parecer sobre o projeto do cÓdigo civil - bdjur · herdada do código de napoleão e da escola...

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161 PARECER SOBRE O PROJETO DO CÓDIGO CIVIL Luiz Edson Fachin· SÚMULA. 1. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana - Fundamento da República Imposição da Supremacia do Valor da Pessoa Humana Sobre Aspectos Patrimoniais - Inconstitucionalidade de Norma que Venha a Inverter Essa Prevalência. 2. Projeto do Código Civil - Racionalidade Patrimonialista e Conceitualista, Em Detrimento do Valor da Pessoa Tomada em Concreto. 3. Inconstitucionalidade do Retrocesso de Direitos - Supressão, Pelo Projeto, De Direitos Decorrentes da Constituição, Previstos em Leis Especiais. 4. Conclusão pela Inconstitucionalidade do Projeto do Código Civil. EMENTA. 1) O advento da Constituição de 1988, com a supremacia do valor da pessoa humana sobre o patrimônio, levou à inconstitucionalidade superveniente do projeto do Código Civil, que, desde a década de 70, tramita no Congresso Nacional. 2) A inconstitucionalidade também se revela pelo retrocesso de direitos sociais, previstos em leis esparsas, como decorrência dos preceitos constitucionais, bem como por dispositivos que ferem, diretamente, normas da Constituição. 3) O controle de constitucionalidade dos atos normativos pode ser exercido previamente à sua vigência, sendo essa fiscalização preventiva exercida, no Brasil, pelo Poder Legislativo. • Mestre e Doutor das Relações Sociais ( Direito Civil) pela PUC/SP. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano 11, 2 e Ano 111, 3 - 2001-2002

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PARECER SOBRE O PROJETO DO CÓDIGO CIVIL

Luiz Edson Fachin·

SÚMULA. 1. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana - Fundamento da República Imposição da Supremacia do Valor da Pessoa Humana Sobre Aspectos Patrimoniais ­Inconstitucionalidade de Norma que Venha a Inverter Essa Prevalência. 2. Projeto do Código Civil - Racionalidade Patrimonialista e Conceitualista, Em Detrimento do Valor da Pessoa Tomada em Concreto. 3. Inconstitucionalidade do Retrocesso de Direitos - Supressão, Pelo Projeto, De Direitos Decorrentes da Constituição, Previstos em Leis Especiais. 4. Conclusão pela Inconstitucionalidade do Projeto do Código Civil.

EMENTA. 1) O advento da Constituição de 1988, com a supremacia do valor da pessoa humana sobre o patrimônio, levou à inconstitucionalidade superveniente do projeto do Código Civil, que, desde a década de 70, tramita no Congresso Nacional. 2) A inconstitucionalidade também se revela pelo retrocesso de direitos sociais, previstos em leis esparsas, como decorrência dos preceitos constitucionais, bem como por dispositivos que ferem, diretamente, normas da Constituição. 3) O controle de constitucionalidade dos atos normativos pode ser exercido previamente à sua vigência, sendo essa fiscalização preventiva exercida, no Brasil, pelo Poder Legislativo.

• Mestre e Doutor das Relações Sociais ( Direito Civil) pela PUC/SP.

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SUMÁRIO. 1. Do objeto do parecer. 2. A Constituição de 1988 e seu impacto no Direito Civil - a supremacia do valor da pessoa humana frente ao patrimônio. 3. Da inconstitucionalidade do retrocesso de direitos. 3.1. Do Estatuto dos Conviventes. 3.2. Da adoção - retrocesso em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 3.3. Do Código de Defesa do Consumidor. 3.4. Da impenhorabilidade do bem da família. 4. Do Controle Preventivo de Constitucionalidade.

1. Do objeto do parecer.

Tem o presente parecer a finalidade de - atendendo a honrosa solicitação do Deputado Federal Gustavo Fruet - levar a efeito análise do Projeto do Código Civil, em trâmite perante a Câmara Federal, visando a uma conclusão acerca da oportunidade ou não de sua aprovação - e conseqüente inserção no ordenamento jurídico positivo - frente à ordem constitucional vigente.

Colocam-se, então, em análise, sem pretensão de esgotar o tema, não só o texto e o conteúdo explícito do projeto, mas a racionalidade que o informa, buscando­se, assim, avaliar-se sua adequação ou não à tábua axiológica e à ordem normativa trazidas pela Constituição de 1988.

Honrados com a deferência para examinar o tema, com a devida atenção e minúcia, embora premidos pela urgência, cabe principiarmos com a necessária abordagem do impacto produzido pela Constituição federal de 1988 no ordenamento jurídico brasileiro, analisando­se, em especial, sua repercussão no Direito Civil.

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2. A Constituição de 1988 e seu impacto no Direito Civil- a supremacia do valor da pessoa humana frente ao patrimônio.

A Constituição Federal de 1988 englu como fundamento da república a dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro das preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo sistema, que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para sua proteção. As normas constitucionais (compostas de princípios e regras), centradas nessa perspectiva, conferem unidade sistemática a todo o ordenamento jurídico.

Opera-se, pois, em relação ao Direito dogmático tradicional, uma inversão do alvo de preocupações do ordenamento jurídico, fazendo com que o Direito tenha como fim último a proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento.

A inversão do loeus de preocupações deve ocorrer, também, no Direito Civil. Trata-se de conseqüência necessária diante da supremacia da Constituição no ordenamento jurídico. Por essa razão, todo o standard normativo infraconstitucional deve se amoldar ao modelo axiológico constitucional. Conforme Eroulths Cortiano Junior:

Não basta que o legislador inferior passe a expedir normas que vão ao encontro da ordem constitucional. É essencial que mesmo as normas ditas inferiores já existentes sejam analisadas, interpretadas e aplicadas de acordo com o preceito constitucional. A Constituição passa a constituir-se como o centro de

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integração do sistema jurídico de direito privado.1

A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, em especial, do Código Napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais, visando à sua emancipação.

Nesse contexto, à luz do sistema constitucional, o aspecto patrimonial, que era o elemento de maior destaque, é deixado em segundo plano. Não tem mais guarida constitucional uma codificação patrimonial imobiliária, traço que marcou a edição do Código Civil em 1916. Sobre esse aspecto, escreve Jussara Meirelles:

Não é difícil concluir, portanto, que a pessoa que o Código Civil descreve não corresponde àquela que vive, sente e transita pelos nossos dias. É que os valores pessoais, os desejos, a intenção de ter reconhecida a sua dignidade não encontram correspondência na abstração de uma figura que o sistema pretende como pessoa, como sujeito de direito.2

o patrimônio foi considerado, por muitos autores, "atributo da personalidade." Duas reflexões devem ser levadas em consideração nessa perspectiva. Em primeiro lugar, a personalidade a que se está a referir-se é a

1 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemport1neo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 37. 2 MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemport1neo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

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personalidade abstrata, ou seja, aquela que é conferida pelo ordenamento, tornando alguém apto a ser sujeito de direitos. Não se trata da pessoa concreta, com necessidades, sentimentos, desejos, aptidões, mas de uma categoria abstrata, que não se confunde com o ser humano em concreto. Em segundo lugar, a idéia de que o patrimônio seria atributo da personalidade faz com que se chegue à idéia de que a personalidade se confunde com o próprio patrimônio.

Constata-se, por conta disso, confusão conceitual que vincula o patrimônio à pessoa. Ocorre que essa pessoa abstrata não se confunde com o ser humano concreto. Ainda que se pudesse admitir que o patrimônio fosse um atributo da personalidade, está-se, aqui, a falar de uma categoria abstrata, que não se confunde com o ser humano em concreto. O patrimônio, portanto, não se confunde com o valor da pessoa humana, que não se limita a uma categoria abstrata.

Desse modo, privilegiar-se o patrimônio - ao contrário do que se poderia imaginar, em uma visão pouco aprofundada do que significa essa noção de "atributo da personalidade" - é colocar à margem o valor constitucional da dignidade da pessoa humana. Esta tem élgora, sob o texto de 1988, o status de princípio cardeal organizativo dentro do sistema jurídico, e toda regra, positivada ou proposta, que com esse princípio colide, no todo ou em parte, é inconstitucional.

Nessa ordem de idéias, a aferição da constitucionalidade de um diploma legal, diante a repersonalização imposta a partir de 1988, deve levar em consideração a prevalência da proteção da dignidade humana em relação a\às relações jurídicas patrimoniais. Isso implica dizer que será inconstitucional um diploma legal - cabe frisar, positivado ou proposto - que privilegie uma visão patrimonialista em detrimento de uma concepção vinculada à proteção do ser humano em concreto.

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o projeto do Código Civil, almejando manter a estrutura do código vigente, foi elaborado anteriormente à Constituição de 1988, datando do começo da década de 70. Sua elaboração se deu a partir de uma racionalidade herdada do Código de Napoleão e da Escola Pandectista, e, portanto, do século XIX, em que prevalecia a preocupação patrimonialista e conceitualista, expressa na existência de uma Parte Geral. O conceitualismo é, vale dizer, outro elemento através do qual se coloca a pessoa humana em segundo plano. Conforme escreve Orlando de Carvalho:

É manifesto que a eliminação do tradicional livro das pessoas com que abriam os sistemas jurídicos latinos, em favor de uma parte geral, em que as pessoas se reduzem em mero elemento da relação jurídica civil, concorre para uma reificação ou desumanização do jurídico, cujas seqüelas, como a última história nos mostra, dificilmente tranqüilizam qualquer boa consciência. 3

Outros autores, como Menezes Cordeiro, também atribuem à parte geral dos códigos a excessiva abstração em que mergulhou o Direito Privado, afastando-se da realidade concreta:

Em termos significativo-ideológico, por fim, a Parte Geral implica distorções gravosas em toda a temática civil. Reina, nela, um abstracionismo que dificulta todos os esquemas concatenados de realização do Direito. As questões relativas às pessoas

3 CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica - seu sentido e seus limites, 1981. p. 60.

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perdem-se num mar de técnica. Por outro lado, a Parte Geral implica, muitas vezes, outras opções em cadeia: assim sucede com o recurso à relação jurídica, que desconhece os aspectos fundamentais do Direito Civil.4

A racionalidade que permeia todo o projeto está ligada à proteção à apropriação e circulação de bens, abstraindo-se os seres humanos concretos que estarão envolvidos nas relações jurídicas ali previstas. Conforme Gustavo Tepedino, ao mencionar a nova racionalidade imposta pela Constituição ao Direito Civil:

Fala-se, por isso mesmo, de uma despatrimonialização do direito privado, de modo a bem demarcar a diferença entre o atual sistema em relação àquele de 1916, patrimonialista e individualista." e arremata, referindo-se ao Projeto de codificação: "Os quatro personagens do Código Civil - o marido, o proprietário, o contratante e otestador-, que exauriam as atenções (sociais) do codificador, renascem redivivos, com o projeto, agora em companhia de mais um quinto personagem: o empresário.5

Mesmo a estrutura do projeto, tomada em si mesma, demonstra a preocupação primordial com o patrimônio: o primeiro livro da parte especial diz respeito ao direito das obrigações, que trata, essencialmente, da circulação de bens. Em seguida, no livro segundo, vem o direito da empresa, buscando-se a preconizada unificação do Direito

4 CORDEIRO, António Menezes. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Almedina, 1988. p. 81. 5 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.438.

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Privado. O terceiro livro, a seu turno, dispõe sobre os direitos reais. Apenas o quarto livro, relegado quase ao final do Código, trata, em parte, de relações que podem não possuir conteúdo patrimonial, quais sejam, as de Direito de família. Ainda assim, grande parte dos artigos desse livro trata de relações de ordem eminentemente patrimonial.

A distribuição das matérias no projeto obedece, pois, a uma racionalidade patrimonialista. Tal racionalidade está em desacordo e afronta a tábua axiológica calcada na dignidade da pessoa humana.

Outro aspecto que revela essa racionalidade e esse conteúdo é a inserção, no projeto, do Direito da Empresa. Se a disciplina das relações dessa natureza é, por evidente, necessária, sua inserção no corpo do Código Civil - que chegou a ser considerado uma "constituição do homem privado - representa uma maior "patrimonialização" em relação ao Código de 1916. neste diploma legal, o centro das preocupações era o indivíduo abstrato, necessariamente vinculado a um patrimônio, atributo da personalidade jurídica abstrata. No Direito da Empresa, nem mesmo o indivíduo proprietário é o centro, mas a pessoa jurídica, em suas relações de natureza exclusivamente patrimonial. Não há menção no projeto do Código Civil a qualquer relação entre a empresa e a concretização da dignidade da pessoa humana. Do Código do indivíduo, dotado de patrimônio, passa-se ao Código do patrimônio tomado em si mesmo.

Se a preocupação primordialmente patrimonialista do Projeto do Código Civil, à época de sua elaboração ­em um período no qual a democracia e a dignidade humana não eram sequer metas do regime ditatorial vigente, e em que o "milagre econômico", alavancado em uma perspectiva desenvolvimentista, privilegiava especialmente a concentração de renda - estava de acordo com o ordenamento jurídico vigente, após 1988, com a imposição

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constitucional da concretização da dignidade do ser humano, a adequação ao novo sistema deixou de existir.

A Constituição de 1988, ao impor ao Direito a concretização da dignidade da pessoa humana, tornou o projeto, com sua preocupação eminentemente patrimonialista, inadequado à nova ordem jurídica.

Ao colocar o patrimônio em primeiro plano, em detrimento do ser humano concreto, está o Projeto do Código Civil em dissonância com a ordem constitucional: o advento da Carta de 1988 fez com que se operasse a inconstitucionalidade superveniente do Projeto do Código Civil.

É sintoma dessa incompatibilidade com o conteúdo a Constituição o surgimento - com o advento dessa nova ordem constitucional -, no interior dos microssistemas, de leis que não encontram ambiência no projeto de codificação, tais como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto dos Conviventes.

3. Da inconstitucionalidade do retrocesso de direitos.

A Constituição de 1988, com os valores ali consagrados, impôs a edição de leis esparsas que regulamentassem seu conteúdo, bem como, adequassem aos seus princípios disposições legais pré-existentes. A Constituição se aplica direta e imediatamente nas relações privadas. A edição desses diplomas legais não cria, propriamente, novos direitos - cujas normas definidoras podem ser construídas a partir da hermenêutica constitucional. Escreve Luis Roberto Barroso ao referir­se aos direitos sociais, em contexto perfeitamente aplicável ao caso em exame:

Remarque-se que a Constituição não delega ao legislador competência para

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conceder aqueles direitos; concede-os ela própria. Ao órgão legislativo cabe, tão somente, instrumentalizar sua realização, regulamentando-os. Faltando a esse dever, dá ensejo à inconstitucionalidade por omissão.6

Percebe-se, pois, que a omissão do órgão legislativo em regulamentar tais normas constitucionais implica inconstitucionalidade por omissão. No que diz respeito à proteção da família, à regulamentação da união estável, à proteção da criança e do adolescente e à tutela do consumidor, o legislador não se omitiu, editando diplomas legais que regulamentam o conteúdo da Constituição. São essas leis, desse modo, reflexos da nova ordem constitucional, em consonância com sua racionalidade, seus princípios e suas regras.

Isso implica dizer que o conteúdo dessas leis, no que diz respeito ao estabelecimento de direitos, constitui nada mais que a explicitação daquilo que já está contemplado na Constituição. A omissão legislativa na edição dessas leis seria, conforme exposto, inconstitucional.

Sem embargo, uma vez existentes tais diplomas legais, explicitando direitos decorrentes da Constituição Federal, sua supressão implicaria um retorno à situação pré-existente a essa regulamentação, ou seja, a situação que, outrora, caracterizou inconstitucionalidade por omissão.

Mais grave que isso, não se estaria a tratar de omissão pura e simples, mas de supressão de direitos garantidos pela Constituição, que vinham sendo exercidos por conta da regulamentação efetuada pela legislação esparsa. A revogação - mesmo tácita - dessa legislação, sem sua substituição por novos dispositivos legais que

6 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1993. p. 103.

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assegurem aqueles mesmos direitos já assegurados, constitui retrocesso não admitido pelo sistema constitucional.

Em especial, no que tange o Direito de Família e os Direitos da Criança e do Adolescente, tal retrocesso é de extrema gravidade. Esses temas estão disciplinados no Titulo VIII da Constituição, referindo-se à ordem social. Tratam-se, pois, de direitos sociais, constitucionalmente protegidos. Afirma José Afonso da Silva: i~ Constituição deu bastante realce à ordem social. Forma ela com o título dos direitos fundamentais o núcleo substancial do regime democrático instituído. "7

Canotilho aponta a proibição do retrocesso social, ao afirmar:

o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considera r­se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa 'anulação', 'revogação' ou 'aniquilação' pura e simples desse núcleo essencial.8

Um diploma legal, como o Projeto do Código Civil, ao pretender regular matérias que vinham sendo disciplinadas por leis esparsas, decorrentes da nova ordem constitucional- explicitando e permitindo o exercício de direitos que nasceram com a Constituição - não pode operar retrocesso no que diz respeito a direitos, sob pena de incidir em inconstitucionalidade.

7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1992. p. 705. a CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 321.

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Conforme será demonstrado a seguir, o Projeto opera retrocesso legislativo em matérias já disciplinadas pelas leis esparsas - pelo fato de que sua racionalidade é incompatível com a nova ordem constitucional- estando, pois, eivado de inconstitucionalidade. Para tal fim, apontar­se-ão, à guisa de exemplos, disposições - e, mesmo, omissões - do Projeto que caracterizam esse retrocesso inconstitucional.

Ressalte-se que não está em questão, nem de longe, a notória autoridade intelectual da Comissão Elaboradora e Revisora do Projeto, merecedora de elevada e inegável consideração na comunidade jurídica. São as idéias que, aqui, se apresentam ao debate.

3.1. Do Estatuto dos Conviventes.

A Constituição Federal de 1988 rompeu com o modelo exclusivamente matrimonializado de família consagrado no Código Civil de 1916, dando lugar a uma concepção plural, em que outros modelos familiares são reconhecidos pelo ordenamento jurídico. De um conceito de família fechado e excludente, parte-se para uma concepção aberta, que admite o reconhecimento pelo Direito de outras formações familiares presentes na sociedade que, antes da Constituição de 1988, não eram juridicamente reconhecidas como tais.

Entre as possíveis entidades familiares que se apresentam a partir dessa concepção plural de família, encontra-se a união estável, que, através das leis 8.6711 94 e 9.278/96 recebeu regulamentação, com a definição de direitos e deveres dos conviventes.

Tais direitos decorrem, diretamente, do status de família conferido pela Constituição Federal. Desse modo, o tratamento da união estável, no que diz respeito aos direitos daqueles que travam essa espécie de relação

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familiar, não poderia ser discriminatório em relação ao dispensado às relações matrimonializadas.

Desse modo, a conjugação de dois diplomas legais produziu o que se pode chamar de estatuto dos conviventes, que, em consonância com a nova ordem constitucional, buscou valorizar as relações de afeto e assegurar a proteção aos membros dessa entidade familiar, atribuindo-lhes direitos e deveres de respeito mútuo e mútua assistência, bem como guarda e sustento dos filhos.

A partir disso, são explicitamente contemplados o direito a alimentos e direitos sucessórios.

A união estável é, pois, família, que, como tal, não constitui, necessariamente, entidade meio para o casamento, por ser, não raro, uma opção dos conviventes. Essa opção, todavia, por força do art. 226, § 8. 0

, da Constituição Federal- em que se atribui ao Estado o dever de assegurar assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram - não pode implicar a ausência de direitos por parte dos conviventes - mesmo porque, muitas vezes constitui a única alternativa para a constituição de família, especialmente entre as camadas menos favorecidas da sociedade. Assim, os direitos constantes da regulamentação oferecida pelo estatuto dos conviventes decorrem de determinação constitucional, não sendo possível sua pura e simples supressão.

Entre os direitos previstos na Lei 9.278/96, está o direito real de habitação, na hipótese de falecimento de um dos conviventes. Esse direito conforme Rainer Czaikovski, "surge porque a família existiu, e o imóvel foi utilizado como seu abrigo. ''J Trata-se, pois, de mecanismo de proteção aos membros da família, atendendo ao disposto no art. 226, § 8. 0

, da Constituição. Sua supressão constituiria ofensa à ordem constitucional.

Ocorre que o Projeto do Código Civil não prevê esse direito ao companheiro sobrevivente. Pretendendo o

9 CZAIKOVSKI, Rainer. União Livre, 1999. p. 175.

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projeto revogar todas as demais disposições legais atinentes ao tema da união estável, com sua eventual aprovação, o direito real de habitação ao convivente seria suprimido, operando-se retrocesso inadimissivel diante da ordem constitucional.

Tal supressão se mostra, todavia, mais grave, quando se percebe que, na entidade familiar matrimonializada, está previsto o direito real de habitação para o cônjuge sobrevivente, conforme se depreende do art. 1831, que prevê:

Art. 1831 - Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Trata-se de discriminação injustificável aos membros da entidade familiar não-matrimonializada, ferindo o princípio constitucional da igualdade, bem como as disposições do art. 226 da Constituição. O projeto acaba por suprimir mecanismo legislativo de proteção do convivente supérstite, bem como dos filhos havidos dessa relação, realizando discriminação da união estável e dos conviventes frente aos cônjuges e ao casamento. A igualdade perante a lei resta violada.

Não é possível, in casu, argumentar-se que a união estável apresenta peculiaridades em relação ao casamento: o direito real de habitação é instrumento de proteção aos membros da família - que existe, nos termos da Constituição, tanto no casamento quanto na união estável -, assegurando-lhes a moradia, em nada justificando sua supressão.

A esse exemplo, em que se opera retrocesso de direitos decorrentes da Constituição, podem-se

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acrescentar outros dispositivos do projeto de codificação - herdeiro da mesma racionalidade patrimonial­conceitualista que informou o Código Civil de 1916 - que demonstram sua incompatibilidade com os novos institutos - como a união estável - e a nova ordem de valores que foram trazidos ao ordenamento pela nova Constituição.

É certo que o louvável trabalho legislativo, no Senado e na Câmara, depurou o projeto de problemas evidentes.

Ainda assim, é flagrante, em vários dispositivos do Código. A violação ao princípio da igualdade - tanto em seu aspecto formal como em seu aspecto substancial ­no que tange à discriminação dos conviventes em relação aos cônjuges.

O art. 1832, assegura ao cônjuge sobrevivente, concorrendo com os filhos do de cujus, quinhão hereditário não inferior à quarta parte da herança.

Art. 1832 - Em concorrência com os descendentes (art. 1829. inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo sua quota ser inferior à quarta parte da heranca,se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer. (gn)

O art. 1790, a seu turno, embora também assegure ao companheiro sobrevivente a participação na sucessão do outro - quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável -, concorrendo com os descendentes do autor da herança, não assegura o projeto o quinhão mínimo de um quarto desses bens:

Art. 1790 - A companheira ou companheiro participará da sucessão do outro,quanto aos bens adquiridos na vigência da unia estável, nas condições seguintes:

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I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente a que por lei for atribuída ao filho.

Trata-se de outra discriminação injustificável à luz do sistema constitucional: o patrimônio amealhado durante a unia estável é fruto do esforço comum, tal como ocorre nas relações matrimonializadas. Não há, nesse aspecto, distinção entre os institutos que justifique tratamento diferenciado.

Perceba~se que, paradoxalmente, essa realidade é conhecida pelo projeto, no art. 1725, ao estabelecer que se aplica à união estável o regime da comunhão parcial de bens. O regime da comunhão parcial diz respeito, exatamente, ao esforço comum dos cônjuges na construção do patrimônio do casal. Tratando-se de realidade idêntica a que existe na união estável, em nada se justifica a discriminação do convivente frete ao cônjuge quanto à inexistência, para o primeiro, de garantia da quarta parte da herança. Está-se diante, pois, de ofensa direta ao princípio constitucional da igualdade.

Mais que isso, essa postura do projeto bem reflete a incompatibilidade entrea nova racionalidade constitucional e aquela presente no projeto, em que se percebem resistências ao instituto da união estável. Outro exemplo dessa realidade é o art. 1797 do projeto:

Art. 1797 - Até o compromisso do inventariante, a administração da herança caberá sucessivamente: I - ao cônjuge, se com outro vivia ao tempo da abertura da sucessão.

Por força desse dispositivo, não só o convivente supérstite não tem o direito real de habitação sobre o imóvel residencial da família - que, como exposto, é supressão inconstitucional de direito - mas, também, não tem

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administração do patrimônio que ajudou a construir. Trata­se, também, de discriminação injustificável do convivente em relação ao cônjuge - ferindo, mais uma vez, o princípio da igualdade -, por se tratar de direito de ordem patrimonial, em que a união estável e o casamento guardam identidade quanto ao regime legal de bens.

Já, no subtítulo IV do Livro do Direito de Família, ao tratar do bem de família - que, diga-se desde logo, guarda graves inconstitucionalidades, como se verá adiante - há mais uma amostra de inadequação da ambiência do projeto para tratar do tema da união estável: o art. 1714, ao definir a forma de constituição do bem de família, prevê:

Art. 1714 - O bem de família, quando instituído pelos cônjuges, constitui-se pela inscrição de seu título de Registro de Imóveis; pela transcrição, quando terceiro.

Cabe, diante da concepção plural da família presente na Constituição, questionar-se: quando o bem de família é constituído pelo convivente, opera-se inscrição ou transcrição? E quando for instituído pelo ascendente, nas famílias monoparentais? Ademais, o vernáculo registral já tem, desde a Lei n.o 6015/73, designação diversa para a então denominada "transcrição",

A questão tem pertinência na medida em que revela postura do projeto em relação às demais entidades familiares: à exceção do art. 1711, que faculta a todas as entidades familiares a instituição do bem de família, os demais artigos que regulam a matéria fazem referencia apenas à família matrimonializada. No mínimo, está-se a estabelecer pretensa hierarquia entre as entidades familiares, de modo que, para descobrir-se a forma de constituição do bem de família (art. 1714), o período em que subsiste a isenção de execução por dividas (art. 1716) ou a quem cabe a administração do bem (art. 1720), é

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necessário recorrer à analogia. Os artigos mencionados fazem referencia tão somente ao cônjuge. As demais entidades familiares são deixadas à margem. Ao menos pelo silêncio.

Por fim, outro exemplo que poderia ser apontado para ilustrar a dificuldade de enquadramento do instituto constitucional da união estável no modelo novecentista do projeto de codificação e à menção, no parágrafo único do art. 1626, da expressão "concubino":

Art. 1626 - omissis Parágrafo único - Se um dos cônjuges ou concubinos adotam o filho do outro, mantem-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.

Ocorre que, no art. 1727, o projeto oferece ao termo "concubinato" conotação diversa da convivência, significando relação em que se apresenta impedimentos matrimoniais:

Art. 1727 - As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constitui concubinato.

O termo apresenta, pois, por força do próprio texto projetado, conotação negativa, vinculada ao adultério ou ao incesto.

É, porém, esse o termo com que o Projeto do Código Civil designa aos conviventes no capitulo referente à adoção. Para a racionalidade dominante no projeto, a união estável possui indisfarçável, caráter secundário - e, até mesmo, negativo - em relação ao casamento.

Apresentam-se, no projeto, quanto ao tema da união estável, retrocesso de direitos decorrentes do texto constitucional, violações ao princípio da igualdade, com tratamento discriminatório a essa entidade familiar, bem

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como incompatibilidade entre os valores dominantes do texto projetado e a tábua axiológica constitucional. Sob esse aspecto, portanto, o projeto é inconstitucional.

3.2. Da adoção - retrocesso em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Constituição Federal, em seu art. 227, prevê:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida (...) à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (...) § 6.D

- Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmo direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias.

Impõe a Constituição, portanto, a completa integração da criança ao ambiente familiar, de modo a assegurar-lhe seu pleno desenvolvimento. Isso vem ao encontro do princípio da proteção da dignidade humana, consagrado como fundamento da República.

A convivência familiar da criança ou do adolescente adotado deve se dar, por força dessas normas constitucionais, de modo a evitar-se distinção de tratamento com relação aos filhos consangüíneos, bem como integrá-los plenamente ao ambiente da família. Isso implica dizer que a adoção gera relações de parentesco entre o adotado e os parentes do adotante. Trata-se de superação de uma perspectiva voluntarista - em que o parentesco se estabeleceria apenas em relação àquele que manifestou a vontade de adotar - para reconhecer

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que a proteção da criança é princípio de ordem pública, acima das vontades individuais, concebidas nos moldes tradicionais.

Nessa linha de raciocínio, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabeleceu as regras para adoção, em consonância com a nova ordem constitucional, de respeito à dignidade humana e proteção ao menor.

O Estatuto privilegia a plena integração do adotado à família do adotante, não possuindo qualquer dispositivo que restrinja o seu parentesco com. os parentes do adotado. Mais que isso, o Estatuto prevê, além da imposição dos mesmos direitos e qualificações que os filhos consangüíneos, direitos sucessórios recíprocos entre os parentes do adotante e o adotado.

Art. 41 - A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-os de qualquer vinculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. § 2.° - é recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes e colaterais até o quarto grau, observada a ordem de vocação hereditária.

A previsão acerca dos direitos sucessórios implica a conclusão de que, efetivamente, a adoção, no Estatuto da Criança e do Adolescente, não restringe as relações de parentesco apenas ao adotante e ao adotado, estendendo-as, também, aos parentes do adotante. Tal entendimento està em consonância com a idéia de plena integração do adotado à família do adotante.

Também o art. 47, § 1.° do Estatuto, ao prever que lia inscrição (no registro civil) designará o nome dos

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adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes", deixa evidente que os efeitos da adoção se estendem aos parentes do adotante. Antonio Chaves, ao comentar observação de Veliounski, acerca de reciprocidade do direito a alimentos entre o adotado e os ascendentes do adotante, afirma ué de perfeita atualidade no que diz respeito à (adoção) contemplada nos arts. 39­52 do Estatuto da Criança e do Adolescente que dispensa qualquer adesão dos parentes do adotante e não restringe mais os efeitos unicamente aos adotantes e aos adotados."1o

Esses direitos, sejam eles de ordem patrimonial, sejam ligados à própria idéia de convivência familiar, decorre diretamente do texto constitucional, em seu título VIII, que trata da ordem social.

Por conseguinte, o direito à plena integração do adotado à família do adotante, estabelecendo vínculos de parentesco também com os parentes deste, é imposto pela Constituição e pelo estatuto da Criança e do Adolescente sendo inconstitucional o retrocesso desses direitos.

Sem embargo, o Projeto do Código Civil, contrariando o disposto na Constituição e operando retrocesso em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê:

Art. 1628 - Os efeitos da adoção começa a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto se o adotante vir a falecer no curso do procedimento, caso em que terá força retroativa àdata do óbito. As relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também, entre aquele e os descendentes deste.

10 CHAVES, Antonio. Adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 443.

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Percebe-se, pois, que o diploma legal projetado restringe as relações de parentesco entre adotante, adotado e descendentes deste. Os ascendentes, demais descendentes e colaterais do adotante não possuírem relação de parentesco com o adotado, no texto do projeto, ao menos numa exegese literal.

Essa restrição viola o dispositivo constitucional que prevê o direito da criança à convivência familiar, que implica, necessariamente, sua plena integração à entidade familiar da qual passa a fazer parte.

Constitui, também, violação direta à ordem constitucional que prevê a igualdade entre os filhos: no seio da família, haverá um novo ente que, embora possua relação de parentesco com seus pais adotivos, não a possuirá com os "avós", "irmãos", ou outros colaterais. Operar-se-á, pois, tratamento diferenciado do adotado, pelo Direito, em suas relações com a família a qual, pela adoção, deveria se integrar.

Todavia, além da inconstitucionalidade por violação direta aos mencionados dispositivos constitucionais, há, também, a inconstitucionalidade por conta do retrocesso de direitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme exposto, garante o parentesco do adotado com a família do adotante, uma vez que estabelece direitos sensoriais recíprocos entre eles.

Tais relações de parentesco, com os direitos ­inclusive os sucessórios, literalmente contemplados pela lei - daí decorrentes, serão suprimidas se o Projeto do Código Civil vier a entrar em vigor. São, portanto, direitos decorrentes da proteção constitucional à criança, ao adolescente e à própria família que estariam sendo, de modo inconstitucional, suprimidos.

Desse modo, apresenta-se flagrante inconstitucionalidade no capítulo do Projeto do Código Civil destinado à regulação da adoção.

Mais que isso, é flagrante, também, a incompatibilidade dos valores presentes no projeto com

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aqueles consagrados no ECA e na Constituição. Perceba­se que este - pretendendo revogar as disposições do Estatuto da Criança acerca do tema - não estabelece instrumentos que busquem garantir o bem-estar do adotado, como o artigo 46 do ECA, em que prevê um estágio de convivência com a criança e com o adolescente, para que seja possível aferir-se a convivência da adoção. Escreve Josiane Petry Veronese:

Consideramos corretíssimos os procedimentos da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), pois não se trata de levar para nossas casas um animalzinho a ser domesticado; trata-se antes de uma criatura humana que sofreu, por inúmeras razoes sociais, psíquicas, econômicas, uma ação de abandono por parte de seus genitores. Assim, é evidente que se tome alguns cuidados básicos para obstar que um segundo processo de rejeição ocorra. 11

o projeto também menciona a vedação de observações, no Registro Civil, sobre a origem do vínculo, proibição esta explicitamente contemplada pelo art. 47 do ECA. Todavia, com o silêncio do projeto, pretende-se revogar tal dispositivo, de modo que, a rigor, a vedação deixa de existir ao menos no texto da codificação projetada.

O projeto também não prevê a irrevogabilidade da adoção, contemplada pelo art. 48 do ECA. Na ausência de previsão expressa, é possível vislumbrar-se a viabilidade jurídica de uma pretensão visando à desconstituição do vinculo, o que viola, por evidente, os dispositivos constitucionais mencionados, que asseguram

11 VERONESE, Josiane Petry. Filiação Adotiva. In: Direito de Família Contemportineo, 1997. p. 610.

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igualdade entre os filhos e plena integração familiar do adotado.

Inconstitucional, portanto, o Projeto, também no que toca o tema específico da adoção.

3.3. Do Código de Defesa do Consumidor

o Código de Defesa do Consumidor foi editado atendendo ao disposto no art. 48 do Ato da Disposições Constitucionais Transitórias.

Essa previsão do ADCT, a seu turno, tem por fim fazer assegurar o disposto no art. 170 da Constituição, que prevê:

Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor.

Essa norma decorre do princípio constitucional da igualdade, que não se limita à sua dimensão formal, visando, também, a uma igualdade substancial. Conforme escrevem Cláudio 80natto e Paulo Valério Dal Pai Moraes:

o consumidor, no mundo moderno, foi obrigado a estar submisso aos fornecedores de produtos ou de serviços, como única forma de satisfazer suas necessidades básicas." (...) "Esta situação de desequilíbrio, todavia, é prejudicial para o convívio harmônico como um todo, pois fere o fundamento maior da dignidade da

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pessoa humana, motivo pelo qual surgiu o CDC, como forma de igualar integrantes da relação de consumo ( ... ) 12

o COC é, portanto, decorrência direta da Constituição de 1988. todavia, o Projeto do Código Civil ignora por completo as conquistas presentes no COC, em pouco diferindo o Livro das Obrigações presente no projeto daquele existente no Código de 1916.

Sem embargo, a aplicabilidade do COC às relações de consumo, após sua edição, tornou-se pacífica, seja por conta da especialidade da matéria, como também, por conta da aplicação de regras de direito intemporal. O COC, por evidente, sendo diploma legal posterior ao Código Civil, afasta disposições em contrário presentes no Código Civil.

Caso o projeto de codificação seja aprovado, há o risco de, aplicando-se as mesma regras de direito intemporal, tomarem-se por revogadas disposições do COC, sem embargo da especialidade da matéria ali disciplinada. O Projeto do Código Civil, desde o início ­como se pode perceber pela disciplina do Direito da Empresa e dos títulos de crédito - pretendeu a unificação do Direito Privado. A inexistência de menção no projeto à possibilidade de as matérias ali reguladas, quando se tratarem de relações de consumo, serem submetidas ao Código de Defesa do Consumidor, pode, em consonância com a pretensão de unificação já exposta, levar à conclusão de que esse diploma legal estaria revogado, ainda que tacitamente, pela lei posterior, no caso, o Código Civil.

Não há, no projeto, nenhuma disposição que ofereça um indicativo acerca das quais situações são abrangidas pelo Código Civil e quais seriam reguladas pelo COCo O

12 BONATTO, Cláudio. e MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 1998. p. 31.

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projeto silencia sobre esse aspecto, colocando em risco a proteção ao consumidor, que, conforme exposto, é princípio constitucional.

O projeto de codificação não contempla as inovações presentes no COC, de modo que, caso se entenda pela revogação, total ou parcial, desse diploma legal- hipótese possível, diante do silêncio do projeto - estar-se-á diante de inconstitucionalidade, decorrente do retrocesso de direitos, bem como, da violação ao princípio da igualdade, por estar afastada a proteção do hipossuficiente, não prevista no projeto.

3.4. Da impenhorabilidade do bem da família

A proteção constitucional assegurada à família na pessoa de cada um de seus membros, o direito a uma existência digna, bem como a preocupação com a igualdade, em sua dimensão substancial, levaram à edição da Lei 8.009/90.

O referido diploma legal, na esteira da ordem principiológica da Constituição Federal, dispõe:

Art. 1.° - O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo as hipóteses previstas em lei.

O dispositivo legal, ao não exigir escritura pública para a constituição do bem de família, visou a oferecer à entidade familiar a proteção - assegurada pela Constituição - à dignidade de seus membros, com a

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garantia de um patrimônio impenhorável, consistente na residência da família, independente da manifestação expressa de vontade.

Essa norma vem ao encontro da proteção ao hipossuficiente, decorrente do princípio constitucional da igualdade, em sua dimensão substancial: a exigência de escritura pública, presente no Códjgo de 1916, oferecia óbices de ordem prática à instituição do bem de famllia por parcelas menos favorecidas da população que, com dificuldades, conseguiam amealhar um patrimônio mínimo, ao menos para assegurar sua moradia.

Sem embargo, o Projeto do Código Civil, pretendendo revogar o disposto na Lei 8.009/90 (conforme se infere no artigo 2.046 do Projeto), prevê:

Art. 1711 - Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição.

Percebe-se o evidente retrocesso operado pela primeira parte do artigo, ao exigir - como o Código Civil de 1916 - que a instituição do bem de família se dê por escritura pública. Tal retrocesso viola o disposto na Constituição Federal, ao estabelecer que o Estado protegerá a família, na pessoa de seus membros. Deixa de haver a proteção automática a um patrimônio mínimo para exigir-se uma manifestação de vontade que, em uma realidade como a brasileira, constitui exigência cruel, que vem punir a parcela menos instruída da população.

O retrocesso produzido pela primeira parte do art. 1711 seria, por si só, suficiente para eiva-Io de inconstitucionalidade. Todavia, a segunda parte do artigo, que limita a um terço do patrimônio líquido da entidade

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familiar a massa de bens que pode constituir bem de família, viola frontalmente o princípio da igualdade substancial - além de, da mesma forma que a exigência de registro, constituir retrocesso inconstitucional, por revogar norma de proteção à família.

A segunda parte do artigo impede que as pessoas economicamente menos favorecidas - a maior parte da população - instituam - ainda que por escritura pública ­bem de família, uma vez que, quem for proprietário de um único imóvel, jamais poderá se utilizar desse permissivo legal. De outro lado, aquelas famílias pertencentes às camadas mais privilegiadas da população gozarão do benefício da impenhorabilidade, qualquer que seja o valor dos seus imóveis.

A regra que o projeto pretende inserir no ordenamento jurídico positivo é flagrantemente inconstitucional: trata igualmente os desiguais, contribuindo para a ampliação da desigualdade, uma vez que as famílias que possuem um único imóvel poderão ver sua residência penhorada e alienada judicialmente, ao passo que as famílias com patrimônios maiores terão assegurada sua moradia, reputada impenhorável.

O art. 1711 revela a postura eminentemente patrimonialista do projeto, que coloca o direito de crédito ­que vale, dizer, não é expressamente contemplado pela Constituição - acima do valor da dignidade humana ­fundamento da República. Trata-se de um traço que bem demonstra a incompatibilidade do projeto com a ordem constitucional vígente.

A disciplina do bem de família no projeto é, sob esse aspecto, ainda mais ofensiva aos princípios da igualdade substancial, da proteção da pessoa humana e da família que aquela revelada no Código Civil de 1916, que prevê:

Art. 70 - É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com cláusula de ficar

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isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio.

Percebe-se que o Código de 1916, mesmo com sua racionalidade conceitualista e patrimonialista, não estabeleceu restrições quantitativas - em relação ao patrimônio líquido da entidade familiar - para assegurar a possibilidade de instituição do bem de família.

Desse modo, o dispositivo previsto no projeto de codificação constitui, além de ofensa à Constituição, retrocesso, até mesmo, em relação ao Código Civil a que pretende substituir.

4. Do Controle Preventivo de Constitucionalidade

A análise do projeto realizada neste parecer permite concluir-se pela sua inconstitucionalidade, devida ao fato de privilegiar uma visão eminentemente patrimonialista, em detrimento da proteção à dignidade da pessoa humana. A inconstitucionalidade foi ressaltada a partir dos aspectos - não exaurientes - apontados no texto do projeto.

Percebe-se, pois, que, diante da inadequação do projeto de codificação à nova ordem constitucional, sua aprovação pela Câmara dos Deputados não é oportuna. Cabe ao Congresso Nacional exercer o controle prévio de constitucionalidade dos atos normativos. Ensina Clemerson Merlin Cleve:

A fiscalização da constitucionalidade pode ser definia, ainda, pelo momento da sua realização. Assim, odireito com parado aponta para um (i) fiscalização preventiva (ou a priori), ocorrente em

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momento anterior ao início da vigência do ato normativo (...).13

No Brasil, o controle preventivo de constitucionalidade cabe ao Poder legislativo, realizando a aferição da adequação ou não de um diploma legal projetado ao sistema constitucional vigente.

Referências:

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CORDEIRO, António Menezes. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Almedina, 1988. p. 81.

13 CLÉVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 58.

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