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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.
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PARA QUEM SERVE O DIAGNÓSTICO?
Fernanda Maria Pereira FREIRE1
RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir o modo como ainda se produzem diagnósticos clínicos – apartados das práticas sociais dos sujeitos - e o impacto que eles têm na vida das pessoas tendo a partir dos pressupostos da Neurolinguística Discursiva. O diagnóstico resulta de um conjunto de conhecimentos e saberes que advém de diferentes discursos e afere um lugar social ao sujeito com base em um ideal de normalidade. Recai sobre o sujeito a responsabilidade pelo(s) seu(s) sintoma(s) ainda que não possa responder pela sua suposta pouca inteligência, inferioridade, insucesso. Para apoiar a discussão serão apresentados dados de sujeitos cérebro-lesados. PALAVRAS-CHAVE: Neurolinguística; diagnóstico; avaliação; afasia, síndrome frontal. Um nome: o que representa?
“Uma doença nomeada é uma doença quase curada” diz um ditado popular lembrado
por Roy Porter em artigo de 1993, intitulado “Expressando a enfermidade: a linguagem
da doença na Inglaterra Georgiana”. Mas será mesmo? Muitos avanços e
transformações na área médica aconteceram desde o tempo da Inglaterra Georgiana,
área que, por excelência, se incumbe em nossa sociedade de declarar a doença.
A história de Tiago - tema de reportagem veiculada pelo Jornal Hoje da Rede Globo de
Televisão2 em 24 de outubro de 2008 - mostra como o ato de diagnosticar/nomear pode,
ao contrário, perturbar o tratamento/cura. O garoto de aproximadamente 10 anos foi, por
sugestão da escola, levado a um neurologista pela família e diagnosticado como
1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Coordenadoria de Centros e Núcleos (COCEN), Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED); Rua Seis de Agosto nº 50 - Bloco Reitoria V - 2º piso - CEP: 13083-873 - Campinas - SP – Brasil. [email protected]. 2 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=iK29ddSQEEQ (acessado em 22/setembro/2009).
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portador de TDAH (ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Durante
dois anos tomou medicamentos sem que eles tenham interferido positivamente em seu
desempenho escolar. Tempos depois, Tiago passou a apresentar tiques motores e a
família achou por bem procurar outro profissional que constatou, então, uma perda
auditiva, razão pela qual não conseguia acompanhar as aulas como a maioria de seus
pares.
Nessa história chama atenção o fato de TDAH ser confundido com perda auditiva, um
problema relativamente simples de detectar por meio de testes audiológicos acessíveis à
boa parte da população3.
É esperado que a nomeação da doença contribua para a diminuição da “ansiedade da
ignorância” e ajude ainda na classificação, prognóstico e indicação da terapia (Porter,
1993, p.366). Dada a multiplicidade de objetivos da diagnose, a avaliação clínica que a
produz deve se pautar em práticas sociais que fazem parte da história do sujeito, sob
risco de ver o que não existe ou nomear o que só se dá a conhecer em condições ideais.
A observação/análise do homem comum/real visa informar que aspectos podem estar
interferindo no curso das funções que se mostram em desajuste/desequilíbrio, ponto de
partida a ser continuamente revisitado no trabalho clínico.
O objetivo deste trabalho, portanto, é repensar o diagnóstico tomando-o como ato que
afere um lugar social ao sujeito e que tem efeitos clínicos, psíquicos e sociais em sua
vida, na vida da sua família, em suas relações afetivas e sociais, na escola, no trabalho.
3As triagens auditivas em escolares são obrigatórias pela legislação brasileira. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/legislacao/arquivo/Portaria_587_de_07_10_2004.pdf (acessado em 27/09/2009).
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Gato por lebre
Voltemos à história de Tiago e seus suposto TDAH. Segundo informações disponíveis
no site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ou ABDA) o diagnóstico de
TDAH é feito com base nos sintomas clínicos relatados pelo indivíduo ou pelos pais e
interpretados por um especialista. O Eletroencefalograma, o Mapeamento Cerebral, a
Tomografia Computadorizada, a Ressonância Magnética e o Potencial Evocado não podem
fornecer este diagnóstico!4, o que mostra que a esse transtorno não corresponde uma
marca detectável no organismo/corpo.
Retomo aqui o conteúdo do site da ABDA por considerar que esse meio de divulgação e
de circulação de discursos tem hoje grande alcance em nossa sociedade. Afinal, o que lá
está – já que se trata de uma Associação Brasileira - autoriza e legitima certos
conhecimentos, ao mesmo tempo em que desqualifica/exclui outros.
Dito isso, vale a pena apresentar quais são os sintomas clínicos a que a ABDA se refere.
Esses sintomas foram organizados em forma de questionário, o SNAP-IV, construído a
partir dos sintomas do Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição (DSM-IV) da
Associação Americana de Psiquiatria e encontra-se disponível no site. Sugere-se que o
questionário seja respondido pelo professor, mas alerta-se para o fato de que o
diagnóstico “definitivo” só pode ser fornecido por um profissional (Figura 1).
“Estar disponível” no site significa que o conteúdo pode circular livremente sem
nenhum tipo de controle, o que pode ser interpretado por um lado, como uma forma
4 Disponível em http://www.tdah.org.br/index.php (acessado em 25/09/2009).
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democrática e ampla de informar/dar a conhecer a patologia e, por outro, como uma
forma de popularizar e promover essa mesma patologia. A questão que fica é: o que, de
fato, é feito com esse conteúdo e por quem? Quando o questionário é dirigido ao
professor (“Você também pode imprimir e levar para o professor preencher na escola”;
“Para cada item escolha a coluna que melhor descreve o aluno”) pode-se inferir que lhe
está sendo consentido atribuir um “meio” diagnóstico. Que consequências isso pode ter
no trabalho com a criança?
Figura 1: Vista parcial do site da Associação Brasileira de Défict de Atenção, item Diagnóstico-criança
O questionário é composto por 18 questões de múltipla escolha. Para cada uma delas
deve-se marcar uma de 4 alternativas: nem um pouco, só um pouco, bastante e demais.
Boa parte das questões, como se pode observar na Figura 2, se aplica tanto a crianças
levadas quanto a crianças muito inteligentes: nos dois casos vários itens receberiam
respostas dos tipos bastante ou demais.
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Figura 2: Questões do questionário SNAP-IV
Talvez, por isso mesmo, ao final do questionário, são apresentados alguns critérios que
devem ser levados em conta em casos de TDAH (Figura 3).
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Figura 3: Critérios a serem considerado na avaliação de crianças/adolescentes com suspeita de TDAH
Voltemos ao caso do Tiago. Além do critério A (respostas do tipo bastante e demais em
pelo menos 6 itens do questionário) a perda de audição, muito provavelmente, atenderia
também aos critérios C e D e, talvez, ao B.
E então, o diagnóstico de TDAH estaria confirmado?
As perdas auditivas em pré-escolares e escolares, segundo Vieira et al. (2007),
decorrem, em geral, de alterações que abrangem o acúmulo de cerume, corpo estranho,
otite externa e, nos casos persistentes, otite média. A perda auditiva leve de condução é
a mais comum e a triagem auditiva nessa faixa etária tem o objetivo de detectá-la em
especial5.
Tiago, provavelmente, apresenta uma perda auditiva leve de condução, já que uma
perda moderada seria mais facilmente reconhecida – inclusive pela família – devido à
5 Os exames mais utilizados nessas triagens são a imitanciometria, a audiometria tonal e as otoemissões acústicas (VIEIRA et al., 2007).
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alta incidência de dificuldades de fala associadas. A literatura mostra que crianças,
mesmo com perdas leves, podem apresentar – em maior ou menor grau - dificuldades
relacionadas ao desenvolvimento de linguagem, dificuldades de leitura e distúrbios
comportamentais (VIEIRA et al., op. cit.), todos eles sintomas clínicos apresentados por
Tiago e previstos no questionário SNAP-IV.
Essa coincidência de sintomas clínicos justifica o erro de diagnóstico? Certamente, não.
Ao contrário, quando isso ocorre faz-se necessário recorrer a outros expedientes clínicos
com vistas a fazer aquilo que se denomina de diagnóstico diferencial. Além de
dispormos hoje de modernas tecnologias de diagnose há de se considerar
cuidadosamente a “história de doença” do paciente (PORTER, 1993).
O erro de diagnóstico sugere que a “história” de Tiago não foi levantada/investigada
pelo médico. É comum nos consultórios a família ou o doente assumirem uma posição
pouco ativa diante do médico: respondem àquilo que lhes é perguntado sem perceber
que outras informações que, em princípio, não parecem relevantes, podem compor a
história da doença. Nessa situação, vale a experiência clínica e a sensibilidade do
médico para ouvir e deixar falar seu paciente/informante. O fato é que a história de
Tiago não foi (re)conhecida.
Nos últimos anos temos acompanhado uma crescente patologização daquilo que, muitas
vezes, é normal (COUDRY, 2006, BORDIN, 2009, FREIRE, 2009) - tristeza vira
depressão; processo de aquisição de escrita vira dislexia, sapequice vira hiperatividade –
e par em par novos nomes aparecem para dar conta desse fenômeno. Quadros como o
do TDAH sofrem daquilo que Coudry denomina de vagueza determinística (COUDRY,
2006) e se confundem com outros, exigindo ainda maior rigor nos procedimentos
clínicos sob risco de se tomar um coisa por outra..
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Por definição, diagnosticar implica duas ações: (i) distinguir, isto é, perceber a diferença
entre ou diferenciar de e (ii) conhecer, ou seja, estar familiarizado com, saber. Ambas
pressupõem um saber técnico – ancorado em um conjunto de constructos teóricos e
metodológicos de um domínio - quase sempre, mas não exclusivamente - médico.
Faltou, no caso de Tiago, diferenciar entre o que se chama de TDAH – uma nova
roupagem para disfunção cerebral mínima (ou DCM) da década de 60 - de uma perda
auditiva. E qual o efeito disso? Tiago correu risco, perdeu tempo, sofreu. Sua família
sofreu também. E a escola? Torçamos para que tenha aprendido a lição. E o médico?
Não dá para saber.
A informação (e a desinformação) ao alcance de todos
Vimos na seção anterior como hoje a internet serve de suporte para informações que
interessam à clínica e à escola. Mas não é só a internet, também a televisão, os jornais e
as revistas abrem cada vez mais espaço para esse tipo de matéria. A mídia tem exercido
um papel importante – para o bem e para o mal – como formadora de opinião e
divulgadora de (supostos) conhecimentos.
Veja-se a esse propósito o que diz DS, um assistente técnico pedagógico da Secretaria
de Educação de um pequeno município com apenas 4.000 habitantes do Estado de São
Paulo a respeito do papel da mídia em relação ao preconceito e ao trabalho da escola no
Fórum de Discussão intitulado “O trabalho do cérebro na sala de aula” em 08/05/2009:
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Muitos dos tabus que a humanidade carrega são provenientes da falta
de informação e conhecimento acerca das situações que se lhe
apresentam. Dessa forma, a informação contribui para que
paradigmas sejam quebrados. Ao ler esse artigo6, logo me veio a
mente o preconceito abordado em relação a crianças com deficiência
(síndrome de Down) nas novelas da GLOBO e da jovem com
dislexia. É muito importante que esse tipo de informação veicule
nesses meios de comunicação de massa, uma vez que o poder de
alcance da população é muito grande e de fato interfere na concepção
do indivíduo acerca do que pensa. O fato é que muitas escolas só se
dão conta de tais patologias e de que seus alunos muitas vezes são
vítimas de discriminação ou não estão recebendo a atenção devida
quando (...), o conhecimento, o estudo, é tratado por esses veículos de
comunicação.
É interessante perceber o tipo de relação que DS estabelece entre mídia,
informação/conhecimento e escola quando diz - “o fato é que muitas escolas só se dão
conta de tais patologias quando (...), o conhecimento, o estudo, é tratado por esses
veículos de comunicação” – sugerindo que o modo como a mídia “trata” o
conhecimento é “o correto”; o que não dá lugar para a dúvida ou crítica do
telespectador. E não é só DS que pensa assim. À sua mensagem, muitas outras se
seguiram exaltando o papel da mídia na disseminação de conhecimentos que importam
à escola. E por quê? Porque esses “conhecimentos” eximem a escola e o professor de
6 Trata-se da reportagem “Dislexia – em meio à sopa de letras” publicada na Revista Saúde de abril de 2008, indicada como leitura no Curso semipresencial “Linguagem e Letramento nos anos iniciais/educação infantil” oferecido pelo Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (CEFIEL/UNICAMP) oferecido para professores da rede pública entre maio e junho de 2009 (http://www.iel.unicamp.br/cefiel/).
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qualquer responsabilidade sobre o “aluno problema” especialmente se o “problema” for
corroborado por um diagnóstico. Assim, fica posto que se trata de um caso médico que
precisa ser acolhido “sem preconceito”, mas também, na maioria das vezes, sem
nenhum esforço no sentido de ajudar o aluno a sair da sua condição de “problema”.
De qualquer forma, somos obrigados a reconhecer – como faz DS - que nos últimos
anos novelas brasileiras têm retratado a vida de pessoas com Síndrome de Down,
dislexia, surdez, cegueira, promovendo o debate em torno dessas questões e ajudando
no enfrentamento do preconceito.
Recentemente, o caso de Tarso, personagem de uma novela veiculada em horário nobre
- virou assunto em muitas rodas de conversa nos mais diferentes grupos sociais. O
personagem – jovem e bonito - é filho de um casal de classe alta. Sua mãe se recusa a
ver a doença do filho e a aceitar o diagnóstico de esquizofrenia, impedindo que Tarso
receba tratamento adequado. A dor do filho transforma o pai: o outrora poderoso e
arrogante executivo, pouco a pouco, se humaniza diante do telespectador.
Em um dos últimos capítulos os pais conversam sobre o fato de o irmão da namorada de
Tarso ser contra o casamento dos dois:
Pai: Se a Inês (filha do casal) quisesse se casar com um
esquizofrênico eu também seria contra
Mãe: Não fala essa palavra! Eu tenho pânico dessa palavra! Não
ponha uma etiqueta no meu filho!
A nomeação da doença de Tarso provoca uma forte repulsa na mãe. Nomen est omen,
diria Porter (1993). Algumas doenças “são autenticamente mais dolorosas ou
ameaçadoras do que outras”, impedindo/dificultando sua nomeação (PORTER, op.cit.,
p.366) sem que isso tenha nenhuma relação com uma suposta dificuldade para
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“diagnosticar” o mal do ponto de vista clínico. Não é isso que está em jogo no caso de
Tarso. A aceitação da nomeação da doença pela mãe é a única saída para diminuir seu
sofrimento. E foi assim que terminou a novela.
Mas nem sempre é assim na vida. Vejamos as histórias de AL e AF.
Diagnóstico como fim e recomeço: o caso de AL
Veja-se o texto a seguir (Dado 1) escrito por AL, sexo masculino, solteiro, destro, à
época com 27 anos, natural de Campinas (SP-Brasil), nível sócio-econômico médio-
baixo, ex-motorista profissional. AL sofreu um acidente de carro que acometeu seus
lobos frontais e o lobo parietal7 à direita em 2001 deixando-o com um quadro de
Síndrome frontal leve8. A tomografia de 2003 mostrou uma “regressão satisfatória dos
achados iniciais”. Quando estava na 7ª série do ensino fundamental (hoje, 8º ano) AL
foi diagnosticado como disléxico9, razão pela qual abandonou a escola.
7 Lesões na região parietal à direita podem alterar a percepção que o sujeito tem do próprio corpo no espaço. 8 Embora a SF ou Síndrome Psico-orgânica seja um quadro clínico cuja característica principal é a alteração do comportamento é preciso considerar as múltiplas e importantes funções dos lobos frontais entre as quais se destacam: (i) manutenção do tônus cortical, cuja oscilação interfere na atividade seletiva, e assim, na capacidade de dirigir a atenção para uma coisa e não para outra; (ii) monitoramento/controle da atividade psíquica/intelectual o que interfere na formação de planos e de intenções estáveis. Indiretamente, então, lesões frontais podem interferir na memória devido à dificuldade em manter o esforço ativo requerido pela recordação (LURIA, 1981). Essas lesões não afetam a organização do sistema linguístico, mas podem interferir na “função reguladora da fala” (LURIA, op. cit.), provocando em graus variados um enfraquecimento da relação entre a ação dirigida a metas e a linguagem. No caso de AL o TCE alterou também as condições neurodinâmicas do funcionamento cerebral: suas ações estão ligeiramente lentificadas, seu corpo fora de eixo, sua memória autobiográfica comprometida. 9 De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia Distúrbio trata-se de um problema de aprendizagem nas áreas da leitura, escrita e soletração, de origem "hereditária com alterações genéticas, apresentando ainda alterações no padrão neurológico". Disponível em: http://www.dislexia.org.br/ (acessado em 27/09/ 2009).
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Dado 1: excerto de texto escrito em novembro de 2003 em que se veem algumas
marcações que fiz por ocasião da leitura conjunta que fizemos no acompanhamento
fonoaudiológico.
Embora breve, pode-se observar várias questões relacionadas à escrita de AL. Ele
escreve sobre o momento em que sua mãe e sua irmã foram visitá-lo no hospital, logo
após o acidente de carro, quando ainda não conseguia falar e estava sob o efeito de
fortes medicamentos. Escreve, portanto, sobre algo do passado. No texto, usa o discurso
direto, faz boas escolhas lexicais de modo a traduzir a dramaticidade daquele momento
vivido (DESESPERADA), assumindo o papel de narrador da história. Faz o travessão
tão logo introduz a fala da mãe, adotando a forma direta de discurso, e inserindo-a como
personagem da narrativa. Outros sinais de pontuação são apropriadamente usados,
auxiliando a organização textual; outras vezes, um sinal é usado no lugar de outro,
mostrando suas dúvidas sobre o modo de empregá-los no texto. Observam-se ainda
instabilidades ortográficas em relação às marcas do pretérito perfeito e do futuro do
presente na escrita (ENTRARÃO).
Trata-se, em última análise, de um texto de um aprendiz da escrita e não de um
disléxico.
Este texto, assim como outros, compõe um extenso material resultante do
acompanhamento fonoaudiológico ocorrido entre fevereiro de 2002 até meados de 2004
no Laboratório de Neurolinguística (LABONE) do Instituto de Estudos da Linguagem
da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). AL foi encaminhado ao
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LABONE por um psiquiatra, docente do Departamento de Psiquiatria dessa mesma
Universidade, com queixa de dificuldade de leitura e de aprendizado (FREIRE, 2005).
O sujeito queixava-se também de problemas relacionados à memória: encontrava
pessoas que sabia que conhecia, mas não conseguia saber de onde, quando as conheceu,
o que sabia delas e o que elas sabiam dele.
Tanto a avaliação quanto o trabalho clínico realizado com AL encontra sustentação nos
postulados da Neurolinguistica Discursiva (COUDRY, 1986/88) e tem como ponto de
partida a interlocução onde se articulam a dimensão histórica, intersubjetiva e psíquica
da linguagem. No acompanhamento fonoaudiológico foram considerados os vários
fatores pré e pós-episódio neurológico que explicam a heterogeneidade do quadro
semiológico de AL: a tumultuada história escolar interrompida pelo diagnóstico de
dislexia; a juventude conflituosa com episódios de alcoolismo e narrativas mirabolantes
nas quais protagonizava, via de regra, o papel de valente, esperto, bambambã10; o
traumatismo crânio-encefálico; a Síndrome Frontal leve.
O trabalho com e sobre a linguagem teve como fio condutor a escrita na Agenda,
tomada como lugar de reconstrução da relação do sujeito com a leitura/escrita, lugar de
planejamento e monitoramento de atividades relacionadas à vida em sociedade, lugar de
“retificação do vivido” (FRANCHI, 1977/92) e de reconstrução de sua subjetividade.
Os resultados desse trabalho mostraram: (i) que as dificuldades de leitura e de escrita de
AL não podiam ser creditadas a um quadro de dislexia e (ii) que as alterações
decorrentes da lesão incidiam não só no funcionamento de seu cérebro, mas também em
10 Expressão usada informalmente para se referir àquele que é “bamba”, isto é, profundo conhecedor de um assunto e para se referir àquele que tem fama de valentão.
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sua subjetividade, em seu corpo, na sua relação com o outro e com o mundo, em graus
variados.
A lesão, certamente, produziu efeitos na leitura e na escrita, mas é preciso considerar
que tais processos não foram satisfatoriamente estabelecidos durante a escolarização, o
que não quer dizer que AL tenha sido (ou seja) disléxico. O uso restrito da leitura e da
escrita até o episódio neurológico nunca foi tratado: AL abandonou a escola e se
dedicou a atividades profissionais que pouco fazem uso da leitura e da escrita. Assim, os
efeitos funcionais pós-lesão não se sobrepõem a uma alteração funcional anterior, mas
se revelam na relação do sujeito com a leitura e com a escrita: uma relação que nunca
foi produtiva.
O episódio neurológico – quase 15 anos depois do diagnóstico de dislexia que
determinou o fim de sua vida escolar (e, portanto, da convivência com um determinado
grupo social e com um conjunto de saberes sistematizados na/pela escola) – constitui a
possibilidade de AL reconstruir sua relação com a leitura/escrita e consigo mesmo:
descobre-se um sujeito comum, capaz de voltar a estudar, trabalhar, conviver com a
família e com os amigos, namorar. O segundo diagnóstico foi o recomeço.
Diagnóstico como PARE: o caso de AF
Veja-se a seguir duas versões de um mesmo desenho – no computador e à mão (Dado 2)
– feito por AF, sexo masculino, separado, pai de 4 filhos, à época com 45 anos, nível
sócio-econômico médio-baixo que estudou até a 3ª série do ensino fundamental (hoje 4º
ano) e era motorista profissional. AF sofreu um acidente de motocicleta que acometeu a
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região do lobo temporal esquerdo deixando-o com uma afasia semântica11 e sintomas de
apraxia vísuoconstrutiva e vísuoespacial12, além de uma hemiparesia do lado direito.
(FREIRE, 2003/2006). AF participou durante 4 anos de atividades terapêuticas
individuais e em grupo realizadas no Centro de Convivência de Afásicos (CCA) no
Laboratório de Neurolinguística (LABONE) do Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP).
Dado 2 – À esquerda desenho do trajeto entre o Campo do Galo e a casa de AF feito no
computador usando os comandos da linguagem Logo. À direita desenho do mesmo
trajeto à mão livre.
Usei como expediente de avaliação Neurolinguística de AF a linguagem de
programação Logo - cuja programação utiliza conceitos espaciais – com o objetivo de
observar/analisar as relações entre a linguagem de AF e o modo como ele se organiza
espacialmente por meio de uma atividade que requer construção e conhecimento
espacial. Para deslocar a Tartaruga - um cursor gráfico que fica no centro da tela do 11 A afasia semântica decorre de uma lesão nas áreas terciárias têmporo-parieto-occipital provocando uma alteração na "síntese (quase-espacial) simultânea" com dificuldades relacionadas à estrutura lógico-gramatical da língua e problemas de natureza semântica (p.ex. dificuldades com os significados verbais de expressões metafóricas e sentidos figurados elaborados historicamente). Desordens de orientação espacial, apraxia construtiva e acalculia podem estar associadas (LURIA,1977). 12 A apraxia visuoconstrutiva é um distúrbio das atividades formativas como montagem, construção e desenho e a apraxia vísuoespaciais pode contribuir significativamente para o agravamento da primeira.
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computador – é preciso coordenar diferentes ações linguísticas e cognitivas que
requerem, sobretudo, mudança de posição enunciativa e aplicação de conhecimentos
espaciais, usando comandos que deslocam o cursor para frente (f.) e para trás (t.) e o
fazem girar para a direita (d.) ou para a esquerda (e.)13. Tais ações se organizam em uma
sequência temporo-espacial ajustada à tarefa proposta (FREIRE, 2000/2006).
No caso de AF, a tarefa em questão pressupunha que eu estava em frente ao Campo do
Galo e queria visitá-lo em sua casa. Ele deveria então desenhar - e depois relatar para
mim - o trajeto entre o Campo do Galo e sua casa para me orientar.
O resultado final da atividade, se comparado com o mapa da cidade de AF (Indaiatuba,
São Paulo/Brasil) evidencia a adequação do trajeto que ele desenhou. A rotação do
mapa dessa região deixa mais visível a semelhança entre o caminho real e a
representação feita no computador. O traçado mais escuro no mapa dá destaque ao
trajeto (Figura 4).
13 Os comandos do Logo foram redefinidos a fim de excluir o uso de números uma vez que AF, no início de seu quadro afásico, apresentou sintomas de acalculia. Foram escolhidos nomes curtos para os comandos (apenas duas teclas) devido às dificuldades vísuoconstrutivas e vísuoespaciais. Assim, os comandos originais do Logo – pf nº, pt nº, pd nº e pe nº - foram redefinidos para f. - faz a Tartaruga andar 15 passos para frente - e t. - 15 passos para trás -; d. - faz a Tartaruga girar 15 graus para a direita - e e. - 15 graus para a esquerda.
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.
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Figura 4: Rotação da planta da cidade para evidenciar – em preto – a semelhança entre o caminho “real” e o desenho feito por AF
O resultado dessa atividade da avaliação põe em xeque os diagnósticos de apraxia
visuoconstrutiva e visuoespacial obtidos por meio do teste do Cubo de Kohs. Mas foi
com base nesse teste que AF foi aposentado por invalidez e não pode mais dirigir14.
Mas afinal, qual a diferença – em termos de avaliação – de uma e outra tarefa?
Com os cubos de Kohs a tarefa consiste em construir uma figura idêntica a do modelo
fornecido pelo ao sujeito (Figura 4). Os blocos mostrados no diagrama não
correspondem - no que se refere à percepção visual direta - aos blocos reais a partir dos
quais o modelo deve ser construído: se o diagrama mostra um triângulo azul sobre um
fundo amarelo o modelo a ser construído deve partir de dois elementos construtivos
cada qual contendo um quadrado amarelo e azul, dividido diagonalmente em dois
triângulos (LURIA, 1981, p.291-292).
14 Vale a pensa pensar o que a aposentadoria e a invalidez representam para um homem simples em uma sociedade como a nossa. É um duplo fim.
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Figura 4: À direita reprodução com blocos do diagrama mostrado à esquerda15
Para realizar a tarefa o sujeito deve reconhecer nos blocos que lhe são oferecidos partes
da figura apresentada no diagrama e dispô-los – virando-os, comparando-os,
justapondo-os – de tal maneira que, em conjunto, reproduzam a figura. Deve, em última
análise, converter os elementos de percepção em elementos de construção, o que requer
controle vísuomotor e espacial.
E no caso do desenho feito com a linguagem Logo, que ações linguísticas e cognitivas
estão envolvidas? Primeiramente o sujeito deve imaginar o ambiente físico real e
projetá-lo na tela do computador pressupondo algum meio de locomoção para em
seguida desenhar um conjunto de linhas que o representem a partir dos comandos do
Logo. Assim, é preciso aprender/interpretar os comandos, observar o efeito que cada um
provoca na Tartaruga, organizá-los de modo a expressar o mapa que tem em mente ao
mesmo tempo em que o decifra seguindo coordenadas espaciais próprias de um
mapa/trajeto – subir, virar, descer – traduzindo-as nos comandos f., t., d. e.. Deve, em
última análise, compreender e produzir um discurso de instrução (representada por uma
sequência de comandos) manipulando cognitiva e verbalmente coordenadas espaciais.
Mas há ainda outra diferença entre as duas formas de avaliar ainda mais importante.
15 Disponível em: http://lacm.fade.up.pt/instrumento.php?id=17 (acessado em 29/09/2009).
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No teste do Cubo de Kohs a instrução é dada verbalmente pelo experimentador/médico
que oferece os blocos e o diagrama ao sujeito e limita-se a observar e controlar o tempo
de execução da tarefa. No caso da avaliação com o Logo a tarefa em questão – informar
alguém sobre um percurso – é uma prática discursiva, cara a um ex-motorista
profissional; daí dizermos que a avaliação é “discursivamente orientada” (COUDRY,
2000; 2002).
No entanto, apesar de reiterados esforços desde a década de 80, a clínica médica (e
tantas outras) ainda se pauta em testes padronizados, descontextualizados, em que a
linguagem está suspensa do seu funcionamento e que pouco ou nada podem dizer a
respeito do sujeito em ação (CODRY e FREIRE, 2005). E foi assim que a invalidez de
AF foi declarada.
Privado do trabalho e da liberdade que tanto apreciava AF se viu em casa, sem ter o que
fazer, em que pensar, com quem conversar. O trabalho lhe fez falta, tanto como lugar de
reconstrução da linguagem, de reinserção e convívio social. O diagnóstico foi um PARE
na vida desse caminhoneiro.
Redenção e sina; diagnóstico e dor
Retome-se o título desse texto: para quem serve o diagnóstico? Para muitas pessoas:
para o próprio doente, para sua família, para a clínica, para as instituições que
abrigam/acolhem esse sujeito (escola, trabalho, hospital). Mas o diagnóstico serve a
essas pessoas de maneiras diferentes, a depender do olhar que sobre ele se lança.
Para a mãe de Tiago o diagnóstico de TDAH deixou-a em estado de alerta. Atenta,
reconheceu em seu filho sinais que indicavam que o tratamento a que fora submetido
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não ia bem. Procurou um outro profissional, obteve um outro diagnóstico.
Contrariamente, a mãe de Tarso não queria reconhecer em seu filho que algo não ia
bem. Seu medo a impedia de aceitar e enfrentar a doença do filho. Só mesmo quando a
manifestação da doença se tornou intolerável ela pode olhar para ele e ainda vê-lo como
um filho querido. Liberto do medo e do preconceito da mãe, Tarso pode se tratar.
Os dois casos clínicos que aqui foram relatados – AL e AF - e com os quais pude
conviver mostram que o diagnóstico pode ser redenção ou sina. De qualquer forma o
diagnóstico mudou a vida de ambos: AL não é mais um bambambã; AF não é mais um
exímio caminhoneiro.
O trauma pelo qual ambos passaram deixa marcas – mais ou menos visíveis – em seus
corpos. Um corpo que sente e que pensa; que vê a si mesmo diferente e que se apresenta
ao outro de maneira desajeitada. O corpo não está apartado do funcionamento psíquico
do sujeito: “os corpos humanos são portadores não só de agentes patogênicos como
também de histórias que explicam suas vidas” (Cardoso, et al., 2002, p.556). E as
“histórias desses corpos” se confundem com a dor – uma dor endógena – com a qual,
nós, desse lado, pouco sabemos lidar.
Temos uma dor: buscamos em vão pela palavra certa que comunique
a natureza e intensidade do que estamos sentindo, e que esclareça
exatamente em que ponto sob nossa pele ela está localizada
(PORTER, 1993, p.365).
Porter fala da dor daquele que se submete ao diagnóstico e que se vê diante do
inenarrável. Diagnóstico e dor são faces de uma só moeda. Reconhecer a
impossibilidade de passar pela dor do outro talvez seja um passo importante desse ato.
Um ato, sobretudo, de respeito ao outro.
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