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139 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 139-170, junho, 2013 A supremacia do Poder Temporal sobre o Espiritual no Leviatã de Thomas Hobbes 1 Guido Antônio Ferreira 2 Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar a supremacia do Poder Temporal, o Estado, sobre o Poder Espiritual, a Igreja, no livro Leviatã, do pensador inglês Thomas Hobbes, para quem os homens, em seu estado de natureza, no qual todos são iguais e possuem os mesmos direitos e aspirações, vivem em permanente estado de guerra de todos contra todos, gerando o medo da morte natural prematura e violenta. Esse medo só será afastado quando os homens, por meio de um pacto, transferirem a um ente superior o direito de conduzi-los, protegendo-os de si mesmos. Esse ente é o Estado ou Poder Temporal. Também pelo seu estado de natureza, o homem busca respostas para suas inquietações quanto às causas das coisas, sobre o seu futuro e para o medo da morte eterna, surgindo daí a religião e, com ela, o Poder Espiritual. Para Hobbes, porém, o Poder Temporal deverá estar acima do Poder Espiritual e submetê-lo, sob pena de, não o fazendo, sucumbir. O artigo constitui-se de três tópicos: o primeiro, tendo como referência o surgimento do Estado a partir do estado de natureza do homem; o segundo, também a partir do estado de natureza do homem, o surgimento da religião; e, finalmente, no terceiro, a supremacia do Poder Temporal sobre o espiritual, segundo Hobbes. Palavras-chave: Leviatã. Estado. Medo. Poder Temporal. Poder Espiritual. 1 Orientador: Osmair Severino Botelho. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá. E-mail: <[email protected]>. 2 Licenciado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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139Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 139-170, junho, 2013

A supremacia do Poder Temporal sobre o Espiritual no Leviatã de Thomas Hobbes1

Guido Antônio Ferreira2

Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar a supremacia do Poder Temporal, o Estado, sobre o Poder Espiritual, a Igreja, no livro Leviatã, do pensador inglês Thomas Hobbes, para quem os homens, em seu estado de natureza, no qual todos são iguais e possuem os mesmos direitos e aspirações, vivem em permanente estado de guerra de todos contra todos, gerando o medo da morte natural prematura e violenta. Esse medo só será afastado quando os homens, por meio de um pacto, transferirem a um ente superior o direito de conduzi-los, protegendo-os de si mesmos. Esse ente é o Estado ou Poder Temporal. Também pelo seu estado de natureza, o homem busca respostas para suas inquietações quanto às causas das coisas, sobre o seu futuro e para o medo da morte eterna, surgindo daí a religião e, com ela, o Poder Espiritual. Para Hobbes, porém, o Poder Temporal deverá estar acima do Poder Espiritual e submetê-lo, sob pena de, não o fazendo, sucumbir. O artigo constitui-se de três tópicos: o primeiro, tendo como referência o surgimento do Estado a partir do estado de natureza do homem; o segundo, também a partir do estado de natureza do homem, o surgimento da religião; e, finalmente, no terceiro, a supremacia do Poder Temporal sobre o espiritual, segundo Hobbes.

Palavras-chave: Leviatã. Estado. Medo. Poder Temporal. Poder Espiritual.

1 Orientador: Osmair Severino Botelho. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá. E-mail: <[email protected]>.2 Licenciado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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1. INTRODUÇÃO

Este artigo, baseado na obra Leviatã, do filósofo inglês Thomas Ho-bbes, pretende demonstrar que, para esse autor, o poder do Estado deve ser soberano e superior a qualquer outro poder, inclusive o religioso.

O interesse pelo tema surgiu pela forma como Hobbes enxergava a natureza humana, totalmente oposta ao que até sua época se havia pensa-do. Até então, prevalecia o pensamento aristotélico de que o homem era um ser político por natureza e que se realizava plenamente no relaciona-mento social, na pólis. Hobbes afirma exatamente o contrário. Para ele, o homem não sente prazer algum em viver em sociedade, e só o faz por necessidade, a contragosto.

Para Hobbes, os homens, em seu estado de natureza, no qual todos são iguais e possuem os mesmos direitos e aspirações, vivem em perma-nente situação de guerra de todos contra todos, gerando o medo da morte natural prematura. Esse medo só será afastado através de um pacto pelo qual transferem a um ente superior o direito de conduzi-los, protegendo--os de si mesmos. Esse ente é o Estado ou poder temporal que, para o filósofo inglês, deve ser absoluto.

Segundo Hobbes, a saída dessa situação de guerra de todos contra todos se dá, pois, pela criação, por meio do pacto, desse ente superior po-derosíssimo, que passa a ser o guardião da segurança, da paz e da concórdia entre os homens. Sem ele, isso seria impossível. Tão grande é seu poder, que Hobbes se utiliza, para denominá-lo, de um nome bíblico extraído do livro de Jó, Leviatã.

Por outro lado, também pelo seu estado de natureza, o homem busca respostas para suas inquietações quanto às causas das coisas, ao seu pró-prio futuro e ao medo da morte eterna. Surge, dessa maneira, a religião e, com ela, um segundo tipo de poder, o espiritual. O poder temporal e o poder espiritual terão então de conviver, porém nem sempre de maneira cordial.

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Para o filósofo inglês, é necessário que o poder temporal, o Estado, seja absoluto, inclusive em matéria de religião. Assim, o poder espiritu-al deverá, necessariamente, submeter-se ao poder temporal, sob pena de, não o fazendo, dividi-lo e, consequentemente, destruí-lo, impedindo que ele cumpra a função para a qual foi criado.

O presente trabalho é um artigo de revisão bibliográfica que se anco-ra, inicialmente, no próprio autor por meio da leitura de alguns capítulos da obra referenciada e, além disso, recorre a alguns comentadores para fundamentar a tentativa de demonstrar o que foi proposto. Entre esses co-mentadores, destacamos Giovanni Reale, Dario Antiseri, Renato Janine Ribeiro e Jean-Jacques Chevallier como os mais utilizados.

O trabalho foi estruturado em três tópicos; o primeiro teve como referência o surgimento do Estado a partir do estado de natureza do ho-mem; o segundo, teve como referência o surgimento da religião, também a partir do estado de natureza do homem e, finalmente, o terceiro tópico busca fundamentar a visão de Hobbes sobre a supremacia do poder tem-poral sobre o espiritual.

2. DO HOMEM NATURAL À SOCIEDADE CIVIL OU ES-TADO

Neste tópico, procuramos demonstrar que, para o filósofo inglês Thomas Hobbes, o homem, em seu estado de natureza, possui toda a li-berdade possível e, ao contrário do que ensinava Aristóteles, só se socializa por necessidade, não tendo prazer algum na convivência com seus seme-lhantes. No entanto, essa vida social forçada nem sempre é pacífica; pelo contrário, torna-se uma constante luta de todos os homens contra todos. Um permanente estado de guerra, um constante medo da morte prema-tura.

Para mudar essa situação, os homens, racionalmente, por meio de um pacto, constituem um poder superior, artificial, capaz mantê-los em paz e em segurança. Esse poder é o Estado, que aqui também chamaremos de Poder Temporal.

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Porém, para Hobbes, esse poder deve ser de tal forma superior que nada lhe possa ameaçar, sendo, assim, absoluto. Surge então o Estado ab-solutista, cujo poder é supremo e ilimitado e cuja destituição é impossível.

O homem em seu estado de natureza

Em 1588, a Inglaterra encontrava-se política e economicamente conturbada, com disputas internas entre o Rei, o Parlamento e a burgue-sia; o desenvolvimento do capitalismo mercantil; e uma cisão com a Igreja Católica que, inclusive, provocou a intervenção espanhola que para lá en-caminhou sua Invencível Armada. Naquele ano nasceu Thomas Hobbes (1588-1679), que se autodenominou “filho do medo”, porque sua mãe, por medo da Armada Espanhola, teve o parto antecipado. Isso, confor-me alguns autores, como Jean-Jacques Chevallier e Renato Janine Ribei-ro, vai influenciar muito seu pensamento filosófico. Chevallier (1982, p. 357-358), por exemplo, escreve que Hobbes “[...] era vítima de um tem-peramento anormalmente sensível ao temor” e que “[...] foi um dos que primeiro fugiram de uma Inglaterra atormentada por tantas desordens”.

O medo, portanto, fazia parte não só da vida do pensador inglês, mas de toda a Europa seiscentista. Sobre isso, escreve Mondin (1981, p. 101):

Reinhart Koselleck, perspicaz estudioso do pensamento políti-co da Idade Moderna, observa, a propósito da filosofia política de Hobbes, que ela não é uma especulação abstrata como podia ser a de Campanella, mas determinada pelas experiências da história do tempo, história cheia de ódios, guerras e vinganças: A Alemanha é dilacerada pela guerra dos trinta anos, e a França e a Inglaterra são afligidas por sangrentas lutas civis. Com a sua teoria política, Hob-bes quer primeiramente oferecer uma explicação do comportamen-to belicoso da humanidade e, em seguida, encontrar uma concepção do Estado que garanta uma associação pacífica entre os homens.

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É nesse meio bélico que nasce e ganha corpo o pensamento político de Hobbes. Nesse sentido, prossegue Mondin, transcrevendo Koselleck:

O sistema de Hobbes adquire organicidade somente pela referência à guerra civil e ao supremo mandamento racional que dela brota, a saber, o de pôr fim à guerra civil: a moral impõe a submissão ao senhor; o senhor põe fim à guerra civil e com isso cumpre o manda-mento supremo da moral. (KOSELLECK apud MONDIN, 1981, p. 101).

De certa forma, portanto, Hobbes não pode impedir que esse medo, do qual se diz filho, influencie seus escritos posteriores, que têm como objetivo a convivência pacífica entre os homens, a tentativa quase deses-perada de evitar as guerras e construir um tempo de paz. “A sua teorização do absolutismo tem suas raízes, sobretudo, no terror pelas guerras que en-sanguentaram a sua época” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 483). A base, pois, de sua filosofia é que os homens, em seu estado natural, são propen-sos à luta, às desavenças e à morte prematura e violenta.

No capítulo XIII do Leviatã, “Da Condição Natural do Gênero Hu-mano no que Concerne à sua Felicidade e à sua Desgraça”, o pensador in-glês apresenta sua análise sobre o ser humano e seu relacionamento social. Para ele, a natureza criou os homens iguais, tanto física quanto intelectu-almente, de forma que nenhum homem se considera inferior ao outro e disso resulta que todos os homens possuem os mesmos desejos e ambições e iguais condições para alcançá-los, o que os leva a uma permanente situa-ção de competição. Conclui Hobbes (1974, p. 78-79) que:

Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria con-servação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir um ao outro.

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Em História da Filosofia, Julian Marías escreve a respeito da natureza do homem em Hobbes, explicando que o filósofo inglês:

[...] parte da igualdade entre todos os homens. Acredita que todos aspiram ao mesmo; quando não alcançam, sobrevêm a inimizade e o ódio; quem não consegue o que lhe apetece, desconfia do outro e, para se precaver, o ataca. Daí a concepção pessimista do homem de Hobbes; homo homini lúpus, o homem é o lobo do homem. (MA-RÍAS, 2004, p. 273).

Em relação à sociabilidade há, portanto, uma grande divergência de pensamentos entre Hobbes e Aristóteles, para quem, segundo Reale e An-tiseri (1990, p. 495), “[...] o homem é ‘animal político’”, ou seja, constitu-ído de tal modo que, por sua própria natureza, é feito para viver com os outros em sociedade politicamente estruturada”. Dizem sobre Aristóteles os referidos autores que:

Ademais, ele identificava essa condição de “animal político” do ho-mem com o estado próprio também de outros animais, como as abelhas e as formigas, que desejando e evitando as mesmas coisas e voltando suas ações para fins comuns, se agregam espontaneamente. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 495).

O próprio Hobbes (2000, p. 125-126) justifica essa divergência de pensamentos com Aristóteles enumerando seis argumentos que podem ser resumidos da seguinte forma: primeiro “[...] que os homens, constan-temente, se envolvem em competição pela Honra e pela Dignidade”, o que não ocorre entre os animais; segundo, que não há, entre os animais, “[...] diferença entre o bem Comum e o bem Individual e, já que tendem para o bem individual, por natureza, acabam por promover o bem co-mum” e “[...] o homem só encontra felicidade na comparação com outros homens”; terceiro argumento: como os animais não fazem uso da razão, não conseguem comparar ou julgar qualquer “[...] erro na administração da sua vida em comum”; quarto, os animais, embora possam emitir sons,

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não se utilizam da palavra, com a qual os homens podem tentar enganar uns aos outros; quinto, Hobbes afirma “[...] que Injúria e Dano não são distinguidos pelas criaturas irracionais e, consequentemente, basta que es-tejam satisfeitas para nunca se sentirem ofendidas por seus semelhantes”, enquanto o homem, quanto mais satisfeito, mais possuir, mais estará pro-penso a dominar seus semelhantes e o Estado; e, finalmente, sexto, “[...] enquanto o acordo vigente entre essas criaturas é Natural, entre os ho-mens surge apenas através de um Pacto, isto é, Artificialmente”.

Assim, o homem hobbesiano traz em seu estado natural três causas principais de discórdia: a competição, a desconfiança e a glória que, res-pectivamente, têm como objetivo o lucro, a segurança e a reputação. Ora por causa de uma, ora por causa de outra, os homens estão constantemen-te em guerra e essa é “[...] uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 1974, p. 79) e não terá fim a menos que um poder comum, acima dele, possa contê-los e manter a paz. E, mesmo que a guerra não ocorra o tempo todo, como de fato não ocorre, permanece constantemente o que Hobbes chama de “disposição para tal” (1974, p. 80), ou seja, para a guerra. Essa disposição constante de certa forma impe-de que haja tempo ou condição suficiente para qualquer outra atividade, seja a indústria, o comércio, a navegação, o plantio e a própria vida so-cial. “E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (HOBBES, 1974, p. 80).

A conclusão não poderia ser outra senão a de que “[...] o homem deve sair desse estado, sob pena de destruição da espécie. Essa possibili-dade está ao seu alcance, graças a algumas de suas paixões e também à sua razão” (CHEVALLIER, 1982, p. 360).

O problema seguinte é, pois, como sair desse estado natural de medo e guerras e construir o Estado de segurança e tranquilidade. Vejamos o que propõe Hobbes.

Para solucionar esse problema da disputa pelas mesmas coisas e ga-rantir a preservação da vida, Hobbes só encontra uma resposta: o homem terá que abdicar de seu direito de natureza que pode a qualquer tempo conduzi-lo à morte, em benefício de buscar uma vida mais longa e tran-

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quila. No estado de natureza, o homem possui toda liberdade que suas forças podem permitir e enquanto elas forem suficientes para tanto. Li-berdade, segundo Hobbes (1974, p. 82), é o direito “[...] que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira como quiser, para preser-vação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”. Como consequência, terá que viver constantemente em alerta e sua vida não deverá ser muito longa, porque a qualquer momento pode vir a perdê-la pela maior força de outro homem. Para Hobbes (1974, p. 79), “[...] os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito”.

Por isso, há a necessidade de sair do seu estado de natureza e criar um Estado artificial que garanta a paz e a tranquilidade para produzir e manter os meios que garantam sua vida, desse Estado artificial, poder co-mum, acima de todos os homens, capaz de mantê-los em respeito e paz, trataremos a seguir.

A formação do estado artificial ou sociedade civil

Na segunda parte do Leviatã, no capítulo XVII, Hobbes vai tratar “Das Causas, Geração e Definição de um ESTADO”.

Pelo medo da morte prematura e pela “[...] preocupação com a própria conservação e garantia de uma vida mais feliz”, segundo Hobbes (2000, p. 123), o homem vai abdicar do direito à liberdade individual e natural para passar a viver sob a proteção de um Estado, ao qual concederá o direito de dirigir e orientar seus relacionamentos. Nesse sentido, escreve Julián Marías (2004, p. 274), “[...] para conseguir segurança, o homem tenta substituir o status naturae por um status civilis, mediante um convê-nio em que cada um transfere seu direito para o Estado”.

Portanto, somente quando o homem ceder parte de sua liberdade natural, abdicando de seu direito a todas as coisas, e entregar a outro o

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direito de governá-lo, obterá um pouco de paz. Isso, para Hobbes, se dará através de um pacto, de um contrato, artificialmente, gerando o Estado.

Significa muito mais que Consentimento ou Concórdia, pois é uma Unidade real de todos, numa só e mesma Pessoa, através de um Pac-to de cada homem com todos os homens, de modo que seria como se cada homem dissesse a cada homem: Autorizo e desisto do Direito de Governar a mim mesmo a este Homem, ou a esta Assembléia de homens, com a condição de que desistas também de teu Direito, Auto-rizando, da mesma forma, todas as suas ações. Dessa forma, a Multi-dão assim unida numa só Pessoa passa a chamar-se Estado, em latim CIVITAS. (HOBBES, 2000, p. 126).

No início do capítulo XVIII, assim se expressa Hobbes (2000, p. 128) a respeito da instituição do Estado:

Um Estado é considerado Instituído quando uma Multidão de ho-mens Concorda e Pactua, que a qualquer Homem ou Assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o Direito de Representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu Representante), todos sem exceção, tanto os que Votaram a favor dele como o que Votaram con-tra ele, deverão Autorizar todos os Atos e Decisões desse homem ou Assembléia de homens, como se fossem seus próprios Atos e Deci-sões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem protegidos dos restantes dos homens.

Marilena Chauí, de uma forma bastante clara, assim resume o surgi-mento do Estado, segundo Hobbes:

A passagem do estado de natureza ao estado civil ou à sociedade ci-vil se dá por meio de um pacto social ou contrato social, pelo qual os indivíduos concordam em renunciar à liberdade natural (ou ao poder para fazer tudo o que se quer, desde que nenhum obstáculo impeça a ação) e à posse natural de bens e armas e em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis (determi-

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nando o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o permitido e o proibido), usar a força (encarregando-se, em nome de todos, de vingar os cri-mes), declarar a guerra e a paz. (CHAUÍ, 2008, p. 373).

Assim, fica demonstrada a forma de constituição do Estado hobbe-siano e antecipada sua magnitude, seu poder absoluto, de que trataremos em seguida.

O estado absolutista

Hobbes vai ainda mais longe. Não se contenta com a simples cons-tituição do Estado. Ele entende que, sem um amplo poder, o da espada, de nada adiantaria esse pacto e ele facilmente seria rompido. Como as leis de natureza, como justiça, equidade, modéstia e piedade são contrárias às nossas Paixões naturais, que são a parcialidade, o orgulho, a vingança e outras mais, “[...] se não houver o Temor de algum Poder” (HOBBES, 2000, p. 123) externo que as submeta, facilmente as paixões prevalecerão e o pacto será quebrado. “Sem a espada, os Pactos não passam de palavras sem força que não dão a mínima segurança a ninguém”, afirma Hobbes (2000, p. 123).

Tão poderoso deve ser o Estado que Hobbes não encontra figura melhor para denominá-lo que o grande Leviatã, nome bíblico retirado do Livro de Jó, que corresponde a um enorme e poderoso monstro marinho, cuja força é assim descrita:

Poderás tu fisgar Leviatã com um anzol e amarrar-lhe a língua com uma corda? Serás capaz de passar um junco em suas ventas ou de furar-lhe a mandíbula com um gancho? [...] Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem o resistiria face a face? Quem pôde afrontá-lo e sair com vida, debaixo de toda a extensão do céu? ( JÓ, 40, 20-21; 41, 1-2).

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Nesse sentido nasce o Estado artificial, centralizando todos os po-deres que antes pertenciam aos indivíduos e que, a partir de então, deve guardar o cumprimento dos contratos pactuados. Esse é o Estado a ser constituído segundo Hobbes. Um Deus mortal, abaixo apenas do Deus Imortal, com imenso poder, dessa forma descrito por Marías (2004, p. 274):

O Estado assim constituído é absoluto: seu poder, o mesmo que o indivíduo tinha antes, é irrestrito; o poder não tem outro limite senão a potência. Quando os homens se despojam do seu poder, o Estado o assume integralmente, manda sem limitação; é uma máquina po-derosa, um monstro que devora os indivíduos e sobre o qual não há nenhuma outra instância.

Assim o próprio Hobbes define o Estado, esse grande Leviatã, o Deus mortal:

A essência do Estado consiste nisso e pode ser assim definida: Uma Pessoa instituída, pelos atos de uma grande Multidão, mediante Pactos recíprocos uns com os outros, como Autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a Paz e a Defesa Comum. O titular dessa pessoa chama-se SOBE-RANO, e se diz que possui Poder Soberano. Todos os restantes são SÚDITOS. (HOBBES, 2000, p. 126).

Fica claro, portanto, o poder absoluto que terá essa pessoa instituída, investida na condição de soberania e, ainda, que todos os demais serão seus súditos e lhe prestarão obediência. O que concretiza e faz com que a força do soberano seja absoluta é o fato de que não há volta, ou seja, uma vez celebrado o pacto e constituído o Estado, os súditos perdem o direito de retomarem o poder e, portanto, a qualquer tipo de rebelião ou revolu-ção. Sobre isso, assim escreve Hobbes (2000, p. 128): “Os súditos de um Monarca não podem, sem a sua licença, renunciar à Monarquia, regredin-do ao estado de confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua

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pessoa, daquele que a sustenta, para outro Homem ou outra Assembléia de homens”.

Segundo Nicola Abbagnano (2000, p. 68), “[...] a teoria hobbesiana do Estado é uma característica típica do absolutismo político. Hobbes, de fato, insiste em primeiro lugar na irreversibilidade do pacto fundamental. Uma vez constituído o Estado, os cidadãos não podem dissolvê-lo negan-do-lhe o seu consenso”.

Para Ribeiro (1978, p. 51), o poder do Estado “[...] não prolonga uma realidade anterior, mas possui o peso do novo e o vigor do inaugural”. E, complementa Ribeiro (1978, p. 51): “[...] o Estado suprime a autono-mia e mesmo a existência (a não ser física) das antigas individualidades”.

Hobbes chama essa forma de Estado, “[...] quando os homens con-cordam entre si em submeterem-se voluntariamente a um Homem ou As-sembléia de homens, esperando serem protegidos contra todos os outros” (2000, p. 127), de Estado por Instituição, diferenciando-o do outro tipo, proveniente de conquistas de guerra, a que vai chamar Estado por Aqui-sição.

Não é difícil perceber, a partir dessas considerações, que Hobbes vai defender o Estado Absolutista, cujo poder era centralizado na figura do Rei que criava e estabelecia as leis conforme sua vontade e aquilo que en-tendesse melhor para os súditos, além de concentrar em si todo o poder de polícia e justiça. Sobre isso, vejamos o que escrevem Aranha e Martins (1993, p. 211):

A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deve ser total, caso contrário, um pouco que seja conservado da liberdade natural do homem, instaura-se de novo a guerra. E se não há limites para ação do governante, não é sequer possível ao súdito julgar se o so-berano é justo ou injusto, tirano ou não, pois é contraditório dizer que o governante abusa do poder: não há abuso quando o poder é ilimitado!

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Para que isso ocorresse, Hobbes defendia que o soberano não par-ticipasse do pacto. Assim, ele permanecia “[...] como o único a manter todos os direitos originários”, como escrevem Reale e Antiseri (1990, p. 498), pois, se assim não fosse, e se ele participasse do Pacto, “[...] não se eli-minariam as guerras civis, porque nasceriam contrastes diversos na gestão do poder”, completam (1990, p. 498). Para esses mesmos autores:

O poder do soberano (ou da assembleia) é indivisível e absoluto. Essa é a mais radical teorização do Estado absolutista, deduzida não do “direito divino” (como havia sido feito no passado), mas sim do “pacto social” que descrevemos (REALE; ANTISERI, 1990, p. 498).

Assim, concluindo este tópico, lembramos Jean-Jacques Chevallier, para quem Hobbes, “[...] atormentado pelas desordens da Inglaterra de sua época, teve por único propósito, ao escrever seu livro, colocar diante dos olhos dos contemporâneos a mútua relação que há entre a proteção e a obediência” (1982, p. 363).

Proteção e obediência que também encontraremos na religião, como veremos a seguir.

3. A RELIGIÃO E O PODER ESPIRITUAL

Trataremos neste tópico de outra situação que, segundo Hobbes, o homem enfrenta em seu estado de natureza: o medo do desconhecido, a dificuldade de explicar certas situações em sua vida, o medo da morte eter-na. Para Hobbes, só o homem possui sinais de religiosidade. O homem, então, busca respostas para suas angústias e suas incertezas em Deus e, a partir daí, surge a religião.

Ou melhor, as religiões, porque Hobbes vai identificar duas espécies delas: aquela ordenada e criada por invenção do próprio homem e aquela que foi ditada ao homem pelo próprio Deus.

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Porém, a religião fará surgir um segundo poder, o Eclesiástico, que aqui também chamaremos de Poder Espiritual. E, evidentemente, deverá haver uma convivência nem sempre pacífica entre esse poder e o Tempo-ral.

A existência de Deus

Como vimos anteriormente, no Leviatã, Hobbes vai tratar da cons-tituição ou do surgimento de um Estado eclesiástico e civil, iniciando sua abordagem escrevendo sobre a natureza humana, causa necessária para a constituição do Estado. Por outro lado, Hobbes identifica, também na natureza humana, um vínculo com o sobrenatural, ou uma necessidade da religião.

Hobbes (1974, p. 69), atribui “sinais ou frutos” de religião apenas nos seres humanos, em razão de três peculiaridades que não encontra nas outras criaturas vivas. A primeira delas é que é da natureza humana, em diferentes graus de um homem para outro, investigar “[...] as causas dos eventos a que assiste”, buscando as razões para sua “[...] boa ou má fortu-na” (HOBBES, 1974, p. 69). Em segundo lugar, é peculiar ao homem, “[...] perante toda e qualquer coisa que tenha tido um começo, pensar que ela teve também uma causa que determinou esse começo” (HOBBES, 1974, p. 69).

Finalmente, a terceira peculiaridade é que, diferentemente dos ani-mais que vivem apenas o momento, sem se preocuparem com ações futu-ras, “[...] o homem observa como um evento foi produzido por outro, e recorda seus antecedentes e consequências” (HOBBES, 1974, p. 69). O mais importante aqui é que, quando não consegue explicações suficientes para os acontecimentos, o homem “[...] supõe causas” (HOBBES, 1974, p. 69) para eles, ou advindas das suas próprias fantasias ou aceitando ex-plicações da “autoridade de outros homens” (HOBBES, 1974, p. 69) que considere seus amigos e mais sábios do que ele próprio.

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As duas primeiras peculiaridades, segundo Hobbes (1974, p. 69), dão origem à ansiedade, porque, conhecendo ou tendo noção das causas e efeitos e preocupado com o futuro, o homem “não encontra repouso nem paz para sua ansiedade a não ser no sono”. Para o filósofo inglês:

Este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das cau-sas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um obje-to. Quando, portanto, não há nada que possa ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou agente invi-sível. Foi talvez neste sentido que alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicados aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios) é muito verdadeiro. (HOBBES, 1974, p. 70).

Porém, Hobbes afirma que “[...] o reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente” (1974, p. 70) pode ter ocorrido em razão de o homem desejar conhecer as causas e consequências mais facil-mente do que do medo do futuro. Isso porque aquele que “[...] mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor, isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coi-sas, que é o que os homens significam com o nome de Deus” (HOBBES, 1974, p. 70).

A origem da religião

O próximo passo para o homem, depois do reconhecimento da exis-tência de Deus, é o surgimento da religião, que, para Hobbes (1974, p. 71), fundamenta-se em quatro pilares: “[...] a crença nos fantasmas, a ig-norância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos”.

O primeiro pilar surge da dificuldade de explicar ou definir de ma-neira compreensível o “[...] Deus infinito, onipotente e eterno” (HOB-

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BES, 1974, p. 70); o segundo, de esperar, supersticiosamente, que coisas idênticas no passado provoquem coisas idênticas no futuro; o terceiro, da propensão natural do homem de reverenciar, com “[...] oferendas, peti-ções, agradecimentos, submissão do corpo” (HOBBES, 1974, p. 71), os poderes invisíveis da mesma forma que faz em relação a outros homens que julgam superiores, e, finalmente, “[...] quanto à maneira como esses poderes invisíveis comunicam aos homens as coisas que futuramente vão ocorrer” (HOBBES, 1974, p. 71), independentemente de ocorrerem ou não.

A seguir, Hobbes distingue duas espécies de religião conforme tam-bém duas são as espécies de homens que as cultivaram. A primeira espécie refere-se à religião daqueles que “[...] as alimentaram e ordenaram segun-do sua própria invenção” (HOBBES, 1974, p. 71). A segunda, “[...] a dos que a fizeram sob o mando e a direção de Deus” (HOBBES, 1974, p. 71). Porém, conclui ele:

Ambas as espécies o fizeram com o objetivo de fazer os que neles confiavam tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil. De modo que a religião da primeira espécie constitui parte da política humana, e ensina parte do dever que os reis terre-nos exigem de seus súditos. A religião da segunda espécie é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como sú-ditos do reino de Deus. (HOBBES, 1974, p. 71-72).

Para Hobbes, os autores da religião dos gentios, que alimentaram e ordenaram a religião conforme sua própria invenção, aproveitavam-se, em cada situação, de um ou mais dos pilares em que se assentam a reli-gião, conforme lhes fosse mais favorável ou que os fizessem atingir seus objetivos. Assim, ora aproveitavam-se da crença em fantasmas, ora da ig-norância das causas segundas, ora da devoção, e ora dos prognósticos de tempos vindouros. Dessa forma, muitos cultos, oferendas e sacrifícios fo-ram oferecidos a cada um dos deuses, inclusive criando-se imagens que os representavam e impunham respeito e medo.

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Sobre prognósticos dos tempos vindouros, por exemplo, os mesmos homens criaram “supersticiosas maneiras de adivinhação”, fazendo outros homens acreditarem que descobririam sua sorte em respostas ambíguas ou destituídas de sentido de sacerdotes, ou através de possessões estra-nhas, profecias, voos e cantos de pássaros, ou ainda, observando entranhas de animais e sonhos (HOBBES, 1974, p. 73). Isso porque, segundo Ho-bbes (1974, p. 74): “Tão fácil é aos homens serem levados a acreditar em qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles, que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância”.

Segundo Hobbes (1974, p. 74), “[...] os primeiros fundadores e le-gisladores de Estados entre os gentios”, objetivando a obediência do povo e a paz, observaram três cuidados: primeiro, incutir na mente do povo a crença de que os preceitos que ditavam, as leis religiosas, não provinham de sua invenção, mas emanavam de algum deus ou espírito ou, ainda, que eles próprios “[...] eram de natureza superior à dos simples mortais” (HO-BBES, 1974, p. 74); segundo, faziam acreditar que “[...] aos deuses de-sagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis” (HOBBES, 1974, p. 74).

Finalmente, prescreviam cerimônias, suplicações, sacrifícios e festi-vais que serviriam para aplacar a ira dos deuses, além de transmitirem a crença de que dessa ira resultavam o insucesso nas guerras, doenças con-tagiosas, fenômenos naturais destruidores e até a desgraça individual. As-sim, o povo era sempre o culpado de suas próprias desgraças, ou porque não obedecia as leis, ou porque não prestava o culto de forma correta ou, então, deixava de fazê-lo. Dessa forma, resignado com a própria culpa, não se rebelava contra seus governantes, como constata Hobbes (1974, p. 74): “Entretido pela pompa e pela distração dos festivais e jogos públicos, celebrados em honra dos deuses, nada mais necessitava do que pão, para se manter afastado do descontentamento, de murmúrios e protestos contra o Estado”.

A outra espécie de religião, para Hobbes (1974, p. 71), refere-se àquela “[...] dos que a fizeram sob o mando e a direção de Deus”. Dessa

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“[...] espécie são Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais che-garam até nós as leis do reino de Deus” (1974, p. 72). Completa Hobbes (1974, p. 75), afirmando: “Mas quando foi o próprio Deus, através da revelação sobrenatural, que implantou a religião, nesse momento ele es-tabeleceu também para si mesmo um reino particular, e não ditou apenas leis relativas ao comportamento para consigo próprio, mas também de uns para com os outros”.

Sobre essa segunda espécie de religião, mais conhecida de todos nós, Hobbes vai dedicar toda a terceira parte do Leviatã, em doze capítulos. Porém, o conhecimento que possuímos dela é suficiente, tornando-se des-necessário que nos alonguemos em considerações, especialmente porque os pontos necessários para a sequência deste trabalho serão abordados oportunamente.

Da religião ao poder espiritual

Como se pode observar, a religião surge em razão da fé e do medo e foi, por esses motivos, também utilizada para ordenar as relações sociais. Vimos ainda que, em grande medida, ela se fundamenta na autoridade da-queles que as criaram ou que as receberam diretamente de Deus, no caso da segunda espécie. E essa autoridade conseguirá manter-se enquanto sua liderança ou reputação não forem questionadas, ou suprimidas. De onde facilmente pode se deduzir seu poder. Especificamente sobre isso, afirma Hobbes que (1974, p. 75):

[...] toda religião estabelecida assenta inicialmente na fé de uma multidão em determinada pessoa, que se acredita não apenas ser um sábio e esforçar-se por conseguir a felicidade de todos, mas também ser um santo, a quem o próprio Deus decidiu declarar sobrenatural-mente sua vontade [...].

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Exemplificando a debilitação do poder espiritual como condutor de um povo, Hobbes reporta-se à história bíblica de Moisés que recebera di-retamente de Deus orientação e força para conduzir à liberdade o povo escolhido.

Esse exemplo é citado por Hobbes (1974, p. 76) para demonstrar que o poder espiritual necessita, para manter-se, da fé daqueles que o se-guem e de milagres que sustentem e reforcem essa fé. Bastou que Moisés se ausentasse do comando daquele povo por apenas quarenta dias para que ele se revoltasse e buscasse outro deus, no caso um bezerro de ouro, conforme podemos verificar no livro do Êxodo, capítulo 32, versículos de 1 a 6. Assim, conclui Hobbes (2000, p. 274- 275):

Em resumo, tanto as Histórias e Profecias do Antigo Testamento como os Evangelhos e Epístolas do Novo Testamento tiveram como único objetivo a conversão dos homens à obediência a Deus: 1, em Moisés e nos Sacerdotes; 2, no homem Cristo; e 3, nos Apóstolos e nos seus sucessores do poder Apostólico. Eles representaram, em tempos e momentos diversos, a pessoa de Deus: Moisés e seus suces-sores, os Sumos Sacerdotes e Reis de Judá, no Antigo Testamento; o próprio Cristo, durante o tempo que viveu na terra; e os Apóstolos e seus sucessores, desde o dia do Pentecostes (quando o Espírito Santo baixou sobre eles) até hoje.

Para Hobbes (2000, p. 275), a autoridade das leis oriundas das escri-turas origina-se de que:

Uma vez que não diferem das Leis de Natureza, não há dúvida que representam a Lei de Deus, sendo portadoras de uma Autoridade legível para todos os homens que têm o uso da razão natural. Mas esta Autoridade não difere de qualquer outra Doutrina Moral, de acordo com a Razão, cujos Ditames são Leis, que não foram feitas, mas que são Eternas.

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O mesmo exemplo de Moisés também pode ser utilizado para enten-dermos os dois tipos de poderes até aqui abordados, o Temporal e o Espi-ritual. No caso, Moisés exercia ambos os poderes, sendo que o Temporal advinha do Espiritual.

O próprio Hobbes, quando trata, no capítulo XLII, do Poder Eclesi-ástico, retoma a passagem dos dez mandamentos como divididos em duas partes, “[...] a Primeira tábua contém as Leis de Soberania” (2000, p. 362) e “[...] a Segunda Tábua continha o Dever de cada qual para como os ou-tros” (2000, p. 362). Assim, por exemplo, a primeira tábua continha como mandamentos amar a Deus sobre todas as coisas, não usar Seu santo nome em vão, e a segunda, mandamentos como honrar pai e mãe, não matar, não roubar, claramente voltados para o relacionamento social, temporal.

Parece estar claro que, para Hobbes, ambos os poderes têm a mes-ma origem, a natureza humana e, nela, mais especificamente, o medo. No primeiro caso, do Poder Temporal, o medo da morte natural prematura causada pelo permanente estado de guerra de todos contra todos e, no se-gundo, do Poder Espiritual, o medo do desconhecido, do transcendente, da morte eterna.

Na época em que Hobbes escreve, era comum que ambos os poderes convivessem entre si, embora nem sempre amistosamente, ou que se con-centrassem em uma mesma pessoa ou, ainda, que o poder temporal fosse referendado pelo espiritual quando se acreditava ou se fazia acreditar que os reis eram escolhidos diretamente por Deus ou por seus representantes, o que era mais comum.

Também, parece estar claro que haverá entre esses dois poderes uma situação de conflito permanente e, sobre essa situação, Hobbes terá que adotar um posicionamento.

No final do capítulo XII do Leviatã, já se pode perceber algo sobre esse conflito, quando Hobbes (2000, p. 77) escreve que “[...] entre os pon-tos que a Igreja de Roma declarou necessários para a salvação existe um tão grande número que redunda manifestamente em vantagem do Papa [...]”, aqui entendido como o chefe supremo do Poder Espiritual. Ele, in-clusive, enumera alguns que nitidamente subordinam o Poder Temporal

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ao Espiritual, como por exemplo, “[...] que um rei, se for sacerdote não pode casar-se” (HOBBES, 1974, p. 77) ou “[...] que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege” (HOBBES, 1974, p. 77). Disso, porém, trataremos a seguir.

4. A SUPREMACIA DO PODER TEMPORAL

Com este tópico chegamos, enfim, ao objetivo principal deste artigo, que é tentar demonstrar por que, para Hobbes, deve haver uma suprema-cia, e mesmo o domínio, do poder Temporal sobre o Espiritual. Se, natu-ralmente, surgirá uma divisão entre os dois poderes, o Temporal deverá se impor ao Espiritual, seja qual for, e subordiná-lo.

A divisão dos poderes

Hobbes (2000, p. 230), vai dedicar o capítulo XXIX do Leviatã às “[...] coisas que Enfraquecem ou levam à DISSOLUÇÃO de um Estado”, comparando-as com doenças a que está submetido o Estado, à semelhan-ça daquelas que afligem o copo humano. Entre essas doenças ou doutrinas está a divisão do poder do soberano, como ensina Hobbes (2000, p. 223): “Uma sexta doutrina, aberta e diretamente contrária à essência do Estado é a seguinte: O Poder Soberano pode ser dividido. Em que consiste dividir o Poder de um Estado senão em Dissolvê-lo, uma vez que os Poderes divi-didos destroem-se uns aos outros?”.

Inicia Hobbes pela divisão resultante do exemplo de governos dife-rentes em nações vizinhas que podem, por meio de comparações, levar os homens a rejeitarem o próprio Estado; em seguida, alerta para o perigo de divisão contido nos livros, especialmente em sua leitura por jovens ainda não preparados por uma razão firme e, em seguida, chega à divisão que nos interessa neste trabalho, ou seja, aquela oriunda da atuação do Poder Espiritual, a divisão provocada pela “[...] Autoridade Espiritual contra a Autoridade Civil” (HOBBES, 2000, p. 235), advertindo que:

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Assim, da mesma forma como existiram Doutores que sustentaram que há três Espíritos no homem, também há aqueles que pensam poder haver mais de um Espírito (isto é, mais de um Soberano) num Estado e levantam a Supremacia contra a Soberania, os Cânones con-tra as Leis, e a Autoridade Espiritual contra a Autoridade Civil [...]. (HOBBES, 2000, p. 235).

Aqui, Hobbes faz uma comparação entre os dois poderes e sua fa-culdade de estabelecer ou criar regras, normas e leis, e obrigar os súditos a acatá-las e respeitá-las. Ocorre que o Poder Espiritual, ao declarar o que é pecado e ditar suas leis, está colidindo como o Poder Temporal, Civil, este sim, segundo Hobbes, com poder para tanto. Assim, os súditos inva-riavelmente terminam por ter que obedecer a dois senhores, “[...] ambos querendo ver suas ordens cumpridas como lei, o que é impossível” (HO-BBES, 2000, p. 235).

Sobre isso, a divisão do poder do Estado como doença que o enfra-quece e destrói e a concorrência com o poder Espiritual, atentemos ao que diz Chevallier (1982, p. 370):

Existe, porém, uma última doença, tão grave que o autor do Leviatã não teme compará-la à epilepsia (ou mal caduco) do corpo natural. É aquela cuja profunda nocividade se traduz pela concorrência e pela oposição de dois poderes, o poder civil denominado temporal e um pretenso poder espiritual. Cada súdito teria assim dois senhores, cada um dos quais desejaria ver suas ordens obedecidas como leis.

Hobbes vai ainda além, ao afirmar que o Poder Espiritual possui a seu favor o receio das trevas e da morte eterna, dos castigos do inferno, tornando esse medo superior ao que devia ser devotado ao Poder Tem-poral. Sobre isso, em sua obra sobre o Leviatã, no capítulo IV, em que vai tratar das revoluções contra o Estado, Renato Janine Ribeiro escreve a res-peito da força da Igreja e sua forma de agir contra o Estado. Diz ele: “[...] para arruinar o poder do Estado, os padres usam da sua matéria-prima – o medo. Sua arma maior é o fabrico e a multiplicação dos temores. O pâni-

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co da morte eterna” (RIBEIRO, 1978, p. 67) e, citando Hobbes, (apud RIBEIRO, 1978, p. 67) “[...] como a tortura eterna é mais terrível que a morte, eles (os súditos) temeriam mais ao clero do que ao rei”. Continuan-do, escreve Ribeiro sobre outro poder da Igreja:

A confissão monta toda uma estrutura paralela de poder. A Igreja acumula enorme reserva de segredos que tornam formidável o seu poderio. O fabrico do medo – pois é disso que se trata – garante--lhe o completo domínio dos espíritos dos fiéis. Por trás de todas as diferenças entre os padres católicos e os ministros presbiterianos, estes seguem a mesma estratégia da principiante Igreja Romana. Pela desenfreada circulação dos signos, fazem desabar o edifício do poder legítimo. (RIBEIRO, 1978, p. 68).

A consequência é a desordem e a destruição do Estado. “Quando, portanto, esses dois Poderes se opõem um ao outro, o Estado só pode estar em grande perigo de guerra Civil e de Dissolução” (HOBBES, 2000, p. 235). Como mencionamos anteriormente, já no final do capítulo XII do Leviatã, em que tratava da Religião, Hobbes lançava alguns questiona-mentos, antecipando esse conflito. Vejamos o que ele afirma:

Pois haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autorida-de no caso de ser coroado por um bispo? [...]. Que um rei pode ser deposto por um Papa sem motivo algum, sendo seu reino dado a um de seus súditos? [...] Que o clero secular e regular, seja em que país for, se encontra isento da autoridade de seu reino em casos crimi-nais? (HOBBES, 1974, p. 77).

Fica, portanto, evidente que essa divisão era real e não podia ser tole-rada sem o enorme risco de desestabilizar o poder temporal, de confundir os pensamentos dos súditos. Para Hobbes, uma doença intolerável que nunca poderia ocorrer e o Poder Temporal deveria extirpá-la, sobrepon-do-se firmemente ao Poder Espiritual, como veremos.

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A imposição do poder temporal ao poder espiritual

Hobbes jamais vai admitir a divisão de poderes. O Poder Temporal, o Estado Civil, terá sempre a supremacia sobre o Poder Espiritual, seja ele qual for. O absolutismo de Hobbes prevê que o poder do soberano deve ser indivisível e total, inclusive em matéria de religião. Sobre isso, assim se expressam Reale e Antiseri (1990, p. 499):

Todos os poderes devem se concentrar em suas mãos. A própria Igre-ja deve-se sujeitar a ele. O Estado, portanto, também pode interferir em matéria de religião. E, como Hobbes crê na revelação divina e, portanto, na Bíblia, o Estado que ele concebe, em sua opinião, tam-bém deverá ser árbitro em matéria de interpretação das Escrituras e de dogmática religiosa, impedindo dessa forma todo motivo de dis-córdia. O absolutismo desse Estado é verdadeiramente total.

Hobbes, no capítulo XLI do Leviatã, trata da missão de Cristo, divi-dindo-a, conforme as Sagradas Escrituras, em três partes: como redentor ou salvador; pastor conselheiro ou mestre e rei eterno. Dessa forma, pela primeira característica, coube a Cristo sofrer para redimir do pecado o Povo de Deus; pela segunda, por meio da pregação e dos milagres, “[...] convencer e preparar os homens a viverem de forma a tornarem-se Mere-cedores da Imortalidade que os que acreditavam irão gozar na época em que ele vier, em Majestade, tomar posse do Reino de seu Pai” (HOBBES, 2000, p. 341), culminando, assim, com a terceira parte de sua missão, a de Rei Eterno.

O que nos importa aqui é que, para Hobbes, e conforme Cristo mes-mo ensinou, seu reino não é deste mundo e seu reinado somente se dará após a ressurreição geral. As palavras do próprio Cristo, em João, 18, 36, “Meu reino não é deste mundo”, significam, para Hobbes, que seus segui-dores não possuem o direito de legislarem em questões que não digam respeito à fé e, mesmo assim, quando dizem, não têm poder algum sobre

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as leis do Estado. Acrescenta Hobbes (2000, p. 341) que “[...] por conse-guinte, nada foi feito ou ensinado por Cristo com o objetivo de diminuir o Direito Civil dos Judeus ou de Cesar”. Mais à frente, vai escrever:

Como o que ele fez foi tentar provar que era o Messias, através da Pregação e dos Milagres, ele não contrariou a Leis dos Judeus. O Rei-no que Reclamava devia estar em outro mundo: Ele ensinou a todos os homens a obedecer a todos aqueles que se sentavam na cátedra de Moisés. Disse que dessem a César seu tributo e recusou-se a exercer a funções de Juiz. Como poderiam, pois, ser suas palavras sediciosas ou visar à destruição do Governo Civil de então? (HOBBES, 2000, p. 342).

Dessa forma, como Hobbes dirá no capítulo seguinte, em que tra-ta do Poder Eclesiástico, quando faz referência ao poder da Igreja desde Moisés, passando por Cristo e os Apóstolos e seus representantes, a Igreja não tem o poder coercitivo, “[...] mas apenas o Poder de Proclamar o Rei-no de Cristo e de persuadir os homens a se submeterem a ele e, através de preceitos e bons Conselhos, ensinar aos que se submeterem o que devem fazer para serem recebidos no Reino de Deus [...]” (HOBBES, 2000, p. 347), que, como vimos, só se dará após a vinda definitiva de Cristo e não neste mundo.

Aqui podemos destacar pelo menos três importantes palavras para entendermos a relatividade do Poder Eclesiástico: proclamar, persuadir e submeter. Pela primeira, algo é anunciado e prometido; pela segunda, há o esforço para a aceitação dessa novidade, dessa promessa e, pela terceira, e mais importante, a não obrigatoriedade de aceitá-la, a voluntariedade. A submissão é, pois, facultativa, opcional, bem diferente daquela oriunda do pacto que gerou o Poder Temporal. Assim sendo, o Poder Eclesiástico não tem força alguma sobre aqueles que não aceitarem a proclamação e esses, por sua vez, estão desobrigados em relação a ele. Recorrendo às palavras de Hobbes (2000, p. 348):

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A Missão dos Ministros de Cristo neste mundo é induzir os homens a Crer e ter Fé em Cristo. Essa Fé não tem nenhuma relação ou de-pendência com a Coerção e a Autoridade, mas apenas com a certeza ou probabilidade de Argumentos originados da Razão ou em algo em que já se crê. Assim, os Ministros de Cristo neste mundo não têm, devido a esse título, Poder para Punir alguém que não Acredite ou Contradiga suas palavras, isto é, o título não lhes dá esse Poder.

Donde se deduz, ainda, que esse poder é limitado, pois muitos po-dem não aceitá-lo e, dessa forma, estariam, por assim dizer, livres dele. Mesmo entre aqueles que o aceitarem, difícil será julgar sua fé, uma vez que se trata de algo muito íntimo e impossível de se aferir, exceto em casos de flagrante desrespeito.

Dessa forma, já fica bastante clara a supremacia do Poder Temporal, pela sua abrangência e forma como foi instituído, por meio de um pacto obrigatório de todos os homens e não de apenas alguns, voluntariamente. Hobbes, no entanto, vai mais além:

Nos domínios dos diversos Príncipes e Estados, existem Cristãos, mas cada um deles se sujeita ao Estado do qual é membro, não po-dendo, em consequência, sujeitar-se às ordens de qualquer outra Pessoa [...]. É preciso haver um único governante, caso contrário origina-se, entre a Igreja e o Estado, a facção e a guerra Civil [...], no próprio coração de cada Cristão, entre o Cristão e o Homem (HO-BBES, 2000, p. 328).

De forma clara e incisiva, Hobbes (2000, p. 349) conclui “[...] que Cristo não deu nenhuma autoridade para comandar os outros homens a seus Ministros neste mundo, a não ser que estejam também investidos de Autoridade Civil, ou qualquer outra Autoridade de Comando”.

Se, pois, a supremacia do Poder Temporal é assim tão evidente e o Poder Eclesiástico não tem poder algum sobre este mundo, mas somente sobre “[...] aquele que existirá depois do Juízo, quando haverá um novo Céu e uma nova Terra”. (HOBBES, 2000, p. 340), por que a preocupação excessiva de Hobbes quanto a ele?

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Como mencionamos rapidamente no início deste artigo, não po-demos nos esquecer da situação de grandes transformações econômicas, políticas e sociais por que passava a Europa do século 17, e a enorme influ-ência da Igreja, tanto católica quanto protestante, conforme escreve Mari-lena Chauí (2008, p. 372),

O desenvolvimento econômico das cidades, o surgimento da bur-guesia comercial ou mercantil, o crescimento da classe dos trabalha-dores pobres, mas livres [...], a Reforma Protestante, que questiona-ra o poder econômico e político da Igreja, as revoltas populares, as guerras entre potências pelo domínio dos mares e dos novos territó-rios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza [...].

Além disso, como pudemos perceber, o conflito religioso ocupava grande espaço naquele cenário, com a perda da hegemonia do catolicis-mo e o avanço do protestantismo e, assim, aumentava a intervenção tanto do clero papista quanto do presbiteriano na política, tentando cada qual ocupar o espaço que considerava seu e, de certa forma, usurpar o próprio poder do Rei ou comandar suas decisões. Além disso, o Poder Eclesiástico possuía uma arma poderosa, muito eficiente e terrível contra o poder do soberano e que podia, se utilizada para tal fim, colocar em risco sua auto-ridade. Essa arma é a palavra, o discurso, conforme alerta Hobbes (2000, p. 235):

[...] atuando sobre o Espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada significam, mas que mostram (por sua obscuridade) que surge das sombras (como alguns pensam, de maneira invisível) um novo Reinado, como se fosse um Reino Fantástico.

Para evitar esse perigo, o do uso indevido das palavras, não só em relação à religião, mas a toda e qualquer doutrina, Hobbes entendia que cabia somente ao soberano estabelecer o que devia ou não ser seguido, o que era verdade ou não. Sobre isso, escreve Chevallier (1982, p. 367):

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É no bom governo da opinião que assenta o bom governo dos ho-mens, tendo em vista a paz e a concórdia entre eles. Compete, pois, ao Soberano julgar das vantagens de tais e quais doutrinas, reservan-do-se o direito de difundir ativamente as boas e de proscrever impla-cavelmente as falsas, fontes de sedições.

A esse respeito, escreve, ainda, Marías (2004, p. 274): “[...] o Estado de Hobbes decide tudo; não só a política, mas também a moral e a reli-gião; se esta não é reconhecida por ele, não passa de superstição”.

Dessa forma, o perigo a que estava exposto, naquela época, o Poder Temporal, o Estado conforme Hobbes o imaginava, não era desprezível e, por isso, sua preocupação em conter o Poder Espiritual, submetendo-o ao poder do soberano. Essa submissão, para Hobbes, era indispensável e necessária para a ordem e a paz.

Para Hirschberger (1967, p. 205), “Hobbes se voltou, particular-mente e com acentuada aspereza, contra as igrejas. Apelar para a liberdade de crenças e para os interesses religiosos leva sempre à ruptura da unidade do Estado”. Por isso, Hobbes atribuía ao Estado o supremo poder de deci-dir, inclusive, sobre quais doutrinas poderiam ser compatíveis ou incom-patíveis e de quais os cidadãos poderiam dispor. Hirschberger (1967, p. 207) atribui essa disposição de Hobbes ao fato de o pensador inglês ser confessadamente materialista e mecanicista e de ver “[...] no material e no mecânico não somente uma parte da verdade, mas a verdade total”, o que, inclusive, norteia sua visão do Estado autoritário.

A supremacia do Estado hobbesiano se fundamenta, para Chevallier (1982), no próprio mecanismo de transferência que o faz surgir, o pacto, a que já nos referimos. Para o autor supracitado, “[...] o direito de inter-pretação pessoal da Escritura” (CHEVALLIER, 1982, p. 371) é parte integrante do direito natural geral que os homens possuem e que foi, in-tegralmente, transferido por meio do pacto, “[...] ao Homem artificial, ao Leviatã” (CHEVALLIER, 1982, p. 371). Assim, este passa a ser “[...] ao mesmo tempo, chefe da Igreja e chefe do Estado” (CHEVALLIER, 1982, p. 371).

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Nas próprias palavras de Chevallier, vemos confirmada a supremacia que o Poder Temporal deverá ter, em Hobbes, sobre o Poder Espiritual.

Dessa maneira, nenhum poder pretensamente espiritual tem boas razões para arvorar-se em rival do Soberano. Nenhum papa. Ne-nhum mandamento da consciência individual. Nenhum debate entre o cristão e o súdito. Nenhum súdito pode voltar a se ver im-pedido, como cristão e sob pena de morte eterna, de uma ação que a lei civil lhe ordena sob pena de morte natural. Ninguém tem mais de servir dois senhores. E eis afastada uma das mais temíveis amea-ças, a mais temível talvez, para a saúde e a vida do Estado. (CHE-VALLIER, 1982, p. 371).

A própria concepção do pacto, pois, impede que o homem mante-nha consigo qualquer direito natural que possua, e que limite a ação do Estado, exceto o direito à conservação da própria vida, a qual, por sinal, é a razão máxima do estabelecimento do pacto. “Nem mesmo o Estado pode ordenar a um homem que se mate ou se fira a si próprio, ou mate ou fira uma pessoa que lhe seja querida [...]” diz Abbagnano (2000, p. 68).

Se ainda restasse alguma dúvida sobre a supremacia do poder do Es-tado, poderíamos recorrer novamente a Chevallier (1982, p. 366), para quem, segundo Hobbes, “[...] o Soberano é, em síntese, senhor da lei, da propriedade, das opiniões e doutrinas, e, por fim, da própria religião”.

Dessa forma, para que o poder temporal, representado pelo Estado possa exercer com eficiência a função que lhe foi estabelecida pelo pacto, nada pode estar acima dele ou restringir-lhe a força, nem o poder emana-do do próprio Deus.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto nos três tópicos anteriores, para Thomas Hobbes, o poder do Estado, surgido de um pacto entre todos os homens e um ho-

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mem ou uma assembléia de homens, deve ser absoluto e estar acima de qualquer outra instituição, ou não poderá exercer a função para a qual foi criado e retornaríamos à situação de beligerância total. Esse poder supre-mo deve subordinar, também, o Poder Espiritual.

Tentamos demonstrar que, a nosso ver, pelo menos três pilares sus-tentam essa supremacia. O primeiro e mais importante é o que talvez pos-samos chamar de universalidade e obrigatoriedade do pacto, isto é, que ele é feito obrigatoriamente por todos os homens e não facultativamente por apenas uma parte deles, como ocorre com o Poder Espiritual.

Em segundo lugar, destacamos que, por esse pacto, todos os homens transferem ao Soberano todos os seus direitos naturais, exceto o da preser-vação da própria vida, incluído aí o direito de opinião e de interpretação da própria escritura sagrada.

Terceiro, e finalmente, porque o Poder Espiritual não pode governar sobre as coisas deste mundo, porque isso nunca lhe foi atribuído, seja por Deus, seja por seus representantes neste mundo, seja por seu próprio filho, Cristo, ou seus sucessores. Seu reino não é deste mundo.

Se isso não bastasse, a própria concepção de Estado Absolutista, en-fim, exclui qualquer outro poder que lhe possa ser superior ou lhe contra-por, ou não seria absoluto.

Por isso, o Estado deve se impor a tudo e a todos a fim de garantir a paz e a tranquilidade de todos os seus súditos para que eles tenham todas as condições de construírem os meios necessários para manterem suas vi-das, seu bem maior.

Em que pese estarmos, atualmente, assistindo a quedas de regimes autoritários, especialmente aqueles baseados em fundamentalismos reli-giosos, os regimes democráticos, mesmo onde se encontram mais desen-volvidos, ainda sofrem com a influência religiosa e têm muita dificuldade em lidar com ela. As soluções para muitos problemas especialmente com-plexos, como o aborto e a união civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, que envolvem posições de fé e religiosidade, são postergadas.

No Brasil mesmo, para não nos estendermos muito, essa tensão entre os poderes ou a tentativa de influência fica visível ao considerarmos a exis-

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tência, no Congresso Nacional, de uma parcela de deputados conhecida como “bancada evangélica”, que não tem outro objetivo senão influenciar nas decisões do poder temporal. Mesmo na última eleição presidencial brasileira, em 2010, temas como os acima tiveram pouco espaço nos de-bates devido ao risco que representavam aos candidatos, preocupados em não serem ser rejeitados por parcelas consideráveis de eleitores vinculados a esta ou aquela denominação religiosa.

Assim, vemos que essa questão, mais de três séculos e meio após a pu-blicação, em 1651, do livro do qual foi extraída, ainda não foi solucionada e precisa ser debatida. A supremacia do Poder Temporal sobre o Espiritual ainda não se concretizou plenamente.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola: História da filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 2000.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2008.

CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.

HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia Moderna. São Paulo: Herder, 1967.

HOBBES, Thomas. Leviatã: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. v. 14.

______. Leviatã, ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Ícone, 2000.

______. O medo e a esperança. In: WEFORT, Francisco C. (Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2006.

170 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 139-170, junho, 2013

JÓ. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de Domingos Zamagna et al. 40. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MONDIN, Battista. Curso de filosofia. São Paulo: Paulinas, 1981. 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990.

RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã. São Paulo: Ática, 1978.

Title: The supremacy of Temporal Power over the Spiritual Power in Leviatã, by Thomas Hobbes.Author: Guido Antônio Ferreira.

ABSTRACT: The aim of this article is to demonstrate the supremacy of the Temporal Power, the State, over the Spiritual Power, the Church, in the book Leviathan, by the English philosopher Thomas Hobbes, for whom men, in their state of nature, in which everybody is equal and has the same rights and aspirations, live in a permanent state of war, one against the other, generating the fear of a premature and violent natural death. This fear will only be dispelled when men, by means of a pact, transfer to a superior entity the right to lead them, protecting them from themselves. This entity is the State or Temporal Power. Also due to their state of nature, men search for answers for their concerns about the causes of things, about their future and about the fear of eternal death, which originates the religion and along with it the Spiritual Power. However, for Hobbes the Temporal Power must be above Spiritual Power and overmaster it, otherwise the Temporal Power would succumb. The article is constituted by three topics: the first one refers to the emergence of the State from the men’s state of nature; the second one refers to the emergence of religion, also from the men’s state of nature; and finally, the third topic had the aim of demonstrating the supremacy of the temporal power over the spiritual one, according to Hobbes.Keywords: Leviatã. State. Fear. Temporal Power. Spiritual Power.