ariès, philippe. o tempo da história

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  • Philippe Aris

    O TEMPO DA HISTRIA

    Traduo Roberto Leal Ferreira

    Francisco Alves

  • COLEO CINCIAS SOCIAISCOLEO CINCIAS SOCIAISCOLEO CINCIAS SOCIAISCOLEO CINCIAS SOCIAIS

    Philippe ries O Homem Diante da Morte 2 volumes O Tempo da Histria Ellzabeth Both Famlia e Rede Social G,E. Von Grunebaum & Roger Caillois O Sonho e as Sociedades Humanas Gerard Chaliand Mitos Revolucionrios do Mundo J. Chesneaux, F. Claudn, E. Terray e outros Descolonizao Pierre Clastres A Sociedade contra o Estado Alba Zaluar Guimares Desvendando Mscaras Sociais Edward T. Hall A Dimenso Oculta George Rude & EJ, Hobsbawm Capito Swing Adam Kuper Antroplogos e Antropologia Ervn Laszto A Crise Final Jacques Le Goff Histria: Novas Abordagens Histria: Novos Objetos Histria: Novos Problemas Dlcio Monteiro de Lima Os Demnios Descem do Norte, Os Homoerticos, O Comportamento Sexual do Brasileiro Bronislaw Malinowski A Vida Sexual dos Selvagens Stanley Milgran Obedincia Autoridade: Uma Viso Experimental Roberto C. Oliveira Do ndio ao Bugre Guy Rocher Talcott Parsons e a Sociedade Americana Jos Honrio Rodrigues A Evoluo Poltica Vol. I Economia e Sociedade Vol. II As Forcas Armadas Vol. III A Liderana Nacional Vol. IV Poltica Internacional Vol. V Independncia, Revoluo e Contra-Revoluo 5 Vols. Milton Santos O Espao Dividido Reay Tannahill O Sexo na Histria Christian Topalov Estruturas Agrrias Brasileiras

  • Editions du Seuil, 1986

    Ttulo original: Le temps de l'histoire

    Capa: Mnica Carvalho

    Preparao de originais: Ana Maria Miranda

    Reviso tipogrfica: Fbio Fernandes da Silva Henrique Tarnapolsky Sandra Pssaro

    PARA PRIME ROSE

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

    CIP Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Aris, Philippe, 1914 -A746t O tempo da histria / Philippe Aris; traduo Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. (Coleo Cincias sociais) Traduo de: Le temps de l'htstoire. Anexos ISBN 85-265-0158-5 1. Historiografia. 2. Histria-Filosofia. 3. Tempo. I. Ttulo. II. Srie CD D -907.2 901 89-0346 CDU -930.1 Todos os direitos desta edio reservados LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A. Rua Sete de Setembro, 177 Centro TeL: 221-3198 20050 Rio de Janeiro RJ

  • SUMARIO

    A AMIZADE DA HISTORIA ....................................................................................................................... 6

    Captulo I UMA CRIANA DESCOBRE A HISTORIA ................................................................................... 22

    Captulo II A HISTRIA MARXISTA E A HISTORIA CONSERVADORA ................................................ 30

    Captulo III O ENGAJAMENTO DO HOMEM MODERNO NA HISTORIA ................................................ 48

    Captulo IV A ATITUDE DIANTE DA HISTRIA: NA IDADE MDIA..................................................... 62

    Captulo V A ATITUDE DIANTE DA HISTRIA: O SCULO XVII .......................................................... 95

    A aventura de Childerico junto a Clvis. ..................................................................... 103 Joana d'Arc ............................................................................................................................... 106

    Captulo VI A HISTORIA "CIENTIFICA" .......................................................................................................... 146

    Captulo VII A HISTRIA EXISTENCIAL ........................................................................................................... 163

    Capitulo VIII A HISTORIA DA CIVILIZAO MODERNA ............................................................................ 174

    Anexo I: A "biblioteca" de O tempo da histria ......................................................................... 181

    Anexo II: Resenhas e menes de O tempo da histria 1954-1955 ................................. 186

    Anexo III: Entrevista de Philippe Aris por Michel Vivier, Aspects de Ia France, 23 de abril de 1954. ....................................................................................................................... 187

    Anexo IV: Carta de Victor L. Tapi a Philippe Aris, 17 de abril de 1954. ..................... 190

  • A AMIZADE DA HISTORIA

    De todos os livros de Philippe Aris, O tempo da histria sem dvida o mais desconhecido. Nunca reeditado desde sua publicao em 1954; esgotado h muito tempo, no era mais acessvel a no ser em bibliotecas exceto para o pequeno nmero de leitores que tinha comprado, ao preo de seiscentos francos, o livro de capa branca ornamentada com uma deusa grega, publicado pelas Edies du Rocher em Mnaco. Desconhecido do grande pblico fiel, de livro em livro, obra de Aris, O tempo da histria foi durante muito tempo esquecido pelo mundo universitrio. Por quinze anos, no foi nunca citado nas revistas de cincias sociais, francesas ou estrangeiras, todavia com duas excees: de um lado, o artigo de Fernand Braudel, "Histria e cincias sociais: a longa durao", publicado nos Annales em 1958, que menciona em nota o livro e indica que "Philippe Aris insistiu na importncia do afastamento, da surpresa na explicao histrica: voc topa, no sculo XVI, com algo de estranho para voc, homem do sculo XX. Por que essa diferena? O problema est posto"; por outro lado, um artigo publicado na Revue d'histoire de l'Amrique franaise por Micheline Johnson, que cita a obra, sem nela encontrar uma definio satisfatria do tempo histrico: "Philippe Aris, em seu belo livro O tempo da histria, descreve a evoluo do sentido histrico atravs dos tempos aps ter feito a anlise do sentido histrico nos homens de sua gerao, quer de direita (monarquistas da Frana) ou de esquerda (historiadores marxistas ou marxizantes). Mas, para ele, o sentido histrico um dado, uma espcie de 'adeso ao tempo' [...]. Ele no analisa esta atitude: constata-a simplesmente atravs dos mltiplos objetos que a alimentam."

    1 Mesmo a expanso da hisria da Histria que se deu nos

    ltimos anos no pde fazer o livro sair do esquecimento, e raras so as menes a ele nos trabalhos dedicados aos historiadores da Idade Mdia e do sculo XVII, embora esses assuntos tenham sido estudados em seus captulos centrais. As referncias que lhe so feitas por Gabrielle Spiegel, Orest Ranum ou Erica Hart constituem ainda exceo.

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    Uma longa citao, no entanto, feita na biografia de Jacques Bainville redigida por William Keylor, que se baseia no testemunho e na anlise de Philippe Aris para

    1 F. Braudel, "Histire et sciences sociales: Ia longue dure", Annales ESC, 1958, pp. 725-753, em particular p. 737; Micheline Johnson, "Le concept de temps dans l'enseignement de l'Histoire", Revue d'histoire de l'Amrique franaise, vol. 28, n 4, 1975, pp. 483-516, em particular p. 493-494. 2 G. Spiegel, "Political Utility in Medieval Historiography: a Sketch", History and Theory, vol. XIV, n 3, 1975, pp. 314-325, notas 2 e 41; Orest Ranum, Artisansof Glory. Wrters and Historical Thought in Seventeenth-Century France, Chapell Hill, The University of North Carolina Press, 1980, p. 4; Erica Hart, Ideology and Culture in Seventeenth-Century France, Cornei University Press, 1983, p. 132, 133, 139. O livro de Aris igualmente utilizado e citado por E. Le Roy Ladurie, Montailou, viilage occitan de 1294 1324, Paris, Gallimard, 1975, captulo XVIII, "Outillage mental: le temps et lespace".

  • compreender as razes do sucesso da Histria da Frana publicada por Bainville em 1924.

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    Um livro esquecido. Mas um livro que agora preciso redescobrir. Quando foi publicado, em 1954, Philippe Aris tinha quarenta anos. Profissionalmente, dirigia o Centro de Documentao do Instituto de Pesquisas sobre os frutos e citrinas tropicais, onde tinha entrado em 1943. J havia publicado dois textos. Em 1943, seu ensaio As tradies sociais no pas da Frana constitua o essencial do primeiro dos Cahiers de Ia Restauration franaise editados pelas Edies da Nova Frana. A apresentao introduz o autor como "um jovem historiador, gegrafo e filsofo que marcar a sua gerao", e seu projeto como o estudo "da origem e da fora dos diversos hbitos religiosos, polticos, econmicos, sociais ou literrios que, ao se acumularem, deram a algumas das grandes regies francesas seu carter prprio e Frana inteira sua estrutura e seu rosto". A idia central do livro, tal como est ali resumida, concorda por si mesma com o esprito do tempo e com a francisca que o editor houvera por bem colocar na capa de sua srie de cadernos: "Pela antiguidade e solidez de seus costumes, a Frana possui uma potncia de estabilidade, uma capacidade de perseverana que constituem para seus filhos um poderoso motivo de confiana. Despojado de toda preocupao de atualidade, este livro no deixa de conter uma grande lio de esperana nacional."

    Aps a guerra, em 1948, Aris publicou efetivamente seu primeiro livro, a Histria das populaes francesas e de suas atitudes diante da vida. Comeado em 1943, acabado em 1946, o livro foi publicado por um novo editor, as Edies Self, depois que Plon recusara o manuscrito. Ainda que ignorado pelas revistas de histria, o livro teve uma certa repercusso: Andr Latreille o analisou em uma de suas crnicas histricas do Monde. Alm disso, o livro chamou a ateno dos demgrafos. A partir da, Aris, que tinha permanecido margem da universidade aps um duplo insucesso no concurso para o magistrio, sendo o segundo no concurso de 1941, foi chamado a contribuir pela primeira vez numa revista de estatuto cientfico, Population, onde publicou em 1949 um artigo intitulado "Atitudes diante da vida e da morte do sculo XVII ao XIX. Alguns aspectos de suas variaes" (p. 463-470) e em 1953 outro artigo curto, "Sobre as origens da contracepo na Frana" (p. 465-472).

    No ano seguinte, O tempo da histria estava pronto. Novamente, Plon o recusou, ainda que Aris estivesse muito ligado casa, ao mesmo tempo como leitor (em particular dos mltiplos relatos e memrias redigidos aps a guerra) e como diretor de uma coleo, Civilizao de ontem e de hoje, na qual j havia publicado A sociedade militar, de Raoul Girardet, o amigo dos anos da Sorbonne, e Toulouseno sculo XIX, de Jean Fourcassi. O livro, pois, foi publicado por uma pequena editora, a Edies du Rocher, fundada pelo diretor literrio de Plon, Charles Orengo, e cujo catlogo tal como aparece na contracapa da obra de Aris rene textos autobiogrficos de testemunhos do tempo (por exemplo, as Memrias de um monarquista espanhol, 1931-1952, de Juan Antnio Ansaldo, o Dirio de um expatriado catalo, 1936-1945, de Guell y Comillas ou o

    3 W. R. Keylor, Jacques Bainville and the Renaissance of Royalist History of Twentieth-Century France, Baton Rouge e Londres, Louisiana State University Press, 1979,pp. 202-203 e pp. 214-218.

  • texto pstumo de Giraudoux, Armistcio em Bordeaux), classicssimos livros de histria (Louis d'lllier, Dois prelados do Antigo Regime: os Jarente e ensaios sobre o mundo contemporneo (como o de Raymond Ronze, A Commonwealth britnica e o mundo anglo-saxo, com prefcio de Andr Siegfried). Ainda que ligado a um dos grandes editores parisienses, Aris teve, no entanto, que publicar seus dois primeiros livros em pequenas casas, muito representativas dos tempos do ps-guerra, quando surgiram, sustentadas pela moda dos testemunhos e dos relatos, dos novos editores de sucesso s vezes espetacular (foi nas Edies Self, por exemplo, que foi publicado em 1948, o mesmo ano da Histria das populaes, o Escolhi a liberdade, de Kravtchenko), mas raramente durvel. Durante muito tempo incompreendida pelos mestres da universidade, a histria tal como a fazia Aris tampouco seduziu rapidamente as editoras maiores e assim o autor se encontrou posto duplamente margem.

    O tempo da histria uma coletnea de oito textos, em seqncia, sem introduo ou concluso, como se sua coerncia e sua continuidade dissessem por si mesmas o propsito da obra. Datados, os oito textos se escalonam por um perodo de cinco anos. O mais antigo, que o primeiro do livro, foi redigido em 1946. Em Um historiador de domingo, Philippe Aris conta o porque: "Comecei por um captulo autobiogrfico cuja idia me ocorreu quando morreu meu irmo, para provar a mim mesmo o papel determinante de minha infncia em minha vocao e em minhas escolhas."

    4 O dilaceramento, a morte no livro de 1954, que foi a morte em combate, a 23

    de abril de 1945, de Jacques Aris, subtenente no exrcito de De Lattre, d uma das chaves. As convulses dos novos tempos, atravessados de dores, marcados por uma "monstruosa invaso do homem pela histria", obrigam cada um a se situar nessa histria coletiva e diante de seu prprio passado. Da a tentativa um tanto inslita de uma autobiografia de um homem de trinta e dois anos, desejoso de tornar claras as razes de sua atitude diante da histria. Compreender-se, portanto, mas tambm se revelar. O primeiro captulo, com efeito, teve uma primeira leitora, Primerose, com quem Aris casou-se em 1947: "Lembro-me, eu o tinha enviado a Toulouse, minha noiva, como uma confisso de meu estado de esprito no momento."

    5 Depois de seu

    casamento, Aris redigiu os outros textos que compem O tempo da histria: naquele mesmo ano, o ensaio "A histria marxista e a histria conservadora"; em 1948, "O engajamento na histria", onde passa muito de sua atividade de leitor para a editora Plon; em 1949, os ltimos trs ensaios do livro, em 1950, o captulo sobre a Idade Mdia e no ano seguinte, o sobre o sculo XVII. Portanto, a obra se construiu progressivamente, indo do relato de um itinerrio pessoal atravs das diferentes maneiras de compreender, dizer ou escrever a histria as da tradio familiar, dos universitrios, dos historiadores da Action franaise, dos inovadores dos Annales at uma pesquisa sobre duas relaes histricas com a histria, a da Idade Mdia e a da poca clssica. Como lembrava Philippe Aris, vinte e cinco anos depois: "Aconteceu-me, ento, o que sempre

    4 P. Aris, Un historien du dimanche, com a colaborao de Michel Winock, Paris, d. du Seuil, 1980, p. 111. 5 Ibid., p. 122.

  • me acontecia: o tema de atualidade que me fascinava se tornou o ponto de partida de uma reflexo retrospectiva, remeteu-me para trs na direo de outros tempos."

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    O tempo da histria, pois, deve ser lido inicialmente como a trajetria de um historiador atravs das diversas concepes da histria existentes em sua poca. Em seu corao, o distanciamento das ligaes de sua infncia e de sua juventude de homem de famlia, de tradio, de opinies monarquistas, educado na lenda da monarquia perdida, leitor apaixonado de Bainville, fiel a Maurras e Action franaise. Da esta espantosa comparao, sem dvida escandalosa para seu meio, feita por Philippe Aris entre o materialismo histrico e o que ele chama "o historicismo conservador" que a histria tal como a escrevem os historiadores da "escola capetiana do sculo XX", reunidos por sua ideologia e seu editor comuns, Fayard, e sua coleo dos Grandes estudos histricos. A partir de pontos de partida antagnicos, a nostalgia do passado de um lado, a esperana de uma ruptura radical de outro, estas duas maneiras de considerar a histria se juntam em seus princpios fundamentais: ambas anulam as histrias das comunidades particulares tornando-as uma histria coletiva, a do Estado nacional ou a da humanidade inteira; ambas pretendem estabelecer as leis que regulam as repeties de situaes idnticas; ambas dissolvem as singularidades das existncias concretas, seja na abstrao das instituies, seja no anonimato das classes. Aproximar assim Marx e Bainville, para critic-los, era audacioso e, em todo caso, repudiava a filosofia da histria proclamada por aqueles a quem Aris estava familiarmente, afetivamente e politicamente mais prximo.

    A reflexo sobre "os grandes dilaceramentos de 1940-1945" e a descoberta de maneiras novas de pensar a histria puderam levar a uma tal ruptura. A reunio sistemtica dos autores e ttulos mencionados no livro (pondo de lado os dois captulos de pesquisa propriamente dita sobre a histria na Idade Mdia e no sculo XVII) o mostra com clareza. Ela atesta em primeiro lugar a base da cultura histrica de Philippe Aris, formada por trs conjuntos: a histria acadmica, a histria universitria e a histria da Action franaise. Da primeira, ele enumera os autores, de Barante a Madelin (este Barante de quem seu av era leitor), caracteriza o pblico, uma "burguesia culta e sria: magistrados, homens de lei, proprietrios... homens muito ociosos, quando a estabilidade da moeda e a segurana dos investimentos permitiam que vivessem de rendas" (p. 210), e indica os traos mais importantes: uma histria estritamente poltica, uma histria inteiramente conservadora. Diante dela, a histria tal como era praticada na universidade o deixa de igual maneira insatisfeito. Ela , sem dvida, douta, imparcial, erudita, mas fechou-se em si mesma, separou-se do presente e dos leitores de histria, enclausurou-se numa concepo simplista do fato e da causalidade histricos. Em Grenoble e posteriormente na Sorbonne, o estudante Philippe Aris freqentou esta histria seca, cinzenta, escrita por professores para outros professores (ou futuros professores). Ele a caracteriza de maneira dupla: sociologicamente, relacionando o hermetismo da histria universitria constituio de uma "nova categoria social", essa "repblica dos professores", fechada e numerosa, leiga e de esquerda, recrutada fora

    6 Ibid. ,p. 111.

  • das elites tradicionais separadas da universidade; epistemologicamente, tecendo uma crtica contra a teoria da histria que identifica esta ltima como uma cincia dos fatos que se trata de exumar, concatenar e explicar, e que se exprime num livro tal como a Introduo histria de Louis Halphen, publicado em 1946. Da universidade, Philippe Aris lembra certos professores, poucos, em suma: em Grenoble, diz ele, nenhum professor muito brilhante era atrado para a histria (p. 202), e da Sorbonne ele s assinala, sem alis nome-lo, Georges Lefebvre, por ocasio de uma conferncia ouvida em 1946 (p. 61). Da histria universitria, menciona apenas alguns ttulos, sempre criticados, como a Sociedade feudal, de Joseph Calmette ou, do mesmo autor, Carlos V (1945), o primeiro volume do Mundo bizantino de Emile Brhier (1947) ou o tratado de Halphen.

    O autor mais citado de todo o livro , sem contestao, Jacques Bainville, cujo nome aparece cerca de quinze vezes e de quem se mencionam a Histria de dois povos, A Frana e o imprio alemo (1915), a Histria da Frana (1924) e o Napoleo (1931). com Bainville que se instaura o dilogo essencial, porque a sua Histria da Frana foi o "brevirio" da adolescncia de Aris, porque a sua maneira de escrever a histria foi a que dominou toda a vulgarizao histrica dos anos 1930, ainda mais do que os autores da Action franaise, porque o seu xito de livraria foi imenso,

    7 porque permanece sendo

    aps a guerra a referncia obrigatria de todas as famlias de pensamento conservador. Afastar-se dele, caracterizar sua histria como "uma fsica mecanicista" ou uma "mecnica dos fatos" era como uma blasfmia nos meios de Aris. Foi por isso, sem dvida, que, ao responder s perguntas de Aspects de France, numa entrevista publicada em 23 de abril de 1954, ele suaviza um pouco o diagnstico dado no livro, distinguindo Bainville de seus "continuadores": "Bainville tinha um talento muito grande. Sua Histria da Terceira Repblica, por exemplo, de uma pureza de linhas admirvel. E, depois, que lucidez na anlise dos acontecimentos! Considerem-se as obras luminosas que se fizeram aps sua morte, reunindo seus artigos nos jornais. Acrescento que era um mestre grande demais para no ser sensvel tanto ao particular quanto ao geral, tanto s diferenas quanto s semelhanas. Mas creio que certo perigo poderia provir dos continuadores de Bainville que aplicassem sem delicadeza seu mtodo de interpretao e fizessem da histria uma mecnica de repetio, pronta a nos dar sempre e em toda parte as lies j feitas. Para eles, a Frana deixaria rapidamente de ser uma realidade viva para tornar-se uma abstrao submetida unicamente a leis matemticas." Apesar da prudncia de uma resposta destinada a no chocar demais os leitores do jornal monarquista, claro que ao escrever em 1947 o ensaio "A histria marxista e a histria conservadora" Aris pretendia romper com os hbitos intelectuais de sua famlia poltica, assim como, alguns anos antes, em plena guerra, tinha se distanciado de Maurras e da Action franaise: "Eu tinha me emancipado de meus antigos mestres e decidido no ter outros. O cordo umbilical estava cortado."

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    7 W. R. Keylor indica que entre 1924 e 1947, data em que Aris redigiu o ensaio "A histria marxista e a histria conservadora", Fayard imprimiu 260.300 exemplares da Histria da Frana (e 167.950 exemplares do Napoleo entre 1931 e 1947), op. cit, pp. 327-328. 8 P. Aris, Un historien du dimanche, op. cit. p. 81.

  • Em matria de histria, foram alguns livros que levaram Aris a romp-lo. Durante a guerra e no ps-guerra ele leu, por paixo e por obrigao, e os artigos do Tempo da histria permitem reconstituir essa biblioteca de leituras novas. Primeiro interesse: o marxismo, que ento parece atrair para si todo o mundo intelectual, fornece algumas idias simples aos "homens abandonados nus na histria", resumidas assim: "superao dos conflitos polticos, peso das massas, sentido de um movimento determinado da histria" (p. 53). O marxismo que ele conhece , pois, antes de tudo uma ideologia do sculo XX, prestes a se tornar dominante, mais do que o corpo mesmo das idias de Marx, de quem nenhum texto preciso citado. A entrevista dada a Aspects de Ia France esclarece bem a inteno dessa caracterizao, assim como a participao de Aris na poca no jornal Paroles franaises, codirigido com Pierre Boutang, que publicou o primeiro dossi consagrado ao massacre perpetuado pelos soviticos em Katyn: "Estou absolutamente persuadido de que a histria no est orientada num sentido ou em outro. Nada mais falso do que a idia de um progresso contnuo, de uma evoluo perptua. A histria com sinalizao no existe [...]. Quanto mais estudamos as condies concretas da existncia atravs dos sculos, melhor vemos o que h de artificial na explicao marxista que muitos cristos adotam atualmente. A histria que atenta para todas as formas do vivido inclina-se, pelo contrrio, a uma concepo tradicionalista." Da histria marxista, num sentido mais estreito e mais "profissional", Aris leu um dos raros livros publicados, o de Daniel Gurin, A luta de classes na Primeira Repblica, Burgueses e "braos-nus" (1793-1797), publicado em 1946, onde se encontra uma lei da repetio histrica que aproxima, ainda que as premissas sejam outras, o materialismo histrico e o historicismo conservador.

    Nas leituras de Philippe Aris, dois conjuntos contriburam para perturbar suas certezas antigas. Primeiramente, a literatura imensa dos testemunhos e dos relatos de vida, muitas vezes lidos para a Plon (onde, alis, nenhum dos que cita foi publicado), o convence de que apareceu uma conscincia nova da histria na qual o indivduo percebe a sua existncia pessoal como que confundida, identificada com o devir coletivo. Sem dvida, isso era reencontrar ali, nos destinos narrados, a experincia que Philippe Aris tinha ele mesmo vivido no momento da morte de seu irmo, dolorosamente sentida. Atravs de relatos na primeira pessoa de experincias limite, nos combates da guerra (como o do ingls Hugh Dormer), os campos nazistas (como os dois livros de David Rousset) ou o terror stalinista (descrito por Kravtchenko e Valtin), emerge, assim, uma perturbao coletivamente partilhada e que faz com que nenhuma existncia individual possa ser vivida ao abrigo dos acontecimentos da grande histria. Da a abolio da fronteira antiga entre o privado e o pblico: "De agora em diante podemos afirmar que no h vida privada indiferente aos casos de conscincia da moral pblica" o que equivalia a apontar um dos temas maiores de todos os seus livros seguintes, de A criana e a vida familiar at o projeto de uma Histria da vida privada. Da, tambm, uma percepo indita, impostg a cada um, que dissolve as histrias particulares, as da linhagem familiar, da comunidade territorial ou do grupo social, na conscincia do destino comum que se apossa de todos.

  • A histria tal como os historiadores a escrevem no deve, pois, redobrar ou reforar essa percepo imediata e espontnea o que fazem, cada um sua maneira, o materialismo histrico ou o historicismo conservador. Muito pelo contrrio, ela tem por tarefa restituir aos indivduos o sentido das histrias singulares, irredutveis umas s outras, a conscincia das diferenas que particularizam as sociedades, os territrios e os grupos. Da o valor, para Aris, da descoberta dos Annales durante os anos de guerra. Mais do que a prpria revista, citada uma s vez, so os livros maiores de Marc Bloch e de Lucien Febvre que lhe permitem pensar de maneira diferente e de se separar da histria de sua adolescncia. Do primeiro, ele comenta os Caracteres originais da histria rural francesa (1931) e A Sociedade feudal (1939); do segundo, O problema da incredulidade no sculo XVI. A religio de Rabelais (1942) e Acerca do "Heptameron". Amor sagrado e amor profano (1944), ao mesmo tempo que acrescenta em nota a publicao recente de sua coletnea de artigos Combates pela histria. Ao reunirem seu ensaio "A histria existencial" as idias fundamentais da "nova historiografia" (p. 225), Philippe Aris escreve um texto que hoje poder parecer banal, ao mesmo tempo porque os princpios que expe foram admitidos por toda a escola histrica francesa, bem alm de unicamente os Annales, e porque se multiplicaram nos ltimos anos as obras que disseram o que seria esta histria nova. No era assim em 1954, e preciso ler O tempo da histria com os olhos da poca.

    Definir a histria como uma "cincia das estruturas" e no como "o conhecimento objetivo dos fatos"; caracterizar seu projeto como o de uma histria total, organizando o conjunto dos dados histricos, os fenmenos econmicos e sociais assim como os fatos polticos e militares; afirmar que o historiador deve "psicanalisar" os documentos para encontrar as "estruturas mentais" prprias a cada sensibilidade, e que s ha histria na comparao entre "estruturas totais e fechadas, irredutveis umas s outras": algumas proposies que no eram bvias em 1954. O prprio lxico ("psicanlise histrica", "histria estrutural", "estruturas mentais") podia fazer com que tremessem os prximos de Philippe Aris e os defensores da histria bainvilliana. Ele podia perturbar tambm na universidade, ainda refratria a aceitar plenamente, apesar do respeito atribudo obra de Marc Bloch, uma maneira de pensar e de fazer histria muito distante do credo tradicional, tal como o exprimia, por exemplo, a Introduo histria de Halphen. Por isso, O tempo da histria sem dvida o primeiro livro escrito por um historiador no pertencente "escola" em que se manifesta uma compreenso to aguda da ruptura representada pelos Annales, a obra de Bloch e a de Febvre o que no significa apenas reconhecer a qualidade dos livros que haviam escrito, mas compreender que aps eles a histria no poderia mais ser como antes. Ali onde os historiadores pensavam em termos de continuidade e de repetio, deveriam reconhecer afastamentos e descontinuidades; ali onde no identificavam seno fatos encadeados uns aos outros por relaes de causalidade, era-lhes preciso reconhecer estruturas; ali onde no encontravam seno idias claras e intenes explcitas, era preciso decifrar as determinaes no sabidas das condutas espontneas.

    Duas razes, sem dvida, explicam a adeso entusiasta e inteligente de Philippe Aris histria tal como a defendiam os Annales. Em primeiro lugar, com esta histria, o

  • elo perdido entre a pesquisa cientfica e o pblico leitor de histria podia ser renovado. Histria das diferenas, histria das civilizaes, a histria de Bloch e de Febvre era capaz de trazer ao homem do sculo XX o que lhe faltava: a compreenso a um s tempo da radical originalidade do seu tempo e das sobrevivncias ainda presentes na sua sociedade.

    Assim, as sociedades ou as mentalidades antigas podem ser apreendidas em sua singularidade, sem projeo anacrnica das maneiras de pensar ou de agir prprias de nosso tempo; e, em troca, a histria pode ajudar cada uma compreender por que o presente o que . A esta dupla idia, Philippe Aris permanecer fiel livro aps livro, sempre fundamentando a busca da diferena histrica numa interrogao sobre a sociedade contempornea, suas concepes da fam Mia ou suas atitudes diante da morte.

    Mas ele achou ainda mais na histria dos Annales: talvez uma maneira de conciliar as suas fidelidades familiares e polticas e os seus interesses cientficos. Com efeito, no lxico novo da histria das estruturas descontnuas poderiam retornar as histrias particulares das comunidades elementares, nem classes, nem Estado, que ainda sobrevivem no seio da "estandardizao tecnocrtica" e da "grande histria total e macia". Da a reivindicao dessa aliana surpreendente entre a mais nova das histrias cientficas, originria da universidade republicana e progressista, e uma das tradies da Action franaise, no a do realismo jacobino, mas a provincial das sociabilidades locais, das comunidades do sangue e da terra, dos grupos fora do Estado. Encontro paradoxal, primeira vista, mas declarado em resposta ao reprter de Aspects de Ia France:

    "Segundo o senhor, o verdadeiro historiador que seria ao mesmo tempo o verdadeiro maurrasiano deveria dedicar-se a fazer a histria do pas real, com suas comunidades, suas famlias...

    Exatamente. A histria para mim o sentimento de uma tradio que vive. Michelet, apesar dos seus erros, e Fustel, to perspicaz, tinham-no pressentido. Atualmente, esta histria ainda mais necessria. Um Marc Bloch mostrou o exemplo e Gaxotte, na sua Histria dos franceses o saudou como um iniciador [...]. Tendo desaparecido muitas tradies, (principalmente aps a ruptura de 1880, de que falava Pguy) a histria permite tomar plena conscincia do que foi vivido espontaneamente outrora e, no final das contas, inconscientemente. "

    "A histria vista de baixo", totalmente ocupada pelo estudo das mentalidades especficas e das determinaes inconscientes, unia-se assim ligao poltica mas tambm existencial s singularidades perpetuadas, s diferenas mantidas.

    Qual foi o eco de tal tentativa? Em Um historiador de domingo, falando da Histria das populaes francesas e de O tempo da histria, Philippe Aris indica: "Estes dois livros tiveram um xito parcial quase clandestino".

    9 O dossi de imprensa do

    9 Ibid., p. 118.

  • segundo desses ttulos deve nuanar um pouco a memria.10

    Sem dvida, nem os grandes jornais nem as revistas histricas resenharam o livro em particular, os Annales permaneceram silenciosos sobre uma obra que, contudo, dava a compreender lucidamente seu prprio projeto. Todavia, vinte peridicos mencionaram, analisaram ou criticaram O tempo da histria. De uma resenha a outra, o livro foi compreendido de diferentes maneiras: como o relato de um itinerrio intelectual ("Essa presena da personalidade do autor nos comunicando os seus debates de conscincia no deixa de transmitir obra um carter particularmente atraente", Action populaire, set.-out. de 1955); como uma reflexo sobre o presente o que faz com que a ltima frase da obra seja freqentemente citada: "A uma civilizao que elimina as diferenas, a histria deve restituir o sentido perdido das particularidades"; ou como uma pesquisa sobre as diferentes concepes da histria que se sucederam ao longo do tempo. Dependendo dos textos, Philippe Aris parece mais ou menos bem conhecido, j que, se alguns resenhistas sabem bem quem ele e o que j escreveu (Frdric Mauro no Bulletin de LUniversit de Toulouse o qualifica como "historiador demgrafo" e a crnica do Oran rpublicain assinala, alm dos ttulos de seus dois livros precedentes, que ele "diretor da coleo Civilizaes de ontem e de hoje e cronista de histria na revista La table ronde)", outros o acreditam historiador de ofcio: "historiador profissional" para o Dimanche-Matin, "ligado ao ensino" para o Flandre librale. preciso acrescentar que o livro recebeu um dos prmios entregues pela Academia das Cincias Morais e Polticas, o Prmio Chaix d'Est-Ange "destinado a uma obra de histria", partilhado com Roland Mousnier, distinguido por seu volume da Histria geral das civilizaes das edies PUF, consagrado aos sculos XVI e XVII.

    De todas as resenhas, as mais interessantes so as que apreenderam a originalidade do livro, a saber, a aliana recomendava entre uma postura tradicionalista e a adeso em idias e em atos a uma histria que no nem a da universidade, nem a da famlia poltica de Aris. Como escreve o cronista do Independam, Romain Sauvat: "Esta uma obra destinada a causar algum barulho no Landerneau dos historiadores profissionais e obrigar certos historiadores amadores, entre os quais nos inclumos, a rever suas idias... Estou inclinado a pensar que ele vai espantar e escandalizar certos amigos do autor...". Se o barulho anunciado no se fez ouvir na universidade, o espanto dos amigos do autor foi bem real. Encontramos indcios disto sob a pena do resenhista do Journal de l'amateur d'art, que assina P.C. e com certeza Pierre du Colombier, antigo colaborador de Paroles franaises e amigo de Aris, ao qual enderea uma longa carta a respeito de O tempo da histria onde se encontra desenvolvida a mesma crtica: "Sobre a histria em geral, sobre o que chamamos com uma frmula que passar logo, nosso 'engajamento na histria', encontramos nesse livro enfoques muito brilhantes e especiais [sic por especiosos?] sobre os quais declaro com franqueza que no estou de acordo. Noto a os estragos que realiza em todas as disciplinas uma certa filosofia. Confesso no compreender nem o que a histria 'existencial' nem por que estamos mais 'engajados' na histria do que as geraes que nos precederam." Para Robert Kemp

    10 Agradecemos a Marie-Rose Aris por ter tido a gentileza de nos comunicar esse dossi que comporta recortes de imprensa e cartas de agradecimento e foi composto pelaesposa de Philippe Aris, Primerose.

  • em Les nouvelles littraires, a confuso exprime-se de uma maneira menos direta, irnica: "Tendo partido das doutrinas da Action franaise e tendo respeitosamente se separado delas, ele [Philippe Aris] assinala o papel de Jacques Bainville e de suas trs grandes obras, especialmente a Histria da Frana, nessa metamorfose. Agora, ei-lo que aparece como discpulo de Lucien Febvre e de Marc Bloch. A velha escola tinha se enfurecido contra Bainville. Ela o sabia perigoso, verdade que a nova escola se manifesta muitas vezes atravs de obras de vulgarizao." No Bulletin de Paris, no final de um longo artigo intitulado "Pode nosso tempo contentar-se com uma histria 'existencial'?", o cronista Michel Montei assim conclui: "A histria que estuda essa diversidade a cambiante, a histria 'existencial', corresponde com certeza s curiosidades e s necessidades do nosso tempo. No creio que ela faa esgotar-se no homem honesto o gosto pelas vastas perspectivas em que a razo se apraz em descobrir as relaes de causalidade. Conviria, talvez, aliar o ensinamento de Marc Bloch ao exemplo de Bainville. Mas isso j no foi feito? Refiro-me admirvel "Histria dos franceses de Pierre Gaxotte" Gaxotte, citado s uma vez em O tempo da histria. Pela rejeio explcita ou pela negao das diferenas, os autores ideologicamente mais prximos a Aris falam de seu mal-estar diante de uma maneira de pensar que pouco compreendem.

    Em Aspects de Ia France, em fevereiro de 1955, Pierre Debray retorna num artigo extenso ao livro. A crtica est ali sem ambigidades: "Aris fala com certo ressentimento da 'histria maneira de Bainville', o que se explica pelo conflito doloroso que teve de suportar entre uma tradio monrquica de famlia e a tradio universitria. Como que ele no compreende que a nica coisa que Bainville quis fazer foi apreender atravs da continuidade poltica da Frana sua particularidade nacional?" E, para o cronista monrquico, "a histria existencial s prestar servios enquanto reconhecermos os seus limites, que so estreitos". Para fazer isto, o raciocnio de Pierre Debray toma emprestados diversos meios: por um lado, retoma por sua conta as crticas endereadas a Lucien Febvre por Marrou em Do conhecimento histrico) por outro, e de maneira mais inesperada, ope ao primeiro "seu amigo Marc Bloch esse Marc Bloch cujas ltimas lies tive a felicidade inestimvel de ouvir. Ser que posso confessar que a releitura da grande tese sobre 'os reis taumaturgos' deste historiador judeu, republicano e bom democrata, me permitiu dar o passo decisivo em direo da monarquia?". Da uma leitura de Bloch no inteiramente igual de Aris: "To forte o imprio dos preconceitos nos espritos, mesmo os mais rigorosos, que Marc Bloch se imaginava nos antpodas de Maurras. Todavia, ele fazia empirismo organizador assim como o burgus fidalgo fazia prosa, sem o saber." Esse Bloch maurrasiano, historiador das continuidades nacionais (Pierre Debray acha admirvel o ttulo Caracteres originais da histria rural na Frana francesa, no ttulo exato) no , evidentemente, o de O tempo da histria, historiador das diferenas estruturais, e atrs da referncia comum pode ler-se a originalidade das idias de Aris.

    O que impressiona, no entanto, essa presena respeitada de Marc Bloch, lido de diferentes maneiras, nos meios que, no entanto, poderiam parecer os mais distantes dos Annales, pela cultura e pelas opinies. O papel da revista , certamente, reconhecido

  • pelos amigos mais prximos de Aris, que partilham globalmente seu projeto, mas s vezes com irritao. Assim, por exemplo, no artigo sobre o livro que Raoul Girardet escreve para a Table ronde (da qual Aris era ento um colaborador regular), em fevereiro de 1955. Se afirma concordar fundamentalmente com uma maneira de considerar a histria que pretende aliar "sentido da diversidade" e "sentido da herana", "lucidez e fidelidade", afirma no entanto: "Philippe Aris arrisca-se a falsear o quadro do pensamento histrico contemporneo ao insistir de maneira um pouco exclusiva demais sobre o papel da revista dos Annales e do grupo de historiadores que ela rene. Empreendedores, sem dvida; inovadores, estamos menos seguros disso. Seria mais justo, sem dvida, mostrar na ao do grupo Annales um dos aspectos que , s vezes, o mais brilhante, outras vezes o mais contestvel de toda uma gerao." A reticncia perante um zelo integral demais com relao aos Annales, reforando a tendncia da escola ou do "grupo" de se apresentar como nico defensor da inovao, vem aqui temperar o comum engajamento na redefinio do prprio trabalho historiador.

    Quem era ele, na poca, na universidade e como o livro foi ali recebido? Na ausncia de uma resenha nas revistas histricas "profissionais", as cartas endereadas a Philippe Aris por alguns dos professores da poca podem nos mostrar. Trs delas, em particular, chamam a ateno, todas as trs elogiosas, mas onde transparece, no entanto, certa reticncia diante de algumas formulaes. Para Philippe Renouard, professor de histria medieval na universidade de Bordus, o acento colocado sobre o papel do indivduo que uma histria das estruturas arrisca-se a obliterar: "A historiografia muda como todas as coisas; mas pelo fato de que predecessores fizeram o que fizeram que podemos fazer outra coisa que julgo, como voc, prefervel. Acho, simplesmente, que a histria s total se conserva, ao lado do estudo das correntes de pensamento, das estruturas mentais, da conjuntura e das doenas, o seu lugar para os indivduos que estiveram em situao de orientar os acontecimentos. Voc no tomou posio clara sobre este ponto" (carta de 18 de abril de 1954). Charles-Henri Pouthas, professor na Sorbonne, lamenta por sua vez que o livro tenha permanecido discreto demais com relao a dois pontos: "Eu teria reservado mais espao e feito mais justia ao movimento de trabalho erudito que sempre acompanhou, desde o sculo XVI, mas modesta e obscuramente, a obra literria e superficial que se mostrava no cenrio; eu teria insistido muito mais sobre o grande valor tambm no que se refere ao ensino da profisso que representou o meu velho Guizot" (28 de maro de 1954) o que talvez eqivalesse a confessar, atravs dessa dupla referncia erudio e a Guizot, uma desconfiana inspirada pelas novas correntes. Numa carta muito bonita, em tom de confidencia, Victor-Lucien Tapi, tambm professor na Sorbonne, fala de sua dvida para com os fundadores dos Annales e sua concordncia fundamental com o projeto proposto no seu rastro por Aris. Mas, como no caso de Pouthas, a nfase dada erudio necessria e a lembrana das exigncias do ensino universitrio diferente do dado na instituio prpria ao "grupo" dos Annales, isto , a 6 Seo da Escola Prtica de Altos Estudos, criada em 1947 podem tambm ser entendidas como a expresso discreta de um temor diante dos empregos apressados do programa da histria estrutural e total.

  • Cartas e artigos indicam, portanto, claramente a situao instvel de Philippe Aris desde o incio de sua carreira de historiador. Adepto ardente demais de Bloch e de Febvre para os professores da universidade, muito separado da histria bainvilliana para seu crculo da Action franaise, amador demais, sem dvida, para os historiadores dos Annales, ele se encontrava, assim, intelectualmente prximo dos que o ignoravam e ideologicamente fiel aos que no compreendiam sua definio de histria. Os mal entendidos criados por esses mltiplos laos que no podiam se superpor no se dissiparam facilmente, fazendo de Philippe Aris um autor inteiramente parte, mal recebido durante longo tempo na universidade, boicotado nos Annales at a resenha, somente em 1964, de A criana e a vida familiar

    11 (se deixamos de lado a crtica feita por

    Andr Armengaud de um captulo da Histria das populaes francesas),12

    suspeito aos olhos dos conservadores que a distncia tomada perante uma ordem estabelecida fundada sobre a famlia estreita, o Estado onipotente e a sociedade de consumo inquietava. Desde O tempo da histria so perceptveis esses equvocos e essas rejeies com que Aris se divertir muitas vezes e s vezes sofrer.

    preciso, pois, ler o livro de Philippe Aris recolocando-o em seu tempo, ainda marcado pela guerra no to distante, frtil em aproximaes inesperadas e em tomadas de posio paradoxais. Mas preciso l-lo tambm com relao histria tal como feita hoje em dia. Com efeito, nos dois captulos centrais, consagrados s atitudes diante da histria na Idade Mdia e no sculo XVII, Aris era o primeiro a empreender o que podia ser a histria da histria. Depois desses dois ensaios redigidos em 1950 e 1951, a disciplina cresceu muito, como o demonstra a multiplicao dos ttulos gerais portanto, sem referir-se a notcias consagradas a tal ou tal autor resenhados sob a rubrica "Historiografia" na Bibliografia anual da histria da Frana (de 8 em 1953-1954, para 53 em 1982, e 47 em 1983), a publicao de bibliografias especialmente dedicadas a esse domnio da histria

    13 ou ainda a existncia de urna Comisso Internacional de

    Historiografia que rene os especialistas no gnero, , portanto, possvel compararmos (o que , muitas vezes, cruel para os pioneiros) o que escrevia Aris h mais de trinta anos e o que nos ensinaram desde ento as pesquisas que se acumularam em histria da histria.

    Philippe Aris depreende trs dados essenciais da Idade Mdia: a preservao por parte da Igreja do sentido da medida do tempo, necessrio para fixar a data mvel da Pscoa e para fazer concordarem todas as cronologias particulares com a dada na Bblia; a partilha duradoura, at o sculo Xlll, entre a histria, inteiramente monstica e clerical e a epopia, que narra as tradies senhoriais e regias; finalmente, a fixao de uma histria ao mesmo tempo dinstica e nacional, dividida em reinados, que se torna legvel atravs da estaturia e vitrais de Reims, as esttuas morturias de Saint-Denis e as Grandes crnicas de Frana, a um s tempo "romance dos reis" e "primeira histria da

    11 J. L. Flandrin, "Enfance et socit", Annales ESC, 1964, pp. 322-329. 12 A. Armengaud, "Les dbuts de Ia dpopulation dans les campagnes toulou-saines", Annales ESC, 1951, pp. 172-178. 13 Por exemplo, Historiography: a Bibliography, reunido e editado por Lester D. Stephens, Metuchen (N.J.), The Scarecrow Press Inc., 1975.

  • Frana". Ora, esses traos so os que os historiadores da histria da Idade Mdia identificam agora como essenciais em particular Bernard Guene. Nas abadias, a preocupao litrgica , efetivamente, reconhecida como primeira para fundar o cuidado cronolgico que d sua forma e sua significao s crnicas monsticas: "Durante sculos, a cincia do cmputo e a preocupao com o tempo, instigados pela paixo da liturgia, tinham marcado profundamente a cultura monstica."

    14

    Inversamente, pelo lado das cortes leigas, a histria prpria aos jograis e aos menestris, redigida em lngua vulgar, em versos e depois em prosa, fundada sobre a matria das tradies orais e das canes de gesta: "Assim, pela natureza das suas fontes, pela cultura literria dos seus autores, pelos gostos dos pblicos aos quais era dirigida, essa histria era atrada irresistivelmente pela epopia. Ela respirava o seu ar. Ela se preocupava, pouco com a cronologia. Ela no tinha escrpulo em misturar a verdade e a poesia."

    15 Essa oposio maior, percebida claramente por Philippe Aris,

    organiza o campo da escritura da histria, at o momento em que a gnese dos Estados modernos lhe confira outras finalidades: a celebrao da continuidade dinstica e a exaltao da identidade nacional. Da, um novo papel para o historiador: "A histria no era mais a serva da teologia e do direito, ela se tornava oficialmente a auxiliar do poder. O historiador oficial certamente no pretendia renunciar verdade, mas ele se sabia e se queria primeiramente servidor do Estado"; da uma nova funo da histria, fundamentando o sentimento de pertencer a uma nao identificada por seu passado.

    16

    Vindo para o sculo XVII, Philippe Aris constri a sua descrio da histria na poca clssica sobre uma oposio aguda: de um lado, um gnero bem fixado, a histria da Frana, domnio dos compiladores e dos continuadores, que simplesmente prope de ttulo em ttulo variaes sobre uma trama dada de uma vez por todas; de outro lado, a erudio apoiada sobre a procura, a coleo e a publicao de documentos manuscritos ou iconogrficos. O contraste , portanto, ntido entre uma histria-narrativa totalmente ignorante da crtica histrica e cujas diferenas entre um autor e outro remetem no ao progresso do saber, mas s idias e sensibilidade de seu tempo, e uma erudio histrica nascida da curiosidade dos colecionadores, trazida pelos crculos da "burguesia oficial" e coroada pela obra coletiva dos beneditinos de Saint-Maur. Nesse ensaio sobre o sculo XVII, Philippe Aris abria inmeras pistas inditas: ao comparar as narrativas sobre o mesmo episdio (a histria de Childerico e a de Joana d'Arc) nas diferentes histrias da Frana publicadas entre o sculo XVI eo comeo do sculo XIX; ao observar o tratamento e a funo da histria num gnero no histrico, o romance; ao dar um lugar de primeira importncia aos documentos iconogrficos, como os da galeria de retratos e dos gabinetes de histria, primeiramente na preservao da curiosidade histrica "como se a histria, expulsa da literatura, se refugiasse na iconografia e, desdenhada pelos

    14 B. Guene, Histire et Culture Historique dans l'Occident medieval, Paris, Aubier/Montaigne, 1980, p. 52. Este livro, com uma bibliografia de 829 ttulos, a melhor sntese sobre a Histria na Idade Mdia (cf. tambm le Mtier d'historien au Moyen Age. tudes sur l'historiographie mdivale, sob a direo de B. Guene, Paris, Publications de Ia Sorbonne, 1977). 15 lbid.,p. 63. 16 lbid., p. 345 e p. 323.

  • escritores, encontrasse abrigo entre os colecionadores", e depois na constituio da prpria erudio, fundada na procura e na reunio dos monumentos antigos. Sem dvida pela primeira vez nesta escala Aris descobria a imagem e a sua importncia para o historiador uma descoberta que selava para sempre o trabalho cmplice de Primerose, sua esposa, que tinha feito histria da arte e lhe tinha ensinado a olhar. Em Um historiador de domingo, ele lembra a gnese de um dos desenvolvimentos mais novos do ensaio sobre a histria no sculo XVII: "Quando passevamos de bicicleta nas margens do Loire, tnhamos visitado no castelo de Beauregard uma galeria de retratos de histria que me tinha impressionado. Veio-me a idia de que havia ali uma forma de representao do tempo, comparvel dos cronistas, porm mais concreta e mais familiar. Era a primeira vez que um documento de arte me fornecia um tema original de reflexo. Pouco a pouco, passei da galeria de retratos para os colecionadores de imagens do sculo XVII, o que nos levou, a mim e a minha esposa, ao gabinete das estampas da Biblioteca Nacional para estudar as colepes de Gaignres [...]. O principal estava feito. Logo instalaramos nossos acampamentos no gabinete das estampas em que colheramos uma parte da documentao de meu livro seguinte, A criana e a vida familiar sob o Antigo Regime".

    17

    Relido luz dos trabalhos destes ltimos quinze anos, o diagnstico feito por Aris sobre a histria do sculo XVII parece ainda assimilvel talvez com algumas nuanas. A primeira delas se refere avaliao do papel dos meios jurdicos no desenvolvimento de uma curiosidade propriamente histrica, atenta pesquisa e interpretao dos documentos. Graas aos livros de George

    Huppert e Donald Kelley agora possvel apreciar melhor a importncia dessa histria escrita pelos legistas. Seu apogeu no se situa no incio do sculo XVII, mas antes, no ltimo tero do sculo XVI, entre 1560, ano da publicao das Recherches de Ia France de tienne Pasquier e 1599, ano que v a publicao da Idia da histria terminada de La Popelinire, ou 1604, data de sua Histria das histrias. Neles, como em outros no citados por Aris (Jean Bodin, Louis Le Roy, Nicolas Vignier), uma prtica nova da histria resulta do encontro indito de trs elementos: uma exigncia erudita de antiqurios, fundada na coleta de arquivos e no saber filolgico; uma ligao estreita estabelecida entre o direito e a histria, sendo ambos entendidos na perspectiva de um historicismo fundamental; enfim, o projeto de uma histria "nova", "perfeita", "terminada", que visa, para cada povo considerado, compreenso racional do conjunto das atividades humanas o que La Popelinire chamava "a representao do todo".

    18 A

    erudio dos juristas do comeo do sculo XVII, portanto, no , desse ponto de vista, o ponto de partida de uma renovao do saber histrico, mas, pelo contrrio, o indcio de uma aliana desfeita que tinha unido por algum tempo os rigores do mtodo crtico e o

    17 P. Aris, Un historien du dimanche, op. cit, pp. 121-123. 18 G. Huppert, The Idea of Perfect History. Historical Erudition and Historical Philosophy in Renaissance France, The University of Illinois Press, 1970 (traduo francesa: llde de l'Histoire parfaite, Paris, Flammarion, 1973); D. R. Kelley, Foundations Of Modem Historical Scholarship. Language, Law and History in the French Renaissance, Nova York e Londres, Columbia University Press, 1970; R. Chartier, "Commenton crivait l'histoire au temps des guerres de Religion", Annales ESC, 1974, pp. 883-887.

  • projeto de uma histria universal capaz de explicar as sociedades em seu todo e em seu devir. Sem dvida, Duchesne, os Godefroys, Peiresc, mais tarde du Cange ou os mauristas recolhem a tradio erudita, mas esta se dedica da em diante s publicaes de textos, s colees monumentais e aos glossrios de lnguas, sem mais moldar a prpria histria, deixada aos compiladores e aos literatos. O contraste reconhecido por Aris entre a histria-narrativa e a erudio histrica existe, pois, no sculo XVII, mas deve ser compreendido como o resultado de uma dissociao que separou os elementos reunidos no ltimo tero do sculo XVI pelos historiadores formados nos colgios municipais e nas faculdades de direito renovadas, todos advogados ou oficiais, todos juristas desejosos de compreender num mesmo quadro a histria da humanidade e a da nao.

    Uma segunda nuana a respeito de Philippe Aris pode ser conseguida reconsiderando a prpria oposio entre erudio e histria da Frana tal como aparece na idade clssica. Com efeito, em primeiro lugar, claro que os autores de histrias gerais da Frana no ignoram o trabalho dos eruditos, que citam e utilizam, tirando, com isso, proveito das colees de textos antigos e medievais, das crnicas e memrias antigas, das pesquisas de doutos antiqurios, de Etienne Pasquier a Thodore Godefroy. Depois de 1650, o repertrio das referncias abre-se para novos ttulos: as colees novas de documentos dos Duchesne, de Dom d'Achery, de Baluze, os estudos dos libertinos eruditos da primeira metade do sculo (Pierre Dupuy, Gabriel Naud, Pierre Petau), os trabalhos dos mauristas, com Mabillon frente.

    19 Por outro lado, o projeto de

    certos historiadores redatores de uma histria da Frana no sculo XVII no est to afastado da inteno dos cultivadores da histria "nova" do sculo precedente: assim, por exemplo, Mzeray consagra uma parte de cada um dos seus captulos aos hbitos e costumes dos povos e do tempo de que trata.

    20 Mesmo sendo organizada por reinados,

    mesmo guiada totalmente pelo destino da monarquia, a histria geral, contudo, no abandona as curiosidades dos antiqurios e eruditos. E devemos lembrar que este mesmo Mzeray, que no era estranho s doutas discusses realizadas na biblioteca dos irmos Dupuy, redigiu um Dicionrio histrico, geogrfico, etimolgico, particularmente para a histria da Frana e para a lngua francesa, que permaneceu manuscrito enquanto ele viveu. Sem dvida, portanto, preciso no acentuar demais a clivagem entre as duas formas de histria identificadas por Philippe Aris, menos estranhas uma outra do que poderamos pensar, j que a mais literria no ignora a mais erudita.

    Compreender por que a distncia que no entanto as separa parece to grande, leva a ressaltar um elemento abordado de maneira demasiadamente discreta pelo texto de Aris, a saber, o alistamento da histria a servio da glria monrquica e da exaltao

    19 M. Tyvaert, "Erudition et synthse: les sources utilises par les histoires g-nrales de Ia France au XVII? sicle", Revue franaise d'histoire du livre, 8, 1974, pp. 249-266. Esse artigo, assim como o intitulado "L'image du roi: lgitimit et moralits royales dans les histoires de France au XVII? sicle", Revue d'histoire moderne et contemporaine, 1974, pp. 521-547, so extrados da tese de terceiro perodo de M. Tyvaert, Recherches sur les histoires gnrales de Ia France au XVI&. sicle (Domaine franais), Universit Paris-I, 1973. 20 Sobre Mzeray, A. Viala, Naissance de 1'crivain. Sociologie de Ia littrature l'ge ciassique, Paris, d. de Minuit, 1985, pp. 205-212.

  • do prncipe. Sua preocupao de liberar do peso do Estado e do primaz da poltica a histria que queria escrever o conduz a minorar o efeito do patrocnio monrquico e do direcionamento das letras sobre o que se produziu no sculo XVII. A partilha entre eruditos e historigrafos, com efeito, no reside somente numa diferena de maneira e de mtodo, mas remete a duas funes muito diversamente reconhecidas pelo monarca: enquanto que os primeiros, mesmo beneficirios de gratificaes reais, permanecem fora do empreendimento de celebrao do rei e da dinastia, os segundos, senhores ou no do cargo de historigrafos do rei ou de historigrafos da Frana, participam diretamente da configurao da glria do soberano reinante, escrevendo a histria do reinado de seus predecessores ou a narrativa de sua prpria histria.

    21 Da,

    necessariamente, a posio central mantida pelo rei que , afinal, o nico objeto do discurso um discurso que sempre deve persuadir o leitor da grandeza do prncipe e da onipotncia dos soberanos. "A histria de um reino ou de uma nao tem por objeto o prncipe e o Estado; este o centro onde tudo deve se manter e se relacionar": esta afirmao do padre Daniel, escrita no prefcio de sua Histria de Frana, publicada em 1713, faz eco observao de Pellisson, de quarenta anos antes: " preciso louvar o rei em toda parte, mas por assim dizer sem louvar."

    22 A sua maneira, todas as histrias da

    Frana do sculo XVII correspondem a esse programa (quer tenham ou no sido encomendadas ou patrocinadas pelo Estado) e, por isso, se conformam s exigncias do poder soberano.

    A amizade da histria. Philippe Aris diz em alguma parte em O tempo da histria que ao recusarem essa amizade, as sociedades conservadoras do sculo XX se fecharam sobre seus valores prprios, negaram as outras tradies e, finalmente, se dissecaram por no apreenderem a diversidade do seu mundo. Foi por ser curioso das diferenas, preocupado em compreender o que estava fora da sua cultura, a de seu tempo ou a de seu meio, que pde escapar desse vo debruar-se sobre certezas esgotadas. A est, sem dvida, a lio mais forte desse livro que diz que no existe identidade sem confrontao, no h tradio viva sem encontro com o dia de hoje, no h inteligncia do presente sem compreenso das descontinuidades da histria. Toda a obra, assim como a vida de Philippe Aris, foi dominada por essas poucas idias, formuladas numa pequena coletnea publicada em Mnaco em 1954, afirmadas por um homem que tinha pela histria uma amizade muito grande.

    Roger Chartier

    21 O. Ranum, Artisans of Glory, op. cit. 22 O projeto da histria de Lus XIV de Pellisson analisado por L. Marin, le Portrait du roi, Paris, d. de Minuit, 1981, pp. 49-107, "Le rcit du roi ou comment crire l'histoire".

  • Captulo I UMA CRIANA DESCOBRE A HISTORIA

    Alguns adolescentes descobriram a histria nos meandros de um livro lido por acaso, de uma aula evocadora sem que o professor soubesse, de uma viagem s fontes do passado. Como um caminho de Damasco. Este foi o caso dos perodos calmos, ou antes do sculo de excepcional quietude que vai de 1814 a 1914, quando nossos antepassados puderam acreditar que seus destinos se desenrolavam num meio neutro e que permaneciam senhores de seu curso. Este fechamento s preocupaes coletivas, esta impermeabilidade s agitaes da vida pblica subsistiram ainda para alguns, os mais favorecidos, at os prenncios da guerra de 1939, digamos at 6 de fevereiro ou at Munique.

    Ao contrrio, as geraes que chegaram aos vinte anos de 1940 para a frente j no tiveram conscincia da autonomia de sua vida privada. Quase no havia momento do dia que no dependesse de uma deciso poltica ou de uma "agitao pblica. Estas crianas, estes jovens estavam j de incio na histria e no tiveram que descobri-la; se a ignoravam, era como ignoramos as coisas mais prximas do nosso universo familiar.

    No nasci, como eles, na histria. At o armistcio de 1940, vivi num osis bem fechado s preocupaes de fora. Certamente, se falava de poltica mesa; meus pais eram monarquistas fervorosos, leitores assduos da Action franaise desde as origens. Mas esta poltica estava ao mesmo tempo muito prxima e muito distante. Muito prxima, porque era uma amizade, uma ternura. Evocvamos a figura dos prncipes, as suas crnicas. Divertamo-nos, com afetuosa admirao, com as tiradas de Daudet e com as farpas de Maurras.

    O jornal era todos os dias esquadrinhado e comentado, mas da maneira como se fala de parentes ou de amigos. Antes da guerra, nunca tive o sentimento da vida pblica como uma espcie de prolongamento da minha vida privada, que a dominava e absorvia. Dizamos que tudo ia mal, mas em nenhum momento falvamos em famlia de dificuldades concretas, das incidncias palpveis sobre nossa maneira cotidiana de ser, de uma legislao, de uma deciso do soberano.

    No foi mais assim aps a guerra. O abastecimento, a inflao, as nacionalizaes cito apenas a ttulo de indicao estes exemplos invadiram a vida cotidiana. Meu irmo falava de ordenado e de situao numa idade em que meus amigos e eu, no interior do osis, ignorvamos as questes de dinheiro, as preocupaes de uma luta difcil. Um de meus irmos preparava-se para Saint-Cyr. Eu fizera o concurso para histria. Nem eu nem ele tivemos jamais a curiosidade de saber o ordenado de um oficial

  • ou de um professor. Estvamos no osis. E sem dvida pudemos permanecer ali por tanto tempo menos por causa da situao financeira de nossos pais do que graas ao prisma por onde vamos as coisas de fora, o coletivo. As agitaes da histria chegavam-nos atravs do jornal partidrio, atravs do comentrio de amigos que, por mais mergulhados que estivessem na vida pblica, pertenciam tambm ao mesmo osis.

    Isso explica como no nasci na histria; mas, ao refletir, compreendo a seduo do materialismo histrico sobre as pessoas da minha gerao que no foram preservadas da imerso prematura no mundo do social, do coletivo. No houve intrprete amigvel entre elas e o dinheiro, a carestia, a competio, a spera procura dos relacionamentos, das influncias. Para elas, no havia osis.

    Porque havia um osis, eu vivia fora da histria. Mas, tambm, por causa deste mesmo osis, a histria no me era estranha. No tive que descobri-la, como uma vocao da adolescncia. Ela me acompanhava desde minhas primeiras recordaes de infncia, como a forma particular que adotava em minha famlia e em meus conhecidos a preocupao para com a poltica. Mas era realmente a histria? No era a histria nua e hostil que invade e obriga, aquela onde se , fora do frgil cercado das tradies de famlia. No era a histria, preciso reconhec-lo, mas uma transposio potica da histria, um mito da histria. De qualquer modo, era uma intimidade perante a presena do passado.

    A presena do passado distinta da histria? Poderamos espantar-nos se esquecssemos que a histria est ligada primeiro conscincia do presente. Romantismo, ento? Imaginaes dos anais pitorescos e cintilantes qas pocas passadas? Sem dvida um pouco, mas to pouco que ha pouca necessidade de falar disso. Era outra coisa de muito precioso, de muito ameaado tambm; e, justamente, ameaado hoje pela histria.

    Minha famlia, como disse, era monarquista. Monarquistas ligados sem reservas Action franaise, com fanatismo, mas nutridos de imagens anteriores construo doutrinai de Maurras. Grosso modo, era uma trama de anedotas, muitas vezes lendrias, sobre os reis, os pretendentes, os santos da famlia real, so Lus e Lus XVI, os mrtires da Revoluo. Ainda pequeno, numa dessas caminhadas dominicais que as crianas detestam, levaram-me aos Carmos, onde haviam morrido as vtimas de Setembro, capela expiatria do boulevard Haussmann, erguida pela Restaurao em memria de Lus XVI, de Maria Antonieta e dos suos de 10 de Agosto. Na casa de meus tios, no Mdoc, mostravam-me a cada ano, durante as frias, as imagens hermticas herdadas do perodo revolucionrio onde, como nas adivinhaes, os traos do rei, da rainha, de madame Elisabeth apareciam desenhados na ramagem de um choro. A cada ano, justificavam-se de novo, sob o retrato de um padre vtima dos afogamentos de Nantes, as palindias do ancestral que, prefeito de Bordus sob Napoleo, tinha recebido o conde d'Artois: substitua-se o burgus conservador e oportunista pela imagem ideal de um monarquista fiel e astucioso. Uma das minhas tias explicava-me com convico como

  • meu trisav, general da Primeira Repblica, tinha provado vitoriosamente que sob o uniforme revolucionrio seu corao havia permanecido monarquista.

    Toda minha famlia era vida de memrias, sobretudo das memrias do sculo XVIII e da Revoluo, da Restaurao. Liam-me trechos testemunhos emocionantes de fidelidade, ou textos que permitissem enternecer-se com a felicidade de viver naquela poca. Este sentimento da poca de ouro que foi a dos sobreviventes da Revoluo era muito familiar a meus parentes. Chegava at o bid, descoberto no celeiro, que provava superabundantemente que a higiene no era uma inveno moderna, como diziam os maus espritos. A frase de Talleyrand sobre a doura de viver foi uma das primeiras frases que aprendi. Foi com meu av que, naquele dia, tinha deixado a leitura da Histria dos duques de Borgonha do conde de Barante para caminhar comigo nos Quinconces. Contou-me o assassnio do duque de Guise para me prevenir contra as acusaes que uma histria republicana e mal intencionada lanava contra Henrique III.

    difcil imaginar at que ponto este passado feliz e doce do antigo regime estava presente na memria de meus parentes. De certa maneira, eles viviam nele. Todas as discusses polticas terminavam com uma referncia ao tempo feliz dos reis da Frana. Certo, podiam ser boulangistas, tomar partido contra Dreyfus, mas seu conservadorismo social, semelhante ao da burguesia catlica do seu tempo, coloria-se de um matiz especial: a saudade da velha Frana.

    Estas imagens monarquistas, ainda vivas por volta de 1925, parecero ingnuas e infantis: eram, com efeito, obra das mulheres. Os homens, no fundo, tinham sido sobretudo fiis aos interesses de sua classe; sua poltica seguia a evoluo normal da burguesia do sculo XIX. Mas esta poltica, alis pouco fantica, parava na porta de casa. A casa era o domnio das mulheres, e as mulheres nunca deixaram de ser apaixonadamente monarquistas. Elas se deleitavam com lembranas enternecidas do passado; colecionavam as anedotas, arranjavam convenientemente as migalhas de histria que encontravam nas memrias, nas tradies orais. Descartavam tudo o que, na vida de seus parentes, parecia romper com passado e o passado s ultrapassava 1789 por seus prolongamentos nas vidas dos pretendentes coroa.

    Enfim, a fidelidade das mulheres tinha tido razo contra o oportunismo dos homens. Com a poltica radical, as fracas convices liberais dos homens, quase exclusivamente eleitorais, rapidamente se apagaram e, sob influncias que nada tm a ver com o nosso assunto, hastearam a bandeira branca familial. Tinham eles, sem dvida, o esprito mais crtico? Atenuaram o aspecto "conto de fadas" da tradio? Pouco importa. Para uma curiosidade de criana, o lado imaginativo permanecia o mais eficaz. No estou certo de que no era o mais real.

    Este mundo de lendas monarquistas, eu o encontrei quase desde o bero. Reconheo-o desde as mais longnquas recordaes da minha infncia. Logo que pude conceber a idia do tempo histrico, ela foi acompanhada de nostalgia do passado. Imagino que devia ser exasperante para meus coleguinhas de escola esta preocupao constante de referncia a um passado nostlgico em nossas primeiras discusses

  • polticas e elas comearam bem cedo, dramatizadas pelo grande conflito de conscincia: a condenao da Action franaise pelo Vaticano, a bula Unigenitus de minha infncia.

    Este passadismo no se limitava ao domnio ideal da conversao ou dos devaneios. Traduzia-se por um esforo de participar de uma conscincia mais viva da poca de ouro. Coisa curiosa, este interesse pelo que costumvamos chamar histria (entre ns, "adorvamos a histria") no se satisfazia com leituras fceis ou pitorescas, necessariamente fragmentrias. Eu desconfiava sobretudo do fragmentrio e da facilidade. Durante minhas frias no litoral ainda no tinha catorze anos passeava pela praia com um velho manual de primeiro ano e sentia-me muito orgulhoso quando uma amiga de minha me se espantava com uma leitura to ingrata. Na verdade, eu me esforava bastante por decifrar aquele conglomerado de datas e de fatos despojados da menor parcela de interesse. Deixemos de lado a vaidade infantil. Eu sentia muito obscuramente que, para reencontrar a presena deste passado maravilhoso, era preciso um esforo, vencer uma dificuldade, em suma, passar por uma prova. Sentimento inteiramente irracional, que eu era incapaz de exprimir ou at de conceber claramente; contudo, no creio que o imagine a posteriori. Encontro-o intacto num canto da memria. Ele explica como, sem sofrer influncia nem de meus pais, nem de meus professores (nos primeiros anos dos colgios religiosos, o ensino da histria era inexistente), eu negligenciava as leituras mais fceis e certamente mais instrutivas para recorrer aos manuais de aparncia sria. Eu estava tentando descobrir na aridez e na dificuldade esta poesia dos tempos antigos que surgia, sem esforos, do meio familiar.

    Na verdade, pergunto-me hoje se esta busca ingnua da provao no participava da experincia religiosa tal como era informada pelos mtodos ainda clssicos de educao espiritual. Esta se baseava na noo de sacrifcio. Menos no sacrifcio divino do que no sacrifcio pessoal, a privao necessria: tnhamos listas de sacrifcios assim como registros de temperatura. Existia em minha conscincia infantil do passado uma analogia confusa, mas certa, com o sentimento religioso. Sem nenhuma objetivao possvel, eu supunha uma ligao entre o Deus do catecismo e o passado das minhas histrias. Ambos pertenciam ao mesmo tipo de emoo, sem efuso sentimental, com uma exigncia de aridez. Confesso, alis, que com a perspectiva do tempo minha emoo histrica ao contato com estes manuais me parece de uma qualidade religiosa mais autntica do que minha devoo de ento, totalmente mecnica.

    Creio que desde este momento minha experincia se distinguiu do sentimento passadista de minha famlia; tornava-se propriamente uma atitude diante da histria. Minha famlia, as mulheres e, por contgio, os homens, viviam ingenuamente com uma abertura para o passado. Pouco lhes importava que suas vises do passado fossem fragmentrias. Era at preciso que fossem fragmentrias, j que, para eles, o passado era uma certa maneira de ver bem definida, uma nostalgia de cores bem precisas. Liam muito e quase exclusivamente narrativas histricas, sobretudo memrias, mas sem sentir por pouco que fosse a necessidade de cumular as lacunas de seus conhecimentos,

  • de cobrir sem hiatos um perodo de tempo. Suas leituras alimentavam as imagens que tinham herdado e consideravam definitivas. A prpria idia de um retoque ou de uma renovao causava-lhes horror.

    Coisa curiosa, eles no tinham conscincia de suas lacunas. Menos por negligncia, por preguia de esprito do que porque a seus olhos no havia lacunas: podiam faltar pormenores, mas pormenores sem importncia. Estavam convencidos, com uma convico ingnua, como uma coisa bvia, que possuam a essncia do passado e, no fundo, no havia diferena entre eles e o passado: o mundo ao redor deles tinha mudado com a repblica, mas eles tinham permanecido.

    Esta conscincia de seu tempo, que as geraes de 1940 sentem com espantosa brutalidade, existia para eles, mas deslocada em mais de um sculo. Eles estavam no passado como estamos hoje no presente, com o mesmo sentimento de familiaridade global onde importa pouco o conhecimento dos pormenores j que se coincide com o todo.

    Eu no conseguia me contentar com esta impregnao do passado vivido como presente. Sem, alis, me dar conta, explicitamente, da separao. Ainda agora, no a acho em mim mesmo com o frescor vivo. Descubro-a pela anlise, porque ela me explica a motivao secreta que eu perseguia quando mergulhava nos manuais. Em toda inocncia, eu no podia viver no passado com a mesma ingenuidade de meus parentes.

    Exigncia pessoal? No creio. Para minha gerao, apesar da filtragem de tradies familiares que recobriu minha infncia, o passado estava j longe demais. Minha me, minhas tias tinham sido educadas nos conventos da Assuno e sobretudo do Sacr-Coeur, onde professoras e alunas voltavam resolutamente as costas para o mundo. J no era assim no colgio parisiense dos jesutas em que comecei meus estudos. Havia ali "republicanos" demais, problemas demais. Meus pais tinham vivido no interior, ou at nas Antilhas, que a ruptura de 1789 no tinha atingido. Eu vivia em Paris, na grande cidade tcnica onde, por mais fechado que se fosse ao mundo moderno, o passado era menos presente, onde o lar da famlia era mais isolado. L longe, no interior, nas ilhas, este passado constitua ainda um meio denso e complexo. Aqui, em Paris, era antes um osis no seio de um mundo estranho mas invasor.

    O que tinha sido dado a meus pais devia ser conquistado por mim. Precisava conquistar este den perdido e, para tanto, devia achar a graa pela provao. E assim gostaria de insistir sobre este ponto minha explorao difcil de um passado desejado, mas longnquo, no podia mais satisfazer-se com fragmentos de histria, por ricos que fossem, que bastavam para minha famlia. As memrias, leitura predileta de meus parentes, tentavam-me e me repugnavam ao mesmo tempo. Tentavam-me porque encontrava nelas o encanto do antigo regime, as saudades que excitavam meu desejo de saber. Repugnavam-me porque o conhecimento que delas tirava tornava-me mais sensvel s zonas de sombra perifricas: sublinhavam minha ignorncia do que ficava fora de minhas leituras. Acredito que este sentimento prevaleceu. Lamento-o hoje e se tivesse que orientar crianas que gostam de histria, eu as orientaria, pelo contrrio,

  • para estes testemunhos vivos. Sei que estes fragmentos contm mais de histria, e de histria total, do que todos os manuais, at mesmo os mais doutos. Mas ningum me guiava ento, pois, perto de mim, no se tinha a idia de que a histria pudesse ser outra coisa que no o que se vivia. Alm disso, eu no queria conselhos. Talvez seja a autonomia desta evoluo que lhe confira interesse.

    Deixei, pois, as leituras vivas por manuais escolares, os de minha classe e sobretudo os das outras classes, como se deve. Encontrava ali, apesar da secura da exposio, uma satisfao que minha memria conserva intacta. Por uma cronologia minuciosa, ou que me parecia tal, tinha a impresso de sobrepor o tempo por inteiro, encadear os fatos e as datas por ligaes de causalidade ou de continuidade, de modo que a histria j no era fragmentos num ambiente, mas um todo, um todo sem fendas.

    Nesta poca da minha vida, no segundo e terceiro anos, eu estava realmente possudo pelo desejo de conhecer toda a histria, sem lacunas. No tinha nenhuma idia da complexidade dos fatos. Ignorava a existncia das grandes histrias gerais, como as de Lavisse, e minha cincia cronolgica me parecia atingir os limites. Alm disso, os manuais escolares j no me bastavam: tinha-os j postos em quadros sinticos. Lembro-me de um grande quadro da Guerra dos Cem Anos, subdividido ao infinito: o manual parecia-me muito analtico, como se a coeso dos acontecimentos no resistisse sua apresentao sucessiva, linha por linha, pgina por pgina, como se fosse preciso reuni-los no sentido horizontal para impedi-los de fugir, de se separarem. Lutei com os fatos para for-los a entrar no todo.

    Um dia, acreditei conciliar meu gosto do passado real e meu desejo de totalidade empreendendo uma genealogia dos capetianos, desde Hugo Capeto at Afonso XIII, os Bourbon-Parme e o conde de Paris. Uma genealogia completa, com todos os ramos colaterais, sem esquecer nem os santos nem os bastardos. Era um trabalho de romano, com os parcos materiais de que dispunha: dois grandes dicionrios de histria na biblioteca de meus pais e a possibilidade de consultar a Grande encyclopdie junto a um abade. Tentei muito ampliar a minha documentao. Falaram-me de uma Genealogia da casa da Frana, do padre Anselme. Foi para consult-la que penetrei pela primeira vez numa grande biblioteca, em Sainte-Genevive. Primeiro, tive todas as dificuldades do mundo para convencer o bibliotecrio de minha boa-f. Tive que voltar com uma autorizaa de meus pais. E, evidentemente, nunca pude chegar at o padre Anselme, quer porque estivesse inacessvel nos mistrios dos catlogos, quer porque estivesse na reserva. A reserva me desencorajou, e continuei com meus prprios meios.

    As paredes de meu quarto cobriam-se de folhas de papel, coladas umas s outras em todos os sentidos. Eu queria seguir com os olhos todos os meandros das filiaes. Quanto mais elas se ramificavam nos colaterais afastados, mais eu ficava contente. De 1897 a a 1929, o enorme bloco de histria pendurado em minha parede, e isso para concluir com o rei Joo, cujo retorno pedamos com a ria de Ia Royalel

    Toda a preocupao com a poltica presente, com a propaganda, folhetos e papis de anotao dos escritrios, tudo isto era aspirado pela minha rvore genealgica. As

  • dificuldades do franco, o domingo negro das eleies radicais de que falvamos mesa, pareciam estar bem longe, pequenininhos diante dos ramos da minha rvore que partia do sculo X e cobria a Espanha, Portugal, a Hungria e a Itlia.

    Este gosto pelas genealogias e pelos quadros sinticos perseguiu-me por muito tempo. Tive dificuldades para desvencilhar-me dele.

    Era j estudante na Sorbonne quando comecei a ensinar histria a crianas do quarto e do terceiro anos num curso livre. No utilizava mais o mtodo sintico em minhas notas. Lamentando um pouco, alis, mas com ele as coisas se complicavam e a imbricao dos fatos fazia com que meus quadros explodissem. Tendo, porm, que ensinar a crianas a Guerra dos Cem Anos, pensei que no existisse mtodo mais simples e mais pedaggico. Vejo-me ainda a cobrir o quadro-negro de chaves com as quais simbolizava graficamente a seqncia de causas e de efeitos. As cadeias de acontecimentos transbordavam dos cadernos dos meninos pasmos e, no fundo, as mes de famlia manifestavam uma desaprovao muda, mas formal. Foi preciso que o diretor viesse pr um fim ao meu abuso de ligaes. A vergonha que senti ento fez com que perdesse para sempre o gosto pelos quadros sinticos. Eles tiveram flego de sete gatos.

    Genealogia, cronologia, sinopse, do mostras de um zelo desajeitado para apreender a histria em sua totalidade. A prpria ingenuidade desta experincia lhe d seu valor.

    Uma criana imersa num ponto colorido do passado tenta adaptar-se a este passado que j no est totalmente assimilado por ela como estava por seus pais. O passado parece-lhe algo diferente, mas infinitamente desejvel, um reflexo da doura de viver, uma imagem da felicidade. A felicidade est atrs dela. preciso que a descubra. Esta busca reveste-se a seguir de m carter religioso: uma procura da graa. Tem-se at a impresso de que o ser do passado se confunde com Deus. Os gestos da prtica religiosa permaneciam sendo hbitos superficiais. No creio que Deus estivesse presente ali. Deus estava no passado que tentvamos alcanar. No seria preciso pressionar-me muito para me fazer reconhecer em minha comunho com o passado minha mais antiga experincia religiosa.

    Ao se afirmar, a busca do passado tornou-se a preocupao de apreend-lo em sua totalidade. O contedo potico deste passado era voluntariamente descartado como uma tentao. Ele permanecia na vida corrente, nas conversas de famlia; tambm vibrava no fundo de mim mesmo. Mas eu no admitia que fosse de todo histria, porque era incompleto. Cheguei, no limite, a esvaziar a histria de seu contedo humano, a reduzi-la a um esforo de memria e a um esquema grfico.

    No entanto, o prprio excesso de exame e de sntese permite, creio, entrever o que em sua nudez a experincia histrica.

  • Os aluvies da cultura e da poltica recobrem-na, escondem-na e a desfiguram. Desvi-la-emos de sua gratuidade e a solicitaremos para uma apologtica poltica ou religiosa. Torn-la-emos leiga para erigi-la em cincia objetiva.

    Mas no dia em que, no sculo XX, a runa de todas as histrias particulares colocar o homem brutalmente na histria, sem transio, sem intermedirio, esta conscincia infantil do passado reaparecer como a ltima resistncia histria, como o ltimo obstculo contra a entrega cega e animal histria. Ou efetivamente a histria um movimento elementar, inflexvel e sem amizade, ou ento existe uma comunho misteriosa do homem na histria: a apreenso do sagrado imerso no tempo, um tempo que seu progresso no destri, onde todas as pocas so solidrias. Eu me pergunto se, no termo de sua carreira, o historiador moderno, depois de ter superado todas as tentaes da cincia que desseca e do mundo que solicita, no termina com uma viso da histria muito prxima da experincia infantil: a continuidade dos sculos, cheios de existncia, mostra-se-lhe sem profundidade, sem extenso, como uma totalidadequedescobrihnosde uma s vista d'olhos. S que sua viso no mais a da criana, porque a criana no consegue abarcar todo o contedo da existncia humana. Sua totalidade falsa e abstrata. Ela guarda, porm, o valor de uma indicao, de uma tendncia. Ela sugere tambm que a criao histrica um fenmeno de natureza religiosa. Na sua viso das pocas amontoadas, reunidas, o cientista, liberto de sua objetividade, sente uma alegria santa: algo muito prximo da graa.

    1946

  • Captulo II A HISTRIA MARXISTA E A HISTORIA CONSERVADORA

    No passamos diretamente da experincia infantil, nova e imediata, para uma conscincia mais organizada, a do homem. Precisamos passar pela prova de uma transio que para muitos no uma transio, mas um bloqueio: a prova da adolescncia. A adolescncia no prolonga as experincias da infncia; ela as suspende e muitas vezes as destri. Superam a adolescncia os que conseguem reencontrar na maturidade os antigos itinerrios, contanto que seus rastros, recobertos por um momento, no estejam inteiramente apagados.

    Meu primeiro encontro com a histria pertenceu ao mundo fechado da infncia, onde coexistiam a nudez da solido e a densidade dos contatos familiares: meditaes muito secretas e a influncia do meio, uma preocupao de exaustividade e a nostalgia da antiga Frana. Mas hoje vejo bem como esta imagem pessoal e, por conseguinte, autntica da histria se deformou pouco a pouco por representaes mais rgidas, mais objetivantes, herdadas no mais da minha cidade particular, mas de uma ideologia abstrata que se servia da histria como de um instrumento e substitua por uma ferramenta uma presena e uma comunho. Deixei o universo dos meus desejos e das minhas recordaes para entrar no de uma literatura que teve entre as duas grandes guerras um sucesso considervel: a utilizao da histria para fins filosficos e apolo-gticos, a construo sobre a histria de uma filosofia da cidade, de uma poltica. O fenmeno merece que nos detenhamos nele: , por um lado, a interpretao bainvilliana do passado; por outro iado, a interpretao marxista.

    Partamos de nossa experincia particular, que uma experincia de direita. Ela nos permitir compreender melhor a outra.

    Encontro nas prateleiras de minha biblioteca, gastos por um longo uso, os volumes de Jacques Bainville. Comeara a l-los num momento em que ainda aderia minha imagem infantil da histria. Lia a Histria de dois povos e ao mesmo tempo os manuais escolares que acreditava serem exaustivos, esforava-me por complet-los um pelo outro, por fazer com que Bainville precedesse tudo que meu manual e meu dicionrio de biografia histrica me diziam dos primeiros Hohenzollern e dos eleitores de Brandemburgo na Idade Mdia. J obedecia a uma outra preocupao, porm: no propriamente esclarecer o presente pelo passado, mas convencer meus adversrios

  • colegas de carne e osso ou interlocutores imaginrios da verdade de uma poltica. A histria da em diante me pareceu um arsenal de argumentos.

    Abro uma edio de 1924 da Histria da Frana, brevirio da minha primeira adolescncia. Est coberta de anotaes e de traos que sublinham passagens consideradas importantes. Assim destacadas, estas passagens revelam um estado de esprito muito caracterstico: "Era um homem para quem as lies da histria no eram em vo e no queria expor-se a criar uma outra feudalidade." Grifei este elogio discreto do homem de Estado eterno, apoiado nas experincias sempre vlidas do passado. Tratava-se, porm, de Lus o Gordo. Lus VI no me interessava como prncipe feudal, mas porque repetia no incio da histria capetiana a imagem do soberano clssico, modelo permanente dos chefes de povo.

    Algumas pginas alm, a respeito da conquista normanda da Inglaterra, estes riscos de lpis: "Alemanha, Inglaterra: entre estas duas foras, ser preciso nos defendermos, encontrarmos nossa independncia e nosso equilbrio. ainda a lei de nossa vida nacional." Pouco me importava se esta Inglaterra, esta Alemanha do sculo XI, se distinguiam da Inglaterra e da Alemanha do sculo XX. Esta idia parecia-me, ao contrrio, hertica. Eu respondia freqentemente aos meus contraditores pois a polmica subjazia minhas leituras, e minhas reflexes tinham a maneira de um debate que o tempo modificava simultaneamente o numerador e o denominador, sem alterar o valor da razo.

    E havia um nmero de ouro, edio ne varietur, o bom governo, sempre semelhante a si mesmo. A Guerra dos Cem Anos confirmava-nos as virtudes do equilbrio europeu. Ao contrrio, com os Estados gerais do sculo XIV, eu via serem punidos os erros do regime parlamentar que substitua o magistrado monrquico por polticos irresponsveis, o bem pblico pelas preocupaes partidrias. Sublinhei esta frase: "Era uma tentativa de governo parlamentar e, logo em seguida, apareceu a poltica." Eu gostava muito desta assimilao entre o regime dos Estados e o parlamentarismo contemporneo.

    Tambm sublinhadas esto estas linhas que ilustram o mecanismo revolucionrio. Elas foram escritas a respeito da comuna de tienne Mareei: "As cenas revolucionrias qu tiveram, quatrocentos anos mais tarde, to espantosas repeties." A idia dessas repeties encantava-me. Que fria de procurar as aparncias l onde hoje constato as diferenas mais irredutveis!

    A Histria de Bainville permitia-me desmascarar ao mesmo tempo o parlamentarismo nefasto e as origens do liberalismo prfido... na pessoa de Michel de L'Hospital. L/Hospital era para mim a besta negra, uma prefigurao do baro Pi, personagem lendrio da minha primeira juventude, o liberal caricaturado por Maurice Pujo. "L'Hospital", sublinhei, "pensava que a liberdade consertaria tudo: desarmava o governo e armava os partidos."

    Procurei lupa no livro de Bainville os indcios de permanncia dos tempos, as repeties de uma mesma causalidade poltica. No tinha dificuldades em encontr-los,

  • e o que hoje me inquieta e tempera minha antiga admirao. Era bom leitor? Sem dvida, havia outras lies que tirar desse livro, e eu no as via. Poderia ter descoberto os rastros de outras continuidades menos mecnicas, mais particulares a uma sociedade determinada, continuidades infragovernamentais. Assim, Bainville reconhece em Maupeou o precursor do Comit de Salvao Pblica e de Napoleo I, dos grandes centralizadores modernos; no fracasso de Maupeou, a incapacidade do antigo regime de dar ao pas instituies de tipo moderno. Esta oscilao entre dois tipos de instituies, nesse momento, bem parecia uma singularidade da histria. A inteligncia aguda e, no fundo, pouco sistemtica do gnio bainvilliano multiplicava, sobretudo para as pocas recentes, observaes assim aderentes s coisas, vlidas somente uma vez. Mas estas observaes, que hoje fazem o interesse de Bainville, permaneciam, preciso reconhec-lo, estranhas ao grande projeto: a repetio dos fracassos e dos sucessos como introduo a uma poltica experimental, a possibilidade de evitar os efeitos das causas perigosas, reencontrando na histria ciclos anlogos de causalidade. A histria a memria do homem de Estado: no estou seguro de que esta frmula no seja uma citao.

    Por isso a falta de jeito sistemtica e caricatural de um adolescente no desfigurava o essencial. Eu tinha compreendido bem. Os matizes que uma cultura mais extensa, uma apresentao mais nuanada acrescentavam, no alteravam nada no fundo.

    Toda uma escola histrica ento se fundou sobre a noo de que as diferanas dos tempos so uma aparncia, que os homens no mudaram, suas aes repetem-se, o estudo destas repeties permite reconhecer as leis da poltica; uma velha idia, em suma, muito clssica: nada de novo sob o sol, as mesmas causas repetem os mesmos efeitos, mas expressos com uma insistncia e um talento novssimos e tambm num momento propcio da conjuntura. Os livros de Bainville, em particular sua Histria da Frana, foram grandes sucessos de livraria, comparveis aos dos romances em voga. No creio que antes do Lus XIV de Louis Bertrand e dos livros de Bainville obras srias de histria tenham conhecido uma vendagem to grande. Todo um pblico se abria para a histria e no era o pblico tradicional das memrias ou das grandes sries maneira de Thiers, de Sorel, isto , dos historiadores liberais no universitrios, pois a universidade permaneceu por muito tempo confinada sua clientela particular de eruditos.

    Sem dvida, observando-a de mais perto, perceberemos que a Histria de Bainville

    no era propriamente uma trovoada num cu sereno, como se pde crer. Seu sucesso

    tinha sido preparado em particular por Lentre, cujas primeiras publicaes datam do fim

    do sculo XIX. Os estudos de Lentre marcam o primeiro, alargamento do pblico dos