padaria

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Um lugar onde o impossível faz parte da rotina.

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Copyright ©, 2012 de Gislene Vieira de Lima Título: Padaria Linha literária: Ficção Capa: Gislene Vieira de Lima Fotografia: Fabiana Mendonça Revisão e texto de capa: Glória Lopes Diagramação: Gislene Vieira de Lima 1ª edição em 2012

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Aparecido Toledo Melchiades – CRB1-2353

Lima, Gislene Vieira de

L732p Padaria / Gislene Vieira de Lima ─ Campo Grande, MS: Modo Editora, 2012.

216p.; II. ISBN – 978-85-6558-818-8

1. Literatura brasileira 2. Ficção 3. Contos brasileiros I. Título

CDD 869.4.

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SUMÁRIO

Padaria 8

Uma branquinha 21

Pãozinho francês 28

Pão de Ló 32

100 gramas de brigadeiros 38

Bengalas 44

Suco de frutas 48

Mandiocas 58

100 gramas de presunto 64

½ mussarela e ½ calabresa 75

Frango no espeto 79

Torradas 84

Misto quente 96

100 gramas de mortadela 106

Sonhos 113

Suspiros 122

Brevidades 127

Papo de anjo 132

Romeu e Julieta 135

Bem casados 143

Pão de cebola 151

Tiras de massa 157

Caipirinhas 160

Maria Mole 171

Língua de gato 175

Pé de moleque 178

Balas 182

Massa podre 187

Um pingado 193

Gordura e fritura 201

Pudim de leite 207

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PADARIA Observando através da janela o mundo que passava

pelo meu “eu” inerte no banco do ônibus, avistei numa das curvas os sinais de minha parada.

Tendo se passado um mês desde minha chegada à cidade ainda tateava pelas ruas qual cego tentando reconhecer em cada pedra de cinzento cimento uma indicação do caminho daquilo que começava a chamar de “casa”.

Desci do veículo. Olhei em redor um pouco perdido apesar de ter a certeza de que aquela era a Rua das Oliveiras e que meu pequenino quarto e cozinha se encontrava três quadras adiante.

Pobre e faminto preferia gastar as solas dos sapatos ao invés de meus poucos tostões na busca diária por um emprego. Por isso desci naquela rua evitando assim tomar mais um transporte desnecessariamente.

Obter garantias de sustento não estava sendo fácil. Primeiro, por que eu não tinha nenhum tipo de experiência profissional. Segundo, por que estava estudando de manhã, fato este que tornava minhas opções empregatícias ainda mais restritas.

Com o passar dos dias meus parcos recursos estavam reduzindo minhas refeições caseiras à tríade divina dos estudantes pobres: macarrão, salsicha e banana. Os professores da universidade ajudavam em minha dieta miserável pedindo mais e mais livros de modo que eu acabava alimentando por demais o cérebro e por “de menos” o estômago.

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No desespero dos desempregados desvalidos ali estava eu na minha perambulação diária.

Naquele dia resolvi, após mais uma entrevista frustrada, voltar para casa e almoçar. Lembrava que tinha algumas salsichas na geladeira junto do arroz com feijão de véspera. Só precisava de uma caminhada de vinte minutos pela vizinhança. Depois de reabastecer era pegar nova remessa de currículos e ir por aí no tiro cego para ver se acertava alguma coisa.

Andava distraído, pensando nas contas do mês, quando senti uma fisgada em meu braço esquerdo. Foi uma dor tão aguda e intensa que acabei dando uma cambaleada. Apoiei-me em um poste para conseguir recuperar o fôlego. Encostei a testa no cimento frio e cerrei os olhos.

Fazia tempo que não sentia daquelas dores súbitas que mais pareciam cortar do alto do meu ombro à ponta de meu dedo médio. Fiquei ali parado, respirando com dificuldade, transpirando como se estivesse com febre até a dor ir suavizando.

Engoli em seco alisando o ombro com cuidado e finalmente abri os olhos para a rua deserta. Ao menos não era obrigado a me ver alvo da curiosidade alheia.

Pisquei algumas vezes para me adaptar à claridade do dia de verão antes de me deparar com aquela padaria. Na verdade o que chamou minha atenção não foi o estabelecimento e sim um cartaz colado na vitrine onde estava escrito com letras garrafais:

PRECISA-SE ATENDENTE

NÃO É PRECISO EXPERIÊNCIA Observei o local sentindo-me um tanto surpreso por

nunca ter reparado naquele lugar. Era uma padaria grande com enormes janelas de vidro que funcionavam

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como vitrines. No alto, um cartaz desbotado onde se lia: Padaria.

Dei risada. Uma padaria chamada Padaria. Mesmo estando do lado de fora podia perceber como

era o seu interior. Não era diferente da maioria das panificadoras. Dividia-se em duas alas: o lado esquerdo onde ficava a lanchonete com um enorme balcão em forma de “L”, banquinhos para os clientes, prateleiras com bebidas e fornos de vidro repletos de coxinhas, quibes, pizzas, cuscuzes, tortas e outras delícias; o lado direito com um balcão onde os clientes podiam escolher os pães, bolos, doces e outras massas espalhadas por prateleiras e cestas de vime. No meio, como um divisor de águas, ficava o caixa.

O estômago roncou cobiçoso ao visualizar tantas guloseimas. Já esquecido da dor fui tomado pela ansiedade que sempre antecedia uma entrevista. Uma ideia percorria meu espírito e minhas necessidades se agarravam a ela com otimismo e esperança:

“Aqui é um lugar onde talvez eu tenha a chance de encontrar um horário que combine com o da faculdade.”

Ajeitei disfarçadamente a camisa. Espiei embaixo dos braços procurando alguma marca de suor. Alisei o cabelo, respirei fundo e entrei. Um radioso sorriso seguido pelo corpo de uma bela morena uniformizada apareceu estendendo uma guia para o registro das compras.

─ Boa tarde. – Disse ela com um ar de simpatia. O cheiro de pão quentinho, recém-saído do forno,

golpeou minhas narinas. Com um gesto automático apanhei o papel. Depois, meio sem graça, falei à guisa de quem pede desculpas:

─ Boa tarde. Eu, na verdade, entrei apenas para saber um pouco mais a respeito da vaga de atendente.

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O sorriso amável que dançava nos lábios da moça deu lugar a uma expressão de dúvida.

─ Vaga de atendente? ─ Sim. Acabo de ver o cartaz lá fora. Ela me lançou um olhar longo e sério. Fiquei

desconfortável com sua reação. ─ Com quem eu falo? – Perguntei sentindo certo

constrangimento com o longo silêncio. O som de minha voz pareceu surtir algum efeito na

jovem pensativa. ─ Aguarde um momento sim? Passando por baixo do balcão de pães ela comentou

algo que eu não pude ouvir com outro funcionário: um rapaz loiro que atendia uma senhora embrulhando um pão doce em papel manteiga. Ele me olhou com cara de poucos amigos enquanto a moça desaparecia de minha vista entrando por uma porta que dava para os fundos.

Intrigado com o comportamento daquela gente eu preferi concentrar minha atenção no ambiente. Havia poucos clientes na parte da padaria. Mas a lanchonete estava cheia. Observei os funcionários. Além do rapaz atendente, uma senhora negra ficava no caixa e um homem que trazia na face um impressionante bigode atendia no balcão de lanches.

A atendente voltou, mas não saiu para a parte externa da loja. Acenou indicando que eu deveria me aproximar.

─ Você pode fazer um favor? Pode apanhar o cartaz que diz ter visto lá fora?

─ Como assim? – Perguntei surpreso. ─ O gerente pediu para você pegar o cartaz antes que

eu o leve até ele. Fiquei olhando meio desconfiado para ela. Era algo

estranho de se pedir. Dei de ombros imaginando que não seria por causa de tais excentricidades que eu perderia uma oportunidade de emprego. Voltei até a entrada e

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despreguei o cartaz que estava pendurado num canto da janela de vidro.

Entrei novamente com o anúncio debaixo do braço. A moça já estava com uma parte do balcão levantada e fez nova mímica para que eu entrasse.

Seguindo-a, fui parar numa grande cozinha. Lá dentro estavam: outro rapaz loiro, uma senhora de cabelos grisalhos e pele muito branca e um senhor de baixa estatura e pele morena. Ela fazia a decoração de um bolo. O homem moreno estava esticando a massa do pão. As mãos cobertas de farinha. E o “alemão” estava puxando uma bandeja grande de um tipo de prateleira móvel. Estava cheia de pãezinhos quentinhos que eram jogados dentro de uma enorme cesta de vime. Ocultei uma careta ao sentir o novo protesto do estômago vazio.

Eles me olharam com muita curiosidade, quase com surpresa, mas não deixaram de continuar a cumprir suas tarefas. Atravessamos a cozinha e entramos por um corredorzinho estreito e mal iluminado que dava para um lance de escadas. No alto da escadaria passamos por um local parecido com uma pequena sala de espera com uma mesinha, um sofá e um vaso grande com algumas “Espadas de São Jorge” meio ressequidas.

No fim desta sala existia uma porta fechada. Era feita de madeira sólida com a inusitada figura de um enorme beija-flor entalhado nela. A mulher bateu na porta e algo parecido com um grunhido soou lá dentro.

Entramos em um escritório apertado, mergulhado em fumaça. Atrás de uma escrivaninha grande demais para a saleta estava um homem de meia idade fumando um cachimbo.

Olhando para ele não pude deixar de admirar sua aparência extraordinária. O cabelo que já havia sido preto estava sendo tingido de prata pelo tempo. O tinha liso e

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um pouco comprido demais já que lhe caia sobre os ombros. Tinha sobrancelhas excepcionalmente grossas e, apesar da tez morena, seus olhos traziam uma estranha tonalidade cinza. Mesmo estando sentado era possível perceber que era de elevada estatura.

Apesar de minha entrada ele não desprendeu os olhos de alguns papéis que tinha sobre a mesa. Digitava com os dedos ágeis numa calculadora gasta enquanto os lia. Respirei com dificuldade. Era difícil ficar ali dentro já que a única janelinha do cômodo estava fechada e o cheiro forte do tabaco impregnava todo o ambiente.

─ Seu Mauro, este é o moço que disse que tinha um anúncio pra atendente na entrada.

Ele ergueu o par de olhos ásperos. ─ Está com o anúncio aí? – Falou com voz dura. Num gesto meio automático, mais impressionado

com a figura à minha frente do que com o que fazia, estiquei o cartaz. Ele o leu com o cenho franzido.

─ Olha aqui Catarina pega essa “porra” e queima. Tá ouvindo? - Ordenou ranzinza.

Muito calmamente ela retirou o cartaz de minhas mãos um tanto trêmulas e saiu. Para meu desespero ficamos, eu e o velho, mergulhados em uma névoa sufocante.

─ Senta aí. – Ordenou. Obedeci com um milhão de pensamentos passando

pela minha cabeça. Talvez o cartaz fosse o trote de alguém. Parecia ser evidente que ninguém ali tinha ideia de como ele foi parar na frente da padaria.

─ Qual é o seu nome? ─ Ele perguntou observando-me pela primeira vez com atenção.

─ É Beto. Roberto! Eu tenho um curríc... - Falei depressa ameaçando abrir a mochila que trazia comigo.

─ E então, o que eu vou fazer com você? - Interrompeu.

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Olhei-o me sentindo confuso. Será que ele queria uma resposta para aquela pergunta? Respirei fundo tentando recobrar a calma, mas acabei inalando a fumaça. Comecei a tossir. Tossi tanto que meus olhos ficaram cheios de lágrimas. Aquele estranho homem ficou me observando com uma sombra de sorriso brincando nos lábios. Parecia estar se divertindo com o meu sofrimento. Os olhos dele tinham o inquieto movimento de fixarem-se nos meus e depois deslizarem para o vazio logo acima de meu braço esquerdo. Imaginava se aquilo era algum tique nervoso. Resisti à vontade de olhar por cima de meu próprio ombro.

Quando finalmente consegui recuperar o fôlego, falei: ─ Desculpe-me. ─ Apenas vamos terminar logo com isso. - Falou

batendo os dedos em uma pilha de folhas que estavam sobre a sua mesa, dando a entender que ainda tinha muito serviço pela frente.

─ Posso fazer uma pergunta? - Indaguei, criando coragem.

─ Desembucha. ─ É... Só queria saber. Por que é que o senhor pediu

que eu trouxesse o cartaz? Não tem uma vaga em aberto? ─ Se você viu o cartaz é porque tem uma vaga. -

Tragou um pouco do cachimbo, pensativo. Depois disse com voz mais branda. ─ Eu apenas não sabia. O pedido foi para confirmar se existia ou não este bendito anúncio.

─ O senhor não sabia? ─ É. ─ Repetiu secamente. Fiquei em silêncio. Como o dono de uma padaria,

pois eu imaginava que ele fosse o dono, podia não saber que havia uma vaga em aberto em seu próprio estabelecimento?

─ Isso não é meio estranho? - Deixei escapar.

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─ E isso tem alguma importância? – Replicou meio irritado.

─ Não, é só que eu... – gaguejei. ─ Escute-me aqui, rapaz. De você eu só quero saber

uma coisa. Só pra não perder meu tempo com bobagens, responda: você quer trabalhar aqui ou não?

─ Quero! – Tentei responder com firmeza. ─ E o tal currículo? Abri a mochila e tirei de lá um envelope amarelo

meio amassado depois de uma viagem em ônibus lotado. Seu Mauro tirou o papel e deu uma passada de olhos, murmurando:

─ Bem típico... Remexi na cadeira, desconfortável. ─ Roberto Macedo da Silva. Dezenove anos. Hum...

Pelo menos mora perto. – Ia lendo, o cachimbo dançando no canto da boca. ─ Faculdade de Direito? Vai aprender a fazer pãezinhos para os bandidos?

O homem grunhiu algo que devia ser uma risada ante a própria piada.

Senti-me como um daqueles personagens de desenho animado que vão encolhendo, encolhendo, até ficarem minúsculos em sua cadeira. É fato: estava estudando Direito. Mas ainda estava no primeiro mês. Mesmo tentando arrumar um estágio com tão pouco tempo de estudo ainda tinha o empecilho do horário e da total falta de experiência. Precisaria de pelo menos um ano, um ano e meio, para poder pensar em colher alguma coisa da faculdade. E eu precisava garantir o meu sustento até lá. Recém-chegado do interior, minhas economias restantes davam, se muito, para o aluguel do mês. Tinha vontade de gritar tudo isso, mas engoli em seco e fiquei aguardando. Aquela entrevista já parecia ser um caso perdido.

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Ele jogou sua cadeira para trás equilibrando-se na parede e fixou o olhar no teto. Tirou o cachimbo da boca e deu uma baforada, pensativo. Depois, como que despertando, voltou sua atenção para mim novamente. Seus olhos sempre fazendo aquele estranho movimento por sobre meu ombro.

─ Bem, o fato é que você está aqui não é? Isso deve de alguma forma dizer muito a seu respeito.

Fiquei olhando para ele sem saber se devia responder. Parecia que estava apenas pensando em voz alta.

Sua atenção agora parecia estar presa em minha mão esquerda. Vi seu rosto se modificar enquanto a observava. Parecia estar intrigado.

─ O que é isso? Congelei de medo. Eu já me considerava um tipo de

mestre em disfarçar a paralisia parcial que dominava meu braço esquerdo. Não era capaz de segurar objetos pesados com esta mão nem de fazer movimentos muito delicados com os dedos. Teria ele percebido? Era impossível. Ergui minha mão esquerda fazendo-me de desentendido.

─ Isso o quê? – Segui seu olhar. ─ Meu anel? ─ Por que anda com isso? ─ É só um anel. ─ Repliquei me sentindo aborrecido

com o tom de voz dele. Ele se calou e ficou olhando para minha mão com

uma expressão muito estranha no rosto. Fiquei imaginando do que ele estaria falando. Não havia nada de absolutamente diferente em minha mão. O anel era um desses ordinários que se encontra em qualquer feira hippie.

─ Estou disposto a dar-lhe uma oportunidade de trabalhar conosco.

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Surpreso, fiquei sem ação por uns instantes. O quê o fizera chegar a esta conclusão? Ele abriu uma das gavetas da escrivaninha e retirou de lá um papel.

─ O pagamento... Hum... É de seiscentos reais. O horário é das duas às onze e meia. Não dou nenhum benefício, mas os funcionários têm seu almoço ou jantar garantidos aqui além de um lanche de quinze minutos.

Como ele estivesse lendo a descrição da vaga conclui que toda a novela do cartaz tivesse sido algum tipo de brincadeira incompreensível. Mas o que me importava aquele senso de humor estranho? O salário não estava mal. Além disso, poder fazer uma refeição ali já seria uma bela economia.

─ O senhor registra? – Perguntei um tanto temeroso em abusar da sorte.

─ Claro. É só trazer a carteira. ─ E que tipo de trabalho eu vou fazer? ─ Bom, aí depende do que estiverem precisando lá

embaixo. Você vai ser um tipo de faz-tudo, entende? Vai para onde for mais necessário.

─ Entendo. Estava feliz. Tinha conseguido um emprego perto de

casa em um horário que eu podia conciliar com a escola e com um salário que daria para me manter. Era como retirar um enorme peso dos ombros. Só tinha que tomar cuidado para não fazê-lo mudar de ideia.

─ No entanto... - parou e pitou um pouco de seu cachimbo, novamente imerso em pensamentos. Depois disse com um tom de voz estranho: ─ Devo preveni-lo que algumas das coisas que você irá ver aqui lhe parecerão ser bem estranhas. Apenas não se preocupe muito com isso e se for mesmo importante, pode vir falar comigo.

─ Como assim estranhas? ─ Perguntei curioso.

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Ele voltou a me encarar. Ficou por alguns instantes em silêncio como que tentando se decidir sobre o que dizer.

─ Presumo que se você ficar conosco tempo suficiente vai acabar descobrindo, não é mesmo? Sendo o esperto estudante universitário que você é. Mas, vendo o que tem aí consigo, talvez não venha a ser um grande choque. De fato, suponho que seja bastante benéfico que você perceba algumas coisas diferentes.

Decididamente, ele era um homem muito excêntrico. Parecia falar por enigmas.

Independente disso, tudo o que eu conseguia pensar feito um idiota era: “Tou empregado! Tou empregado!”

─ E então? Quer ficar com a vaga? ─ Claro! - Respondi me arrependendo de imediato

por parecer tão entusiasmado. Isso não me parecia ser muito profissional.

Seu Mauro levantou o corpanzil da cadeira. Era bem magro e alto como eu suspeitara.

─ Então vamos lá embaixo para que eu te apresente para o pessoal. Aí você já pega seu uniforme e a gente vê onde te encaixa hoje.

─ Hoje? ─ É. Por quê? Não pode começar hoje? Respondi às pressas, ignorando a queixa do estômago

vazio: ─ Posso! Posso sim! Ele tirou o cachimbo da boca, soltou uma baforada e

bateu o tabaco num cinzeiro já cheio antes de depositá-lo sobre a mesa. Depois abriu a porta.

─ Então vamos logo. Meio zonzo, não sei se pela fumaça, pela fome ou pela

euforia, fui seguindo aquele homenzarrão. Notei que ele mancava da perna esquerda. Usava camisa de mangas

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compridas num tom azul claro, calça social e sapatos de couro também pretos. Aparentava muita elegância para uma pessoa que demonstrava ser tão rude no trato com os outros.

Descemos pela escadaria e chegamos novamente à cozinha. A entrada daquele homem fez com que todos parassem o que estavam fazendo para lhe dar a devida atenção.

─ Bom, a tagarela da Catarina já deve ter dito para vocês. Então apenas vou confirmar as fofocas. Este é o Beto. Ele vai começar a trabalhar aqui hoje.

Cumprimentei com a cabeça meio sem graça. Levei um tempo para perceber que ele me chamara pelo apelido.

─ Lorena, - continuou o sujeito ─ a senhora pega um uniforme pro rapaz e explica pra ele como as coisas funcionam aqui. Depois leva ele lá no Nestor para ajudar na lanchonete que eu sei que hoje vai ser puxado.

Com o canto dos olhos ele me procurou para ver se eu estava prestando atenção. Depois, sem dizer palavra, se virou e sumiu pelo mesmo corredor por onde havíamos passado, sempre arrastando uma das pernas.

─ Este rabugento não consegue ficar longe daquele cachimbo mal cheiroso nem por uns minutos! – repreendeu Dona Lorena, mostrando um sorriso amável enquanto enxugava as mãos com um pano de prato.

Tinha um sotaque típico dos nascidos em Portugal na voz. Os cabelos já grisalhos estavam presos em um coque antiquado. Era meio gordinha. Como todos ali, vestia um uniforme branco e uma touca da mesma cor.

─ Como te chamas mesmo, ó gajo? – Perguntou ela. ─ É Beto. ─ Sou Lorena e aquele ali é o Geraldo. O homem apenas fez um gesto com a cabeça. Era um

senhor de uns cinqüenta anos, corpo magro, covas no

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rosto lhe dando um ar de faminto. Tinha a pele morena e os cabelos lisos e negros que escapavam do chapéu aqui e ali. Isto tudo aliado à sua baixa estatura e à testa ampla lhe davam uma aparência que eu atribuía aos nordestinos.

─ Ele é o padeiro. O Miguel... ─ E aí, chapa? – Cumprimentou o rapaz de longe

erguendo uma mão coberta de farinha. Parecia ter a mesma idade que a minha. Percebi algo

de familiar em seu rosto, mas não atinava para o que seria. Tinha olhos claros, cabelos loiros e pele branca. Tenho que confessar com muito mau grado que era um cara boa pinta, do tipo que faz sucesso com as garotas.

─ É o ajudante de cozinha. ─ Ajudante aqui é outra palavra pra escravo viu? Vai

se acostumando. – Comentou rindo. ─ É um palhaço como bem podes ver. – Falou ela

ignorando o protesto do rapaz. ─ É melhor não perdermos mais tempo que hoje estou cheia de encomendas. Que número veste?

─ Quarenta e dois. ─ Venha cá. Segui a mulher até algumas prateleiras. Ela tirou dali

dois pacotes contendo os mesmos uniformes que eles usavam. Depois apontou para uma porta meio escondida entre os armários.

─ Você pode trocar-se ali. Ao atravessar o pátio verá a nossa salinha e o lavatório. Todos aqui têm de usar esta roupa. Não esqueça-te também de colocar a touca para evitar que caiam cabelos na comida. Podes deixar tuas coisas lá. Depois que voltar levo-te até o Nestor.

Obediente, segui pelo caminho indicado onde me preparei para o meu primeiro dia de trabalho pensando

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na ironia que era estar faminto em um lugar tão cheio de comida.

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