obeso benigno, obeso maligno
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Artigo sobre representações sociais sobre o corpo e a gorduraTRANSCRIPT
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Claude Fischler
OBESO BENIGNOOBESO MALIGI{O*
Nossa poca olha att'avcssado parn o gordo. E, no cntanto,ccrtos gordos continurm il pltssiu por "bons gordos". Como l'r:n-ciona o irnaginirio social dtt gorclut'it c da obcsiclado'/
Jacques Chitac declarou um dia que, dentro de sua carrelra po-
ltica, seu lsico "seco" havia sido unta desvantagem. Os eleitores,segllnclo ele, preferem os polticos "mais cheios de corpo"/. Essa arfir
mao em parte corroborada pelos dados de vrias pesquisas, enr
vrios pases, que indicam qLle as pessotls conl o [sico um pollcoarredondado so, viit de regra, percebidas como de convvio nlaisamvel, mais abertas comunicao e empatiit do que as magras.
Ela parece tambrn confirmada pela popLrlaridade de ttm ccrto papagordo, bem superior quela do papa magro que o precedera. Os gor-
dos parecem, pois, gozar de um preconceito lavorvel junto a umasigni ficatrva parcel a da populao.
E, no entanto, geralmente se est de acordo quando se diz queuma das caractersticas de nossa poca su4 lipofobia,lsua obsesstl
pela magreza, sua rejeio quase manaca obesidade: "A sociedade,dizia o nutricionista Jean Trmolires, cria os obesos e no os tole-
ra." Nos Estados Unidos, um grupo de defesa dos gordos constituiu-
'l' Publicado em ALlremen, setembro, 1989.
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se h alguns anos. Sua presidente declarou imprensa que, em seupas, " mais duro ser gordo do que ser negro". As discriminaesso reais, segundo todas as aparncias, e no somente nos EstadoslJnidos: em 1984, um eletricista de Rennes, na Frana, foi despedidoporque seu peso ( I 23 kg) tornava-o, de acordo com seu empregador,"inapto para o trabalho"2. O caso, ao que parece, no excepcional.
Muitas pesquisas americanas, realizadas desde os anos 60, tra-taram da maneira como as crianas obesas eram espontaneamentepercebidas por seus pares ou pelos adultos. Numa delas, por exerrl-plo, mostrou-se a meninos de seis a dez anos silhuetas de crianasmagras ou obesas. As silhuetas obesas atraram uniformemente apre-ciaes bem negativas ("trapaceiro", "preguioso", "sujo", "mau","t-eio", "besta", etc.). J as silhuetas esguias eram uniformementejulgadas de forma positivar. Na maior parte dos pases desenvolvi-dos, uma grande proporo da populao sonha ser magra, mas vivegorda e aparentemente sofre com essa contradio. Na Frana, emI9T9,umapesquisa indicava que24o/o dos homens e40a/o das mulhe-res consideravam-se muito gordosr. De acordo com diversas enquetes,realizadas a todo momento, entre um quarto e um quinto da popula-
o est em regime. Na Itlia, em 1916,33o/o dos homens queriamemagrecer, contra 4'7o/o das mulheres; hoje eles so respectivamente427o e 47o/o.
Como explicar tal contradio entre a simpatia aparentementeevocada pelos mais cheios de corpo e a recusa quase fbica que pare-ce se manifestar, hoje particularmente, contra a gordura? O que verdadeiro? Amamos os gordos, ou os odiamos? Somos lipfllos oulipfobos?... Nem um nem outro e os dois ao mesmo tempo: de fato,ns ,suspeitamos cleles. A fonte principal do paradoxo que a ima-gem do gordo profundamente ambivalente. Os homens gordos noso percebidos de maneira unvoca. O propsito deste artigo mos-trar que essa amhivalncia provavelmente um fato de todos os tem-pos, talvez universal, e isso por pelo menos uma razo fundamental:atravs de nosso corpo, em especial de nossa corpulncia, passamsignificados sociais muito profundos. Um dos mais importantes oseguinte: a corpulnciaradtz aos olhos de todos a pafte da comidaque ns nos atribumos, isto , simbolicamente, a parte que tomamos
Porr'rces oo Cottpo
para ns, legitimamente ou no, na distribuio da riqueza social.
Nosso corpo um signo imediatamente interpretvel por todos de
nossa adeso ao vnculo social, de nossa lealdade s regras da distri-
buio e da reciprocidade. Uma suspeita pesa, portanto, sobre osgordos. Mas se no podem emagrecer, eles tm uma possibilidade de
se redimir dessa suspeita: precisam proceder a uma espcie de resti-
tuio simblica, aceitando desempenhar os papis sociais que se es-
peram deles.
A ambivalncia do gordo
No mbito cle uma pesquisa recente, cntrevistei uma vintena de
pessoas na Frana sobre sua percepo cla gorclura masculina. A an-
lise das conversas mostrava nitidamente a existncia de uma clupla
inragem dos gordos. De um lado, eles eram mais frequentemente des-
critos como "bons vivants". A eles atribua-se a alegria, o bom hu-
mor, o gosto pela boa mesa e pelo convvio. Mas por trs dessasinrpatia, sentia-se fcilmente perpassar uma imagem negativa do
corpo gorclo. A iovialic'laclc dos gorclos era freqncntemcnte suspeitzr
cle niro ser mzris do que uma fachada por trs da qual se dissimulavit
trnr sofrirncnto ou a lrislez:r.
De fato, os retratos clue emcrgiram clas respostas confirmam a
existncia de r-rm duplo esteretipo clo gorclo. O primeiro o de urn
homem rolio, extrovertido, dotado para i1s relaes sociais, bancall-
clo voluntariamente o brincalho, contando histrias no fim dos ban-quetes, sofiendo provztvelmcnte por sua corpultlcia etn sett forontimo, mas nada deixando transparecer. O scgLrndo bem di-erente.
um cloente ou um clepressivo, um egosta desenlreado ott um irres-
pclnsvel sem controle sobre si mesmo. O primeiro r-rm gordo sim-
ptico. O segundo, um obeso que s susciter a reprovao, quzttlclo
no a averso. No universo das mitologias ou da ico, essa dupla
iclentrclade do obeso ainda mais claramente visvel. De um lado,
encontra-se, tle tato, a srie de bons gordos bufes FalstafT, de ou-
tro, os obesos parasitas ou exploradores, essa linhagem cle tiranos
bulmicos ou ofegantes que desemboca erl Ubu Rei.
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Se existem assim dois esteretipos da obesidade - um benigno'
outro maligno - a o;;;;;" q'" se coloca saber o que permite
reconhec-los dentro Ja realiade' O que faz com que uma pessoa
corpulenta "up,o^i*"lii a" o* esteretipo' mais do que de outro?
Trata-se de um fator objetivo' de uma caracterstica fsica do corpo
;;;rd"; ;;"'tao i" iportamento? ou se trata de um elemento
subjetivo, de atguma;;* no existe. seno no olhar dos obser-
vadores? Como ,,".""Jnt,""" um "gordo bom" e o que que o dife-
rencia do "gordo *urii pnmeira ptese que surge ' seguramente'
a do peso. O "gordo *uul" o obeso maligno' no seria simplesmente
mais gordo do que " "r"'at bom"? Um dos entrevistados na pesquisa
mencionada *ui. u"i"ol;i;;;ror" o timite inferior da obesidade
se situava em 1 00 kg... Nisso, ele segue uma tradio bem estabelecida'
que atribui uo, "'*J't tta*aot'.:'::ld"t mgicas' Tal como o
ano 2000, que mesmo prximo' "?ntil:u a encarnar o futuro e a
hipermodernidade, ;;jil;"'da de 100 kg significa a rotundidade
absoluta. -_t) 1oMasclaroquenotemosnecessidadedeperguntarqua
peso das pessoas ";;-;; qoui' no'.esbarramos na vida cotidiana'
para ento poa"'*o' ecidir se so obesas ou no' se nos so simp-
ticas ou no. Mesmo se entendemos por "p"t:-' a mass'a -t];li' " "
dimenso da silhueta' o critrio permanece nitidamente insufictente'
H gordos que saof igados Positivamente e que ultrapassam' no en-
tanto, muito largamenie os 100 kg' como o demonstra' por exemplo'
o cantor Carlos, d;l;;;"tians e de um bom nmero de adultos
na Frana. Ceftos "'tt t"*f"lgicos especficos podem dellmfe-
nhar um papel decisivo: barriga' queixo duplo' textura dapele' as-
pecto "mole" ou "rlt["i do tecii-o tif to'etc' (todos esses elementos
so os citados p"to'-"nt'"uistados)' Mas' ainda a' esse critrio no
;;; da, conia de todas as situaes reais'
De fato, a classificao de um obeso na categoria positiva ou
negativa resulta, '"* ati'iau' no de um trao particular'
mas da"re-
lao entre os traos fsicos e a.imaf ,n! to"o' da pessoa' por exem-
plo, sua profisso:'no Lx"rccio de certas iunoes' a condio de obeso
tornar-se-ia mais ou menos incongruente' Eu testei essa hiptese pe-
cli,.o aos "ntr"ri'rloo, para me*incricar certas prolisscs
que lhes
Psqt!?--q9-98!-'
pareciam mais apropriadas aos otlot'-:l]t" as ocupaes
urbanas
citadas encontravam-'" o' tt'gfq-d-e- co4inha' os polticos' os rela-
es-pblicas. etc' Mais-uin*luundo a orofisso ou a iuno do
sujeito gordo implic.ava que ele exercesse um trabalho
tlS1f'o;i3re a
fsica, certos "n*"'"tuds no o viam mais omo obeso'
e s1m como
forre.Diante d" tl*;;;;; do alterof,ilista sovitico Vassili Alexeiev'
homem de uma adiposidade alis bastante considervel'
um entrevis-
tado disse-m"' "Cturo' *te tembarriga' mas sobretudo msculo' no
\'
gordura." --^^-r^ orr .rniAssim, o qte;p!-gyoq do gordo
(por exemplo' sua ocupaao' '!'
sua imagem 'o"iur;iff" itir'"'.,21g1-"-S9 vemos de sua
prpria obe- I
sidade. Podemos peiguntar' desde logo' "o
ffig"tn social no influ-
'--'encia tambm ";i;;;o esttico que dirigimos aparncia'
o
, **";;'fd^",i ;r;, ; n : l:i"::;,:l l"ffi 3':1ltl;!illT3luu.r' se ela no permite prever ocar
#;. ;;;;;iit'";;; ser eretuada com personagens rears' con-
-'-temporn"o', *u'"nlu i*p"a" tambm de aplic-la a personagens
mticos ou ficcionaiJ' g pt""it"' pois' ao que parece' que ex-ista
uma
certa adequa'n "li'""ui*"",3-t".iid d o"so e sua corpulncia'
para que ele seja;;;il' "tu'rrcuao como "gordo bom"' Mas qual
adequao? E* ;;"" ** critrios' de qual aret simblico
subjacente?
Obesidade e glutonaria: Inocncia ou culpa
A grande ou9 s t9 o'.: u 9l - :::* :ffi ffi::: 1T ;l'i ::: : ff i;,
tes sobr obesidade' cientficos ou nao'
a uma interrogal';;;;;t to culpados ou vtimas? So vtimas
de suas "gnnounll' J" ti"^t'"*aitariedaJe' ou culpados de glutoneria?
A enquete *o"'u q*' na maioria dos. casos' eles so percebidos
como
o s Snrc gs,199r"t'4y;il;; ;o' Em outro s termo s' ele s s o
gordos, n*t"-'ln"-i coem muito e so incapazes dese contro-
lar. De manela implcita' ' portanto' um julgamenlo' mo-1LlUue
fre-
quentement" '";;;;" o"*u eles' Com o psiquiatra-psicanalista
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Bernard Brusset justamente notouT, os gordos so consideradostransgressores; eles parecem violar constantemente as regras que go-
vernam ocomer, opazet, o trabalho e o esforo, avontadee ocon-trole de si. Dito de outro modo, o obeso (seu corpo o trai) passa poralgum que come mais do que os outros, mais do que o normal, numa
palavra: mais do que a sua parte.
Assim, a obesidade remete glutoneria e esta percebida, mui-
to profundamente, como uma violao s regras da diviso dos ali-mentos. Ora, a diviso da comida, na maior parte das sociedades,simboliza a essncia mesma do vnculo social. De sorte que o gluto
(o obeso, em consequncia) est implicitamente sob a acusao de
ameaar os prprios fundamentos da organizao social, o que o re-
mete animalidade. Nada de espantoso, pois, em se esperar dele uma
contrapartida disto que nele vemos em excesso. A chave est numaforma de reciprocidade: preciso jogar o jogo do potlatchx social: preciso restituir coletividade, sob uma forma qualquer, este excesso
de cornida tornado excesso de peso e, de um s golpe, compensar a
ausncia de participao. em funo dessa troca simblica que o
obeso ser classificado como benigno, maligno ou ambguo.
A transao simblica
Quais podem ser os termos da troca? O que o obeso pode resti-
tuir coletividade? Primeiro, como tnhamos visto, a fora. O traba-lhador que usa a fora, mesmo com um peso considervel, no obeso,
ou no considerado como tal. Que ele carregue pesadas cargas, que
desloque mveis, pianos ou containers; assim o gordo v sua gordura
se metamorfosear mitologicamente em msculo, sua voracidade se
transformar em bom apetite e seu apetite se justificar pela necessida-de de reproduzir a fora de trabalho.
Existem sociedades em que certos indivduos so de alguma for-ma institucionalmente engordados para preencher uma funo alta-
mente valorizada. No penso aqui na engorda quase experimental de
mulheres em certos grupos tradicionais, como os Tuaregues (mais
Porttces oo CouPo
uma vez, trata-se aqui somente da gordura masculina)' mas nos luta-
dores japoneses de sum, cuja formidvel corpulncia resulta de uma
"ngou -"tdica e inicitica no seio de uma comunidade onde reina
, r"g.u de vida quase asctica. Existem algumas verses ociden-tais secularizadas com os esportistas "pesados" (halterofilistas,
lanadores de peso, lutadores de catch,boxeadores peso pesado' etc')'
Eles tambm, por fora de sua funo meditica (e' parece' com a
ajuda de "rt"rid"*
anabolisantes), escapam ao estatuto de obesos
para aceder ao de "gigantes profissionais"'
Na falta de fora, o gordo pode restituir seu dbito sociedade
sob a forma de espetculo e de zombaria (exercida' na maior parte
das vezes, em seu prprio detrimento)' Os lutadores teatrais do catr:h
francs ou dowresllrg americano ocupam um estalulo intermedirio
entre os ..gigantes profissionais" e a comicidade dos htstries. Porque
a segunda soluo que se abre para o obeso a de apresentar sua
"orp-uln"iu no iegistro cmico e/ou espetacular' Um grande nmero
de atores cmicos capitalizaram sua corpulncia para construir um
personrgem invarirvel e quase mtico (para citar apelllrs antericanos'
i.n"gino, W. C. Fielcls, Oliver Hardy, Zero Mostel' Red Skelton'
etc). Outros utilizaram sua obesidade em papis compostos' f azendo-
os oscilar entre os dois polos, maligno e benigno' ao sabor clas cria-
es: Wallace Beery, Orson Welles, Raimu, o Marlon Brando do
perodo recente, etc. Observemos que mesmo os cmicos puros per-
*r,,"""* ambivalentes: eles apiam-se frequentemente sobre umersuspeita de saclismo, como o gordo Hardy que tiraniza o pequeno
Laurel e o irascvel W. C. Fields' Mas a parte maligna neles anula-
da pelas desventuras que ela lhes atrai: Harcly sempre punido' E' ele
qu"m r""ebe os balclei de gua ou os tijolos na cabea' as tortas de
creme no rosto e os pontaps no traseiro'
Na vida cotidiana, o gordo deve transigir com o grupo no qual
se insere, sob pena de ser rejeitado' O socllogo americano Ervirrg
Goffmann ilustrou esse aspecto com uma acuidade notvel' descre-
vendo o "gordo bom" sob os traos do in-groult detidttt (aproxima-
damente, o..desviante integrado,,): " muito frequente que um grupo
ou uma comunidacle estreitamente unida oferea o exemplo de um de
seus membros que desvia. seja por seus atos, seja por seus atributos'
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ou pelos dois ao mesmo tempo. Por conseguinte, esse exemplo passaa desempenhar um papel parlicular, ao mesmo tempo smbolo do grupoe representando certas funes bufas, enquanto que lhe negado orespeito devido aos membros de pleno direito. De modo caractersti-co, um tal indivduo cessa dejogar ojogo das distncias sociais: eleinvade e se deixa invadir vontade. Ele representa frequentementeum foco de ateno que liga os outros num crculo de participantes,do qual ele o centro, mas do qual ele no partilha todo o estatuto"e.Do mesmo modo que o engraadinho do batalho, o idiota da peque-na cidade, ou o bbado do "pedao", o "pequeno gordo" do pensionato(fat .fraternity boy), ele est no centro do grupo, simultaneamentecomo bufo, mascote, confidente e saco de pancadas, mas no pode-r.jamais tornar-se verdadeiramente um membro como os outros. opreo que deve pagar para no ser totalmente re-leitado.
O obeso maldito
No lado oposto das diversas representaes do "gordo bom",encontram-se os esteretipos que colocam em cena o obeso que recu-sa a transao simblica, que descarta deliberadamentc as regras clo
iogo social. Os avatares do obeso maligno podem percorrer todas asnuanas da mitologia negativa, do grotesco f'erocidacle, passandopela perversidade. O pice, alis, atingido quando o gordo no selimita mais acumulao e reteno de bens materiais (conro nosesteretipos do gordo aproveitador do mercado negro, traficante eaambarcador), e se atira carne e ao sangue de outrern, tornando-sedevorador, vampiro ou carniceiro. Encontra-se sempre essa temticanos esteretipos revolucionrios do capitalista feroz, de uma voraci-dade que pode arrast-lo at o canibalismo, pelo menos metaforica-mente: a carne e o sangue dos explorados. Ele se aproxima. assim, dopcrsonagcm do bicho papo, um mito que tambm pode servir demetfora social, como no caso do senhor sanguinrio Gilles de Rais,personagem real mas legendrio, que "consumia" as crianas docampesinato local. Em numerosssimas mitologias do mundo, encon-
Por-rrces r-lo Conpo 71
tram-se os glutes desenfreados, como o gordo gato deste contoaricano: enquanto sua proprietria est ausente, ele come o mingau,
a tigela e a concha. A dona volta e lhe diz: "Meu Deus, como voc
est gordo!" O gato: "Eu comi o mingau, a tigela e a concha e agora
voc que eu vou comer." Ele a devora, deixa a casa, cruza com
outros animais que devora tambm, antes de morrer finalmente de
indigesto.
Os vasos comunicantes
Nessa mitologia cla obesidade malfica, metfora das relaes
de lora, clo poder clesenfreado, da dissoluo do vnculo social,
impressionante constatar que se e ncontra implicitamente uma mesma
concepo fundamental, aparentemente bastante arcaica e talvez uni-
versal, cla ligao social, filndada sobre a diviso dos alimentos e,
portanto, da riqueza. Sociedades tradicionais ou pases clescnvolvi-
dos, todos ns carregarnos aparentemente essa representaoimemorial: a comida, portanto a riqueza, existe em quantidade inita.
Elas no so criadas, mas divididas. A co[rscquncia clara: quirl-
quer unl que consuma mais do que sua parte priv outrem desse tan-
to. desse tipo cle representao que se origina o que podemos chamar
de esteretipo dos vasos comunicantes. Encontrzr-se uma infinida-
cle cle representaes atravs do tempo e em todas as pocas: ela colo-
ca em cena dois personagens, dos quais um sempre gordo egorduroso, o outro sempre famlico e ossudo. Rico e pobre, mdico e
cloente, explorador e explorado: a simples.iustaposio de dois perso-
nagens basta parer significar qtle Llm se nutre, de fato, da prpria
substnciu do oulro. vampiriza-o.
A clistribuio social da gordura, nos pases desenvolvidos,mudou totalmente. No passado, nesses pases (hoje ainda, no terceiro
mundo), o popctlo grasso ocupava os extratos superiores. e o Poplon7(tgro, as camadas mais baixas da hierarquia social' Hoje, so os
pobres que so gordos e os ricos que so magros: desde 1962, um
estudo realizado com uma amostra dos habitantes de Nova York ti-
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nha revelado que a obesidade era sete vezes mais frequente num gru-
n"" *"fft"res de nvel scio-econmico inferior do que num grupo
de nvel superiorio. N contexto ocidental moderno' a metfora dos
vasos comunicantes no funciona mais' Mas ela transps-se para o
plano planetrio: serve agora constantemente para representar a rela-
o de explorao "ni*"o Norte e o Sul' o mundo rico e o mundo
pobre. Ela apresento 'ntio'"t*ente um obeso ocidental e um esfai-
mado do terceiro mundo'
A medida da desmedida
O acordo parece hoje quase unnime em torno da seguinte pro-
porio: t a urn sculo, *t puit"t ocidertais desenvolvidos' os gor-
dos eram amados;hoje, nos mesmos pases' amam-se os magros' H
certamente argumentos para apoiar essa tese' As sociedades moder-
nas, claro, no amam n"* u gordura nem as pessoas muito gordas.
No tempo em que o' 'i"o' "'im go'dos' uma rotundidade razovel
era muito bem vista' fiu "'u asciada sade' prosperidade'
respeitabilidade plausvel, mas tambm ao capricho satisfeito' Dizin-
se de um homem gordinho que ele ea "bem feitoll' enquanto que a
fil,agrezano sugeria mais d que a doena (o definhamento)' a mal-
dade ou a ambio desenfreada' shakespeare o ilustra' emJli'o Csar"
Let me have rnen about me thctt are fat;
Sleek-headed rnen' crnd such as sleep o'nights'
Yontl Cassius has n lecLn and hmtgry look;
He thinks too much; sttch men are tlangerotts'tl
Existe em fiancs uma palavra cuja etimologia e o sentido re-
cente so reveladores; enbompointl2' Esse substantivo apareceu' ao
que tudo indica, no sculo XVI' com con-otaes muito positivas de
boa sade. O paradoxo quis que a acepa: moderna da palavra de-
signasse o "ont.a,io
tl';u" condiio" inicial; se se quiser hoje
colocar em acordo a paravra e a colsa que ela designa , sem dvida'
malenpoint que ser preciso inventar'
Esses elementos confirmam' sem dvida alsuma' que a
percep-
o social du uou "o'ffiiu *udo'' No-sso mod"elo dominante afas-
tou-se daquele n'" '"'itJ* l"tr" XIX' daquele que imperaainda
hoje em certas culturu' " *"'*o em certos estratos de nossas socle-
dades. Mas isso no srgnifica' como se:eTJor vezes' apressadamen-
te, tendncia adizer'q:o" no"o' ancestrai's amavam a obesidade' ou
oue eles no faziam di;i';" entre a robustez e a obesidade' Confor-
" s" uir, h tambm i"t"'"i'' h sem dvida universalidade'
na
suspeita de transgres;;" pesa sobre o gordo' Consideremos
srm-
plesmente a etimologia d c"ttos termos mais correntes para
descre-
ver o corpo uaipo'o' ttl;;il;;s c-111taees negativas' Do latim
crasstts,que significa espesso' grosseiro' deu origem a gras'so
em
italiano, graisse"*l;';;'ut';;itambi1," asse' e crass en in-gls'
Essa proximidade no parece indicar uma inclinao antiga
em favor
da gordura. Quanto i#;;' #t.o*m do particpro passado (obesus)
de obeclere,qu" "rn'"f'* "o'u'*i'' devorar' mas tem tambm
o sen-
tido de solaPar, erodir' -.: ^ - r^' preciso pois, em suma'
distinBfir 1ntt"
ascategorias proprla-
mente ditas (magro';;;;' obeso' "; " o' Limites'ou seja' a medida
que uma dada cultur:"i;il;;;;;ra eles' os critrios' as medidas'
os limiares varlam fortemente' As categoriat pa1""'eT relal^r]:lTente
mais estvei' d" d;;;;;i"tiao qu" '" lh"t atribui' Era prectso sem
dvida, no pu"uao''';t "l"t; go'd do q'e hoje para ser julgado
obe-
so e bem menos -;;;;;;;; ;* considerado magro'/r
Porrtcas oo ConPo
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NOTAS
1. Le Momle,20 de novembro de 1984.
2. Le MonrLe,4 de outubro de 1984.
3. J. R. Sl.affieri, "A Study of Social Stereotype ol Body hnage in Children"'
JotLrncrl. o.f PersonaLity and Socittl Psltcfullorr,196'7,7,1, pp' l0l-104
4. L'Express,30 dejunho de 1979.
5. I-a Rept.tbblica. T2 clc dezembro de 1986.
6. No se tratar aqui seno da corpulncia masculina A maior parte dasdiscusses atuais soble a magreza aborcla indistintamente o masculino e o Imi-
nino. Ora, tudo indica que se trata dc dois universos muito dil'erentes'
7. Bernard Bt'usset, l.'Assiette et l,e miroir, Toulouse, Privat, 1977'
8" O potlatch um ritual de troca dos ndios Kwakiutl cla costa Noroeste
ria Amrica do Nortc no qual o presente cria uma obrigao recproca para aquele
que o recebc. o ritual compofta unla certa dose de agressividadc, na medida emque cada um pode se esbrar paa exageri:lr na "gcnerosidade", aunrcntando as-
sim a obrigao do parceiro-adversrio.
9. Gof'man, Erving ( 1968) , Stigma - No[es ort the MrutcLgernent o.[ SpoiLedIdentity, Harmondsworth, Penguin Books.
10. M. E. Moore. A. Stunkard, L. Srole, "Obesity, Social Class, irnd Men-
tal Illness", Jottntal of the Ant.ericnn Medical Associatiott, 1962, l8l, pp' 962'966.
11. J.lb Csar, ato I. cena II.
12. Litcralmente, "Em bom ponto". (N. Org.)
13. o conjunto dessa contribuio dcsenvolve os temas presentes em "LSymbolique du gros", artigo apresentado na revista Communicotions, no 46, 1 987,
pp. 255-278.
Jean-Jacques Courtine
OS STAKHANOVISTAS DO NARCISTSMO
Body-building e puritanismo ostentatrio
na cultura americana do corPo*
Mcu clolo no cra um bocly-bLriltler' c sim um mineiro: Alexis
Stakhanoff, da Unio Soviiica Ern 3l cle outubro de 1935' ele
extraa 102 tonelaclas de carvto em 6 horas' ultraprssando 14
vezes o normalSanr Fussel,
Mttscte: The Confesrion ol'on UnLikel1t Bodybuilder'
New Yolk, Poseidon Pross, I99t, p 47
Em Venice, um dos bairros litorneos de Los Angeles' os traos
de diferentes culturas que os E'stados Unidos inventaram llo curso
dos ltimos trinta anos foram reagrupados beira mar' num curloso
parque de diverses. Nesse espao, fragmentos da contracultura dos
rot OO e 70, hippies mumificados e nufragos do Vietn se encontram
com a legio de yuppies em movimento, joggers' ciclistas' patinadores'
surfistas. A multido de curiosos se comprime' Centrodo espetculo:
um recinto gradeado, onde corpos inflados de msculos "levantam
I
'F Publicado na revista Communications, n' 56' 1993'