permitindo portanto fotografar

    cenas em interiores com velocidade de at 1/4. Salomon tinha maneiras

    aristocrticas, um ttulo de doutor em Direito e falava sete lnguas. Valia-se disto

    para se misturar entre os participantes de importantes encontros diplomticos e

    outras rodas elegantes.

    Benjamin foi o primeiro a assinalar um parentesco entre a obra de Sander e

    as de Eisenstein e Pudovkin, por oferecerem "uma oportunidade de aparecer

    diante da cmera a pessoas que no tinham nenhum interesse em fazer-sefotografar."95A tcnica de Salomon, porm, encontra afinidades cinematogrficas

    ainda mais evidentes. A mais importante, sem dvida, o filmeBerlim, Sinfonia

    de uma Cidade. Nesta realizao de 1926-27, o fotgrafo Karl Freund tambm

    opta, em grande parte de suas tomadas, por ocultar a cmera em uma pasta. O

    procedimento decorre diretamente de sua admirao pelos instantneos

    fotogrficos produzidos com as novas cmeras "de bolso":

    "Este o nico tipo de fotografia que verdadeiramente arte. Por

    qu? Porque com ela algum se habilita a retratar a vida. Estesnegativos grandes, porm, onde as pessoas sorriem, macaqueiam,

    procura desnudar traos hereditrios, Sander persegue exaustivamente as transformaes mais sutis, osefeitos de superfcie.95BENJAMIN, W. PHF, p. 102. No tenho dvidas quanto s "oportunidades" criadas pelas cmeras deSander ou Eisenstein, mas parece-me que a estratgia do primeiro era inteiramente dependente do interessedo modelo em ser fotografado, pois o tempo de preparaoda pose era essencial para a emergncia de sua"psicologia".

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    posam... Isto no uma fotografia. Mas uma lente rpida.Flagrando a vida. Realismo. Isto a fotografia em sua forma maispura."96

    Pode-se argumentar que, afinal, trata-se apenas da oposio entre duas

    supostas purezasda imagem, nas quais podemos distinguir, com clareza, duasdiferentes estratgias de desnudamento. Cada uma delas depositando sua maior

    expectativa em um dos distintos plos do par perverso. Em Freund, o

    desnudamento da realidade depende primordialmente da agilidade voyeurista. A

    realidade relativamente complacente, mas deseja ser surpreendida. Sander, ao

    contrrio, confia no potencial exibicionista da realidade. Dadas as circunstncias

    de um certosetting, a natureza - que no ama esconder-se, tanto assim - despe-se.

    Berlimnasceu de um projeto do produtor Carl Meyer, que pretendiarealizar uma "melodia de imagens", dando seguimento a um gnero de

    documentrios - as assim chamadas Sinfonias Urbanas- inaugurado por Mikhael

    Kaufman, irmo de Dziga Vertov, comMoscou, em 1926.97. A idia em si

    bastante simples: um dia de semana comum, da manh noite, trabalho e

    diverso, esporte e cultura, adultos e crianas, todas as classes sociais e variadas

    ocupaes. No entanto, a montagem do diretor convidado, Walter Ruttmann,

    quase na mesma intensidade em que agradou o pblico, contrariou seus

    companheiros no empreendimento e despertou a ira da crtica de vanguarda. Karl

    Freund rompeu com o diretor, Meyer lastimou a "superficialidade" de suaabordagem, e Siegfred Kracauer escreveu, j em 1928, uma crtica devastadora:

    "Rutmann, em vez depenetrarno imenso material temtico com umentendimento verdadeiro de sua estrutura social, econmica e

    poltica... registra dezenas de detalhes sem conect-los, ou nomximo, conectando-os atravs de conexes fictcias desprovidas decontedo. Seu filme pode estar baseado na idia de Berlim comocidade de ritmoe trabalho; mas esta um idia formal, que tambmno implica contedo. Esta sinfonia falha em apontar qualquercoisa, porque no descobre um s contexto significativo."98

    96KRAKAUER, Siegfred.From Caligari to Hitler. Nova York, Noonday Press, 1959. p. 183. Declaraoem uma entrevista realizada em 1929.97Berlimfoi precedido, em alguns poucos meses por Rien que des Heures , de Alberto Cavalcanti. Mas certo que Carl Freund comeou a trabalhar na idia em 1925. Entre 1921 e 1922, Moholy-Nagy escreveu oroteiro para umDinmica da Metrpole, que jamais foi filmado.98KRACAUER, S. Op. cit. , p. 187

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    No surpreende que Ruttmann tenha optado por uma montagem (ou, nos

    termos do debate revolucionrio da poca, um desvio) formalista. Vrias de suas

    obras anteriores foram dedicadas a melodiasde linhas e outras formas abstratas.

    A aproximao da cidade, pela via frrea, na sequncia inicial deBerlim,representa muito bem esta experincia. Mas o resultado final est bem longe de

    ser abstrato. Pelo, contrrio, vrias passagens do filme apresentam analogiasbastante simples e bem ao gosto popular, o que sem dvida contribuiu para seu

    sucesso junto ao pblico. Dentre estas, a mais frequente a zoomorfizao dos

    hbitos e movimentos humanos: homens e animais (no zoolgico) comem e

    fazem sesta, operrios entram na fbrica e bois no curral, uma criana brinca na

    rua e um gato na lata de lixo, telefonistas se atrapalham e macacos se coam e

    cachorros brigam. Tambm no faltam alguns contrastes mais bvios, como entre

    ricos e pobres, adultos e crianas etc.

    Tendo ou no fracassado nas conexes que estabeleceu - ou tendo-as feito

    incorretamente- os compromissos de Ruttman com um programa de apreenso

    ttil so bastante evidentes. Tambm sob este prisma, os ritmos de Berlim devem

    ser analisados: a categorizao dos movimentos - verticais, giratrios, etc - e,

    especialmente, a funo epistrfica das imagens de trnsito, arrematando os

    grandes blocos narrativos (ou mostrativos) do filme.

    Neste sentido, do mesmo modo que Sander classificouseus retratos de

    alemes, Ruttmann montouos takesda equipe de Freund. Ambos buscando nouma interpretao, mas igualmente um espelhoda psicologia de seu tempo.

    Psicologia psicossocial em Os Alemese psicomotriz emBerlim. Ao contrrio de

    Kracauer, Sadoul percebe - por um vis irnico - a afinidade dos dois projetos,

    pois remeteBerlim "mania catalogante" dos alemes.99

    As crticas aBerlimtornam evidente que, para grande parte dos artistas e

    intelectuais envolvidos neste debate, surpreendera realidade, apropriando-se de

    alguns de seus fragmentos, era francamente insuficiente. Era preciso saber como

    reconstru-la, depois. nesta direo que vai a crtica de Brecht:

    99SADOUL, Georges.Histoire d'un Art; Le Cinma des origines a nos jours. Paris, Flammarion, 1949. p.194. Ressalte-se que Sadoul considera algumas analogias bastante ofensivas: operrios e vacas, porexemplo.

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    "... menos do que nunca a simples reproduo da realidadeconsegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das fbricas

    Krupp ou da AEG no diz quase nada sobre estas instituies. Averdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As

    relaes humanas reificadas - numa fbrica, por exemplo - no maisse manifestam. preciso, pois, construiralguma coisa, algo deartificial, defabricado."100

    Desde o imediato ps-guerra, surrealistas e dadastas esto envolvidos

    nestas operaes de montagem e reconstruo com suporte fotogrfico. Para

    dada, no entanto, o problema do olhar no se colocava nos mesmos termos de

    uma revoluo da viso. Esta ltima abordagem, institucionalmente vitoriosa nos

    anos 20, com Moholy-Nagy naBauhaus, continuava a proclamar, com Rodshenko

    em Vkhutemas:

    "Precisamos destrancar o mundo do visvel. Temos de revolucionarnosso pensamento visual. Devemos afastar as cortinas de nossosolhos"101

    J para os dadastas, a purificao da imagem dependia da supresso do

    prprio olho. Isto explica a reao entusiasmada de Tristvan Tzara, em 1921,

    diante das rayografias, os fotogramas de Man Ray, com as sombras dos objetos

    impressas sobre o papel: "isto purodada!". Mesmo revistas de grandecirculao como Vanity Fairengoliram o peixe dadapublicando, em 1922, quatro

    rayografiascom a explicao aos leitores que os objetos haviam sido

    "selecionados com os olhos fechados".102 Mas o olho que de fato havia ficado

    cego era o da cmera, com a supresso da objetiva.

    E se foi possvel realizar uma supresso do olho radicalmente ttil - como a

    ecoar a conclamao de Duchamp pela abolio da primazia da retina na arte ou a

    determinao de Tatlin, em 1913, de que "o olho deveria ser posto sob o controle

    do tato" -,103com os fotogramas de Schad, Ray e Moholy-Nagy, devemosreconhecer uma supresso do olho radicalmente visual. Essa tendncia pode ser

    100Citado em BENJAMIN, W. PHF, p. 106.101Citado em PHILLIPS, C. Op. cit., p. 86. A palavra de ordem de 1928.102Cf. Idem, pp. 75-77.103Cf. BUCHLON, Benjamin H.D. "From Faktura to Factography". In: BOLTON, Richard (ed.). TheContest of Meaning. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1993, p. 51.

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    assimilada rubrica da Nova Objetividade.104Curiosamente, a expresso no

    nasce na fotografia, mas nas belas-artes, sendo popularizada por uma exposio de

    pintura. Em linhas gerais, designava um "movimento" cujas caractersticas

    principais seriam a "qualidade estrutural" das obras, sua "preciso tica" e

    "sobriedade". No entanto, o apelido cola mesmo num certo tipo de fotografia,cujo melhor exemplo certamente a obra de Renger-Patzsch.

    Extremamente interessado nas qualidades estruturais de objetos tcnicos -

    de automveis a ferramentas - , a Nova Objetividade acabou tendo uma enorme

    influncia no desenvolvimento da fotografia de publicidade. Herbert Molderings

    comenta que a Sachfotographie- a fotografia de objetos individuais - retirava seu

    valor publicitrio "do fato de que os objetos no so apresentados funcionalmente

    e contm a promessa de um significado misterioso para alm de seu valor-de-uso:

    eles assumem uma aparncia bizarra e inesperada, sugerindo que esto a viver

    suas prprias vidas, independentes dos seres humanos." Tal fotografia, portanto,

    teria criado a "verdadeira natureza-morta do sculo vinte: expresso pictrica do

    fetichismo da mercadoria."105

    verdade que tambm a rayografia no esteve imune publicidade. Apesar

    de Tristan Tzara ter proclamado, em 1922, que "quando tudo o que se chamava

    arte se paralisou, o fotgrafo acendeu a sua lmpada de mil velas e gradualmente o

    papel sensvel luz absorveu o negrume de alguns objetos de consumo", o prprioBenjamin havia assinalado que os fotogramas de Moholy-Nagy evocavam a "vida

    interna dos objetos inanimados",106provavelmente sem se dar conta das

    implicaes mercadolgicas desta observao. Naquele mesmo ano, 1931, Man

    Ray havia preparado um portflio publicitrio para a Companhia Parisiense de

    Distribuio de Eletricidade pretendendo que suas rayografias hovessem captado a

    corrente eltrica movendo-se atravs dos "objetos da vida cotidiana".107

    104De fato, isto no muito rigoroso, uma vez que estas designaes confundiam-se bastante. Para efeitodeste texto estamos assimilando, um pouco arbitrariamente, Nova Viso (Neue Optik) a Moholy-Nagy eNova Objetividade (Neue Sachlichkeit) a Renger-Patzsch. Mesmo que isto no seja muito exato, representativo da rivalidade entre os dois fotgrafos.105Citado em SOLOMON-GODEAU, Abigail. The Armed Vision disarmed: radical formalism fromweapon to style. In: BOLTON, R. Op. cit., p. 91.106Cf. BENJAMIN, W. PHF, p. 105.107Cf. NESBIT, Molly. "Photography, Art and Modernity (1910-30)". In: A History of Photography:cultural and social perspectives.Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 122.

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    A despeito de seu compromisso com a "preciso tica", nem por isso a

    Nova Objetividade desviava-se da promessa de tambm revelaralgo de"desconhecido" ou "invisvel" em relao aos objetos. Mas neste caso, os

    equvocos da "viso" no eram resolvidos pela exacerbao dos aspectos tcteis

    da percepo, mas pelo contrrio, por uma sujeio do olhar de quem v puraobjetividade do objeto. O pr-requisito desta supremacia do objeto era, para

    Renger-Patzsch, a extrema fidelidade da imagem:

    "O segredo de uma boa fotografia - que, do mesmo modo que umaobra de arte - pode apresentar qualidades estticas - o seurealismo... Abandonemos pois a arte aos artistas e esforcemo-nos

    por criar imagens que durem em funo de sua qualidadefotogrfica, porque esta qualidadepuramentefotogrfica no podeser obtida de nenhuma outra arte."108

    A supresso visualdo olho nos punha diretamente diante das coisas, em

    sua prpria natureza de coisas. Gustav Stotz, diretor da exposioFilm und Foto,

    de 1929, atribua s coisas, a novidade da viso:

    "Ns vemos as coisas diferentemente, de agora em diante; no emsentido pictural ou impressionista. Hoje, os objetos parecemimportantes, de um modo que nunca foram considerados antes: umlao de sapatos, por exemplo, uma bobina de fio, um tecido, uma

    mquina... Eles nos interessam por sua substncia material, por suasimples realidade de coisas..."109

    Para Renger-Patzsch, o aparelho fotogrfico foi o "instrumento ideal que

    pode permitir ao pblico descobrir o objeto puro." O ttulo de seu livro,publicado em 1928,Die Welt ist Schn(O Mundo belo), que acabou se tornando

    uma divisa da Nova Objetividade - particularmente entre seus detratores,

    Benjamin entre eles - foi, na verdade, imposto pelo editor. Se tivesse prevalecido

    o desejo do fotgrafo, o ttulo seria simplesmenteDie Dinge(As Coisas).110

    108Citado em COKE, V. Op. cit., p. 19. A declarao foi publicada em "A Fotografia Alem", em 1927.109Idem, p. 26.110DELPIRE, Robert & FRIZOT, Michel.Histoire de Voir (v. II). Paris, Centre National de laPhotographie, 1989. p. 128.

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    Mas, de fato, ambas as solues - aquela onde o olho depura-se a si mesmo

    em favor da visu