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    Plano Real

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    REFORMAMONETRIAECAMBIALde julho de 1994 foi considerada, desde oincio, como um marco no processo de adaptao da poltica econmicabrasileira ao padro de poltica econmica vigente em grande parte da Am-

    rica Latina. At ento, o desempenho da economia brasileira, especialmente emmatria de inflao, destoava dos resultados alcanados no resto da regio, inclu-

    sive na Argentina, na Bolvia, na Nicargua e no Peru, pases que como o Brasilhaviam experimentado surtos hiperinflacionrios na dcada de 80 ou no inciodos anos 90.

    A finalidade deste trabalho analisar os primeiros dois anos do Plano Real,em especial os seus efeitos sobre as relaes econmicas externas do Brasil luzda experincia de programas de estabilizao semelhantes adotados no Mxico,a partir de 1988, e na Argentina, desde 1991. A anlise concentrar-se-, portan-to, basicamente no perodo que vai da introduo da nova moeda, em julho de1994, at meados de 1996.

    Em maio de 1993, com a nomeao de Fernando Henrique Cardoso para

    o Ministrio da Fazenda, teve incio a montagem de um programa econmicoque revelaria grande eficcia em matria de combate inflao e resultaria noalinhamento de aspectos centrais da poltica econmica do pas ao modelo deestabilizao e integrao internacional quevinha sendo aplicado em outros pa-ses da Amrica Latina, particularmente no Mxico e na Argentina. A economiabrasileira repetiria a trajetria mexicana e argentina em alguns pontos importan-tes, combinando sucesso inicial no combate inflao com elevados dficits ex-ternos e forte dependncia de fluxos volteis de capital internacional.

    Evidentemente, cada experincia nacional apresenta as suas especificidades.No difcil apontar diferenas significativas entre o Plano Real, o Plano Cavalloe o programa mexicano. Por exemplo: o Plano Real claramente mais flexvel ecauteloso do que a lei de conversibilidade argentina; o plano mexicano recorreuintensamente a polticas de preos e salrios, negociadas em escala nacional comrepresentantes de empresrios e trabalhadores, elemento ausente dos programasargentino e brasileiro; no caso do Plano Real, a desindexao foi alcanada deforma original com a criao da Unidade Real de Valor URV.

    As diferenas no impedem, contudo, que esses programas de combate inflao sejam considerados de forma conjunta, como exemplos de um mesmomodelo geral de estabilizaoe integrao internacional aplicado a diversos pases

    O Plano Real luz da

    experincia mexicana e argentinaPAULO NOGUEIRA BATISTAJR.

    A

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    da Amrica Latina nos ltimos anos. O modelo inclui os seguintes elementoscentrais:

    uso da taxa de cmbio como instrumento de combate inflao; abertura da economia s importaes, por meio da drstica reduo das

    barreiras tarifrias e no-tarifrias;

    abertura financeira externa, com a adoo inclusive de polticas de est-mulo entrada de capitais externos de curto prazo;

    medidas de desindexao da economia;

    ajuste fiscal e austeridade monetria;

    venda de empresas pblicas.

    Todos esses aspectos esto presentes, com maior ou menor intensidade,nas polticas econmicas recentes dos trs principais pases da Amrica Latina.Vejamos como os diversos elementos se articulam entre si.

    Mxico, Argentina e Brasil

    Nos trs casos, especialmente na Argentina e no Brasil, os programas deestabilizao tiveram de enfrentar inflaes muito altas segundo padres interna-cionais. Prevaleceu a percepo de que a estabilizao monetria exigia, nessascircunstncias, o uso da taxa de cmbio com o dlar como ncora nominal. Issosignificou assumir compromissos mais ou menos rgidos com uma trajtria pre-determinada para a taxa de cmbio nominal, sacrificando em larga medida a

    possibilidade de utiliz-la como instrumento de ajuste do balano de pagamentos.Como recorda McKinnon (1994:165-166), os economistas esto divididos

    em duas abordagens conflitantes sobre o papel da taxa de cmbio. A primeira,que o autor denomina international adjustment approach(enfoque ou aborda-gem do ajustamento internacional), mais popular entre os especialistas em eco-nomia internacional e remonta ao modelo de elasticidades da balana comercial;nessa abordagem a taxa cambial considerada como varivel de ajustamentotil, freqentemente indispensvel, para equilibrar as transaes internacionais.A segunda abordagem, denominada monetary standard approach(abordagemdo padro monetrio), mais do campo dos especialistas em economia monet-ria, s vezes mais propensos a limitar as flutuaes da taxa de cmbio e a utiliz-lacomo fator de harmonizao das polticas monetrias de diferentes pases e ins-trumento de combate inflao. Naturalmente, esta segunda abordagem tendea ganhar fora aps perodos de prolongada instabilidade monetria.

    Foi o que aconteceu em diversos pases da Amrica Latina, desde o finaldos anos 80. A funo primordial da poltica cambial passou a ser a de contribuirpara a convergncia da inflao domstica inflao internacional, fossem quaisfossem os efeitos em termos de perda de competitividade internacional edesequilbrios no balano de pagamentos em conta corrente.

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    Na prtica, o cmbio nominal estvel ou prefixado, combinado com a aber-tura do mercado interno s importaes, funcionou como fator de represso alta dos preos internos, ao disciplinar os reajustes dos bens comerciveis inter-nacionalmente, isto , os importados, os exportveis e aqueles produzidos cominsumos importados ou exportveis (Carvalho, 1995:147). A menos que hou-vesse convergncia imediata da inflao domstica internacional algo quenem a teoria, nem a vasta experincia com processos de estabilizao ancoradosno cmbio teriam permitido esperar , a estabilizao cambial tenderia a produ-zir perda de competitividade internacional.

    As perdas de competitividade acabaram sendo muito significativas, umavez que a convergncia da inflao foi bastante lenta. No caso da Argentina, ainflao s foi trazida para o nvel registrado nos EUAem meados de 1994, cercade trs anos aps o lanamento do programa (1). No caso do Mxico, a inflao

    nunca chegou a convergir plenamente. Antes do colapso cambial de fins de 1994,a inflao mexicana ainda estava em torno de 7%a.a., mais do que o dobro daobservada nos EUA (2). Nesse contexto de lenta convergncia da inflao, aperda de competitividade internacional decorrente da forte valorizao da taxade cmbio bilateral com o dlar dificilmente poderia ser compensada com ganhosinternos de produtividade ou desvalorizao do dlar com relao a outras moe-das relevantes para os pases em questo.

    No por acaso, traos comuns a essas experincias foram o crescimentoexplosivo das importaes e a acumulao de dficits expressivos na balana co-mercial e no balano de pagamentos em transaes correntes, em conseqnciano apenas da valorizao cambial, mas tambm da abertura do mercado interno

    s importaes e nos casos argentino e brasileiro, mas no no mexicano daforte expanso da demanda interna que se seguiu queda da inflao. O Mxicoregistrou, entre 1988 e 1994, dficit total em conta corrente de nada menos queUS$ 109,8bilhes. A Argentina acumulou dficits em conta corrente no total deUS$ 24,6bilhes no perodo de 1991 a 1994 (3).

    Ao contrrio dos dficits em conta corrente registrados na fase anterior deendividamento acelerado das economias latino-americanas nos anos 70 at o in-cio dos anos 80, esses dficits recentes no podem ser atribudos a choques exter-nos. Algumas variveis exgenas importantes, notadamente as taxas de juro emdlares, atuaram inclusive no sentido de minorar os desequilbrios correntes dospases devedores da Amrica Latina at 1993. Por exemplo, a LIBOR

    (taxa

    interbancria de Londres) para operaes de seis meses em dlares caiu de umamdia de 8,8%ao ano em 1989-90para 6,1%em 1991, 3,9%em 1992 e apenas3,4%em 1993 (4). No obstante, tanto no caso do Mxico como no da Argenti-na, os dficits correntes cresceram de forma quase contnua nesse perodo.

    Desse modo, ainda que o lanamento desses programas de estabilizaotenha sido antecedido em todos os casos, e particularmente no caso do PlanoReal, de esforo aprecivel na formao de reservas cambiais, no teria sido pos-svel sustent-los por muito tempo sem que fosse atendida uma premissa funda-

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    mental, qual seja, a da disponibilidade de capitais externos (inclusive repatriaode fundos de residentes aplicados no exterior) em montante suficiente para fi-nanciar os desequilbrios de balano de pagamentos produzidos pela combina-o de valorizao cambial com abertura s importaes. Sem tal premissa, oprprio esforo prvio de acumulao de reservas no teria sido possvel na esca-la em que ocorreu.

    A abertura financeira externa e a disposio de adotar polticas monetrias,tributrias e cambiais compatveis com a atrao de capitais especulativos consti-tuem, assim, aspectos centrais do modelo de poltica econmica seguido nos trspases. A razo disso clara: a possibilidade de atrair capital externo de maiorestabilidade e em condies mais favorveis de prazo e custo depende, em gran-de medida, do restabelecimento da confiana e da credibilidade internacional dopas. Como essa credibilidade vai sendo conquistada aos poucos e os desequilbrios

    externos em conta corrente aparecem com grande rapidez, a dependncia comrelao a capitais de curto e mdio prazos instala-se quase que inevitavelmente.O crescimento do dficit em conta corrente e as evidncias de sobrevalorizaocambial podem inclusive contribuir para retardar a recuperao da credibilidadee reforar a dependncia de capitais especulativos de curto prazo.

    A poltica fiscal desempenha, nesse contexto, a funo de viabilizar a anco-ragem cambial. A ela cabe primordialmente impedir que dficits fiscais, no-financiados com endividamento externo ou interno de mdio e longo prazos,ameacem a sustentao do cmbio, tornando o programa mais vulnervel a ata-ques especulativos. Essa subordinao da poltica fiscal estabilizao cambialdecorre, evidentemente, da preocupao de evitar que um desequilbrio crescen-

    te entre a liquidez em moeda nacional (na forma de base monetria e ttulospblicos de curto prazo) e as reservas cambiais do Banco Central force esteltimo a praticar taxas de juro excessivamente elevadas, em carter permanente,e acabe criando condies para ataques especulativos bem-sucedidos contra asmetas cambiais anunciadas pelo governo.

    A privatizao, embora justificada, s vezes enganosamente, com apelosgenricos eficincia da gesto privada e dos mecanismos de mercado, s podeser plenamente entendida no contexto macroeconmico j delineado. Do pontode vista do modelo de estabilizao adotado nesses pases, a venda de empresasestatais especialmente eficaz quando implica desnacionalizao e entrada derecursos novos em moeda de liquidez internacional. Nesse caso, ela contribui,ainda que transitoriamente, para equacionar os problemas financeiros internosdo setor pblico e, ao mesmo tempo, para o financiamento do desequilbrio dobalano de pagamentos em conta corrente. Sinal de que talvez seja neste ponto,e no nos ganhos de eficincia ou na confiana no mercado, que se localizam asrazes primordiais da nfase atribuda privatizao est no fato de ela ter resul-tado, em diversos casos, na simples transformao de monoplios pblicos emmonoplios privados. Outro sinal reside no fato de que diversas operaes ditasde privatizao consistiram, em realidade, na transferncia do controle acionrioa empresas estatais estrangeiras (Batista, 1994:31).

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    Antes de passar anlise do caso brasileiro, convm advertir que o modelode estabilizao e integrao internacional acima discutido no foi aplicado deforma geral na Amrica Latina, ainda que diversos dos seus elementos estejampresentes nas polticas econmicas de todos os pases da regio. Evita-se, porisso, a designao neoliberal para caracterizar as experincias discutidas nestetrabalho. Por ser excessivamente genrica, tal designao oculta importantes di-ferenas de abordagem e desempenho entre as economias da regio.

    Chile e Colmbia, por exemplo, adotaram nos ltimos anos polticas bas-tante distintas das que prevaleceram no Mxico, na Argentina, e mais recente-mente no Brasil, em especial no que se refere a poltica cambial, abertura finan-ceira externa e dependncia de capitais de curto prazo. No Chile e na Colmbia,por motivos que no discutirei aqui, as polticas cambiais foram mais flexveis,voltadas em geral para a defesa da competitividade externa; alm disso, em diver-

    sos perodos foram adotadas fortes restries entrada de capitais externos decurto prazo (5). Por isso mesmo, esses dois pases escaparam basicamente inc-lumes s ondas de instabilidade desencadeadas pelo colapso do peso mexicanoem fins de 1994.

    O ponto de partida do Plano Real

    Do ponto de vista fiscal e monetrio, o Plano Real estava longe de oferecergarantias suficientes em 1993-94. A equipe econmica do governo reiterava cons-tantemente a sua determinao de mudar o regime fiscal-monetrio, isto , derealizar modificaes de carter fundamental no campo das finanas pblicas eda gesto da moeda, inclusive como precondio das medidas de desindexao.

    Mas o governo Itamar Franco era um governo fraco, j em fim de mandato, sembase parlamentar estvel e que no contava com a legitimidade associada elei-o pelo voto direto. No havia condies polticas para construir um programade estabilizao com slidos fundamentos fiscais e monetrios.

    inegvel que a poltica fiscal de 1993 e 1994 produziu alguns resultados,como o reconhecimento da constitucionalidade da Contribuio para o Financia-mentoda Seguridade Social COFINS, a instituio do Imposto Provisrio sobreMovimentao Financeira IPMF, a aprovao do chamado Fundo Social deEmergncia FSEe os avanos no combate evaso fiscal durante a gesto deOsiris Lopes Filho na Receita Federal. Alguns desses mecanismos eram, entre-

    tanto, de natureza transitria. De qualquer forma, os ganhos obtidos em taisfrentes eram neutralizados, no todo ou em parte, por despesas expressivas emcertas reas.Parte do problema residia no fato de o governo Itamar haver herda-dodo governo Collor enorme represso de determinados tipos de gastos,notadamente na rea da Previdncia Social e na remunerao dos servidores federais.

    As finanas estaduais e municipais tambm davam sinais de fraqueza, atri-buveis em parte a circunstncias eleitorais. A interveno no Banerj e especial-mente no Banespa, em fins de 1994, revelaria mais claramente o grau de desor-dem das finanas em alguns dos principais estados da Federao.

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    Ao mesmo tempo, o componente financeiro do dficit pblico via-se pres-sionado por acordos onerosos negociados pelos governos Collor e Itamar com oClube de Paris e os bancos comerciais estrangeiros (6). Alm disso, a poltica dejuros altos, que vinha sendo utilizada para assegurar a formao das reservasinternacionais necessrias sustentao da futura ncora cambial, onerava as fi-nanas pblicas federais e as dos estados e municpios mais endividados. A este-rilizao do impacto monetrio das operaes do setor externo contribua tam-bm para uma rpida expanso da dvida mobiliria federal. Entre dezembro de1991 e junho de 1994, a dvida federal em ttulos (exclusive papis na carteira doBanco Central) aumentou de 2,7%para 10,4%do PIB(7).

    Em suma, nada havia que pudesse ser apresentado, com algumaplausibilidade, como uma mudana de regime fiscal, para usar a expresso consa-grada por Sargent (1986:40-47). Para aqueles que julgavam depender essa mu-

    dana fundamentalmente de emendas Constituio, a oportunidade de ouroera o perodo de reviso constitucional, por rito simplificado, previsto nas Dis-posies Transitrias da prpria Constituio (8).

    Entretanto, a reviso constitucional de 1993-94ficaria aqum das expecta-tivas mais modestas. Do ponto de vista do programa de estabilizao, a nicaemenda relevante foi a j mencionada aprovao do chamado Fundo Social deEmergncia para o perodo 1994-95, na verdade um mecanismo de desvinculaode receitas (9).

    No campo monetrio, a situao no era melhor. Preocupado em dissiparo ceticismo resultante das inmeras reformas monetrias fracassadas desde o Pla-

    no Cruzado, a rea econmica do governo insistia em afirmar que a introduode uma nova moeda estaria, desta vez, respaldada em uma mudana do regimemonetrio, vale dizer, das regras que governam a criao de moeda no pas (10).

    Em tese, a prometida mudana de regime monetrio poderia ter tomado aforma da implantao de um sistema de conversibilidade com cmbio fixo, aexemplo do que ocorrera na Argentina em 1991. Essa alternativa tinha seus de-fensores na equipe econmica do governo e parece ter sido seriamente conside-rada (11). Outra possibilidade seria uma reforma do estatuto do Banco Centralque o tornasse mais autnomo. Por motivos que no discutirei aqui, nada dissoseria feito por ocasio da criao da nova moeda. A mudana nas regras de emis-so limitar-se-ia fixao de tetos para a base monetria, que tiveram importn-

    cia apenas transitria, sendo revistos e depois abandonados em questo de pou-cos meses.

    Trunfos externos do Plano Real

    No era, portanto, nos campos fiscal e monetrio que o Plano Real encon-trava os seus pontos de apoio. Os trunfos principais, que seriam intensamenteutilizados a partir de julho de 1994, estavam localizados no setor externo daeconomia.

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    O Brasil era, naquela altura, um dos poucos pases da Amrica Latina quese mostrava capaz de gerar supervits substanciais na balana comercial. Em 1992,o saldo comercial alcanou US$ 15,2bilhes, o equivalente a 43%das exporta-es de mercadorias; no ano seguinte, US$ 13,3bilhes, 35%das exportaes(tabela 1). Nesse perodo, nenhuma outra economia latino-americana estava pro-duzindo supervits to elevados como proporo das exportaes (12).

    No ano calendrio imediatamente anterior reforma monetria e cambial,o saldo da balana comercial, somado s transferncias unilaterais lquidas, foiquase equivalente ao dficit na balana de servios (tabela 1). O dficit em contacorrente de 1993 correspondeu, assim, a apenas 1,5%das exportaes e a 0,1%doPIBem dlares estimado pelo Banco Central (13).

    At 1994 a posio brasileira em termos de balano de pagamentos emtransaes correntes comparava-se muito favoravelmente com a dos demais pa-ses da Amrica Latina. A tabela 2permite confrontar os dficits em conta corren-te registrados pelo Brasil com os dficits de quatro outros pases da AmricaLatina desde 1992. Nos anos que antecederam a crise mexicana, os dficits forammenores em pases que adotaram polticas cambiais mais prudentes, como aColmbia at 1993 e o Chile durante todo o perodo recente. J na Argentina eno Mxico, onde a taxa cambial foi sistematicamente utilizada como instrumentode combate inflao, os dficits correntes alcanaram nveis elevadssimos at1994. A razo dficit em conta corrente/exportaes foi de59%na Argentina ede 83%no Mxico em 1994 (tabela 2).

    O melhor desempenho do balano de pagamentos do Brasil era atribudo,

    em parte, ao maior realismo da poltica cambial brasileira que, em contrastemarcado com a que se praticava no Mxico e na Argentina, procurava estabilizara taxa de cmbio em termos reais. Como tudo mais na economia brasileira, opreo da moeda estrangeira estava submetido ao regime de indexao; o ritmode desvalorizao da taxa nominal bilateral com o dlar era ditado, basicamente,pela elevada taxa de inflao domstica.

    Ao contrrio do que ocorrera na Argentina, onde a fixao do cmbio foiantecedida por um perodo de forte valorizao cambial, no Brasil a taxa decmbio real permanecera relativamente estvel desde a mididesvalorizao defins de 1991 at junho de 1994. Da se conclua que o Brasil poderia absorverapreciao cambial significativa em termos reais sem causar maiores danos po-

    sio externa da economia.Mas o trunfo mais alardeado e que mais impresso causava era, como se

    sabe, o elevado nvel das reservas internacionais do Banco Central, acumuladasdesde fins de 1991. Em junho de 1994, as reservas no conceito de caixa chegavama nada menos que US$ 40,1bilhes, dos quais cerca de 70%haviam sido consti-tudos desde a posse de Fernando Henrique Cardoso como Ministro da Fazenda.

    Em retrospecto, parece evidente que a acumulao de reservas fez partedas medidas preparatrias da reforma monetria e cambial. A preocupao de

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    tomar precaues desse tipo refletia, presumivelmente, a percepo de que oinsucesso de programas anteriores de estabilizao no Brasil, notadamente doPlano Cruzado, se devera em parte a dificuldades de natureza cambial. A refor-ma monetria do Plano Real comearia com reservas, no conceito de caixa, equi-valentes a 18 meses de importao de mercadorias (FOB), considerada a mdiamensal dos 12 meses imediatamente anteriores a julho de 1994 (tabela 3). Pelomesmo critrio, o Plano Cruzado havia comeado com reservas corresponden-tes a seis meses de importao; a reforma monetria de maro de 1990 (o PlanoCollor I), com reservas correspondentes a trs meses de importao (14).

    O Plano Real estava bem suprido de reservas mesmo quando comparadoaos programas mexicano e argentino, ambos conhecidos por terem sido precedi-dos de um perodo de formao de reservas. O Mxico comeara a sua estabili-zao com reservas de 12meses de importao em dezembro de 1987 (15); a

    Argentina dispunha de reservas para 14meses de importao s vsperas da pro-mulgao da lei de conversibilidade (16).

    Por ltimo, em contraste com o quadro que prevalecera durante a maiorparte da dcada de 80 e at o incio dos anos 90, o Brasil dispunha agora deacesso aos mercados financeiros internacionais, graas ampliao da liquidezinternacional e diminuio das taxas de juro para operaes em dlares. Pelaprimeira vez em quinze anos, parecia possvel realizar uma tentativa de estabili-zao monetria em um contexto de abundncia de recursos externos. Como jfoi indicado, a prpria acumulao de reservas no teria sido factvel na dimen-so verificada sem a possibilidade de mobilizar fundos externos. A expectativagovernamental era de que os dficits em conta corrente resultantes do programa

    de estabilizao poderiam ser financiados sem maior dificuldade nos mercadosinternacionais.

    Reservas internacionaise passivos externos de curto prazo

    Em retrospecto, parece claro que havia no Brasil certa tendncia a superes-timar os trunfos externos de que dispunha o Plano Real em meados de 1994.Nem tudo era to slido quanto poderia sugerir um exame superficial das contasexternas brasileiras e do contexto internacional, como logo ficaria evidente peladificuldade com que o Brasil respondeu ao impacto da crise mexicana no incio

    de 1995. A aceitao acrtica de certas teses terminaria por contribuir para deci-ses temerrias em matria de poltica cambial e comercial ao longo do segundosemestre de 1994, como veremos na seqncia.

    Considere-se, em primeiro lugar, as decantadas reservas internacionais noBanco Central. No se dava, em geral, suficiente ateno natureza do estoquede liquidez internacional constitudo essencialmente a partir do incio de 1992.Do aumento de US$ 32bilhes nas reservas, entre dezembro de 1991 e junho de1994, pouco mais de 20%haviam resultado de supervits no balano de paga-mentos em conta corrente. Em outras palavras, tratava-se no fundamental de

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    reservas emprestadase o que era pior formadas sobretudo por ingressos lqui-dos de investimentos de carteira (aplicaes em bolsas de valores, debntures eoutros ativos financeiros) e de emprstimos de curto e mdio prazos (linhascomerciais, notas, bnus etc.)

    Nesse perodo, a maior parte dos investimentos estrangeiros recebidos peloBrasil eram aplicaes de carteira, que podem, como se sabe, sair do pas deforma instantnea. Em 1992-94, 80%do influxo lquido de recursos sob a formade investimentos estrangeiros corresponderam a aplicaes de portflio (tabela 4).

    Pelos recursos externos captados sob a forma de bnus, notas e certifica-dos de depsitos, com prazos de quatro a seis anos, pagava-se em mdia taxasanuais de juro 5 a 7%acima das taxas pagas por papis do Tesouro americano deprazo similar (17), muito superiores s taxas de juro que se pode obter com aaplicao das reservas internacionais. A acumulao de reservas financiada poremprstimos relativamente caros resultava, portanto, em nus expressivo para aconta de servios do balano de pagamentos em perodos subseqentes. Aindamais pesado era o impacto sobre as finanas pblicas, uma vez que a remunera-o das reservas correspondia a frao ainda menor do custo da dvida mobiliriafederal colocada para esterilizar o impacto monetrio das operaes cambiais.

    A relativa fragilidade das reservas fica evidente quando se leva em conta osdados referentes aos passivos externos de curto prazo do pas. Entre dezembrode 1991 e junho de 1994, a dvida externa de curto prazo (exclusive atrasados)dobrou, passando de US$ 14,6bilhes para US$ 30bilhes, segundo dados doBanco Central (tabela 5). Em junho de 1994, a dvida externa lquida de curto

    prazo definida como a diferena entre a dvida (exclusive atrasados) e os have-res externos de bancos comerciais brasileiros alcanava US$ 19,9 bilhes, oequivalente a quase metade das reservas no Banco Central (tabelas 3e 5).

    Nessa poca, segundo dados da Comisso de Valores Mobilirios CVM, acarteira de ativos de investidores institucionais estrangeiros (Anexo IVda Reso-luo 1.289/87) correspondia a US$ 13,6bilhes, aplicados em aes (67%dototal), debntures, derivativos, moedas de privatizao e outros ativos financei-ros (tabela 6). Como esses dados no cobrem a totalidade dos investimentos deportflio, outra forma de tentar mensurar o estoque de passivos desse tipo somar os fluxos lquidos registrados sob essa rubrica na conta de capitais dobalano de pagamentos. Se tomarmos 1988 como ponto de partida, ano em que

    o governo comeou a remover as restries aos investimentos externos de cartei-ra, o ingresso lquido acumulado em junho de 1994 alcanava US$ 14,9bilhes(18), correspondendo a mais de um tero das reservas ento existentes.

    verdade que o mercado de capitais brasileiro no comportaria sadasmacias de recursos sem perda do valor dos investimentos. Por outro lado, orisco de perda tenderia justamente a acelerar a sada de recursos em momentosde desconfiana ou incerteza.

    Em suma, a maior parte das reservas internacionais tinha origem na acu-

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    mulao de obrigaes financeiras de curto prazo ou aplicaes volatis. A tabela5compara o passivo externo de curto prazo com as reservas internacionais noBanco Central. Em fins de junho de 1994, na vspera do lanamento do real, asoma da dvida de curto prazo (lquida de haveres externos de bancos comer-ciais) com a carteira de ativos de investidores institucionais estrangeiros (AnexoIV) chegava a US$ 33,5bilhes, o equivalente a 83,4% das reservas brutas noBanco Central.

    No que diz respeito ao endividamento de curto prazo, a posio brasileiraera, naquela altura, comparvel do Mxico ou da Argentina. o que sedepreende de alguns indicadores publicados pelo American Express Bank. Nofinal de junho de 1994, a dvida de curto prazo com o sistema bancrio interna-cional (definida de forma a incluir no s dvidas de prazo original inferior a umano, como tambm os vencimentos de principal, at junho de 1995, das dvidas

    de mdio e longo prazos) representava 55,3%do total da dvida bancria no casodo Brasil. Os percentuais correspondentes para a Argentina e o Mxico eram56,6%e 59,8%, respectivamente, com incluso dos tesobonos no dado mexicano(19). Naquela data, a dvida de curto prazo representava 91,3%das importaesno caso do Brasil, contra 79%no da Argentina e 54,4% no do Mxico (tabela 7).

    Evidentemente, no se deve inferir desses indicadores isolados que a posi-o global do Brasil era pior ou mesmo equivalente dos outros dois pases.Outros indicadores importantes, como por exemplo o nvel de reservas, revela-vam um quadro bem mais favorvel ao Brasil na comparao com Argentina eMxico. Relativamente s importaes, as reservas brasileiras eram naquele mo-mento quase o dobro das argentinas e quase sete vezes as mexicanas (tabela 7).

    Alm disso, a posio brasileira em conta corrente era, como vimos, muito maisforte do que a do Mxico ou a da Argentina, pases engajados h vrios anos emprocessos de estabilizao ancorados no cmbio.

    De qualquer maneira, a dimenso das obrigaes de curto prazo ou vol-teis indicava que a garantia proporcionada pelo elevado nvel das reservas brutasdo Banco Central no era to slida quanto geralmente se admitia. A relativafragilidade das reservas brasileiras ficaria evidente depois de dezembro de 1994,quando a onda de desconfiana produzida pelo colapso do peso mexicano pro-vocaria abrupta diminuio das reservas e fortes abalos na conduo do PlanoReal.

    Valorizao cambial anterior ao Plano Real

    Outra meia-verdade dizia respeito posio da taxa de cmbio no incioda reforma monetria. Como j mencionado, admitia-se, sem maior qualifica-o, que a poltica cambial seguida pelo Brasil at junho de 1994, de indexaodo preo do dlar, criava uma margem de manobra adequada utilizao deuma ncora cambial. Destacados integrantes da equipe econmica chegaram aafirmar, mais de uma vez, que a moeda brasileira estava subvalorizada na pocada introduo do real (20).

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    O exame da trajetria da taxa de cmbio real nos anos anteriores reformamonetria no parece dar suporte a essas afirmaes. Ao contrrio, o que vinhaocorrendo antes da criao da nova moeda era uma gradual, porm significativa,valorizao da moeda nacional em termos reais.

    Estatsticas publicadas pela CEPALpermitem comparar a evoluo da taxade cmbio brasileira com a de outros pases latino-americanos. A tabela 8registraa evoluo do cmbio em termos efetivos (isto , calculada com base em umacesta de moedas) para cinco pases. Convm destacar a posio registrada em1993, ano calendrio imediatamente anterior reforma monetria brasileira e crise do Mxico. Tomando-se 1987 como ano-base, o ndice da taxa de cmbioreal efetiva, elaborado com ndices de preos ao consumidor, era de 59 para oMxico e de 60 para a Argentina em 1993; no caso da Colmbia e do Chile,pases que adotaram polticas cambiais mais prudentes nesse perodo, o mesmo

    ndice situava-seem 102 e 100, respectivamente, em 1993 (tabela 8). Em outraspalavras, Chile e Colmbia mantiveram taxas de cmbio estveis em termos reais,enquanto Mxico e Argentina acumularam valorizao real do cmbio da ordemde 40%nos seis anos que antecederam o colapso do programa mexicano.

    Apesar da sua tradio de indexao cambial, o Brasil estava mais prximodo Mxico e da Argentina do que da Colmbia e do Chile no que tange evo-luo do cmbio efetivo real desde fins dos anos 80. Para o Brasil, o ndice era de75 em 1993. Essa valorizao acumulada de 25%refletia sobretudo o que aconte-cera no perodo 1988-1990(tabela 8).

    Alegou-se que ganhos de produtividade na indstria e em outros setores

    da economia teriam compensado, pelo menos em parte, os efeitos da valorizaocambial sobre a competitividade internacional da economia. Os elevados supervitsna balana comercial tambm eram apontados como argumento a favor da tesede que inexistia defasagem cambial at meados de 1994.

    possvel que o primeiro argumento tivesse alguma base, embora nuncatenha sido convincentemente demonstrado que os ganhos de produtividade daeconomia brasileira, relativamente aos dos seus concorrentes internacionais, fos-sem suficientes para neutralizar os efeitos da valorizao cambial sobre acompetitividade das exportaes e dos setores que concorrem com importaes. de se notar que, desde meados dos anos 80, as exportaes brasileiras vinhamperdendo participao nas exportaes mundiais e nas exportaes dos pases

    em desenvolvimento. Entre 1980-85e 1990-93, a participao do Brasil nas ex-portaes mundiais sofreu queda significativa, caindo de 1,28%para 0,94%. Nomesmo perodo, a participao das exportaes brasileiras no total exportadopor pases em desenvolvimento no-exportadores de petrleo diminuiu de for-ma ainda mais pronunciada, passando de 5,98%em 1980-85para 4,08%em 1990-93(tabela 9).

    Quanto ao segundo argumento, cabe observar que os saldos comerciais jvinham sofrendo sensvel diminuio mesmo antes de julho de 1994. Compara-

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    do s exportaes, o supervit da balana comercial cara de 52%em 1988-89para 39%em 1992-93. Como proporo do PIBem dlares, o saldo comercialdiminura de 5,1%para 3,5%no mesmo perodo (tabela 10).

    Era preciso levar em conta tambm que os saldos comerciais ainda eleva-dos refletiam, em grande medida, o deprimido nvel de atividade econmica nofinal dos anos 80 e incio dos anos 90, poca de recesso ou crescimento medo-cre para a economia brasileira. O supervit estrutural, isto , ajustado para ex-cluir efeitos cclicos, era muito menor do que o observado entre 1988 e 1993. Avolta a nvel mais normal de utilizao da capacidade produtiva geraria fatalmen-te uma queda expressiva do saldo comercial, sobretudo se combinada com aancoragem cambial e a acelerao do processo de liberalizao comercial.

    A prpria experincia do Brasil nos anos 80 apontava nessa direo. A ace-lerao do crescimento econmico em 1980, por exemplo, conjugada com aprefixao da desvalorizao cambial nominal a partir de janeiro daquele ano,contribura para uma significativa deteriorao da conta corrente. Em 1986, du-rante o Plano Cruzado, a combinao de expanso da demanda com cmbiocongelado desembocara em ampliao ainda mais acentuada da brecha em contacorrente (tabela 10).

    A experincia recente do Mxico e da Argentina tambm indicava a velo-cidade com que pode ser revertida uma situao aparentemente folgada no ba-lano de pagamentos em conta corrente. Os dois pases haviam iniciado os seusprogramas de estabilizao com supervits no apenas na balana comercial, masmesmo em transaes correntes. No ano calendrio imediatamente anterior ao

    comeo do programa, em 1987, o Mxico registrara um supervit comercial deUS$ 8,4bilhes e um supervit em conta corrente de US$ 4bilhes. No caso daArgentina, o supervit alcanara US$ 8,6bilhes na balana comercial eUS$ 1,9bilho em conta corrente em 1990 (21).

    Logo no primeiro ano apareceram dficits significativos, resultado da aocombinada da apreciao real do cmbio, da remoo de barreiras importaoe (no caso da Argentina) da rpida recuperao da demanda agregada interna.Em 1988 a balana comercial mexicana acusou supervit bem menor, de US$ 1,7bilho, com as importaes crescendo de forma acentuada,55%se comparadascom o valor registrado no ano anterior. Em conseqncia dessa drstica diminui-o do saldo comercial, a conta corrente passou a acusar dficit de US$ 2,4bi-

    lhes. Na Argentina, o quadro foi semelhante em 1991: deteriorao marcada dabalana comercial, cujo saldo caiu para US$ 4,4bilhes, em funo do explosivocrescimento das importaes, 103%com relao ao ano anterior, e deterioraoainda maior do balano de pagamentos em transaes correntes, que passou aum dficit de US$ 2,8bilhes (22).

    Do Plano Real, modelado em grande medida nas experincias suposta-mente exitosas desses pases, no se poderia esperar algo muito diferente. Comoveremos, o Brasil engajar-se-ia tardiamente, mas em compensao com muito

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    afinco, na estratgia de combate inflao com desequilbrio externo, encetadaanteriormente por Mxico e Argentina. No incio de 1994, entretanto, o FederalReserve dos EUA comeara a elevar as taxas de juro de curto prazo, fato quecontribuiria de modo decisivo para estreitar a oferta de fundos para alguns paseslatino-americanos, notadamente o Mxico.

    O colapso do programa mexicano em dezembro de 1994 e suas repercus-ses devastadoras sobre a oferta de crdito externo para vrios pases no incio de1995 revelariam o quanto eram infundadas as expectativas, alimentadas pela equipeeconmica do governo brasileiro, de que o Brasil poderia conviver tranqila-mente com dficits comerciais e forte dependncia de capitais internacionais.

    Mas antes de entrar na discusso dos efeitos da crise mexicana sobre oPlano Real, convm examinar, em linhas gerais, a forma como o Brasil realizou asua reforma monetria e cambial a partir de julho de 1994.

    ncora monetria e valorizao cambial

    Em contraste com o que ocorrera nos casos do Mxico em 1988 e daArgentina a partir de abril de 1991, a reforma brasileira de julho de 1994 foiseguida de uma valorizao acentuada e inesperada da taxa de cmbio nominal.Entre fins de junho e fins de setembro, a taxa real/dlar sofreu reduo de 15%(23), contrariando a expectativa mais comum de que o governo fixaria a taxanominal de cmbio a partir de julho.

    Esse comportamento inicial da taxa de cmbio foi objeto de intensa con-

    trovrsia no Brasil e considerado por muitos observadores como um dos equ-vocos fundamentais do Plano Real. Na poca, a equipe econmica do governolimitava-se a sustentar, algo falaciosamente, que a queda do dlar era resultadodas foras de mercado, posto que o Banco Central se retirara do mercado decmbio. Para tentar entender o que aconteceu de julho de 1994 em diante necessrio, contudo, situar o movimento do cmbio no contexto econmico epoltico mais amplo.

    O governo sabia, naturalmente, que a estabilizao monetria, realizadaem condies de inflao crnica e muito alta, tenderia a produzir de modoautomtico expanso da demanda, especialmente de consumo, pelo menos nafase inicial do programa. Essa expectativa amparava-se em diversos fatores, entre

    os quais se destacavam a queda drstica do chamado imposto inflacionrio (econseqente transferncia de recursos para setores de baixa renda, com alta pro-penso marginal a consumir) e o reaparecimento do crdito a prazos mais longosem funo do surgimento de um padro monetrio mais estvel.

    No caso brasileiro, segundo a anlise dos economistas do governo, haviaainda uma circunstncia peculiar: ao contrrio do que costuma ocorrer em pro-cessos de estabilizao em condies de hiperinflao ou inflao muito alta, oefeito Olivera-Tanzi seria sobrepujado pelo aumento dos gastos pblicos reais

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    associado queda da inflao (Bacha, 1994). A hiptese que ficou conhecidacomo efeito Bacha era de que sendo os gastos pblicos, em mdia, menosindexados do que as receitas pblicas, o dficit fiscal real aumentaria com a esta-

    bilizao, reforando o efeito expansivo da ampliao do consumo e de outroscomponentes do gasto privado.

    Dentro de certos limites, a expanso da demanda era evidentemente muitobem-vinda, dado que ocorreria, no por acaso, em uma fase decisiva do processoeleitoral em curso. Por outro lado, a experincia latino-americana e do prprioBrasil, notadamente com o Plano Cruzado, mostrava que a expanso produzidaendogenamente pela estabilizao se convertera em uma das causas fundamen-tais do naufrgio de diversas tentativas de combate inflao.

    Tornava-se necessrio, portanto, adotar providncias para cont-la. Umadas alternativas seria o ajuste fiscal. Se acionada a tempo, a poltica fiscal poderia

    desempenhar um papel compensatrio, contra-arrestando a expanso endgenado gasto privado. Como a poltica fiscal notoriamente pouco flexvel no curtoprazo e est sujeita a um processo decisrio lento, as medidas teriam de sertomadas com alguma antecedncia para que pudessem ter o efeito compensat-rio pretendido. Essa seria uma maneira de justificar a seqncia de fases estabelecidapara o Plano Real em fins de 1993.

    O programa de estabilizao desdobrava-se em trs fases: a fase I, anunciadaem fins de 1993, consistia de um ajuste fiscal de carter preparatrio; a fase IIviria a ser implementada a partir de maro de 1994 com a introduo da URV; ea fase IIIseria iniciada em julho com a criao do real. A fase Ideveria, em tese,lanar as bases ou os fundamentos fiscais da desindexao e da reforma monetria.

    A seqncia escolhida pelo governo brasileiro refletia tambm a preocupa-o de influir sobre as expectativas dos agentes econmicos. Mesmo que nohouvesse grande preocupao com a necessidade de neutralizar em parte o im-pacto da fase IIIsobre a demanda, ou no se acreditasse que ele seria significativoo suficiente para recomendar uma compensao pelo lado fiscal, a seqnciaanunciada refletia a preocupao em conquistar reputao ou credibilidade. Essasegunda interpretao encontra mais amparo no discurso e nos documentos ofi-ciais da poca (24).

    A preocupao em conquistar credibilidade fiscal, sempre presente nas ten-

    tativas de combate inflao, era vista como especialmente importante no casobrasileiro, uma vez que se consolidara, entre os agentes econmicos, os forma-dores de opinio, na grande imprensa e nos meios de comunicao em geral, aconvico de que os programas anteriores de desindexao e reforma monetriahaviam fracassado fundamentalmente por falta de ajuste duradouro das contaspblicas.

    Por esse ngulo, o ajuste fiscal prvio ou a mudana prvia de regime fiscaldesempenharia o papel de contribuir para a reverso das expectativas inflacion-rias,ao sinalizar que o governo no mais se financiaria por meios inflacionrios.

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    Em outras palavras, o governo procurava persuadir os agentes econmicos deque, desta vez, no deixaria para depois a parte politicamente mais difcil doprocesso de estabilizao. Repetia-se ad nauseamque a desindexaco e a troca demoedano seriam realizadas sem garantir antecipadamente uma posio fiscal slida.

    Como acontece tantas vezes, na passagem da teoria prtica perdeu-segrande parte da primeira. Vimos que a poltica fiscal de 1993-94, a despeito deavanos localizados, no continha elementos que permitissem consider-la umamudana de carter fundamental na situao das finanas do governo.

    Ademais, abandonada a opo por uma regresso a um modelo monetriosemelhante ao antigo padro-ouro ou ao currency boarddas colnias inglesas,caminho seguido pela Argentina na sua famosa lei de conversibilidade, o gover-no brasileiro encontrava dificuldades para caracterizar a reforma monetria comouma mudana de regime monetrio. s vsperas da reforma de julho, havia mo-tivos para temer que a nova moeda fosse recebida como mais uma jogada deflego curto e imediatismo eleitoral.

    Descartada a dolarizao moda argentina, como compensar no campomonetrio a fragilidade dos fundamentos fiscais? Admitindo-se que se atribussepapel decisivo s expectativas de inflao, formadas racionalmente luz do car-ter percebido do regime de poltica econmica, ainda haveria a possibilidade deatuar sobre as expectativas por meio da imposio de algum tipo de camisa-de-fora razoavelmente crvel no campo monetrio?

    A soluo encontrada foi curiosa e inesperada: uma regresso monetria,porm no ao padro-ouro ou ao modelo monetrio das antigas colnias ingle-sas. O que se tentou durante alguns meses foi seguir um modelo monetarista ouquase-monetarista, no qual a garantia da confiabilidade do novo padro monet-rio residiria na fixao de tetos trimestrais de expanso monetria, includos namedida provisria que criou o real (25). Estabeleceu-se assim que a emisso dereais no poderia ultrapassar R$ 7,5bilhes at 30 de setembro de 1994, R$ 8,5bilhes at 31 de dezembro de 1994 e R$ 9,5bilhes at maro de 1995 (26).

    Ora, esse tipo de regime monetrio j havia sido testado e rejeitado namaioria dos pases desenvolvidos. Desde os anos 70, e particularmente no inciodos 80, a experincia desses pases vinha comprovando a ineficcia da ancoragemmonetria laMilton Friedman e, em particular, o carter ilusrio da suposio

    monetarista de que a demanda real por moeda poderia ser considerada umafuno estvel de algumas variveis facilmente identifcveis (27). Se isso era ver-dadeiro em pases de economias e moedas relativamente estveis, como aplicarmetas monetrias a uma economia como a brasileira, em processo de transiode uma inflao altssima para taxas de 2 ou 3%ao ms?

    Naturalmente, a sbita converso ancoragem monetria era, em certamedida, parte da fachada ou do marketing do programa de estabilizao. A in-sistncia na importncia dos fundamentos fiscais e monetrios deveria ser vista,

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    pelo menos em parte, como uma homenagem retrica sabedoria convencional.Afinal, como desconhecer quela altura as evidncias, recolhidas da histria re-cente e remota, de que nas grandes estabilizaes os fundamentos so construdos,paradoxalmente, ao longo do processo, funcionando mais para consolidar doque para dar incio queda da inflao? Hans Luther, o ministro das Finanasque conduziu o programa de estabilizao alemo iniciado em 1923 expressouesse ponto numa passagem famosa. No caso alemo, escreveu, fora necessriocomear a construir a casa pelo teto (Luther, 1928:177-178).

    No Brasil de 1994, ainda que a metfora de Luther talvez no seja inteira-mente apropriada como descrio do que aconteceu, a ningum ocorreria atri-buir o colapso da inflao a partir de julho a uma sbita reverso das expectativasprovocada pelo compromisso legal com metas monetrias anunciadas comoinamovveis, tanto mais que o instituto da medida provisria, especialmente no

    caso de sucessivas reedies mensais, transformava qualquer garantia desse tipoem uma camisa-de-fora com zper na frente, para usar uma expresso cunhadapor Mario Henrique Simonsen em outro contexto.

    Na verdade, a queda da inflao foi produto da combinao de amplaoperao de desindexao, do congelamento dos preos e tarifas pblicas e douso sistemtico de munio acumulada no setor externo. A transformao daURVem moeda plena removeu, de forma engenhosa, grande parte do compo-nente inercial da taxa de inflao. Ao mesmo tempo, como veremos mais fren-te, a poltica cambial e a poltica de comrcio exterior foram colocadas serviodos propsitos de curto prazo da estabilizao monetria. A ncora monetria eas constantes profisses de adeso ao fundamentalismo fiscal-monetrio entra-

    vam a um pouco como Pilatos no Credo(28).Isso no significa que a ncora monetria tenha tido funo meramente

    decorativa ou psicolgica. Compromissos com determinadas metas, ainda queassumidos sem convico plena, terminam por inibir de alguma maneira a con-duo da poltica econmica.

    No Brasil, o debate econmico e mesmo a poltica econmica sofriam (eainda sofrem) do artificialismo do debate macroeconmico internacional, espe-cialmente desde os anos 70, e da influncia de discusses de grande prestgiointelectual, porm algo esotricas, sobre temas como regimes e estratgias depoltica econmica, formao de expectativas, credibilidade etc. Nem sempre

    fcil, por exemplo, estabelecer ex antese determinada tentativa de estabilizaocomanda credibilidade ou constitui mudana de regime. Isso no impede, entre-tanto, que os insucessos sejam sumariamente atribudos, ex post factum, insufi-cincia dos fundamentos e falta de credibilidadedo programa. Conceitos cen-trais teoria macroeconmica e sua aplicao prtica revestem-se, muitas ve-zes, de carter escorregadio e indeterminado. Grande parte das proposies aceitascomo verdadeiras no passaria facilmente pelo crivo do critrio de Popper, se-gundo o qual uma hiptese s tem carter cientfico quando formulada de talmaneira a que possa ser objeto de refutao ou falsificao (29).

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    Alm disso, como costuma acontecer, o desgaste experimentado nos pa-ses desenvolvidos ao longo dos anos 80pelo monetarismo friedmaniano e seussucessores da escola de expectativas racionais no fora devidamente registradopelo debate econmico brasileiro, que continuava fortemente marcado pela re-petio irrefletida das modas e dogmas dos anos 70 e 80.

    Esse caldo de culturaintelectual teria alguma influncia sobre a conduoprtica da poltica econmica a partir de julho.

    Como vimos, uma preocupao prtica fundamental era com o j referidoimpacto expansivo da estabilizao e o risco de que o crescimento da demanda,especialmente de bens de consumo, pudesse fugir ao controle da Fazenda e doBanco Central. Tal impacto, como hoje sabemos, seria mais intenso do que ge-ralmente se imaginava. Dado que nada de fundamental havia sido feito pelo ladofiscal, a alternativa de que dispunha o governo era recorrer elevao das taxasde juro reais.

    Na presena de mobilidade internacional de capitais, o resultado foi umaumento do j elevado supervit na conta de capitais e excesso de oferta dedivisas no mercado de cmbio. Se o Banco Central absorvesse a oferta exceden-te, acumulando reservas cambiais adicionais, poderia colocar em risco a consecu-o das metas monetrias, suposto sustentculo da reforma monetria. Consis-tentemente com a opo pela ncora monetria, o Banco Central retirou-se domercado de cmbio, permitindo que o excesso de oferta de divisas ocasionadopela sua poltica de juros se refletisse em queda do cmbio nominal. A adeso doBrasil a um regime de flutuao cambial duraria at o final de setembro (30).

    A recomposio da demanda real por moeda acabaria sendo mais rpidado que previra o governo na poca da introduo do real. Os tetos de expansoda base monetria passaram ento por sucessivas revises e redefinies. Na pr-tica, acabaram sendo relegados a segundo plano, alguns meses mais tarde, semque isso tivesse impacto adverso perceptvel sobre o andamento do programa deestabilizao.

    O quadro poltico-eleitoral em 1994

    A idia de que a problemtica valorizao cambial possa ser vista comomero subproduto da ncora monetria no parece, entretanto, inteiramente con-

    vincente. No teria sido possvel evitar a valorizao cambial com a imposio derestries entrada de capitais de curto prazo? (31) Se a inteno inicial dogoverno era garantir o cumprimento formal das metas de expanso da base mo-netria, o Banco Central no poderia ter continuado a neutralizar com a coloca-o de ttulos pblicos o impacto monetrio das suas intervenes no mercadocambial? claro que essas alternativas tm as suas limitaes e custos em termoseconmicos, mas teriam certamente sido capazes de evitar a queda da taxa decmbio.

    No se deve perder de vista que a valorizao nominal do cmbio era bastante

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    conveniente do ponto de vista eleitoral. Como se sabe, a criao do real obede-cera a um timing essencialmente poltico, tendo sido realizada a trs meses doprimeiro turno das eleies presidenciais. Recorde-se que Luiz Incio Lula daSilva, do Partido dos Trabalhadores, liderava as pesquisas de inteno de votopor larga margem at junho. Fernando Henrique Cardoso, ex-ministro da Fa-zenda, apoiado pelo governo e identificado como artfice do programa de esta-bilizao, tinha na nova moeda a sua principal arma.

    Em retrospecto, pode-se at sustentar que a valorizao nominal do cm-bio no era indispensvel do ponto de vista eleitoral. Teria sido provavelmentepossvel produzir uma queda abrupta da taxa de inflao e um aumento do con-sumo, a partir de julho, sem recorrer a esse artifcio. A desindexao coordenadade forma inteligente pela URV, combinada com certa estabilizao nominal docmbio e o congelamento temporrio de preos e tarifas pblicas, no teria sido

    suficiente para garantir certa estabilidade inicial da nova moeda?Contudo, a impresso retrospectiva pode ser enganosa. No poderia haver

    dvidas quanto ao fato de que a estabilizao monetria, especialmente se asso-ciada a uma reativao da economia, teria impacto sobre as intenes de voto. Aprpria experincia poltica recente da Argentina, do Mxico e da Bolvia mos-trava de forma clara o valor social e poltico da estabilizao em sociedades sub-metidas a fortes processos inflacionrios.

    Mesmo assim, por volta de maio/junho de 1994, no havia como avaliarcom preciso a reao do eleitorado, ainda que bombardeado por macia propa-ganda, ao lanamento da nova moeda. Com que grau de confiana seria recebida

    a nova moeda por um eleitorado j calejado por tantas reformas monetrias fra-cassadas desde 1986?

    Nesse contexto de incerteza, e dada a preocupao de derrotar o candida-to da esquerda, rejeitado pelo establishment poltico e econmico, no era me-lhor pecar por excesso?

    A valorizao nominal teria dupla funo naquela conjuntura pr-eleito-ral: contribuir para acelerar a queda da inflao na reta final para o primeiroturno; e, em especial, fornecer uma espcie de bordo ao candidato do governo,que passaria a repetir insistentemente que o real valia mais do que o dlar.

    Seja qual for a interpretao mais adequada para a inesperada deciso depermitir uma valorizao cambial de julho em diante, o fato que a etapa inicialdo Plano Real, at a ecloso da crise mexicana em dezembro de 1994, consistiuna utilizao intensa dos trunfos de que dispunha o governo na rea externa.Depois da valorizao de 15%em termos nominais, a partir de outubro a taxa decmbio permaneceu estabilizada dentro de uma banda estreita, de carter infor-mal, entre 83 e 86 centavos de real por dlar. Como a taxa de inflao residualem reais era muito maior do que a taxa de inflao nos EUA, o resultado foi umafenomenal valorizao real da taxa bilateral com dlar, de 30%em apenas seismeses, quando se consideram ndices de preos ao consumidor (tabela 11). Uma

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    cesta de moedas, com ponderaes baseadas na participao dos dez principaisparceiros comerciais nas pautas de exportao e importao do Brasil, tambmindica uma valorizao real de 30% nesse perodo (32). Veremos que essamaxivalorizao cambial est na raiz de grande parte das dificuldadesmacroeconmicas enfrentadas pelo Brasil nos dois anos seguintes.

    O conceito de taxa de cmbio realem perspectiva histrica

    Antes de passar discusso dos efeitos da poltica cambial do Plano Real,convm abrir um parntese para uma breve digresso de carter conceitual ehistrico. Mesmo um conceito aparentemente simples como o de taxa de cm-bio real d margem a debates infindveis, particularmente em perodos nos quaiso cmbio utilizado como ncora nominal.

    O Plano Real no foge a essa regra. Tem havido grande controvrsia arespeito da extenso da valorizao acumulada desde meados de 1994. Indicado-res como os que foram utilizados acima, calculados com base em ndices depreos ao consumidor, so contestados por diversos analistas (33). Argumenta-se que as estimativas do efeito da poltica cambial sobre a competitividade inter-nacional da economia no devem ser distorcidas pelo uso de deflatores como osndices ao consumidor, muito influenciados por preos que no tm relao com oscustos de produo, tais como aluguis, servios pessoais e mensalidades escolares.

    Sugere-se que os ndices agregados relevantes seriam os de preos no ata-cado, que supostamente refletiriam melhor a evoluo dos custos de produo(34). Por esse critrio, a valorizao cambial acumulada desde 1994 bem infe-rior que resulta de clculos baseados em ndices de preos ao consumidor,como se v na tabela 11. A razo que a inflao no atacado tm ficado signifi-cativamente abaixo da inflao dos preos ao consumidor (35).

    Embora aparentemente plausvel, e at intuitivo, o argumento no se sus-tenta. O problema est no fato de que os ndices de preos no atacado so forte-mente influenciados pelos preos de produtos comerciveis internacionalmente,os chamados tradeables. Ora, programas de estabilizao como o Plano Real, oPlano Cavallo ou o programa mexicano de 1988-94envolvem, justamente, o usoda estabilizao do cmbio nominal e da liberalizao comercial para estancar o

    crescimento dos preos dos tradeables.Nesse contexto, utilizar ndices de preos no atacado para calcular a taxa

    de cmbio real constitui uma espcie de petio de princpio. A ncora cambial aplicada para estabilizar os preos em reais dos tradeables e, depois, ndices com-postos em grande medida por esse tipo de produto so aplicados para argumen-tar que a valorizao cambial no significativa... difcil encontrar melhorexemplo de sofisma baseado em argumento circular.

    Na verdade, essa discusso bastante antiga. Formados em geral dentro

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    do paradigma acadmico norte-americano, os economistas desenvolveram agu-da cliofobia, uma averso histria em geral, e at histria da sua disciplina.Assim, os mesmos debates se reproduzem diversas vezes, sem que os participan-tes se dem conta de que esto regurgitando antigos argumentos e dilemas.

    A questo da escolha do tipo de ndice de preos relevante para deflacionara taxa de cmbio nominal foi objeto de intensa divergncia entre Keynes e osdefensores da volta da Inglaterra ao padro-ouro na dcada de 20. Keynes che-gou a afirmar que o governo britnico no teria tomado a deciso de voltar aopadro-ouro em 1925, restabelecendo a paridade de pr-guerra entre a libra es-terlina e o ouro, se no tivesse se firmado o hbito de considerar ndices noatacado como indicadores satisfatrios do poder de compra geralda moeda (36).Naquela poca, observou ele, o Tesouro britnico e o Banco da Inglaterra foramlevados falsa concluso de que, como o ndice de preos no atacado, que era

    quase um ndice de tradeables, estava se ajustando rapidamente valorizaonominal da libra, o mesmo seria verdadeiro dos preos em geral (37).

    Em conseqncia, a Inglaterra acabou prisioneira de um cmbiosobrevalorizado e submetida s tenses econmicas, sociais e polticas decorren-tes da tentativa, afinal frustada, de forar a compresso dos salrios e demaiscustos nominais. O Ministro da Fazenda responsvel pela deciso de 1925, nin-gum menos que Winston Churchill, diria mais tarde que esse foi o maior errode sua vida (Buchanan et al., 1991:109).

    No por acaso que a Argentina, tendo se amarrado em 1991 a um regimemonetrio extraordinariamente rgido, muito semelhante ao padro-ouro, sofra

    atualmente vicissitudes anlogas s que a Inglaterra sofreu entre 1925 e o aban-dono do padro-ouro em 1931 (38). J o Brasil, que no foi to longe quanto aArgentina em matria de compromissos no campo cambial e monetrio, noprecisaria afundar nos mesmos dilemas. Nem tem porque alimentar as mesmasconfuses conceituais que contriburam para que a Inglaterra convivesse conti-nuamente com taxas elevadas de desemprego vrios anos antes da Grande De-presso dos anos 30. No obstante, veremos mais frente que o Brasil corre orisco de chegar, por outra via, a uma situao macroeconmica semelhante daArgentina

    Do ponto de vista macroeconmico, os ndices de preos ao consumidorso, entre os ndices gerais normalmente disponveis, aqueles que devem ser

    usados para deflacionar a taxa de cmbio, ainda que incluam, com peso expressi-vo, preos de bens e servios no-diretamente relacionados formao dos cus-tos de produo dos setores exportadores ou sujeitos concorrncia com impor-taes. A razo evidente:o comportamento desses preos afeta indiretamente acompetitividade internacional, na medida em que influencia o custo de vida e,portanto, os salrios nominais, mesmo que estes no estejam formalmente indexados.

    Outro indicador agregado que tambm permite avaliar os efeitos da pol-tica cambial sobre a competividade , justamente, a relao cmbio-salrio. A

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    tabela 12 apresenta a relao entre taxa nominal de cmbio com o dlar e ossalrios nominais na indstria brasileira, com base em dados coletados pela Con-federao Nacional da Indstria. Comparando as tabelas 11 e 12 , pode-se obser-var que a queda na relao cmbio-salrio industrial desde junho de 1994 apro-ximadamente equivalente queda do ndice da taxa real de cmbio, calculadocom base em ndices de preos ao consumidor.

    Desequilbrios externos do Plano Real

    A maxivalorizao cambial do segundo semestre de 1994veio acompanha-da de acelerao da poltica de abertura do mercado interno s importaes. Ainteno do governo brasileiro era evidente: submeter os formadores de preos auma presso sem precedentes em termos de competio externa, inundando omercado interno com produtos importados. O balano de pagamentos em con-

    ta corrente, antes protegido pela combinao de cmbio indexado e barreiras importao, passou a ser deliberadamente sacrificado em nome do combate inflao. Recorreu-se at mesmo tributao das exportaes de produtos compreos em alta no mercado internacional.

    O carter deliberado dessa poltica era confirmado pelas manifestaes daequipe econmica do governo. Repetia-se insistentemente que o pas deveriaestar preparado para conviver com dficits comerciais por um longo perodo.

    Dada a estrutura do balano de pagamentos do Brasil em conta corrente,que se caracteriza por dficits elevados na balana de servios, a disposio deacumular dficits comerciais s podia estar baseada em grande confiana na esta-

    bilidade dos mercados financeiros internacionais, em especial, na capacidade bra-sileira de continuar refinanciando os seus passivos externos de curto prazo eatraindo um volume expressivo de capitais externos.

    Tratava-se de aposta temerria, para dizer o mnimo. Como justificar talconfiana num pas que mal curara as feridas do ciclo anterior de endividamentoexterno? Sem ter digerido as seqelas da longa crise da dvida externa nos anos80, que interrompera de forma traumtica o seu desenvolvimento por mais deuma dcada, o Brasil estava sendo lanado em nova fase de acumulao dedesequilbrios externos e obrigaes com o exterior.

    O Plano Real acabaria gerando, em prazo extraordinariamente curto, um

    desequilbrio no balano de pagamentos em conta corrente comparvel aos queo Brasil experimentara nos anos imediatamente anteriores crise da dvida dosanos 80. O mais grave que esse desequilbrio coincidiria com a turbulnciadesencadeada pelo colapso do programa econmico mexicano, combinao essaque constituiria grave ameaa sobrevivncia do Plano Real nos primeiros mesesde 1995.

    Na verdade, os sinais da tempestade eram perceptveis desde o incio de1994. A j mencionada alta das taxas de juro nos EUA, embora gradativa, tivera

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    repercusses quase imediatas sobre a posio externa do Mxico, que vinha acu-mulando gigantescos dficits externos h vrios anos e cuja economia se tornararefm dos fluxos especulativos que permitiam financi-los. A retrao da ofertade fundos externos e a presso sobre o peso mexicano foram acentuadas peladeteriorao do quadro poltico interno, resultante de eventos como a revolta arma-da em Chiapas e o assassinato do candidato oficial Presidncia da Repblica (39).

    Nesse contexto, no fcil justificar a ligeireza com que o governo brasi-leiro apostava na estabilidade do cenrio internacional, e em especial na solidezda situao mexicana. Afinal, experincias anteriores, particularmente a crise fi-nanceira internacional de 1982, desencadeada a partir do colapso do Mxico,sugeriam que o Brasil no escaparia ileso de uma eventual crise cambial mexica-na, especialmente se adotasse um modelo de estabilizao que viesse a ser perce-bido como semelhante ao daquele pas.

    Mas a avaliao predominante no Brasil era de uma complacncia extraor-dinria. At fins de 1994, poucos se dispunham a reconhecer a imensavulnerabilidade externa dos programas mexicano e argentino. Ao contrrio, es-ses pases eram insistentemente apontados, tanto aqui como no exterior, comoexemplos para o Brasil.

    Foi preciso um terremoto financeiro de propores hemisfricas, ou atglobais, para que se propagasse no Brasil a lio afinal bastante trivial de queno recomendvel acumular dficits elevados em conta corrente financiadoscom hot money. Muitos dos que se apressaram a enunciar trivialidades como essaestavam entre aqueles que vinham se esmerando em destacar as virtudes do modelo

    mexicano, em subserviente adeso aos consensos alimentados pelo governonorte-americano, pelas entidades multilaterais sediadas em Washington, por WallStreet e adjacncias. A grande maioria dos formadores de opinio no Brasil fize-ram esse papel desde o final dos anos 80. Ajudavam assim a criar o clima intelec-tual que contribuiu para levar o governo brasileiro a permitir a imprudente que-da do cmbio nominal, combinada com uma agressiva abertura s importaes.

    A deteriorao da balana comercial brasileira ocorreu com velocidade ful-minante e talvez tenha surpreendido at mesmo os mais ardorosos defensores dovalor estratgico dos dficits externos. J a partir de novembro de 1994 a balanacomercial comeou a registrar dficits vultosos. Em questo de apenas cincomeses, o saldo comercial passou de um supervit mensal mdio de US$ 1,3bi-

    lho, observado no trimestre imediatamente anterior reforma monetria e cam-bial, para um dficit de US$ 409milhes em novembro e de US$ 809milhes emdezembro, em conseqncia do crescimento explosivo das importaes (40).

    No primeiro semestre de 1995 o Brasil registraria uma deteriorao marcadadas contas externas, que pode ser atribuda apenas em parte crise mexicana. Atabela 13 apresenta os principais componentes do balano de pagamentos noprimeiro semestre de 1995 e permite compar-los com os resultados de igualperodo do ano anterior.

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    A modificao mais drstica ocorreu na balana comercial, que passou deum supervit de quase US$ 7bilhes no primeiro semestre de 1994 para umdficit de mais de US$ 4bilhes no primeiro semestre de 1995. A diminuio deUS$ 11bilhes no saldo comercial, em questo de apenas um ano, no resultoude decrscimo das exportaes, que continuaram crescendo moderadamente,mas da expanso excepcional das importaes, que quase dobraram nesse pero-do. Para encontrar um surto de magnitude comparvel nas despesas com im-portaes, teramos de remontar a 1974, ano em que as importaes brasileirasduplicaram. A diferena, naturalmente, que naquele ano o crescimento dasimportaes decorreu, em grande medida, da quadruplicao do preo do pe-trleo em dlares, ao passo que em 1994-95o aumento resultou essencialmentede fatores internos.

    Tambm significativa foi a deteriorao da balana de servios, cujo dficit

    passou de US$ 6,6bilhes no primeiro semestre de 1994 para US$ 9,7bilhes emigual perodo de 1995. Essa deteriorao refletiu, sobretudo, o aumento dasdespesas de juros, das remessas de lucros e das despesas com viagens internacio-nais (tabela 13). O saldo em conta corrente passou, assim, de um supervit deUS$ 1,4bilho na primeira metade de 1994 para um dficit de US$ 11,9bilhesna primeira de 1995.

    O dficit em conta corrente do primeiro semestre de 1995 correspondeua 55%das exportaes de mercadorias e a 4,2% do PIB estimado pelo BancoCentral (41). Recorde-se que nos casos da Argentina e do Mxico o dficit cor-rente representara, em 1994, o equivalente a, respectivamente, 59%e 83%dasexportaes (tabela 2). Vejam o que isto significa: o Brasil conseguira a proezade acumular, j no segundo semestre da sua reforma monetria e cambial, umdesequilbrio externo em conta corrente que, como proporo das exportaes,era equivalente a quase dois teros do desastroso desequilbrio gestado peloMxico ao longo de sete anos de estabilizao com ncora cambial!

    O desequilbrio externo produzido nessa primeira fase do Plano Real tam-bm se aproximava perigosamente dos nveis observados nos anos que antecede-ram a crise da dvida externa dos anos 80. Entre 1978 e 1982, o dficit em contacorrente no balano de pagamentos do Brasil correspondera a 62,4% das expor-taes e a4,7%do PIB, em mdia (tabela 10). Assim, a economia brasileira, queainda lutava para desvencilhar-se das conseqncias de uma longa crise de

    endividamento era levada a engajar-se, de forma intensa, em nova etapa de acu-mulao de passivos externos, endividando-se num ritmo comparvel ao que alevara ao estrangulamento cambial do incio da dcada passada.

    As causas da deteriorao de mais de US$ 13bilhes na posio do balanode pagamentos em conta corrente foram essencialmente internas. A combinaode maxivalorizao cambial com liberalizao das importaes, num quadro deexpanso da demanda interna, no poderia ter outro resultado. Tanto mais quea abertura comercial no fora devidamente preparada. O governo no implantara,

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    por exemplo, mecanismos anti-dumpinge contra a concorrncia desleal e nemdispunha de instrumentos adequados de controle dos preos praticados no co-mrcio exterior. O sistema tributrio tambm no fora adaptado abertura daeconomia e continuava dependente de tributos que discriminavam o produtornacional na competio com o estrangeiro, no exterior e no mercado domstico.Alm disso, o elevado custo do crdito interno prejudicava a competitividadedas empresas nacionais, especialmente daquelas com pouco ou nenhum acessoao crdito em moeda estrangeira.

    At maro de 1995 as empresas nacionais beneficiaram-se, contudo, de umfenomenal crescimento das vendas internas, graas expanso da demanda agre-gada, particularmente de consumo, induzida endogenamente pelo programa deestabilizao. Entre julho de 1994 e maro de 1995, o PIBexpandiu-se a taxasexcepcionalmente elevadas. Relativamente ao trimestre imediatamente anterior,

    o PIBdessazonalizado cresceu 3,4%no terceiro trimestre de 1994, 3,5%no quar-to trimestre e 2,8%no primeiro de 1995. Nesses nove meses, a economia cresceu,portanto, a uma taxa anualizada de nada menos que 13,6%, segundo dados doIBGE(42).

    Esse forte aquecimento da economia pode ser atribudo, em parte, jreferida debilidade do ajuste fiscal que, contrariando as promessas do governo,no tivera impacto compensatrio perceptvel sobre a demanda. Alm disso, ocalendrio eleitoral contribuiu provavelmente para que o governo adiasse paradepois das eleies presidenciais as medidas de controle da expanso do crditointerno. S em outubro o Banco Central anunciaria o primeiro conjunto dedecises voltadas para a restrio do crdito interno (43).

    Nesse perodo, o Plano Real produziu a combinao extraordinria decrescimento rpido com inflao em queda. Medida pelo IPCda Fipe, por exem-plo, a inflao caiu de 5.167%nos 12 meses at junho de 1994 para 32%ao anonos nove meses subseqentes (44), resultado que se compara favoravelmentecom os alcanados na fase inicial dos programas mexicano e argentino. Nos pri-meiros nove meses do Plano Cavallo, de abril a dezembro de 1991, a inflaoanualizada fora de 29%, quando medida pela variao de um ndice de preos aoconsumidor (45). No caso do programa mexicano, a inflao dos preos ao con-sumidor alcanara nveis sensivelmente mais altos nos primeiros nove meses, 65%a.a. de janeiro a setembro de 1988 (46).

    Evidentemente, s foi possvel conciliar a forte expanso da demanda comsucesso na reduo da inflao porque havia condies de assegurar expansocorrespondente da oferta agregada. A elasticidade da oferta interna refletia acapacidade ociosa acumulada durante vrios anos de recesso ou crescimentomedocre da economia. Alm disso, at a ecloso da crise mexicana, as condiesde balano de pagamentos permitiram uma forte expanso da oferta externa, custa da j comentada brutal deteriorao do balano de pagamentos em contacorrente.

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    Depois do colapso do peso mexicano, contudo, o supervit na conta decapitais do balano de pagamentos do Brasil caiu de forma drstica (tabela 13). Acombinao de um acentuado dficit corrente com a contrao abrupta da ofer-ta de capitais externos levou ento a rpida diminuio das reservas no BancoCentral, que passaram de US$ 39,5bilhes em fins de novembro de 1994, logoantes do choque mexicano, para US$ 29,9em fins de abril de 1995, uma quedade quase 25%em apenas cinco meses (tabela 3).

    Note-se que a perda ocorrida nesses cinco meses foi superior ao valor totaldas reservas existentes na poca do lanamento do Plano Cruzado ou de qual-quer outra tentativa posterior de combate inflao. Sem as reservas acumuladasat junho de 1994, o Plano Real dificilmente teria sobrevivido s turbulnciasproduzidas pela crise mexicana.

    A diminuio das reservas chegou a colocar em risco o programa de esta-bilizao e obrigaria o governo brasileiro a corrigir os rumos da sua polticaeconmica, como veremos na seqncia.

    Recesso como mecanismode ajustedas contas externas

    Era bastante clara a natureza do dilema com que se defrontava o governoFernando Henrique Cardoso no incio de 1995. Por um lado, o Plano Real trou-xera ganhos expressivos em termos de reduo da inflao. Por outro, resultaraem desequilbrio externo insustentvel. As repercusses internacionais do colap-so do programa mexicano evidenciavam os riscos associados ao tipo de poltica

    econmica praticada no Brasil a partir do segundo semestre de 1994.O desafio era corrigir o desequilbrio externo sem retroceder no combate

    inflao. Evidentemente, o problema residia no fato de a queda da inflao terresultado, em grande parte, de medidas responsveis pela ampliao do dficitcomercial e do dficit em conta corrente. A tentativa de combater o desequilbrioexterno com correo cambial e reverso da abertura comercial provocaria fatal-mente alguma presso inflacionria e poderia levar reindexao da economia.

    Esse era um risco que o governo recm-empossado desejava evitar a todoo custo. Afinal, o sucesso inicial no combate inflao tinha sido o grande res-ponsvel pela vitria de Fernando Henrique Cardoso, j no primeiro turno das

    eleies presidenciais, e era indubitavelmente o grande trunfo poltico do novogoverno. Permitir a volta da inflao significaria quebrar o compromisso funda-mental assumido com o eleitorado e provocaria um enfraquecimento talvezirreversvel do governo. A experincia do governo Sarney, que nunca conseguirarecuperar-se do insucesso do Plano Cruzado, estava certamente viva na memriade todos.

    Dada a dramtica deteriorao do balano de pagamentos nos primeirosmeses de 1995, no havia a opo de simplesmente postergar o enfrentamento

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    do problema externo. Nesse contexto, era de se prever que o governo optassepor utilizar instrumentos de poltica econmica que permitissem conciliar o ajustedas contas externas com a preservao de taxas reduzidas de inflao.

    Num primeiro momento, o Banco Central poderia naturalmente utilizaras suas reservas internacionais em defesa da taxa de cmbio. Foi o que se fez atabril. Mas essa era uma resposta de flego curto. A partir de maro, o governopartiria para uma poltica mais agressiva de conteno da demanda agregada e deatrao de capitais externos de curto prazo, nica forma de reequilibrar as contasexternas sem colocar em risco a incipiente estabilizao monetria. A retrao dademanda, alm de diminuir o dficit em conta corrente, poderia contribuir paraatenuar a alta dos preos dos bens e servios no-comerciveis internacional-mente, que vinham constituindo o principal fator de presso sobre as taxas deinflao desde julho de 1994.

    Isso no significa que as polticas cambial e comercial tenham ficado redu-zidas a uma completa inrcia. Depois de algumas hesitaes, o governo acabariase decidindo por uma reverso parcial da poltica de liberalizao comercial, au-mentando, em maro, de forma drstica as tarifas de importao para autom-veis e diversos outros bens de consumo durveis. Em seguida, adotaria quotas deimportao para automveis, entre outras medidas.

    Ainda no ms de maro, o Banco Central promoveria uma mididesva-lorizao do cmbio. Realizada de forma confusa e em momento de grandeincerteza sobre o quadro internacional, tal iniciativa acabaria deflagrando umataque especulativo contra o real. Em conseqncia, acentuou-se a perda de

    reservas e o Banco Central foi levado a promover alta dramtica das taxas de juroem reais e a formalizar compromisso com um regime de bandas cambiais porprazo indeterminado.

    Passou-se assim de um regime de banda informal, na faixa de 83 a 86centavos de real por dlar, que vinha vigorando desde outubro de 1994, parauma banda explcita, com um piso de 88 e um teto de 93 centavos por dlar. Anova banda passou a ser protegida por taxas de juro extraordinariamente eleva-das e pela disposio do governo de ampliar a oferta de ttulos pblicos indexados taxa cambial. Essas mudanas na poltica comercial e cambial no eram, contu-do, suficientes para reverter o quadro de desequilbrio do balano de pagamen-tos em conta corrente. As medidas de conteno importao afetavam apenas

    uma parte da pauta e no resultaram em aumento expressivo da tarifa mdia(47). De qualquer forma, o raio de manobra do governo nessa rea estava limita-do pelo desaparelhamento dos rgos encarregados de executar a poltica decomrcio exterior e pelos compromissos assumidos com o Mercosul e a Organiza-o Mundial de Comrcio. Protestos de parceiros comerciais, notadamente daArgentina, logo levariam o governo brasileiro a recuar de algumas medidas derestrio importao.

    No campo da poltica cambial tambm no houve resultado expressivo do

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    ponto de vista do ajuste da conta corrente. Tendo sido seguida da formalizaode um banda estreita, a desvalorizao nominal de maro de 1995 no teve efeitoduradouro sobre a posio da taxa de cmbio em termos reais, calculada combase em ndices de preos ao consumidor. Como se v na tabela 11, a taxa bilate-ral com o dlar, deflacionada por ndices de preos ao consumidor, retornou posio de fevereiro em questo de apenas quatro meses. A partir da, manteve-se bastante estvel, com leve tendncia declinante.

    Considerando-se uma cesta de taxas de cmbio, calculada pela Confedera-o Nacional da Indstria CNIcom base nas moedas dos dez principais parcei-ros comerciais do Brasil, a posio do real tambm no se modificou de mododuradouro (48). De acordo com a cesta de moedas utilizada pela CEPAL, o ndiceda taxa de cmbio efetiva da moeda brasileira situava-se, em 1995, nada menosque 55%abaixo do nvel observado em 1987, acumulando uma valorizao que

    mesmo o Mxico e a Argentina no chegaram a registrar em momento algumnos ltimos anos (tabela 8).

    Nessas circunstncias, a reduo do desequilbrio externo em conta cor-rente teria que depender fundamentalmente de uma drstica reduo da deman-da interna. No curto prazo, a forma mais fcil de diminuir a demanda era ocontrole do crdito interno. A poltica fiscal, que nunca tinha sido um dos pon-tos fortes do Plano Real, dificilmente poderia ser acionada com a rapidez requerida.

    O que se fez, de maro de 1995 em diante, foi fixar as taxas de juro bsicasem nvel dramaticamente mais alto e implementar um arsenal de restries aocrdito em reais, em especial forte ampliao dos depsitos compulsrios sobre

    os depsitos vista e a prazo e at mesmo a criao de um compulsrio sobre osemprstimos bancrios.

    As taxas de juro internas subiram para nveis extraordinariamente eleva-dos, mesmo para padres brasileiros. Em maio, por exemplo, um levantamentodas taxas de curto prazo em 38 pases, amostra que inclui todas as principaiseconomias desenvolvidas, a maioria das principais economias em desenvolvimento,alm de alguns pases do leste europeu, mostrava que as de taxas de juro pratica-das no Brasil eram de longe as mais altas em termos reais (tabelas 14, 15 e 16).

    Em termos nominais, s a Rssia e a Turquia registravam, naquele mo-mento, taxas mais elevadas do que as do Brasil (tabela 16). Considerando as taxas

    de inflao, medidas pela evoluo recente de ndices de preos ao consumidor,nenhum pas praticava taxas de juro sequer prximas aos 35% a.a. observados noBrasil. Naquele momento, a taxa real brasileira correspondia a nada menos que15vezes a mdia das taxas reais de juro nos sete principais pases desenvolvidos(tabelas 14 e 16). Com juros reais de 22%a.a., a Argentina era o nico outro pasa apresentar taxa real superior a 20%a.a.

    Note-se que esses dados referem-se, no caso do Brasil, ao overnight efeti-vo, lastreado em ttulos pblicos. Naturalmente, as taxas cobradas nos emprsti-

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    mos do sistema bancrio eram ainda mais elevadas. Em maio, as taxas de juropara capital de giro alcanaram nada menos que 8,8%ao ms, ou 176,4%ao ano.Deflacionado pela variao do INPC, o custo do capital de giro chegou a 115,4%a.a. Quando se considera o comportamento dos preos industriais no atacado,deflator mais relevante do ponto de vista da indstria, o custo real do crdito foide 139,2%a.a. em maio. Para pessoas fsicas, o custo do crdito atingiu236,5%a.a. em termos nominais e 162,2%a.a. em termos reais naquele ms (tabela 17).

    A partir de meados de 1995, as taxas de juro comearam a cair em termosnominais e reais. No obstante, um ano depois o custo do crdito em reais con-tinuava excepcionalmente elevado: 64,8% a.a. em termos reais para capital degiro, quando se considera o IPA-PIcomo deflator (tabela 17).

    A alta dos juros e o arrocho sobre o crdito interno tinham, evidentemen-te, dupla funo. A primeira era melhorar a conta de capitais do balano depagamentos, fortemente atingida pela crise mexicana. Com a elevao dos jurose a reduo do crdito interno, o Banco Central procurava estancar a sada decapitais, atrair capitais estrangeiros de curto prazo e induzir as empresas brasilei-ras a tomar crdito externo e a trazer recursos prprios do exterior.

    A segunda funo era deprimir a demanda interna e o nvel de atividade daeconomia, com o que se pretendia conter as importaes, forar as empresas aampliar as exportaes e favorecer a continuao da tendncia de queda da taxade inflao. A reverso da atividade econmica acabaria acontecendo de formaabrupta, a partir do segundo trimestre de 1995. Considerada a srie do PIBtri-mestral com ajuste sazonal, a queda foi de 3,7%no segundo e de 1%no terceiro

    trimestres, com relao ao trimestre imediatamente anterior. Anualizada, a taxade contrao do PIB foi de 9,1%nesses dois trimestres, o que fez o nvel deatividade retornar a patamar apenas 5%superior ao registrado imediatamenteantes da reforma monetria. A recesso foi mais pronunciada no setor industrial,cuja produo acumulou queda anualizada de 19,1%nesses dois trimestres (49).

    Apesar da estabilizao do cmbio real em nvel deprimido e do carterlimitado das medidas de controle das importaes, a poltica recessiva adotadaa partir de maro de 1995 foi suficiente para produzir efeitos significativos so-bre o balano de pagamentos. A balana comercial comeou a reagir a partir dejulho, movimento que pode ter sido apressado pela utilizao de estoques debens importados no incio do ano, em antecipao s medidas de restrio das

    importaes. No segundo semestre, o saldo comercial voltou a ser moderada-mente positivo, alcanando US$ 1,1bilho. O dficit em conta corrente caiupara US$ 5,9bilhes, cerca de metade do observado na primeira metade de1995 (tabela 13).

    A melhora da conta de capitais ocorreu de forma muito mais intensa emfuno das taxas de juro extravagantes praticadas no Brasil e da escassez de crdi-to interno. A partir de julho de 1995 a entrada lquida de capitais passou a supe-rar o dficit em conta corrente e as reservas do Banco Central voltaram a aumen-

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    tar. O supervit na conta de capitais alcanou nada menos que US$ 23,4bilhesno segundo semestre de 1995 (tabela 13).

    Contrariando as expectativas formadas sob o impacto da crise do Mxico,j em agosto as reservas no conceito de caixa ultrapassavam em mais de US$ 6bilhes o nvel registrado em fins de novembro de 1994, imediatamente antes docolapso do peso mexicano (tabela 3). Ao mesmo tempo, a taxa de inflao dimi-nuiu de modo aprecivel no segundo semestre. Medida pelo IPCda Fipe, porexemplo, as taxas mensais mdias caram de2,4%no segundo trimestre de 1995para 2%no terceiro e 1,3%no quarto (50).

    EUA, Mxico e Argentina

    A rpida reverso das contas externas brasileiras deve ser atribuda no ss medidas tomadas pelo governo brasileiro, mas tambm sensvel melhora nocontexto financeiro externo a partir de abril/maio de 1995.

    O governo norte-americano, com a ajuda do Fundo Monetrio Interna-cional, veio em socorro do Mxico (e dos investidores norte-americanos naquelepas), anunciando uma operao de salvamento sem precedentes em termos dovolume dos recursos envolvidos mais deUS$ 50bilhes e da rapidez com queforam mobilizados, restabelecendo certa estabilidade nos mercados financeirosinternacionais a partir de abril (51). Tambm para a Argentina organizou-se umpacote financeiro, de US$ 4,7bilhes, envolvendo recursos do FMI, Banco Mun-dial e BID(52). Alm disso, a partir do segundo trimestre de 1995, revertendomovimento iniciado em fevereiro do ano anterior, as taxas de juro em dlares

    comearam a cair gradualmente no mercado internacional, reduzindo a pressosobre mercados emergentes vulnerveis como Mxico, Argentina e o prprioBrasil (53).

    O mais importante, do ponto de vista norte-americano, foi amegainterveno do governo Clinton ter conseguido evitar que o governo me-xicano suspendesse o pagamento das suas obrigaes externas, fato que teriacertamente agravado de modo dramtico a crise financeira internacional. Aocontrrio do que ocorrera em 1982, quando a interveno do governo norte-americano e das entidades multilaterais de crdito fora posterior decretao demoratria pelo Mxico, desta vez o governo dos EUAatuou de forma preventivae conseguiu, por pouco, evitar que os mexicanos entrassem em default. Almdisso, os EUAaproveitaram-sedas dificuldades mexicanas para ampliar o seucontrole e sua influncia ao sul do Rio Grande, tendo inclusive obtido as receitasmexicanas de petrleo em garantia dos emprstimos bilaterais concedidos (54).

    Naturalmente, as operaes de socorro financeiro no eximiram o Mxicoe a Argentina de doloroso processo de ajuste j no primeiro semestre de 1995.No caso mexicano, a megadesvalorizao cambial e a forte recesso conduzirama virtual equilbrio no balano de pagamentos em conta corrente em 1995 (tabe-la 2), mas custa de forte aumento do desemprego, queda dos salrios reais,

  • 7/24/2019 Paulo Nogueira Batista Jr

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    158 ESTUDOSAVANADOS 10 (28), 1996

    acelerao significativa da inflao e graves dificuldades no sistema bancrio. Em1995, a taxa de inflao aumentou para mais de 50%(55), pior resultado registra-do desde 1987. A queda do PIBreal foi de 6,8%, superando em intensidade arecesso provocada pela crise da dvida externa no incio dos anos 80 (56).

    Na Argentina, o governo conseguiu preservar a paridade cambial e a lei deconversibilidade, obteve tambm melhora expressiva da posio externa em con-ta corrente (tabela 2), mas enfrentou recesso, elevao dramtica das taxas dedesemprego, alm de grave crise bancria. A inflao continuou em declnio,mas a taxa de desemprego subiu para quase 20%e o PIBregistrou queda de4,4%em 1995 (57).

    A deteriorao s no foi maior porque, graas ao Mercosul e ao PlanoReal, a Argentina pde expandir fortemente as suas exportaes para o Brasil em1994-95, apesar da camisa-de-fora imposta poltica cambial argentina e daforte valorizao do peso com relao ao dlar.

    A valorizao cambial produzida pelo Plano Real permitiu ao governoargentino obter parte da desvalorizao de que necessitava, sem violar a lei deconversibilidade. Como a taxa de inflao argentina no tem sido muito diferen-te da dos EUA, a valorizao do real com relao ao peso argentino foi da ordemde 30%desde julho de 1994, semelhante valorizao do real com relao aodlar. Admitindo-se que a ponderao do real nacesta de moedas relevante parao peso argentino seja de 20a 25%, a valorizao do real correspondeu a mididesva-lorizao da ordem de 7%do peso argentino nesse perodo.

    Alm disso, as exportaes argentinas foram ajudadas pela forte expanso

    da demanda agregada no Brasil at maro de 1995 e pelas condies privilegiadasde acesso ao mercado brasileiro propiciadas pelo Mercosul.

    Ainda que tenha sido bastante elevado o custo do ajustamento para pasescomo Mxico e Argentina, o fato que a instabilidade internacional diminuiumais rapidamente do que muitos se arriscavam a prever sob o impacto da turbu-lncia