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1 Mídia, opinião pública e política penal 1 Marília De Nardin BUDÓ 2 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS RESUMO Não é novidade que as pesquisas de opinião pública no Brasil têm trazido, há alguns anos, resultados fortes quando tratam sobre questões penais, em especial na questão da redução da maioridade penal. Nesse contexto, o trabalho tem por objetivo debater as relações entre a representação seletiva do ato infracional na mídia e os resultados das pesquisas de opinião pública, para, em seguida, introduzir o tema do populismo penal, como consequência política dessa interação. Ao final, traz-se ao debate a necessidade de construção e divulgação de um discurso contra-hegemônico a respeito do ato infracional, de maneira a permitir que, com novos discursos, novas ações de enfrentamento à expansão do sistema penal em direção aos adolescentes no Brasil possam ganhar força. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo; Newsmaking criminology; populismo penal; opinião pública. 1 A REPRESENTAÇÃO SELETIVA DO ATO INFRACIONAL NA MÍDIA Não é novidade que as pesquisas de opinião pública no Brasil têm trazido, há alguns anos, resultados fortes quando tratam sobre questões penais. O exemplo mais recente e claro é o das pesquisas sobre a redução da maioridade penal, realizadas por diversas vezes ao longo dos últimos dez anos, sobretudo em momentos de comoção social em razão de crimes dramáticos envolvendo adolescentes como autores, excessivamente e seletivamente divulgados pelos meios de comunicação. Esses resultados de pesquisas têm entusiasmado políticos, que, em seus discursos inflamados, costumam bradar pela necessidade de ouvir “a voz das ruas”. Nesse contexto, o trabalho tem por objetivo debater: a representação seletiva do ato infracional (1); a relação entre essa representação e as pesquisas de opinião pública (2); o populismo penal (3); a necessidade de construção e divulgação de um discurso contra-hegemônico (4). Desde que a infância passou a ser diferenciada do período adulto, o que não tem mais do que dois séculos, uma percepção ambígua a seu respeito divide a sociedade. De um lado a representação 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos de jornalismo do V SIPECOM - Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação. 2 Doutoranda em direito na Universidade Federal do Paraná. Mestre em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em direito e jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria. Professora no Centro Universitário Franciscano (Unifra).

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Mídia, opinião pública e política penal1

Marília De Nardin BUDÓ2

Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS

RESUMO Não é novidade que as pesquisas de opinião pública no Brasil têm trazido, há alguns anos, resultados fortes quando tratam sobre questões penais, em especial na questão da redução da maioridade penal. Nesse contexto, o trabalho tem por objetivo debater as relações entre a representação seletiva do ato infracional na mídia e os resultados das pesquisas de opinião pública, para, em seguida, introduzir o tema do populismo penal, como consequência política dessa interação. Ao final, traz-se ao debate a necessidade de construção e divulgação de um discurso contra-hegemônico a respeito do ato infracional, de maneira a permitir que, com novos discursos, novas ações de enfrentamento à expansão do sistema penal em direção aos adolescentes no Brasil possam ganhar força. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo; Newsmaking criminology; populismo penal; opinião pública.

1 A REPRESENTAÇÃO SELETIVA DO ATO INFRACIONAL NA MÍDIA

Não é novidade que as pesquisas de opinião pública no Brasil têm trazido, há alguns anos,

resultados fortes quando tratam sobre questões penais. O exemplo mais recente e claro é o das

pesquisas sobre a redução da maioridade penal, realizadas por diversas vezes ao longo dos últimos

dez anos, sobretudo em momentos de comoção social em razão de crimes dramáticos envolvendo

adolescentes como autores, excessivamente e seletivamente divulgados pelos meios de

comunicação. Esses resultados de pesquisas têm entusiasmado políticos, que, em seus discursos

inflamados, costumam bradar pela necessidade de ouvir “a voz das ruas”. Nesse contexto, o

trabalho tem por objetivo debater: a representação seletiva do ato infracional (1); a relação entre

essa representação e as pesquisas de opinião pública (2); o populismo penal (3); a necessidade de

construção e divulgação de um discurso contra-hegemônico (4).

Desde que a infância passou a ser diferenciada do período adulto, o que não tem mais do que

dois séculos, uma percepção ambígua a seu respeito divide a sociedade. De um lado a representação

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos de jornalismo do V SIPECOM - Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação. 2 Doutoranda em direito na Universidade Federal do Paraná. Mestre em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em direito e jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria. Professora no Centro Universitário Franciscano (Unifra).

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da criança ligada à ingenuidade e à vulnerabilidade; de outro lado, sua percepção como ameaça,

fonte de riscos à sociedade. Essa percepção não é característica apenas do Brasil: sociólogos,

antropólogos e historiadores de várias nacionalidades fazem o mesmo diagnóstico. Barry Goldson,

por exemplo, afirma que “[…] as crianças, a partir do início do século dezenove em diante,

passaram a ser percebidas tanto como vítimas vulneráveis com necessidades de cuidado e proteção,

quanto como ameaças precoces que requerem controle e correção” (GOLDSON, 2002, p. 120,

tradução livre). Essa representação, contudo, não se destina a todas as crianças, mas, sobretudo,

àquelas provenientes das classes trabalhadoras e das classes pobres. Se, no final do século XIX, a

delinquência já havia sido “descoberta” pela criminologia positivista, a construção do “delinquente

juvenil” já havia sido institucionalizada através de linhas políticas emergentes (GOLDSON, 2002).

Na mídia do século XXI, esses estereótipos nunca foram tão vivos: diferentes estudos

empíricos vêm mostrando que as notícias sobre crianças costumam trazê-las dentro de um desses

modelos, ou elas são vítimas, ou elas são delinquentes. “Não é por isso de estranhar que infância,

risco social, delinquência e crime se conjuguem numa associação com elevado potencial de

noticiabilidade nas sociedades contemporâneas” (CARVALHO, 2012, p. 202).

Diante dessa base cognitiva, que confirma as políticas excludentes e institucionalizadoras

levadas a cabo durante quase um século em relação à criança, não é de se estranhar a ocorrência de

sucessivos pânicos morais fazendo uso tanto de uma quanto de outra representação. Basta ver o

tema da pedofilia, que, dos Estados Unidos ao Brasil vem construindo predators e vítimas; o

bullying, em que vítima e bandido são frequentemente crianças, e a questão da delinquência juvenil,

especialmente em casos nos quais “crianças matam crianças” que também vêm trazendo mudanças

nas políticas penais em muitos países ocidentais.

No desenvolvimento dessa cultura do medo, patrocinada pelos meios de comunicação em

parceria com as agências oficiais de controle penal, Altheide (2002) percebe uma importante ênfase

em crimes envolvendo crianças, seja como vítimas seja como vitimizadores. “As crianças são

símbolos poderosos de proteção, bem como de punição, não apenas daqueles que fazem mal a elas,

mas também de crianças que são culpabilizadas por outros males sociais” (ALTHEIDE, 2002, p.

155). Na análise de jornais que realizou nos Estados Unidos, o autor percebe que as matérias

refletem preocupações com a segurança das crianças, de um lado, ao mesmo tempo em que, de

outro lado, enfatizam a ideia de que as crianças, como membros de gangues, são a maior fonte de

problemas e perigos (ALTHEIDE, 2002). “Isso inclui o envio de mais jovens às prisões de adultos, o

julgamento deles como adultos e ataques generalizados ao sistema de justiça juvenil por ser demasiado

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leniente” (ALTHEIDE, 2002, p. 167, tradução livre).

No Brasil, são várias as pesquisas que trazem dados semelhantes. Em 2012, a ANDI (2012a)

publicou um relatório no qual analisava 54 jornais impressos brasileiros ao longo de cinco anos a

respeito do ato infracional. Os resultados indicaram que grande parte das notícias tratava o

adolescente suspeito através de uma linguagem pejorativa, condenatória e violenta. A seleção dos

casos noticiados priorizou condutas com violência à pessoa, como o ato infracional análogo a

homicídio, mencionado em cerca de um quarto das matérias que abordam o assunto (25.7%). O

mesmo ocorre com os dados sobre furtos e roubos: enquanto os primeiros são mais frequentes no

sistema de Justiça, os segundos - que são praticados com violência - são mais frequentes nos jornais

(ANDI, 2012a).

Outro dado interessante da pesquisa é a que diz respeito às fontes: a maior parte das notícias

sobre o ato infracional teve a polícia como fonte, até mesmo pelos focos da violência e segurança

pública adotados. Nessa pesquisa, 59,8% dos textos trazem essa fonte de informação (ANDI,

2012a). As outras duas fontes mais consultadas pelos repórteres são indivíduos em geral (20,4%) –

aí entram as famílias da vítima e do agressor, bem como testemunhas – e os próprios adolescentes

(6,1%), reforçando a percepção de que essa cobertura está mais focada no ato infracional em si.

Instituições como o Judiciário, o Executivo estadual e o Ministério Público também contribuem

com esse noticiário, mas de maneira menos frequente (ANDI, 2012a).

Afora o fato de a cobertura cotidiana do ato infracional ser enquadrada segundo o foco da

violência e segurança pública, representando o adolescente como ameaça à sociedade, há períodos

em que verdadeiras campanhas midiáticas são empreendidas a respeito da delinquência juvenil.

Esses períodos podem ser denominados de “pânicos morais” (COHEN, 2002), e se caracterizam

pela desproporcionalidade na cobertura jornalística de um ou mais casos que trazem à tona antigas

preocupações sociais. No Brasil, é possível destacar três casos recentes: em novembro de 2003, com

o assassinato de dois jovens de classe média, Liana e Felipe, no interior de São Paulo por quatro

adultos e um adolescente, conhecido como Champinha; em fevereiro de 2007, com a morte do

menino João Hélio, arrastado pelo cinto de segurança do carro da mãe enquanto ele estava sendo

roubado por quatro jovens e um adolescente no Rio de Janeiro; em 2013, quando o jovem Victor

Hugo foi morto em um assalto por um adolescente prestes a completar 18 anos. Independentemente

de se posicionar favorável ou contrariamente às medidas legislativas que frequentemente seguem

esses momentos de pânicos morais, em todos os casos, o enquadramento jornalístico nas mais

diferentes empresas de comunicação foi praticamente idêntico: a leniência do Estatuto da Criança e

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do Adolescente, ao permitir a internação por no máximo três anos, seria a causa de um suposto

aumento da criminalidade juvenil violenta (BUDÓ, 2013).

Nesses períodos, além do foco específico na investigação policial, também numerosas

reportagens foram publicadas a respeito das medidas legislativas apoiadas por membros do

Legislativo e do Executivo para lidar com o clamor gerado pelos casos. As propostas de redução da

maioridade penal e de aumento do prazo de internação repercutiram a partir das falas de políticos, a

defendê-las ou a condená-las (ANDI, 2012b). Mas o mais fundamental nesse ponto não é o número

de posições contrárias ou favoráveis a essas medidas publicadas nos jornais, mas sim, a insistência

em divulgá-las como as únicas respostas possíveis ao adolescente em conflito com a lei. Daí que, a

partir do enquadramento adotado – violência individual/segurança pública –, a única postura

compatível a seguir seja a correção/punição.

2 AS PESQUISAS DE OPINIÃO PÚBLICA SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE

PENAL

A desproporcionalidade na representação de alguns casos criminais e as consequências da

cobertura midiática foram estudadas por muitos autores, porém, nenhum construiu uma teoria mais

difundida do que Stanley Cohen, com a tese "Folk Devils and Moral Panics", de 1968. Apesar de

este trabalho ser um produto de seu tempo, o conceito de pânico moral transcende esse contexto

(Innes, 2005). O primeiro parágrafo da obra cuida de explicar o objeto de seu trabalho:

As sociedades parecem estar sujeitas, de vez em quando, a períodos de pânico moral. Uma condição, episódio, uma pessoa ou grupo de pessoas surge para tornar-se definido como uma ameaça aos valores sociais e interesses, sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa, as barricadas morais são tripuladas por editores, bispos, políticos e outras pessoas de pensamento direitista; especialistas socialmente acreditados pronunciam seus diagnósticos e soluções, formas de enfrentamento estão envolvidas ou (mais frequentemente) são utilizadas, a condição desaparece, submerge ou deteriora e se torna mais visível. Às vezes, o pânico [...] tem repercussões mais graves e de longa duração e pode produzir mudanças tais como aquelas em política jurídica e social, ou mesmo na forma como a sociedade concebe a si mesma (COHEN, 2002, p. 1, tradução livre).

O que Cohen faz nessa obra clássica é interpretar o fenômeno dos pânicos morais a partir do

então recente paradigma da reação social. Os problemas sociais, o desvio e a criminalidade,

segundo essa perspectiva, não são dados objetivos. Eles são produtos de uma construção marcada

pela preferência no processo de reação social (SPECTOR; KITSUSE, 2001). A análise busca,

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portanto, mostrar que as percepções de um evento problemático e o processo de reação social que

elas informam são os objetos de interesse quando se quer compreendê-lo. “As percepções têm

consequências no sistema social que são tão profundas quanto qualquer mudança” (INNES, 2005, p.

108, tradução livre).

Cada pânico moral vem acompanhando de seus manuais de demonologia, onde os bodes

expiatórios são rotulados. O autor os denomina folk devils, os demônios do povo: neles os medos do

povo são projetados, além de seu ódio e desprezo. A partir da definição de Cohen sobre os pânicos

morais, Goode e Ben-Yehuda (1994) elaboraram um esquema com cinco condições para que um

pânico moral se estabeleça em um determinado contexto. Além da desproporcionalidade, um dos

elementos mais fundamentais é o que eles denominam “preocupação” (concern)3. Para que um

pânico moral emirja, é necessário que nessa sociedade haja uma ansiedade já difusa a respeito de

um comportamento ou de um grupo social. Não se trata de medo, mas de uma inquietação, que pode

aparecer concretamente, por exemplo, através de pesquisas de opinião pública, comentários na

mídia, proposições legislativas, atividades dos movimentos sociais etc. (GOODE; BEN-YEHUDA,

1994). Sobre o adolescente e o ato infracional, essa preocupação aparece difusa historicamente

desde a representação social do adolescente como eventual ameaça à sociedade, até dados mais

específicos de consultas públicas sobre a punição desse grupo social.

Apesar do caráter questionável dessas pesquisas, que não permitem ao entrevistado refletir

sobre a pergunta realizada, costuma-se utilizá-las para medir a sensação de insegurança da

população, bem como as iniciativas legislativas que são apoiadas. No caso da “delinquência

juvenil”, geralmente as pesquisas de opinião se fixam na questão da punição dos adolescentes,

questionando se o entrevistado apoia ou não a redução da maioridade penal. Em 2003, durante a

cobertura do caso Liana e Felipe, uma pesquisa foi divulgada indicando que 88% da população

brasileira seria favorável à redução da maioridade penal (Folha, 2003). Mais adiante, em 01 de

janeiro de 2004, uma pesquisa do Datafolha indicou que esse apoio seria de 84% da população

(Folha, 2004).

Em 2007, no auge da cobertura sobre o caso João Hélio, uma pesquisa realizada pela

Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública indicou que 87% dos entrevistados seriam favoráveis à

mudança na Constituição (BRASIL, 2007). Em 2013, a CNT divulgou o dado de que 92,7% dos

brasileiros seriam favoráveis àquela política (PESQUISA, 2013), também em clima de comoção

3 Os demais elementos apontados por Goode e Ben-Yehuda para o estabelecimento de um pânico moral são: consenso, hostilidade e voltatilidade (GOODE; BEN-YEHUDA, 1994).

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social em razão do latrocínio que vitimou o estudante Victor Hugo Deppman. O objetivo dessa

proposta é fazer frente a uma delinquência juvenil em franca expansão, segundo a percepção dos

entrevistados.

Nota-se, porém, que todas essas pesquisas são realizadas em momentos de sensibilização da

sociedade para a criminalidade juvenil e o punitivismo, em razão da espetacularização de crimes

graves cometidos por adolescentes. Daí que, apesar de haver certamente uma preocupação

difundida em relação à juventude pobre, a forma como ela se converte em uma preocupação voltada

a respostas punitivas parece ser resultado da abordagem da mídia e da política sobre o assunto.

No contexto norte-americano, Tonry (2004) define como um mito a ideia de que as políticas

penais daquele país se tornaram mais duras porque a população assim o exigiu em pesquisas de

opinião pública. É um erro afirmar que o público possui crenças monoliticamente e

desqualificadamente duras a respeito do crime. As opiniões sobre punição e o que sabem sobre o

crime costumam advir dos meios de comunicação, fazendo com que as pessoas tenham

compreensões equivocadas, dentre elas, a de que as sentenças são muito leves, de que o crime está

aumentando etc. (TONRY, 2004). No tema do ato infracional no Brasil isso é evidente, tanto na

percepção social de que adolescentes cometem mais crimes graves quanto na exposição das

medidas socioeducativas como demasiado leves pela mídia.

O problema de essas pesquisas não irem a fundo para compreender o que realmente as

pessoas querem é se chegar a resultados equivocados. Um exemplo é o resultado de uma tese de

doutorado da Universidade de Princeton, em que a autora vai ao público e busca compreender a

percepção pública sobre o crime e a punição. Sua conclusão é a de que a opinião pública não é

consensual e uniforme como parece.

O público que quer um uso mais amplo do encarceramento também acredita que as prisões não são particularmente efetivas; o público que clama por cortes mais duras também acreditam que um ataque nos problemas socioeconômicos poderia fazer mais para reduzir o crime. De fato, a opinião pública é confeccionada para mais de um tecido, e cada uma merece a nossa atenção especial (GAUBATZ, 1995, p. 2, tradução livre).

A mesma contradição aparece nas pesquisas de opinião pública no Brasil. Uma investigação

do Data Senado sobre a percepção da população brasileira a respeito da segurança pública, realizada

em 2012, mostra isso. Quando perguntados: “Para você, qual a melhor maneira de reduzir a

criminalidade?”, os entrevistados responderam: 39% “melhorar a educação”, 23% “tornar as leis

mais rígidas”, 12% diminuir a pobreza, 11% “acabar com a impunidade”, 7% “investir na polícia”,

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5% “aumentar o número de polícias”. Na mesma pesquisa, os resultados para a questão “Você

concorda ou discorda da seguinte afirmação? O menor de idade que comete um crime deve ser

punido como adulto”, o resultado foi: 87% “concorda”, 11% “discorda”, 2% “NS/NR”. Em todas as

demais questões da pesquisa o maior número de respostas foi nas propostas que tornam mais dura a

resposta ao crime, ao mesmo tempo, a desigualdade social é apontada como a principal causa dos

problemas de segurança pública (BRASIL, 2012). Apontadas as contradições, possivelmente muitos

dos entrevistados reformulariam suas opiniões.

Tonry cita o estudo de Dan Yankelovich, no qual ele busca diferenciar publicopinion

(pesquisas em que as pessoas respondem o que vem na cabeça como uma primeira reação, o que

pode ser desinformado, ignorante etc.) de publicjudgment. “Em temas complexos [...], as pesquisas

de opinião pública nos contam o que as pessoas têm nas suas mentes, ou o que elas sabem, ou o que

elas pensam que sabem, mas não quais as suas opiniões informadas poderiam ser” (TONRY, 2004,

p. 35, tradução livre). Já o public judgment seria quando o público está informado o suficiente sobre

o assunto. Ele menciona uma maneira de chegar ao public judgment: aplicar um questionário,

depois fazer um curso sobre o tema e então perguntar novamente ao público sobre suas visões a

respeito. Das pesquisas já realizadas sobre esse tema, Tonry conclui que a preocupação dos

americanos com o crime e as drogas segue, e não precede, a focalização do crime na mídia e na

política: “[...] não é a opinião pública per se que leva a políticas mais duras, mas as propostas e

posturas dos políticos e a cobertura sensacionalista do crime na mídia que levam a mudanças na

opinião pública” (TONRY, 2004, p. 37, tradução livre).

Também Beckett (1997), ao buscar as origens da cultura punitiva americana busca

diferenciar a “opinião pública” das “atitudes populares”. Para a autora, se é possível afirmar que

houve uma mudança de direção da opinião pública rumo ao apoio a medidas duras contra o crime e

as drogas, as atitudes populares sobre o crime e a punição sempre foram mais complexas e

ambíguas. Grande parte dos americanos ainda acredita que as causas do crime estão relacionadas a

condições ambientais e sociais, sustentando a função da punição como reabilitação (BECKETT,

1997). Por isso, aqueles que defendem que as políticas de lei e ordem implementadas derivam

diretamente da opinião pública simplificam, desistoricizam, descontextualizam as crenças norte-

americanas sobre crime e punição (BECKETT, 1997). Apesar disso, é inegável que as posturas

punitivistas tiveram um importante crescimento nos últimos anos. Isso não significa, entretanto,

uma guinada à direita por parte da sociedade. “O sucesso da campanha conservadora de lei e ordem

reflete o fato de que esse discurso faz sentido e provê uma ‘solução’ para urgentes problemas

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sociais e pessoais de maneira que são compatíveis com o saber popular e crenças e valores

culturais” (BECKETT, 1997, p. 80, tradução livre).

Apesar de a realidade brasileira ser muito diferente da que é vivida hoje nos Estados Unidos,

o fenômeno não parece ser diverso: há ciclos nos quais as preocupações relativas à criminalidade

juvenil aumentam para em seguida diminuírem. Se assim não fosse, o Estatuto da Criança e do

Adolescente jamais teria sido aprovado. Em outros momentos, surgem pânicos morais e novas

sensibilidades sobre o tema parecem emergir. Mas daí a considerar que as pesquisas de fato

refletem uma opinião uniforme sobre o tema da maioridade penal há um completo abismo a ser

preenchido por pesquisas mais amplas e profundas. De fato, o enquadramento conferido ao tema no

discurso midiático e no discurso político, apesar de haver exceções, auxilia na forma como ele

repercute na sociedade. As propostas de incremento da repressão penal nas mais variadas áreas vêm

acompanhadas de um excessivo marketing derivado do engajamento público provocado pelo pânico

moral contra os “folk devils”, que oculta as promessas descumpridas pelo sistema penal ao longo do

tempo.

3 A OFERTA MAIS BARATA DO MERCADO

Não é difícil captar um enorme distanciamento entre o modo como as leis em geral são

construídas e um desejado procedimento legislativo participativo e baseado em estudos de eficácia

dessas leis em relação aos seus objetivos. Quando se trata da esfera penal, esse distanciamento

aparece de maneira ainda mais evidente, pois, longe de buscar um profundo debate acerca de

questões importantes ligadas ao tema que mais diz respeito à violação de direitos fundamentais, a

produção legislativa é marcada pelo imediatismo, no afã de apresentar respostas pontuais à opinião

pública. Ademais, as propostas em matéria penal são aquelas que mais se coadunam com a lógica

de um Estado social mínimo, pois não é necessário sequer ao congressista propositor apresentar um

orçamento: é a forma mais barata de construir uma ilusão de segurança (HULSMAN, 1973) no

contexto social onde a insegurança proporciona os maiores ganhos às indústrias mais lucrativas, a

de armas e a do controle do crime (CHRISTIE, 1998).

Trata-se, em verdade, de uma situação identificada em diferentes países, do Reino Unido à

Argentina, do Brasil aos Estados Unidos. Tanto é que autores provindos das mais diversas partes do

mundo ocidental vêm publicando, em especial a partir da década de 1990 a respeito dessas

constatações. Na Inglaterra, as respostas legislativas, em um contexto neoliberal, que provocaram

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sério aumento no encarceramento, foram discutidas por Anthony Bottoms, sob o conceito de

populist punitiveness (PRATT, 2007, p. 2). Dois anos depois, o termo penal populism foi criado por

Newburn e então circulou o mundo, sendo usado para descrever o uso do direito penal para

estabelecer uma relação de confiança da opinião pública nos governantes, a partir de uma ilusão de

segurança. Papel fundamental nesse processo é desempenhado pelos meios de comunicação de

massa, os quais, do entretenimento ao jornalismo vêm dando excessiva prioridade a uma

determinada representação do crime e privilegiando os espaços de repercussão de discursos

punitivistas.

Esse processo pode ser identificado historicamente com a queda das políticas de bem-estar

nos países onde elas eram implementadas, simultaneamente à ascensão de políticas neoliberais. Nos

países latino-americanos, as privatizações e as reformas previdenciária e trabalhista buscaram

reduzir a pequena margem desenvolvida a partir da década de 1930 para o surgimento dos direito

sociais. Os sociólogos que analisam esse contexto, como Bauman, identificam uma reformulação do

próprio significado da palavra “segurança”: a segurança, antes vista como a garantia da satisfação

dos direitos sociais traduz-se em segurança individual a ser protegida através do combate ao crime

efetivo ou potencial. “A defesa da segurança pública é um eficiente estratagema político que pode

dar belos frutos eleitorais” (BAUMAN, 1999, p. 59).

Os efeitos de uma excessiva abordagem de casos criminais específicos nos meios de

comunicação aparecem justamente na resposta legislativa correspondente. Como nota Cervini

(1994), nos anos 1990 foram criadas leis na Argentina, no Brasil e no Uruguai que trouxeram um

agravamento nas penas e na forma de cumprimento, além de outras questões, como consequência de

campanhas acirradas da mídia que as antecederam (CERVINI, 1994). No Brasil, vários são os

exemplos, mas nenhum é mais evidente do que o da criação da Lei dos Crimes Hediondos, em

1990, e suas alterações subsequentes, vinculadas a outros pânicos morais derivados da cobertura

midiática de novos casos criminais, e das correspondentes manifestações públicas, em passeatas,

enquetes, pela adoção de políticas punitivistas (BUDÓ; OLIVEIRA, 2012).

Diante desses fatos confirma-se a lógica do espetáculo, podendo-se afirmar que a crise da

função instrumental da justiça penal demonstra que não é ela que serve para resolver conflitos,

[...] são determinados problemas e conflitos que ao atingirem um certo grau de interesse e de alarme social no público se convertem num pretexto para uma ação política destinada a obter não tanto funções instrumentais específicas, mas sim uma outra função de caráter geral: a obtenção do consenso buscado pelos políticos na chamada “opinião pública” (BARATTA, 1994, p. 23).

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Entretanto, o cumprimento de uma função simbólica por parte do direito penal não significa

que a adoção de posturas punitivistas não tragam consequências muito reais sobre aqueles que são

objeto do controle penal. Prova disso é a situação de superlotação dos presídios em grande parte dos

países ocidentais, que passam a não dar conta da quantidade de pessoas que são objeto de controle.

Ainda que as condições de vida nessas instituições sejam toleráveis, o que não é o caso das prisões

latino americanas, por exemplo, o crescente encarceramento de jovens não possui qualquer

finalidade que não seja a de se converterem em matéria-prima para o controle do crime (CHRISTIE,

1998), e de neutralização, convertendo-se a prisão em depósito de lixo (BAUMAN, 2005) ou em

um campo de concentração de pobres, negros e estrangeiros.

Na percepção de Pavarini (2006), a prisão como pena nunca teve, nem sequer buscou uma

legitimação democrática: sempre foi sustentada pela elite da população, caracterizada,

principalmente por uma concepção clássica e garantidora do direito penal. Hoje, porém, vê-se o

crescimento de um modo de pensar a pena da maioria, aparentemente mais democrática, certamente

mais populista. Enquanto a noção elitista, mas permeada pelas justificações iluministas encontra-se

em depressão profunda, dado que todos os discursos legitimantes da prisão foram obviamente

descumpridos, a percepção populista não se constrange frente a essa deslegitimação. Trata-se de

uma nova ideia de penalidade, a “penologia de baixo”, a qual apresenta simplificações extremas e

se expressa nos discursos do povo. “E lhe fala diretamente ao povo nas palavras dos políticos e,

fundamentalmente, através dos meios massivos de comunicação; mas se difunde e termina por

articular-se em tópicos que encontram – ou tratam de encontrar – também uma legitimação

científica” (PAVARINI, 2006, p. 124, tradução livre). Essa definição não é diferente do que

Zaffaroni intitula “criminologia midiática”, comparando a maneira como os políticos se apropriam

dos discursos de apresentadores de televisão para a produção de políticas criminais com uma

absurda “medicina midiática” produzida por curandeiros, contrariamente ao campo científico da

medicina, a influenciarem os políticos na produção de políticas de saúde (ZAFFARONI, 2012).

A partir da análise das características dessa penologia “de baixo”, Pavarini (2006) mostra

que, ao fugir do compromisso com horizontes justificativos de natureza ideológica para privilegiar

aproximações tecnocráticas, a mesma termina por ancorar-se definitivamente em concepções pré-

modernas da penalidade. “Como qualquer populismo, o populismo penal toma a forma dos

sentimentos e intuições” (PRATT, 2007, p. 12, tradução livre), tal qual a análise durkheiminiana da

pena como reação passional àquele que quebra o equilíbrio social.

Essa legitimação “de baixo” passa a ser, de um lado, uma exigência, e, de outro lado, uma

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garantia de sua receptividade eleitoral. Os próprios discursos políticos, impregnados de referências

aos sentimentos do que pensa “a nossa gente”, “o cidadão de bem”, permitiu, como nota Sozzo, a

emergência e sobreposição de um novo tipo de especialidade na construção de estratégias de

controle do crime: “o dos ‘especialistas’ em opinião pública transformados em ‘consultores’ e

‘assessores’ dos atores políticos” (SOZZO, 2009, p. 42, tradução livre). Trata-se da utilização da

suposta opinião pública – que em verdade repercute o discurso hegemônico sobre o sistema penal –

como forma de incutir um caráter democrático nas propostas que, ao contrário de garantirem

liberdade, apostam na sua privação.

4 O NECESSÁRIO DISCURSO CONTRA-HEGEMÔNICO SOBRE O ATO

INFRACIONAL

Como demonstrado por numerosos estudos, existe uma contradição entre o modo como os

meios de comunicação representam o crime e as estatísticas oficiais, e, por outro lado, entre as

estatísticas oficiais e a cifra negra da criminalidade (BUDÓ, 2012). As consequências de tal

disparidade se encontram em outras estatísticas: as do encarceramento e das execuções sumárias. Se

o sistema penal capitalista tem como característica a reprodução das desigualdades (BARATTA,

2002) – sejam elas de classe, raça, gênero, etnia ou opção sexual – cabe estabelecer uma estratégia

de ação que permita, através da conquista de espaços, apresentar os contra discursos necessários a

sua superação. Isso porque os discursos minimalistas e abolicionistas em matéria criminal vêm

acompanhados de extrema rejeição no senso comum e nos meios de comunicação. E essa certeza a

respeito da necessidade de maior controle penal advém propriamente de uma determinada

construção social da criminalidade, de tantas outras possíveis.

O fato de que a maior parte dos atos infracionais perseguidos não possuem a característica

de vulnerarem a vida, e serem quantitativamente muito inferiores aos crimes cometidos por adultos,

não costuma ser suficiente para inibir o sensacionalismo midiático quando da ocorrência de um caso

envolvendo um ou mais adolescentes. Contudo, se essa representação social costuma surtir efeitos

na opinião pública, conforme observado anteriormente, isso significa que faltam espaços de contra

discursos a respeito. O senso comum sobre o crime, seja ele adulto ou juvenil, possui a

característica de apontar seletivamente para os mesmos bodes expiatórios: repisa-se no estereótipo

do criminoso jovem, pobre, negro e favelado. O discurso hegemônico sobre o crime o enquadra no

delito de rua, geralmente praticado por um outsider contra alguém que possa ser identificado no

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rótulo da vítima (BARATA, 1998).

Se as questões relacionadas ao crime são social e politicamente construídas, adquirindo

significado através de processos interpretativos, representacionais e políticos (BECKETT, 1997),

então compreender esses processos é fundamental para entender a reação ao crime. Como nota

Garland (2006, p. 59, tradução livre), “quando o sistema penal afronta o problema do controle da

criminalidade, o faz de maneira mediada por considerações independentes do fenômeno, como

convenções culturais, valorações de caráter econômico, dinâmicas institucionais e razões de política

geral”. Para modificar as decisões políticas, é necessário modificar a agenda e também as

percepções públicas sobre o desvio e o crime, pois não é a gravidade do fato ou o aumento da

criminalidade que provocam medidas políticas punitivistas, mas sim a percepção social sobre o

tema.

Bourdieu (1989) nota que, no campo da política, a força das ideias propostas por um

determinado falante, porta-voz de um grupo, não é medida pelo seu valor de verdade, como na

ciência, mas sim “[...] pela força de mobilização que elas encerram, quer dizer, pela força do grupo

que as reconhece, nem que seja pelo silêncio ou pela ausência de desmentido, e que ele pode

manifestar recolhendo as suas vozes ou reunindo-as no espaço” (BOURDIEU, 1989, p. 185). O

caráter monolítico de que se reveste o discurso sobre o crime na mídia não faz jus à variedade de

percepções sociais e, sobretudo, ao que a academia vem produzindo nessa matéria desde a década

de 1960. Porém, a ausência de vozes que contraponham essas representações midiáticas, em razão

de várias contingências, como o poder de acesso e a vinculação da mídia a objetivos econômicos

claros e políticos obscuros, dificulta essa mudança do poder simbólico para definir os problemas

sociais. A difusão desse discurso tem efeitos deletérios na produção de políticas criminais, e aí se

insere o debate a respeito do papel do jornalismo, somado aos intelectuais, permitir a ocupação de

espaços de discursos contra-hegemônicos.

Uma das aproximações a esse tema é a da newsmaking criminology, um campo de estudos

fundado na necessidade de produção de esforços para interpretar, influenciar ou configurar a

apresentação de itens noticiáveis sobre crime, buscando desmistificar as imagens do crime e da

punição através da localização das descrições de casos de crimes “graves” no contexto de todas as

atividades ilegais e lesivas (BARAK, 1994). Outro objetivo, como nota Barak, é o de esforçar-se

para “afetar as atitudes do público, pensamentos e discursos sobre o crime e a justiça de modo a

facilitar uma política pública de ‘controle do crime’, com base em análises estruturais e históricas

de desenvolvimento institucional” (BARAK, 1994, p. 238, tradução livre). Pede dos criminólogos

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que desenvolvam linguagens de base popular e competências técnicas de comunicação para fins de

participação na ideologia do crime e da justiça consumida em massa.

Barak declara partir, em seu trabalho, de dois pressupostos implícitos: o primeiro

pressuposto é o de que “a construção social do crime e do desvio é parte da socialização política e

ideológica envolvida na legitimação cultural da lei e da ordem – o resultado final é a conformidade

e um maior controle social” (BARAK, 1994, p. xiv-xv, tradução livre). Como consequência dessa

primeira análise, resulta o segundo pressuposto, de que “a desconstrução social e reinterpretação do

crime e do desvio é parte de uma alternativa ou discurso de oposição capaz de desafiar a ordem

jurídica e de produção social dominante” (BARAK, 1994, p. xiv-xv, tradução livre).

Dialeticamente falando, o autor entende, na esteira do interacionismo simbólico, que a

influência entre, de um lado, o pensamento e a ação da sociedade e, de outro, as representações da

mídia é recíproca, e que, se ambos estão sujeitos à interação, cabe aos criminólogos se esforçarem

para influenciar nesse processo em vários pontos. A ideia principal desenvolvida pelo autor é a de

propiciar uma quebra com os diálogos exclusivamente entre acadêmicos em revistas científicas, de

modo a atingir o público com seus conhecimentos sobre o crime e o desvio. Assim, torna-se

necessário “expor a natureza cultural e político-econômica do problema criminal, e mostrar as

conexões necessárias entre essa natureza e a maneira pela qual o crime costuma ser definido, como

um tipo particular de patologia individual ou problema social” (BARAK, 1994, p. 20-21, tradução

livre).

No campo do jornalismo, essa perspectiva está de acordo com a concepção de Genro Filho,

pois segundo ele “as possibilidades de manipulação, proporcionadas pelos meios de comunicação

de massa, são tão significativas quanto as potencialidades de desalienação e de autoconstrução

consciente se tais meios forem pensados numa perspectiva revolucionária [...]” (GENRO FILHO,

1986).

Para concretizar essa possibilidade, Barak faz um chamado aos criminólogos para engajarem

repórteres, editores e produtores em uma dupla missão. Em primeiro lugar, o autor convida os

criminólogos a exporem “convenções jornalísticas e preconceitos sociais, exporem como esses

formaram a cobertura (seleção e apresentação) de notícias sobre crimes (crime stories)” (BARAK,

1994, p. xiv). Em segundo lugar, chama os mesmos criminólogos a irem além da crítica, de modo a

se envolverem com os discursos populares mediatizados, “mas com visões alternativas, baseados

mais em pesquisas científicas do que em tratados moralistas sobre o crime e o desvio” (BARAK,

1994, p. xiv). Seu interesse é o de saber se os criminólogos poderiam fazer análises estruturais e

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históricas sobre criminalidade e vitimização na comunicação de massa, de modo a ocupar o lugar

das “mais tradicionais e a-históricas análises sobre pessoas “boas” e pessoas “más”” (BARAK,

1994, p. xiv).

A questão colocada diante desse chamado é o “como”. Que métodos podem ser usados para

que de fato os espaços midiáticos possam ser ocupados por um discurso crítico sobre o crime e a

justiça penal? Os desafios são vários. Em primeiro lugar, a comunicação de massa é liderada por

empresas, as quais têm no lucro com publicidade – e, portanto, com audiência – o seu sustento.

Vende-se o que é demandado pelo público. Mas está o público interessado em um discurso crítico?

Além disso, na medida em que se busca tratar de uma ruptura com a ideologia dominante, não são

os próprios meios de comunicação representantes desse pensamento e interessados na manutenção

do status quo?

A utilização da internet, na esteira do jornalismo participativo, sobretudo dos blogs e redes

sociais, parece ser uma possibilidade mais concreta e de curto prazo. Enfrenta-se, contudo, o fato de

que ainda assim, costumam ser publicações setorizadas, destinadas àqueles seguidores já iniciados.

Ainda assim, parece que esse campo de estudos das relações entre crime e mídia muito tem a

contribuir com a transformação da linguagem a respeito do crime (BUDÓ, 2012). Esse é um ponto

de profundo interesse, pois não se pode desconsiderar o fato de que discurso é ação.

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