pão e circo: o lado maligno do espetáculo nosso de cada dia1

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Grupo de Pesquisa da Comunicação e Sociedade do Espetáculo 3º Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo Faculdade Cásper Líbero – 15, 16 e 17 de outubro de 2015 Pão e circo: o lado maligno do espetáculo nosso de cada dia 1 Dimas A. Künsch 2 O espetáculo em sua natureza original de espetáculo não possui data de nascimento. Suas origens perdem-se na noite dos tempos. É próprio da espécie humana. Nem precisou ser inventado de verdade, só produzido, nas selvas, nos campos e nas cidades, ao redor de fogueiras, em locais a ele destinados, enfim, onde quer que existissem pessoas com olhos e ouvidos atentos ao que estava sendo apresentado ou mostrado, com a alma disposta a se entristecer ou a se alegrar, com o riso, o encanto, a vivência às vezes da dor, nessa rica mistura de tragédias e comédias que compõe a vida, e que o teatro grego desde as suas origens tanto fez questão de ressaltar. Certo tipo de espetáculo, aliás, esse que mais propriamente encontra suas origens na noite funda dos tempos, nem foi preciso ninguém inventar ou produzir. O Sol que todo dia nasce e ao final do dia se esconde. A Lua que desaparece, depois retorna aos poucos, cresce, enche com sua suave luz os prados e as montanhas e depois míngua, até recomeçar tudo de novo. Os animais, as plantas, as chuvas e os trovões, as catástrofes assustadoras, e, no meio de todos esses acontecimentos anunciadores de vida e também de morte, de que as divindades em geral tomavam conta, acossado por sentimentos de encanto e maravilha tanto quanto de medo e terror – ali estava desde sempre o ser humano, mais ou menos sapiens e mais ou menos demens, como protagonista do espetáculo, tão grandioso quanto às vezes horrível, da própria vida. A vida, como diria o poeta, “tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial” (Fernando Pessoa). Esse tipo de espetáculo, já no tempo do Paleolítico, gerou as primeiras narrativas, enfrentando o tema dos temas – a morte –, inventando histórias que permitissem, em qualquer época da História, situar o viver “num cenário mais amplo” e que deixassem a 1 Trabalho apresentado na mesa de abertura do III Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo (São Paulo, SP, 15 a 17 de outubro de 2015), organizado pelo grupo de pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo”, do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. 2 Doutor em Ciências da Comunicação, professor de graduação e de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero e coordenador do projeto de pesquisa “A compreensão como método”, do Mestrado em Comunicação da mesma Instituição.

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Grupo  de  Pesquisa  da  Comunicação  e  Sociedade  do  Espetáculo  3º  Seminário  Comunicação,  Cultura  e  Sociedade  do  Espetáculo    Faculdade  Cásper  Líbero  –  15,  16  e  17  de  outubro  de  2015  

Pão e circo: o lado maligno do espetáculo nosso de cada dia1

Dimas A. Künsch2

O espetáculo em sua natureza original de espetáculo não possui data de nascimento. Suas

origens perdem-se na noite dos tempos. É próprio da espécie humana. Nem precisou ser

inventado de verdade, só produzido, nas selvas, nos campos e nas cidades, ao redor de

fogueiras, em locais a ele destinados, enfim, onde quer que existissem pessoas com olhos

e ouvidos atentos ao que estava sendo apresentado ou mostrado, com a alma disposta a

se entristecer ou a se alegrar, com o riso, o encanto, a vivência às vezes da dor, nessa rica

mistura de tragédias e comédias que compõe a vida, e que o teatro grego desde as suas

origens tanto fez questão de ressaltar.

Certo tipo de espetáculo, aliás, esse que mais propriamente encontra suas origens na noite

funda dos tempos, nem foi preciso ninguém inventar ou produzir. O Sol que todo dia

nasce e ao final do dia se esconde. A Lua que desaparece, depois retorna aos poucos,

cresce, enche com sua suave luz os prados e as montanhas e depois míngua, até recomeçar

tudo de novo. Os animais, as plantas, as chuvas e os trovões, as catástrofes assustadoras,

e, no meio de todos esses acontecimentos anunciadores de vida e também de morte, de

que as divindades em geral tomavam conta, acossado por sentimentos de encanto e

maravilha tanto quanto de medo e terror – ali estava desde sempre o ser humano, mais ou

menos sapiens e mais ou menos demens, como protagonista do espetáculo, tão grandioso

quanto às vezes horrível, da própria vida. A vida, como diria o poeta, “tão difícil de

possuir completa, e tão triste de possuir parcial” (Fernando Pessoa).

Esse tipo de espetáculo, já no tempo do Paleolítico, gerou as primeiras narrativas,

enfrentando o tema dos temas – a morte –, inventando histórias que permitissem, em

qualquer época da História, situar o viver “num cenário mais amplo” e que deixassem a

                                                                                                                         1 Trabalho apresentado na mesa de abertura do III Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo (São Paulo, SP, 15 a 17 de outubro de 2015), organizado pelo grupo de pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo”, do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. 2 Doutor em Ciências da Comunicação, professor de graduação e de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero e coordenador do projeto de pesquisa “A compreensão como método”, do Mestrado em Comunicação da mesma Instituição.

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Grupo  de  Pesquisa  da  Comunicação  e  Sociedade  do  Espetáculo  3º  Seminário  Comunicação,  Cultura  e  Sociedade  do  Espetáculo    Faculdade  Cásper  Líbero  –  15,  16  e  17  de  outubro  de  2015  

sensação de que “a vida, apesar de todas as provas caóticas e arrasadoras em contrário,

possui valor e significado” (Armstrong, 2005, p. 8).

Arraigados no solo fértil que os espetáculos da natureza e da vida abundantemente

ofereciam, os mitos constituíram, muito provavelmente, a primeira forma organizada e

não racional de conhecimento, um modo de pôr de alguma maneira e de multiformes

maneiras (Campbell, 2007) ordem no caos de sentidos, uma produção rica de espetáculos

rituais, de danças, festas, sacrifícios e orgias, capazes de re-viver, re-produzir, re-atualizar

gestos de divindades, heróis e ancestrais arquetípicos de um tempo sem tempo, a gênese

primeira de todas as coisas da natureza e da produção simbólica humana, a cultura. O

mundo segue em frente, e a ordem (cosmos) vence sempre de novo ou se alia ao caos

(Eliade, 2011; Cassirer 2013).

Mudando de assunto, da noite dos tempos para os dias e noites – principalmente as de

quarta-feira – do espetáculo atual. Tenho um colega que estuda, há muitos anos, o tema

do espetáculo a partir, basicamente, da visão crítica do francês Guy Debord (1931-1994).

Além de estudar, investiga profundamente o assunto em suas ressonâncias atuais na

sociedade, na mídia, na política etc. Ele escreve a respeito do assunto e orienta trabalhos

de Mestrado em Comunicação nessa linha, articulados no interior de um grupo de

pesquisa, que ele coordena há quase duas décadas, sobre a assim chamada Sociedade do

Espetáculo – título da obra, mundialmente famosa e conhecida, de Guy Debord (1997).

No meu círculo de relações acadêmicas e também não acadêmicas, desconheço alguém

que tenha tanto a dizer sobre o espetáculo e sobre os sentidos da espetacularização da

mídia, da notícia, da política... da vida.

Mas há algo de hilário nessa história. No dia em que joga o time pelo qual o meu colega

torce, não perguntem por ele, não lhe peçam favor, não lhe falem de compromisso. Se o

jogo for perto ou mais ou menos perto de onde ele mora, ele estará no estádio. Não é mais

o professor e doutor quem se encontra ali naquele instante: é o Torcedor, com letra inicial

maiúscula. Mas se por algum motivo ele não estiver no estádio – que as distâncias às

vezes são grandes e o dinheiro para viajar, curto –, nem tente ligar para a casa dele. O

espetáculo do futebol, quando quem joga é o time dele, ele não perde nunca. Jamais. Isso

até me faz lembrar uns alunos de graduação, em noites de quarta-feira, dizendo, ao pedir

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licença para se retirarem da aula: “’Profi’, não bota falta, não! Vou ter que ir ao estádio.

Sabe como é, né, ‘fessor’? É religião”.

Voltando à história do colega, cabe a pergunta: e daí, alguma contradição? Sem entrar em

detalhes, porque nada na vida tem a brancura do leite de vaca pasteurizado, pode-se dizer

que não. Pelo menos até aqui, nenhuma contradição, ainda que o comportamento do

colega possa parecer, no mínimo, paradoxal para mentes que identificam pensamento

crítico com pensamento totalitário, raivoso, de mal com a vida...

Homo ludens

O espetáculo, o jogo, a brincadeira e o divertimento em geral nos projetam nessa área

imensa dos sonhos, das fantasias, dos devaneios, do lado nada ou quase nada lógico da

vida, porque só de razão, raciocínio, argumento, método, ninguém aguentaria viver. Estou

me referindo a esse lado nada muito sério da vida, a essas estratégias cotidianas e a esses

caminhos pelos quais se alcança o universo imenso do inconsciente ou do não-consciente

humano, onde existimos como pessoas e também como espécie – e, aí, os arquétipos nos

ligam, sem que precisemos fazer muita força, àquela noite dos tempos de que eu falava

no início desta conversa (Jung, 2008).

Homo sapiens, ou sapiens sapiens, se quisermos. Mas também homo demens –  e  nem

precisa despender aqui tempo e espaço excessivos para justificar a pertinência do

pensamento sobre a complexidade humana, tão vigorosa e competentemente explicitado

nas obras de Edgar Morin (2001, 2011, 2011a): o ser humano do trabalho, da ciência e da

tecnologia, do pagamento interminável de contas, mas também o mesmo ser humano da

festa e da farra, da arte, da poesia, da magia, de suas múltiplas crenças, do sonho, do

imaginário, da fantasia.  

Homo ludens! O título da obra de Johan Huizinga (2004) evoca esse fértil e divertido

território do não-racional humano. Fazer da vida séria, às vezes séria demais, um espaço

também para o divertimento significa esforçar-se para torná-la divertida, diversa, não

rotineira nem monótona. Porque, diriam os poetas, a lógica, a régua, o esquadro, o metro

e a balança – símbolos da Razão e do Método –, nem de longe, mas nem de longe mesmo,

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abarcam a infinitude dos sentidos, ângulos e virtualidades do humano existir. Nem de

longe integram solidariamente os sentidos mais divertidos, porque diversos, da vida.

Porque “a vida não é lógica”, dirá Clarice Lispector (1920-1977), poeta, repercutindo o

velho Tomás de Aquino (1225-1274), filósofo: “A vida ultrapassa o conceito”. O poema,

de Ferreira Gullar, “Traduzir-se”, encaixa-se bem nesta parte de nossa conversa:

Uma parte de mim é todo mundo outra parte é ninguém fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?

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Nesse contexto bem geral de que estamos tratando até aqui, poder-se-ia afirmar a

existência de algo assim como um direito humano natural ao espetáculo: o espetáculo, o

divertimento, a brincadeira como integrantes da natureza humana, como um direito

natural a brincar e a se divertir, a vibrar com o belo, a imaginar coisas... O poeta, místico,

filósofo e educador brasileiro Rubem Alves (1933-2014) gostava de usar a imagem de

que toda pessoa traz consigo para a vida duas caixas, nenhuma mais importante que a

outra, ambas essenciais: a de ferramentas e a de brinquedos.

Meu colega, o da Sociedade do Espetáculo, brinca e se diverte quando vê o time dele

jogar. Ou também não. Lembro-me de tê-lo visto de cabeça baixa, outro dia, pelos

corredores da Faculdade, numa segunda-feira. O time dele tinha perdido a final da Copa

Brasil de Futebol. Alunos me confidenciaram que as aulas dele são sempre muito boas,

mas que, ainda melhores, são as da semana em que o time dele ganha. No caso de vencer

um campeonato, aí, as aulas viram coisa do outro mundo. Um espetáculo!

Esse tempo que nos devora

Repetindo, o espetáculo, como a festa, o jogo, a brincadeira vêm do tempo do não-tempo,

da terra do nunca, do in illo tempore, diria Mircea Eliade (2011), esse território cujo

tamanho a ciência e a filosofia desconhecem, imenso, cuja sem-cerimônia irrefreável a

pobre e minúscula consciência, às vezes sem sucesso, tenta refrear. É o tempo não

histórico, mais uma vez, do jogo e da brincadeira, da transcendência, do gozo e da alegria.

Nesse tempo, Dioniso fala mais alto que Apolo. Comédia e tragédia se misturam. Nossas

sombras, nossos complexos, nossos ideais e nossas fraturas ali se abrigam, como nossos

instintos reprimidos, nossos deuses e nossos demônios. O espetáculo – estou imaginando

o cinema para quem gosta de cinema; ou a música, o teatro, tanta coisa – nos faz transpor

o tempo às vezes muito cruel do chronos, o deus Chronos, que na mitologia evoca a

crueldade muito comum do tempo do relógio ou tempo histórico, passado, presente e

futuro – hoje, o tempo da correria: o deus Chronos devora os seus filhos.

Como pode ser importante afirmar, neste nosso tempo encantado e desencantado de hoje,

esse direito sagrado ao divertimento, à brincadeira, ao jogo, ao lúdico, ao espetáculo.

Direito à transcendência. Não como fuga ao jogo das nossas responsabilidades humanas,

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sociais, políticas, cidadãs – mas, também, sem exagerar: uma fuga vez ou outra até que é

bom e saudável. Não como fuga às nossas pequenas, médias e grandes jornadas de heróis

e anti-heróis – de novo, sem exagerar: nossa covardia vem às vezes servida em doses

cavalares no cotidiano da vida, que às vezes é besta. Não como fuga de nada, a não ser,

talvez, fuga da loucura. Aqui, de novo talvez, o parar, o fruir e o contemplar compareçam

propriamente não como forma de fuga e, sim, de enfrentamento: o espetáculo como

resistência...

Viva o espetáculo!

A lógica fria das quantidades, da busca tresloucada por desempenho, por bater metas etc.;

o nosso corpo suado, maltratado, sugado por um trabalho que em geral mais nos mata que

nos faz viver; a sofreguidão pelo novo, a tecnologia de ponta, o aparato digital de última

geração, sendo que a geração anterior foi apenas a de ontem, e a futura, apenas a de

amanhã; o mercado, o consumo, a tríade dinheiro-consumo-dívida... Que mundo é esse,

doido, maluco?

Corremos muito, demais da conta, e cada vez mais velozmente, e nem sabemos para onde,

escreve, às vezes grita, Zygmunt Bauman (2001, 2004, 2008, 2011), que cunhou a

expressão “modernidade líquida”, uma metáfora para um tempo em que, antes de tudo,

temos medo, nos damos mal com aquilo que dura ou promete durar. Mas corremos.

Importa correr. “Oi, como vai?”, você pergunta a alguém, um colega, um amigo, um aluno

que passa velozmente, quase trombando com você, pelos corredores. “Na correria”, é a

resposta. Nem precisava dizer.

Para onde corremos, não sabemos. Tempus fugit. Ou, na verdade, escondemos que

sabemos – porque a arte de se iludir não custa nada na bolsa de valores chamada vida:

tem de sobra. Não revelamos que, bem lá no fundo, sabemos, sim, para onde estamos

indo, com cada vez maior e mais assustadora frequência. Num nível próximo, corremos

cada vez mais, para gastar sempre mais dinheiro, para a farmácia, o terapeuta, em busca

de algo ou de alguém que nos console, nos dê um pouco de colo, um ombro para chorar.

Num nível mais distante... Bem, aí é só torcer e trabalhar para que o pior não aconteça.

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Ou corremos atrás daquilo que Freud chama de “afasta-tristeza” – a droga –, em seu

ensaio O mal-estar na civilização (2011). Algo muito parecido com aquilo a que Aldous

Huxley dá o nome de “soma”, na obra Admirável Mundo Novo (2001), que trata de uma

sociedade altamente tecnológica, fria e descorada. A angústia, ah!, a humana angústia.

Ampliando, é possível falar de todo tipo de droga, hoje: também em suas formas

simbólicas, como podem ser o consumismo em sua interface mais radicalmente

destrutiva, o fanatismo de todo tipo e cor, a cesta repleta de compulsões na vitrine de uma

loja que mais de um autor tem chamado de pós-modernidade.

Tentamos fazer do espetáculo – o direito ao espetáculo – uma rota de fuga para o nosso

desespero. Exagero? Claro que há exagero em tudo isso que se está falando... A vida, na

verdade, mais uma vez lembrando Tomás de Aquino, ultrapassa o conceito, e as teorias

explicativas da vida social não passam disso: são teorias, espécies de mapas, e não de

territórios. Os conceitos e as teorias – saravá! – não dão conta da vida real, em seu

dinamismo, em sua pobreza e em sua riqueza, em suas subversões às lógicas do abstrato

e do universal.

Mas voltemos ao assunto da correria, da loucura “crônica”, do deus Chronos – ou àquilo

que costumo chamar de “sociedade tarja preta”, ou “sociedade-rivotril”. Alguém aí tem

ideia ou deu uma olhada a quantas anda, no mundo todo, o consumo de antidepressivos,

ansiolíticos de toda espécie, do soma de Aldous Huxley, do afasta-tristeza de Freud?

Alguma dúvida sobre a mais florescente de todas as indústrias do planeta? Você já contou

as farmácias que existem no seu bairro? Tem ideia de como avança a indústria pesada de

medicamentos? Acompanhou o movimento frenético dos representantes dos laboratórios,

apresentando a médicos, que há muito tempo perderam a noção de o que fazer para cuidar

da saúde humana, suas fórmulas milagrosas, ou instruindo farmácias e profissionais de

saúde na arte maldita da medicalização do corpo e do espírito?

Da farmácia você pode caminhar – velozmente, porque não há tempo a perder – até o

templo milagreiro da esquina, dar uma olhada rápida em alguma catedral do consumo ou

comer, no intervalo, o alimento envenenado pelo agrotóxico nosso de cada dia, salgado

ou açucarado, engordurado, e por aí vai. Exagero? Sim. Mas qual o tamanho do exagero?

A Filosofia trouxe para o campo da reflexão a ideia da fenomenologia: o phainomenon,

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grego (fenômeno, em português), é aquilo que se mostra, aquilo que está aí, dado à visão...

Mas uma das virtudes da loucura do sem-tempo, ou do tempo tresloucado, é exatamente

essa de provocar a cegueira, de acumular cataratas sobre cataratas sobre a visão “crítica”,

essa que separa e distingue, essa que diz: “Opa, espere aí!”.

Panis et circensis

O espetáculo, que é tão antigo quanto o mundo e que institui um direito humano

fundamental, revela-se também, desde sempre, como o espetáculo de que o poder ou a

ignorância humana podem se apropriar para dominar, “amansar as consciências”, tentar

aplainar, no mundo simbólico e das emoções e depois na vida vivida, as imensas

assimetrias da vida real. Ideologia. É isso que o espetáculo vira. Panis et circensis!

Pão é bom, vamos combinar: alimenta e é símbolo de vida. E circo também é bom, quem

tem alguma coisa contra? As elites poderosas do império romano, no entanto – numa

prova eloquente de que também a perversão do espetáculo já anda de bengalas há muito

tempo –, fizeram do pão e do circo aquilo que complica, que complexifica demais o bom

e velho tema do espetáculo. É lá onde o espetáculo, aliado ao poder, está a serviço dos

interesses dessas minorias que precisam, a todo custo e o tempo todo, inventar formas de

se manter no poder, o mais das vezes para não deixar a panela de pressão explodir. “Mas

as pessoas, na sala de jantar, estão ocupadas em nascer e morrer”, cantavam os antigos

Mutantes, Rita Lee e companhia, na canção “Panis et circensis”.

É esse o lado perverso, nocivo, ruim do espetáculo. No campo dos estudos e pesquisas

em Comunicação temos, nessa linha, desde os anos 30 do século passado, a famosa Teoria

Crítica da Comunicação, com o seu conceito de Indústria Cultural e todo o esforço

interpretativo dos teóricos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer à frente, que

exerce com veemência, e às vezes até com pura raiva, a crítica àquilo que, nas pesquisas

ordinárias de comunicação nos Estados Unidos de então, teóricos influentes,

orgulhosamente, celebravam como “cultura de massa”, sobre a plataforma dos jornais,

das revistas, da fotografia, do rádio, do cinema, da propaganda.

Cultura, isso? Massa? Vade retro, satanás! Fugitivos do nazismo na Alemanha, cultura

era para Adorno e Horkheimer algo com um significado diferente: o terreno da liberdade,

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contra o totalitarismo e a alienação. E massa, por sua vez, era a expressão mais gritante

do espírito de gado que movia a multidão na aclamação do Führer. Aqui, no mundo

americano da comunicação, na visão dos teóricos de Frankfurt, a produção cultural virou

mercadoria – não toda ela, por certo, diríamos nós, hoje, nem só mercadoria. Mas virou

mercadoria – e fetiche, na esteira do velho Karl Marx – em seus movimentos e processos

dominantes, nas mãos principalmente das grandes empresas produtoras de diversão e de

espetáculo.

Virou produto para ser comercializado e vendido, como se vendem carros, como se vende

pipoca na porta das salas de cinema ou sanduíches, sabonetes, roupas, qualquer coisa em

qualquer lugar. Aqui, resumidamente, em suas formas mais nocivas, no velho e muito

bem assentado sistema econômico capitalista, com seus vícios e suas taras, com suas

classes bem nutridas e suas multidões de desdentados, o espetáculo transformou-se em

pão e circo. Tornou-se ideologia. No limite, virou lixo.

Exagero? Claro que há algo de exagero no meu modo de expressar isso. Mas é bom não

nos iludirmos, pensando que o tempo da força explicativa dessa teoria tenha ficado algum

dia para trás. “O conceito de indústria cultural, décadas depois de sua criação, estimula o

pensamento crítico da comunicação”, escreve Martino (2009, p. 52-53). “Até que ponto

as ideias de Horkheimer e, sobretudo, as de Adorno não incomodam pela sua atualidade?”

Segundo Martino, superado isso e aquilo, principalmente certa “visão negativa da cultura

de massa”, o fato é que “o conceito se mantém perturbadoramente atual”.

Espetáculo, mercado e consumo

Roland Barthes, nos anos 50 do século passado, nessa mesma tradição de estudos críticos,

ainda que com os pés mais assentados sobre o terreno dos estudos da linguagem, aponta

o dedo para o mercado, para pensar os mecanismos de que esse mercado se utiliza, com

o auxílio virtuoso da publicidade, para produzir mercadoria-espetáculo-ideologia, ou o

que ele chama de mito, no sentido negativo do termo. Barthes não esconde suas intenções:

pretende fazer “a crítica ideológica da linguagem da cultura dita de massa”, e, também,

“desmontar” essa linguagem.

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O autor escreveu isso em 1970, no prefácio de sua obra Mitologias (2010), que fora

lançada em 1957. Os tempos tinham mudado, ele reconhecia. Coisas ditas vinte e poucos

anos antes já não valiam como no passado. Mas o “inimigo capitalista”, ou o que ele

chamava de “a Norma Burguesa”, com maiúsculas, permanecia, exigindo análise crítica

– como defendia o Barthes na fase de sua vida em que se ocupou primordialmente com a

análise crítica da cultura e sociedade burguesas.

Essa tradição, no final dos anos 1960, nos leva a Guy Debord, de quem já falamos, com

o seu cada vez mais conhecido, traduzido, lido e repetido A sociedade do espetáculo. Em

Debord, o espetáculo se deixa traduzir por uma relação social de produção e consumo. A

sociedade moderno-capitalista necessita do espetáculo como precisamos do ar, da água,

do alimento para viver. O espetáculo pretende-se total.

Toda essa tradição crítica, que tanta pesquisa rendeu, Brasil e mundo afora, pode ser vista,

hoje, sob ângulos novos, em novos contextos, com o auxílio de novas teorias e novas

pesquisas etc. Mas o fato, difícil de ser contestado, é que o espetáculo cresceu de forma

assustadora, e se apresenta hoje, em seu viés negativo, neste nosso mundo que corre

demais e pouco pensa, como um monstro de muitas cabeças e muitos tentáculos. Um

monstro pavoroso? Aí é que está: na verdade, não!

O espetáculo do mercado e do consumo, da política, da notícia, da vida, visto em suas

aparências, nada tem de horrível ou monstruoso. Pelo contrário: é brilhante, luminoso,

cheio de luzinhas piscando, com monitores e telas maravilhosas, de muitas polegadas,

com aparelhos quase que divinos: um fetiche. Sedução. A ideologia de ontem se

transformou em videologia em nossos dias. A ideia assumiu o caráter de imagem.

Debord, com toda sua inteligência, nem tinha em seu tempo condições de imaginar até

onde chegaríamos na arte e graça da espetacularização, se levarmos em conta a

centralidade que assumiu hoje o mercado, a força das tecnologias digitais, os novos

modos de as corporações se organizarem, as configurações e articulações atuais do poder.

É muita sofisticação para poder ter sido imaginado cinquenta ou mais de cinquenta anos

atrás!

“Consumo, logo existo”, parece ser o lema do momento. Será? Ledo engano, responderia

Bauman (2008). Na “sociedade dos consumidores”, ainda segundo Bauman, o “consumo,

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logo existo” avançou para o “sou consumido, logo existo”. O espetáculo desviou-se de

algum modo da mídia e do mercado para o corpo. É todo mundo tendo que se produzir.

É todo mundo tendo que virar imagem. “Perdemos o corpo”, aponta Dietmar Kamper. O

corpo, “mídia primária”, como o pensa Harry Pross, está sendo engolido pela imagem do

corpo, avisa Kamper (apud Baitello, 2005).

E as mídias digitais, não esquecidas jamais as suas virtudes, possuem essa virtualidade

enorme de nos fazer preferir a imagem do corpo ao próprio corpo. Imagens que nos

devoram, escreve Baitello (2005). Nesse contexto, a imagem resgata com toda força a sua

divindade. Como escapar? Como não sermos funcionários das máquinas que a cultura

engendrou como instrumentos para a melhoria da vida, provoca Vilém Flusser.

Há, no entanto, como se vai fazendo patente, um cansaço em toda essa onda de novidades

tecnológicas, de consumo acelerado, de compulsão imagética, de fast-food e de fast-tudo.

A nostalgia às vezes bate fundo. Podem dizer que o tempo passado não volta, e não volta

mesmo. Nem está dito que o tempo passado foi melhor ou pior. O desafio de todos nós é

o do debate, do embate com, da crítica à cultura que nós, os humanos – um tanto como

atores e um tanto muito maior como vítimas –, produzimos. Mas a nostalgia pode ser boa,

a seu modo. Mais do que coisas, ela pode evocar energias, utopias, esperanças...,

inclusive, o direito humano ao espetáculo, ao jogo, à brincadeira, ao prazer. Essas coisas,

que o rolo compressor da vida como ela se apresenta nos faz tantas vezes esquecer; essas

coisas, vamos convir, não têm tempo para existir. Mais do que afundar na noite dos

tempos, elas afundam, de verdade, no mais íntimo de nós mesmos e dos nossos sonhos

pessoais e coletivos.

Crítica ao espetáculo

É num sentido muito positivo que vejo a crítica que mais este evento, organizado pelo

grupo de pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo”, faz do espetáculo, nessa

sua acepção negativa. Esse grupo de pesquisa, coordenado pelo Prof. Cláudio Coelho, me

parece que, entre tantas outras coisas importantes, se reveste também, vamos dizer assim,

dessa missão de resgatar o sentido mais original, grego, da palavra crítica, que é o de

separar, apurar, purificar.

Page 12: Pão e circo: o lado maligno do espetáculo nosso de cada dia1

   

Grupo  de  Pesquisa  da  Comunicação  e  Sociedade  do  Espetáculo  3º  Seminário  Comunicação,  Cultura  e  Sociedade  do  Espetáculo    Faculdade  Cásper  Líbero  –  15,  16  e  17  de  outubro  de  2015  

O sentido mais nobre dessa tarefa, ou missão, eu penso que é, na tessitura da crítica,

cobrar, exigir, recuperar toda a força vital do espetáculo como direito humano. É o de

apontar com vigor o dedo para a ideologia, a dominação e o poder, que se valem do

espetáculo para sedimentar as enormes assimetrias sociais. Para impor a ditadura do

capital e de sua reprodução em benefício de minorias escancaradamente ricas e poderosas.

A ditadura do consumo. A ditadura da beleza... A ditadura do espetáculo. A ditadura da

correria sem freios e sem fim.

É a missão e a força de não permitir que a vida se espetacularize, que a Comunicação se

espetacularize, que o Jornalismo se espetacularize.

É, de novo, um enorme e muito saudável esforço de resgate da cidadania.

Referências

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