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outra travessiaRevista de Literatura nº 40/1Ilha de Santa Catarina, 2º semestre de 2003.

dossiê:revistas

literáriasrevisitas

Curso de Pós-graduação em LiteraturaUniversidade Federal de Santa Catarina

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2travessia 40 / outra travessia 1

Curso de Pós-graduação em LiteraturaCentro de Comunicação e Expressão

Universidade Federal de Santa CatarinaCampus Universitário - Trindade

88040-900 - Florianópolis - SCfone 48 331 9582fax 48 331 6612

Ficha Técnica

Projeto gráfico e Editoração:Amir Brito Cadôr

Capa editada por Amir Brito Cadôr, sobre Poem-Picture de Philip Guston.Todas as imagens desta edição foram extraídas do catálogo da exposição do pintor

norte-americano Philip Guston na Addison Gallery of American Art, 1994.

CatalogaçãoISSN 0101-9570

EditoresCarlos Eduardo Schmidt Capela e Susana Scramim

Conselho ConsultivoAdriana Rodríguez Pérsico (Universidad de Buenos Aires, Argentina)Ana Luiza Andrade (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)

Andrea Pagni ( Universität Rostock, Alemanha)Berta Waldman (Universidade de São Paulo, Brasil)

Ellen Spielmann(Universität Leipzig, Alemanha)Ettore Finazzi Agrò( La Sapienza, Roma)

Flora Süssekind (Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil)Florencia Garramuño (Universidad de Buenos Aires, Argentina)

Francisco Foot Hardman (Universidade de Campinas, Brasil)Gabriela Nouzeilles ( Princeton University)

Gema Areta (Universidad de Sevilla, Espanha)Gonzalo Aguilar (Universidad de Buenos Aires, Argentina)Graciela Montaldo( Universidad Simón Bolívar, Venezuela)

Helena Buescu (Universidade Nova de Lisboa)João Cezar Castro Rocha (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)

Lucia Sá (Stanford University)Luz Rodríguez Carranza (Leiden Universiteit, Holanda)

Maria Lucia de Barros Camargo (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)Raul Antelo (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)

Roberto Vecchi (Università di Bologna)Simone Pereira Schmidt (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)

Sonia Mattalia (Universidad de Valencia)Sylvia Saítta (Universidad de Buenos Aires, Argentina)Hugo Achugar (Universidad de la República, Uruguay)

Wander Melo Miranda (Universidade Federal de Minas Gerais)Wladimir Antonio da Costa Garcia (Universidade Federal de Santa Catarina)

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3 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003

Sumário

Maria Lucia de Barros Camargo

Ana Luiza Andrade

Ettore Finazzi

Mabel Moraña

Marco Antonio Chaga

Jorge Wolff

Antonio Carlos Santos

05

07

21

37

59

65

73

91

115

21

37

59

65

73

91

115

[apresentação]

[uma constelação: revistas entre vistas]

[Sobre revistas, periódicos e qualis tais]

[Asas de papel]

[Mediações e medidas]

[Revistas culturales y mediación letrada en América Latina]

[Circulação das idéias literárias no Folhetim]

[Fragmentos de uma poética verbivocovisual]

[No tempo da Gazetinha e depois]

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4travessia 40 / outra travessia 1

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5 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003

Se, como todos sabemos, navegar é preciso, nem por isso deixade ser, a travessia, arriscada. O giro da bússola e a contenção dosdesejos não bastam, no entanto, para estabelecer um istmo, mes-mo precário, que assegure a manutenção do rumo, e o vigor doremo. A travessia, tornada acaso, perde o melhor de si, como per-de também caso o ir e vir se reduza aos rigores de uma rota cujocumprimento responde antes de tudo a exigências instrumentais,ou burocráticas.

Estabelecido um destino, há infinitos caminhos que podemostomar, e esse infinito é paradoxalmente ampliado quando tal desti-no se pluraliza em rede. Isso sem lembrar que mesmo os caminhossão vários, já que inevitavelmente se bifurcam. Naufragada a navede anos de travessia, em viagens por vezes tumultuadas, premidaspor contingências que todo marinheiro conhece à exaustão, seusdespojos nos motivaram a reunir uma nova equipagem, e soltaramarras na aventura de outra travessia — nem melhor e nem pior,apenas outra.

Claro que experiências anteriores nos ensinam, e em certa me-dida nos apartam. É difícil crer, no porto em que estamos, na exis-tência de mares nunca dantes navegados. O nó da questão, detodo modo, não parece mais estar no mar, mas antes no olhar comque o contemplamos. A literatura e a cultura, maleáveis e moldáveisporém moventes, pulsantes e imprevistas, incontornáveis, são aágua, matéria que singramos. Não se trata de abordá-la e tampoucode explorá-la, como tanto já se fez; que flua como fonte que ali-menta e excita e suscita nossa inteligência, imaginação e capaci-dades crítica e analítica.

Essa outra travessia é portanto ensaio, isto é, diálogo. Éparadoxa, ao mesmo tempo alhures e ao lado. Não pretende servira império algum, mesmo porque este prescinde, o poder da frotaque tem: deixemos para ele o mar profundo. Nossa navegação, decabotagem, deve por isso estar atenta para as águas que margeiam,porção que nos resta. O que não deixa de trazer vantagens: asmargens, afinal, são muitas, cada uma com contornos próprios,imprevistos.

À equipagem da outra travessia compete antes de tudo orientara nau, imaginar roteiros, esboçar mapas, rasurá-los e rasgá-los. Aaventura estará aberta a todos os que a quiserem tentar. Claro quemarujos, não importa de onde, cujos vislumbres pulsem como fa-róis, serão convidados a dela fazer parte: outra travessia irá publi-car ensaios recentes de intelectuais de reconhecido renome, visan-do a atuar de modo fomentador na cena cultural brasileira. Afinal,nenhuma viagem vale a pena se perde de vista seu efeito instigador:cada uma delas anunciando a seguinte, tão igual e diferente.

Este número — tal face de Jano — assume ser simultaneamenteporto a que chegou a travessia após 40 números, em pouco maisde 20 anos, e porto de partida da outra travessia que agora se inicia

Apresentação

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— daí sua peculiar numeração: 40/1. Para um lugar de transiçãonada mais apropriado do que propor reflexões acerca do periodismoliterário e cultural, tema articulador deste número. Introduzindo osensaios dos colaboradores convidados, os editores propõem umapequena trama de vozes diversas que em sua singularidade seposicionam sobre o mesmo fenômeno e que nos convidam a parti-lhar o horizonte por elas descortinado. A posição de outra travessiafrente à diferença lingüística da América Latina é a de não estimu-lar a competição entre as duas línguas da colonização do espaçolatino-americano; por isso, outra travessia opta por não traduzir ostextos em espanhol.

O número 2 da outra travessia também faz parte do mesmoprocesso de transição. Dedicado a Euclides da Cunha, nele a parti-cipação dos colaboradores foi requestada pelos editores. A partirdo terceiro número, no entanto, outra travessia lançará chamadasuniversais com base em propostas temáticas específicas. Os ensai-os recebidos serão submetidos aos pareceres do conselho editorialcuja composição foi sensivelmente alterada. Além de atuar na ava-liação dos ensaios a serem publicados, o conselho também atuaráorientando a política editorial da revista. As viagens têm custos, àsvezes mais pesados que a bagagem, ou a carga. E como quemfinancia demanda, só resta à equipagem se submeter. Parte dessasmudanças na outra travessia respondem à necessidade de nos ade-quarmos às normas das agências financiadoras das quais, para serepetir a cada semestre, depende a outra travessia.

Finalmente, nessa jornada inicial gostaríamos de agradecer sin-ceramente aos colegas que aceitaram fazer parte do conselho edi-torial da outra travessia; e de também expressar nossa gratidão es-pecial a Raúl Antelo, pelo apoio e pelas sugestões bastante valiosaspara a imaginação da paisagem na qual pretendemos nos confun-dir, bem como pela seleção dos fragmentos que compõem a cons-telação “revistas entrevistas”. Além disso, agradecemos a WladimirAntonio da Costa Garcia e a Juliane Bürger pela tradução de algunsfragmentos, e a Amir Brito Cadôr não só pela qualidade do projetográfico com que nos brindou, mas também pelo empenho em bus-car ilustrações que estabelecessem um instigante diálogo entre aliteratura, a crítica e as artes visuais.

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7 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003

Avec le vers libre (envers lui je ne me répéterai) enprose à coupe méditée, je ne sais pas d’autre emploidu langage que ceux-ci redevenus parallèles: exceptél’affiche, lapidaire, envahissante le journal – souventelle me fit songer comme devant un parler nouveau etl’originalité de la Presse.

Stéphane Mallarmé - La Musique et les Lettres, in Oeuvres Complètes. Ed. H.Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 655.

Com relação ao verso livre (não vou me repetir quanto a isso)em prosa, com cesura pausada, eu não conheço outro emprego dalinguagem do que aqueles tornados paralelos: exceto o cartaz, lapi-dar, invadindo o jornal – freqüentemente ele me fez sonhar como seestivesse diante de um novo falar e da originalidade da imprensa.

Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

* * *

Journal, la feuille étalée, pleine, emprunte àl’impression un résultat indu, de simple maculature:nul doute que l’éclatant et vulgaire avantage soit, auvu de tous, la multiplication de l’exemplaire et, gisedans le tirage. Un miracle prime ce bienfait, au senshaut ou les mots, originellement, se réduisent àl’emploi, doué d’infinité jusque’à sacrer une langue,des quelques vingt lettres – leur devenir, tout y rentrepour tantôt sourdre, principe – approchant d’un rite lacomposition typographique.

Stéphane Mallarmé – Variations sur un sujet: quant au livre, in OeuvresComplètes. Ed. H. Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 380.

Jornal, a folha estendida, repleta, recebe da impressão um re-sultado injusto, simples impressão mal feita: ninguém duvida que abrilhante e vulgar vantagem seja, aos olhos de todos, a multiplica-ção do exemplar e, culmina na tiragem. Um milagre prima esteserviço, no sentido primitivo ou as palavras, originalmente, redu-zem-se ao emprego, dotado de uma infinidade que pode consagraruma língua, com algumas vinte letras – vir a ser, tudo colabora parafazer surgir, origem – aproximando a composição tipográfica deum rito.

Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

UMA CONSTELAÇÃO: REVISTASENTRE VISTAS

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Je préferè, devant l’agression, rétorquer que descontemporains ne savent pas lire –

Sinon dans le journal; il dispense, certes, l’avantagede n’interrompre le choeur de préoccupations.

Stéphane Mallarmé – Variations sur un sujet: quant au livre, in OeuvresComplètes. Ed. H. Mondor et G. Jean-Aubry. Paris, Gallimard, 1945, p. 386.

Prefiro, diante da agressão, retorquir contemporâneos que nãosaibam ler –

Exceto no jornal: ele proporciona, certamente, a vantagem denão interromper o coro de preocupações.

Stéphane Mallarmé (tradução de Juliane Bürger).

* * *

Un jornal est un lieu carré où les auteurs et le publics’accouplent monstrueusement jusqu’à ce qu’il ne resteplus que des imbéciles.

Et encore: c’est le lieu carré où l’auteur empoisonne lepublic qui le rend stupide.

L’extrême rapidité d’ exécution et de lecture, lasuccession également rapide des sujets et des jours –l’absence de critique et de connaissance du lecteur,c’est l’anarchie de la lettre où il n’y a plus de juges nide formes judiciaires ni de lois mais la fantaisie dechacun et les moyens sommaires que l’individuemploie toujours, – les exécutions de l’offre et de lademande.

Paul Valéry – Cahiers II. Ed. Judith Robinson. Paris, Gallimard, 1974, p. 1150.

Um jornal é um lugar limitado onde os autores e o públicoagrupam-se monstruosamente até que hajam somente imbecis.

E mais: é o lugar limitado onde o autor envenena o público queo torna estúpido.

A extrema rapidez de execução e de leitura, a sucessão igual-mente rápida dos temas e dos dias – a ausência de crítica e deconhecimento por parte do leitor, é a anarquia da letra onde nãoexistem mais juízes de formas judiciárias nem de leis mas sim afantasia de cada um e os meios sumários que o indivíduo sempreemprega, – as execuções de oferta e procura.

Paul Valéry (tradução de Juliane Bürger).

* * *

La lecture des journaux mène à tout lire comme des journaux.

Paul Valéry – Cahiers II. Ed. Judith Robinson. Paris, Gallimard, 1974, p. 1153.

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9 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003

A leitura dos jornais leva a tudo ler como jornais.

Paul Valéry (tradução de Juliane Bürger).

* * *

As pequenas revistas não participam do destino dos bons li-vros que nascem sob o signo da obscuridade. O tempo de quedispõem para vencer é muito breve; elas não podem aguardar osvagarosos julgamentos da posteridade, as reabilitações, as modas eas descobertas. No máximo, o colaborador que reúne em livro oque deixou esparso em suas páginas se digna citar-lhe o nome. Apequena boa revista desaparece na voragem, entre as toneladas depapel impresso que saem todos dias dos prelos. O que dela sobra éuma lembrança que os anos vão atenuando, e, às vezes, três cole-ções: a do diretor, a do amigo do diretor (que é um colaboradorcostumaz) e a do Fã Anônimo.

As pequenas revistas são o refúgio do que não cabe nos órgãosbem nutridos das grandes empresas. Muitas vezes um refúgio inó-cuo; outras, um reservatório de dinamite, uma bomba de ação re-tardada que vai explodir nas gerações seguintes. Não serão obriga-toriamente boas revistas, nem obrigatoriamente pasquins. Mas têmsobre os chamados bons veículos de propaganda a vantagem dedepender pouco de conchavos e negócios: em suma, a indepen-dência do lobo magro e livre diante do cachorro médio e lustrosode coleira no pescoço.

Costumam ser obra primas do artesanato, cuja existência as con-dições econômicas e as exigências estatais vão dificultando cadavez mais. A começar pelo processo da fundação de uma revista, acoisa antigamente era mais simples. Não havia registro oficial. Oproblema financeiro consistia em cavar um anuncio aqui outro ali,ou então apelar para algum recalcitrante Mecenas, em nome dosbons princípios e da boa literatura. Seria extraordinário pagar umartigo, talvez o colaborador se ofendesse.

Antigamente os adultos gostavam mais que hoje de brincar depequena revista. Para alguns homens que escrevem, há realmenteuma espécie de volúpia no semi-ineditismo. Dá um ar de recado,de cumplicidade de grupo, que satisfaz a alguns pudores maisconspirativos (digo conspirativo no sentido inocente da palavra).Não pode ser outro o motivo que leva o grande escritor, o “blasé”da publicidade, o astro dos cabeçalhos, a brindar obscuros rapazescom uma produção que circulará em mil cópias. Ou então, talvez,o sentimento de que vai ser lido por esses mil leitores com umaintensidade multiplicada, uma ânsia de assimilação que vale o to-tal de cinqüenta mil displicências dos leitores do grande órgão.

Pequenas revistas da província ou das capitais – que densidadede esperança elas carregam! Que bela audácia de negar, que ilu-são sobre o efeito de cada linha na sorte do mundo e dos homens,que angústia com os pastéis de tipografia, que nobre desprezo pelaopinião contrária. E sobretudo, que vontade de crescer!

Conheci algumas dessas revistas, e a uma delas fiz referênciano domingo passado, com uma ligeireza de que me penitencioagora amplamente, aproveitando a presença no Rio do seu diretor,Arnaldo Pedroso d’Horta. A pequena revista chamava-se Proble-mas e não chegou aos vinte números. Era mensal, mas o primeiroaniversário foi comemorado no número dezesseis, porque essas

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revistas têm cronologia própria e independente das leis do univer-so. Em S. Paulo tornou-se bastante conhecida, mas não teve quasedivulgação no Rio. Horta é um dínamo que trabalha manso, e noprincípio tinha a auxiliá-lo Rubem Braga, cujo “gênio folgazão”disfarça as intermitências de uma atividade de “one dollar man”,uma atividade que vem por acessos como a malária que o atacouquando pescava nos matos do interior do Paraná. Bem, mas isso jáé outra história.

A revista Problemas não era brincadeira de principiantes (elafoi fundada em 1937), mas por sua própria natureza tinha que semanter relativamente discreta. O primeiro número apareceu comum artigo de João Mangabeira sobre democracia – “A DemocraciaMilitante”, senão me engano. Oswald de Andrade publicou lá umafamosa sátira ao integralismo. Ao lado desses e de outros nomesfeitos de padrinhos, havia os principiantes. A revista tratava de lite-ratura, mas não só de literatura; havia muita política, principal-mente internacional, e muita economia. Agitava-se a questão dasiderurgia, Rubem Braga fazia considerações sobre uma teoria deEvandro Pequeno chamada bananismo, e publicava uma páginade forte lirismo sobre as “flores cobertas de poeira”, Arnaldo Pedrosod’Horta, em comparação com a maioria dos diretores novatos, eraum gênio; mas um dia as finanças da revista se atrapalharam de taljeito que ele desistiu. Com os seus vinte números e a sua reduzidacirculação, Problemas desempenhou um papel significativo, naslutas democráticas do país.

A pequena tiragem era muitas vezes uma condição de eficiên-cia das revistas quando tinham veleidades políticas. O que resultamortífero em cem mil exemplares, passa a ser apenas incômodoem dez mil, e é tolerado abaixo de três mil. Mas isso não querdizer que o conteúdo seja inofensivo na mesma proporção. Tudoaí é uma questão de tempo. O germe da verdade tem meios enge-nhosos de transmissão: muitas vezes ele se recolhe dentro de unspoucos indivíduos. Pode então transmitir-se por um bilhete, umboletim, e se contar com uma revista, então a festa está feita. É ocaso da bomba de ação retardada.

Moacir Werneck de Castro – “Homens, Livros e Idéias: Pequenas Revistas”, inDiário Carioca, Rio de Janeiro, 1944.

* * *

En los años de guerra hubo poca oposición concertada a Sur,en lo ideológico o en lo estético. Casi todos los hombres de letrasestaban de acuerdo con las opiniones del liberalismo, queencontraban su expresión suprema en Sur. Tan sólo una pequeñacorriente nacionalista dentro del radicalismo –el grupo FORJA—cuestionó el modelo liberal de elite, y acabaría siendo atraída porel peronismo. Sur sería uno de los blancos de sus ataques en laobra de críticos como Arturo Jauretche. Sin embargo, en generalpuede decirse que la izquierda aún no lanzaba una crítica al libe-ralismo, y el nacionalismo de derecha, aunque cobraba fuerza,aún era bastante insignificante. A mediados de los cuarenta seestableció una alianza entre los partidos políticos de Argentina, enun intento por lograr que Perón no ganara las elecciones. En esascircunstancias, la izquierda liberal pudo recibir bien las iniciativasde Sur, como queda ilustrado por una nota de Leónidas Barletta,publicada en su revista Conducta (“al servicio del pueblo”). En ellaBarletta agradece a Victoria haberle enviado un recorte de periódi-co francés en que menciona a su compañía de teatro, “el teatro del

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pueblo”. Habla de “La inteligencia y extraordinaria labor deacercamiento e intercambio intelectual que cumple esa cultísimaescritora que es Victoria Ocampo, en el extranjero, por amor anuestro país y nuestra querida ciudad”.

Los pequeños pero vociferantes grupos de izquierda se mostraronmenos deferentes. En su principal revista, Nueva Gaceta, hicieronmofa de las pretensiones de Sur, especialmente en sus análisis delos asuntos contemporáneos. El debate de Sur sobre MacLeish loencontraron tristemente carente de ideas; consideraron que elanálisis de Denis de Rougemont expresaba un “utópico y repudiablearistocratismo”. En un número posterior la revista la emprendiócontra la “santa trinidad” de Borges, Bioy y Silvina Ocampo por sumuy selectiva antología de la poesía argentina, que había excluidoa escritores como Enrique Molina, José Portogalo y Álvaro Yunque.La Nueva Gaceta pedía, en cambio, intelectuales comprometidosque lucharan por la unidad y la liberación de la América Latina,sacudiéndose el yugo de las potencias imperialistas. Apareció enformato de periódico, con sombrías pero notables ilustraciones deAntonio Berni, Raquel Forner y Emilio Pettorutti, entre otros. Larevista atrajo a algunos viejos escritores de Boedo, como ÁlvaroYunque, los hermanos González Tuñón y Roberto Mariani, juntocon una generación más joven de intelectuales comprometidos,que incluía a Rodolfo Puiggrós, quien mucho después desempeñaríaun papel importante en la política cultural del segundo Peronato.Estos escritores nunca serían publicados por Sur, pero es significa-tivo que su actitud hacia la guerra, y después hacia el ascenso delperonismo, no fuese muy diferente de la de Sur. Eran más estriden-tes, subrayaban el compromiso directo y hacían mofa de la aristo-cracia del espíritu, pero también sus debates se hacían en el nivelde la práctica teórica. Sería Perón quien obtuviera el apoyo de laclase obrera, no los intelectuales de la Nueva Gaceta.

Una crítica más radical llegaría de la derecha, que recayó engeneralizaciones antiliberales y antieuropeas y que presentó comoopciones el clericalismo, el hispanismo y los valores coloniales.Un comentario sobre la revista más importante de esta categoríageneral, Sol y Luna, capta bien su espíritu: su ideología es la de“Castilla, pero la muy vieja, un olor de almidones añejos, el apaga-do rumor de vigilia de gente en armas, el crepitar de los leños enun auto de fe; todo eso se desprende de las 200 páginas de cadanúmero”. Y sin embargo, sus colaboradores eran distinguidosintelectuales de derecha (Castellani, Marechal, Derisi, MáximoEtchecopar) y su rechazo del liberalismo era coherente. Lo mismopuede decirse de una revista posterior, Antología, dirigida ArturoCambours Ocampo, con importantes colaboraciones de CarlosIbarguren y Leonardo Castellani, entre otros. El nacionalismo dederecha atacado tan violentamente por Borges encuentra suexpresión más clara en los periódicos neofascistas El Pampero yCabildo, cuyos nombres tan sólo invocan una tradición poderosa-mente nacionalista. El primer número de El Pampero contiene unpoema estridente de Juan Criollo, “Ya está soplando el pampero”:

¡Lindo viento nacional

que de la pampa hasta el río

barre el bicharraquerío

La fauna internacional!

La “fauna internacional” florecía en las páginas de Sur, comoese mismo año lo puso en claro Ramón Doll: “No consideró

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necesario la directoria de este bazar de importación (Sur) ocuparsede todo lo que está pasando por aquí adentro, que se nos ha llenadode humo la cocina y que las ratas carcomen los cimientos de lanacionalidad”. Piadosos artículos sobre Congresos Eucarísticos,combinados con xenofobia antisemita y los más burdos sentimientosnacionalistas abundan en las páginas de estos periódicos, queforman parte indudable del contexto de los años de guerra. Ilustranuna tendencia totalmente opuesta a los ideales de Sur.

A comienzos de los cuarenta aún eran pertinentes términos como“izquierda” y “derecha”. Sin embargo, el advenimiento de Perón haríasuperfluas todas esas clasificaciones, y constituiría la amenaza másimportante a la continuada hegemonia de Sur en la alta cultura.

John King – Sur. Estudio de la revista argentina y de su papel en el desarrollode una cultura 1931-1970. Trad. Juan José Utrilla. México, Fondo de CulturaEconómica, 1989, pp. 159-161.

* * *

Meses antes del lanzamiento oficial de Mundo Nuevo, el pú-blico latinoamericano tuvo noticias de la revista y de sus conflictivosorígenes a través de la polémica que entablaron Roberto FernándezRetamar y Emir Rodríguez Monegal. ¡Cedidas a la prensa por elflamante director de Casa de las Américas, las cinco cartas que seintercambiaron durante este duelo discursivo circularon profusa-mente por América Latina gracias al trabajo de difusión de Bohemia(Cuba), Siempre! (México), Marcha (Uruguay) y La rosa blindada(Argentina). Con esta polémica comienza la historia pública deMundo Nuevo, un comienzo significativo por varias razones. Enprimer término, porque las cartas anticiparon sensacionalmente laaparición de Mundo Nuevo y, al hacerlo en los moldes polémicosen que lo hicieron, generaron ciertos prejuicios y despertaron fuertesexpectativas en algunos sectores del público latinoamericano. Ensegundo lugar, porque la lógica “amigo-enemigo” que dominó eljuego epistolar reflejó de manera más o menos aproximada la redde solidaridades y rechazos que estructuraban el campo políticode los años 60.

En la primera carta, fechada el 1º. de noviembre de 1965, EmirRodríguez Monegal le anunciaba a Roberto Fernández Retamar sudecisión de dirigir una “revista literaria en París para América Lati-na”. Según Monegal, la revista iba a representar “una oportunidadpara todos los que creemos en una cultura latinoamericana viva yde hoy y, a renglón seguido, confesaba haber aceptado la direcciónde la misma “porque el grupo que me la ofrece (vinculado con elCongreso por la Libertad de la Cultura pero no dependiente de él)me asegura toda la libertad de elección y orientación”.

La sola referencia al Congreso por la Libertad de la Cultura(disimulada por sutilezas semánticas que no lograron distraer laatención de Fernández Retamar) dio origen al debate que seprolongó hasta principios de abril de 1966. La filiación institucionalde Mundo Nuevo, por un lado, y las deudas políticas que trababael parentesco económico de la revista con el Congreso por laLibertad de la Cultura, por otro, fueron los dos temas que enfrentarona Rodríguez Monegal y Fernández Retamar; y los puntos sobre losque gira la respuesta del director de Casa de las Américas:

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13 Ilha de Santa Catarina - 2º semestre de 2003

...el Congreso de marras es una organización creadapara algo, que es, precisamente, lo contrario de lo quenuestros países requieren. Financiado como está porlos Estados Unidos, tiene como única misión la defensano de “libertad de la cultura”, sino de los interesesimperialistas norteamericanos, agenciándose para ello,la colaboración de intelectuales de diversos matices,algunos de los cuales no son hostiles a nuestras causas...Si crees de veras que la sutil distinción semántica deestar “vinculado con el Congreso por la libertad deelección y orientación” en el nuevo Cuadernos quepreparas, me temo, Emir, que has sido sorprendido entu buena fe, de la que no tengo por qué dudar.

La campaña de impugnación originada en Cuba puso en guardiaa gran parte de la intelectualidad latinoamericana. Rápidamente(“aún antes de haberse publicado el primer número”, como se quejómuchas veces Rodríguez Monegal), Mundo Nuevo se convirtió enobjeto de estigmatización de las publicaciones más representativasde la izquierda continental. Cada vez que pudo, la revista hablódel vacío de recepción con que la izquierda la había castigado,vacío al que, en un lenguaje típico de Guerra Fría, dio en llamar “elboycot cubano contra Mundo Nuevo”. De esta forma, la polémicacon Cuba se impuso por iteración en el macrodiscurso de lapublicación y llegó a consolidar uno de sus loci centrales no sóloporque se trató del primer contacto que el público estableció conMundo Nuevo sino también porque el cruce de correspondenciasentre Rodrígues Monegal y Fernández Retamar tuvo toda laapariencia de ser una suerte de “trauma fundacional” incrustadoen la autoimagen que construyó de sí misma la revista parisina.

Maria Eugenia Mudrovcic – Mundo Nuevo. Cultura y Guerra Fria en ladécada del 60. Rosario. Beatriz Viterbo, 1997, p.11-13.

* * *

Un escritor no necesariamente es un intelectual, un intelectu-al no necesariamente es un político, un político no necesariamentees un revolucionario. Si llegó a haber una simbiosis entre el primeroy el último de los términos de la serie es porque la década de 1970se caracterizó precisamente por una supresión casi total de lasmediaciones entre el campo literario y el campo político. CuandoMario Benedetti afirma que es necesario “un asalto al Moncada”en la práctica artística, o cuando Julio Cortázar blande su consig-na, “mi ametralladora es la literatura”, están provocando esasimbiosis, que se revestirá de marcas retóricas típicas en ladiscursividad de aquellos años. Este proceso resulta visible en elproyecto de Crisis, y en él confluyen al menos tres “razones” dife-rentes: a) la que, impulsada por la Revolución Cubana, tiende aprivilegiar al hombre de acción sobre el hombre de ideas; b) laque, anclada en el pensamiento nacionalista y populista, identificaa los intelectuales con la cultura de élite, ligada con los interesesde la oligarquía; c) la que, originada en el romanticismo, tiende adepositar en el pueblo cierto saber natural superior al saber rebus-cado e inoperante de la cultura letrada: hombre común, sentimientosnobles, saber natural, lenguaje sencillo. Por estas tres vías se llega

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a la anulación de la mediación intelectual: el escritor no se planteacómo intervenir en la vida política en cuanto intelectual, sino cómoconvertirse en hombre de acción mediante su integración al “cam-po popular”. Como vimos, estas tres líneas no son para nadanovedosas e incluso los libros tan citados de Oscar Terán y SilviaSigal – entre otros – han caracterizado con acierto su irrupción enlas décadas de 1950 y 1960. Lo que interesa ver es cómo se recu-pera esta tradición en la década de 1970 y, particularmente, cómolo hace Crisis. Quizás una de las más interesantes referencias quepone de manifiesto, en fuerte contraste, la superioridad del hombrede acción – “heroísmo”, “actitud combativa” – sobre el intelectual– “desesperación”, “desencanto” – sea el fragmento del discursoinaugural de Perón en el Primer Congreso Nacional de Filosofía,realizado en Mendoza en Abril de 1949, y citado en la entrevista aFermín Chávez, publicada en el No. 25:

[...] la angustia de Heidegger ha sido llevada al extremode fundar teoría sobre la náusea... [...] del desastre brotael heroísmo, pero brota también la desesperación,cuando se han perdido dos cosas: la finalidad y lanorma. Lo que produce la náusea es el desencanto, ylo que puede devolver al hombre la actitud combativaes la fe en su misión, en lo individual, en lo familiar yen lo colectivo.

Si tenemos en cuenta las tempranas adhesiones de la “nuevaizquierda” al existencialismo sartreano, estas advertencias de Perón,a sólo un par de años de las primeras ediciones en castellano de Elser y la nada, La náusea y Los caminos de la libertad, abrían unabrecha que muy difícilmente podría cerrarse. Crisis no hace sinoahondar esa brecha en la “teoría” y en la “práctica”. (...)

Cultura popular, entonces, pero cuál cultura popular:

– ¿la producida por el pueblo?: sí éste es el criterio, en Crisis elconcepto “pueblo” puede asimilarse a grupos indígenas olvidados(los onas en el nº. 3, las “culturas condenadas” en el nº. 4, losmapuches en el nº. 40), a sectores sociales marginados (presos enel nº. 3, alienados en el nº. 11, inmigrantes en los nº. 18 y 19), osimplemente a “voces” (grafitis en el nº. 25, “voces sobre Gardel”en el nº. 27, testimonios sobre el “rodrigazo” en los nº. 28 y 29).

– ¿la dirigida al pueblo?: en este caso, se incluyen los cantantesy músicos populares (las dos notas con el título “Cantar opinando”en el nº. 12 – Zitarrosa, Mercedes Sosa, Viglietti, Nacha Guevara –y en el nº. 20 – Carlos Puebla, Pablo Milanés, Joan Baez) y lostrabajados de investigación sobre los llamados “géneros menores”(Jaime Rest sobre novela policial en el nº. 15, Beatriz Seibel sobreel circo criollo en el nº. 18, Jorge Rivera sobre el humor gráfico enlos nº. 34 y 35).

– ¿La que intenta una integración con el pueblo, una experienciacompartida?: las notas más reiteradas de este tipo son referidas alas formas de teatro popular (el teatro en la Revolución Cubana enel nº. 6, dos notas sobre los trabajos de Augusto Boal en los nº. 14y 19, las experiencias del Teatro Libre en Tucumán, narradas porHaroldo Conti en los nº. 21 y 24).

– ¿la que se propone defender los intereses del pueblo (de don-de popular sería quien “canta opinando” y no quien procuraestupidizar al pueblo cantando tonterías)?

Nada de esto se establece de un modo programático en Crisis, yvolvemos a lo dicho al comienzo: la revista parece demostrar una

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profunda desconfianza hacia los debates teóricos y una ilimitada feen la espontaneidad y la eficacia de la oralidad: Voz populi vox Dei.

José Luis de Diego – “El proyecto ideológico de Crisis”, in Prismas. Revista deHistoria Intelectual, Universidad Nacional de Quilmes, nº 5, 2001, pp. 133-140.

* * *

“La conformación de la red latinoamericana de revistascorroboró hasta qué punto los sujetos políticos se constituyen en elplano discursivo: ellas fueron uno de los escenarios donde los es-critores se ratificaron como intelectuales, además de servir a ladifusión de los autores y textos latinoamericanos de la época. Lacantidad de revistas surgidas por entonces (de corta o larga vida,según los avatares de la política y las posibilidades definanciamiento) no es un dato menor. En tanto las revistas surgían,incesantemente, la actividad de “puesta al día” y actualización delestado de producción literaria continental fue una de suspreocupaciones constantes. A través de dossier dedicados a auto-res y a países del continente, que enfatizaban su carácter de “nuevo”(“nuevos” escritores venezolanos, colombianos, uruguayos, argen-tinos, salvadoreños, cubanos, etc.), de reseñas bibliográficas escri-tas casi simultáneamente al momento de la aparición de las obras,de entrevistas y menciones, y de la creación de premios literarios,los mecanismos de consagración buscaron una renovación delcanon latinoamericano entre los autores del momento. En las re-vistas puede rastrearse el proceso constante de reevaluación de laproducción existente y el intento por construir una tradiciónpartiendo de criterios estéticamente modernos, que acercaban elhorizonte del modernismo y las vanguardias y rechazaban lostelurismos, folklorismos y nativismos requeridos para América Lati-na por una suerte de división internacional del trabajo artístico queentonces se impugnó” (pp. 76-77)

“El mapa de la época que las revistas permiten constituir tambiénse caracteriza por su propia vocación cartográfica en esos años, losdiscursos de las revistas inventaron sistemáticamente un objeto, alhablar de él: Latinoamérica, la Patria Grande y su literatura. Muchassitúan esta creación, que excede la geografía, en la elección mismade sus nombres: Casa de las Américas, Latinoamericana,Hispamérica.

En las revistas confluyeron, por un lado, la recuperación delhorizonte del modernismo estético; por otro, un espacio deconsagración alternativo a las instituciones tradicionales e instanciasoficiales. Y, finalmente, la construcción de un lugar de enunciacióny práctica para el intelectual comprometido. En cierto modo, unlugar que le provee un objeto, un espacio simbólico, un contexto oun destino. Ese objeto o destino se denominó Latinoamérica.

Marcha, la pionera, afirmó a través de veinticinco años estavoluntad de creación sostenida sin pausa por Carlos Quijano yrefrendada luego por Angel Rama en sus aspectos culturales. Si,desde el punto de vista histórico, la Revolución Cubana condensóesta aspiración en el país que se denominó “primer territorio librede América”, desde el punto de las revistas fue el legendariosemanario uruguayo uno de los primeros en reconocer este objetoy constituirlo en lema de una lucha” (pp. 78-79)

Claudia Gilman. Entre la pluma y el fusil. Debates y dilemas del escritorrevolucionario en América Latina. Buenos Aires, Siglo veintiuno editores,2003.

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* * *

Il y a mille raisons de s’intéresser à la forme-revue. On peutl’aborder en historien, comme Michel Winock l’a fait pour Esprit,afin d’éclaircir un point d’histoire (la revue s’est-elle ou noncompromise avec le régime de Vichy en 1940? n’a-t-elle pas faitpreuve d’une indulgence coupable vis-à-vis du communismestalinien dans l’après-guerre?). Ou de façon scientifique, commeAnna Boschetti et Nilo Kauppi, pour expérimenter une méthode.La revue devient un “champ”, un système de relations sociales dotéd’une logique qui lui est propre et qui commande son évolution. Àl’intérieur de ce champ, toute pratique – la publication d’un article,l’affirmation d’un goût ou d’un mépris, une prise de positionpolitique – est considérée comme une stratégie. On peut raconterle vie d’une revue, comme on le fait d’une personne: c’est le casd’Auguste Anglès pour La NRF, des années de formation à l’âgemûr. Et se donner parfois l’impression d’y participier: n’est-ce pasle cas de Philippe Forest dans son Histoire de Tel Quel?

Tandis que les articles publiés par la revue sont pour l’historiendes documents ou des preuves, pour le sociologue le produit dedéterminations sociales, pour le biographe des complémentsd’information, venant s’ajouter aux correspondances et autres fondsd’archives, le principe de Critique invite à les traiter en eux-mêmescomme des textes, comme des textes critiques et des textessusceptibles à leur tour de singularité tient avant tout à un ensemblede traits négatifs: pas d’effet de maquette, pas de ligne éditoriale,pas d’interrogation politique, pas vraiment de finalité intellectuelle,peu d’implication affective (chez celui qui la dirige ou chez ceuxqui la font). La seule histoire de Critique paraît être celle des textesqu’elle a publiés.

Sylvie Patron – Critique 1946-1996. Une encyclopédie de l´esprit moderne.

Paris. Editions de L ´IMEC, 1999, p. 7

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Existem mil razões para que haja o interesse pela forma-revista.Pode-se abordá-la enquanto historiador, como Michel Winock ofez para Esprit, com a finalidade de esclarecer um ponto da história(a revista se comprometeu ou não com o regime de Vichy em 1940?Ela não provou uma indulgência culpável diante do comunismoestalinista no após-guerra?). Ou de modo científico, como AnnaBoschetti e Nilo Kauppi, para experimentar um método. A revistatorna-se um “campo”, um sistema de relações sociais dotado deuma lógica que lhe é própria e que comanda sua evolução. Nointerior deste campo, toda prática – a publicação de um artigo, aafirmação de uma preferência ou de um desprezo, a tomada deuma posição política – é considerada uma estratégia. Pode-se con-tar a vida de uma revista, como o fazemos com uma pessoa: é ocaso de Auguste Anglès e La NRF, dos anos de formação à idademadura. E dar a impressão, por vezes, de participar dela: não seriao caso de Philippe Forest em Histoire de Tel Quel?

Enquanto os artigos publicados pela revista são para o historia-dor documentos ou provas, para o sociólogo o produto de determi-nações sociais, para o biógrafo complementos de informação, vin-do a acrescentar às correspondências e outros fundos de arquivos,o princípio de Critique convida a tratá-los por si próprios, comotextos, como textos críticos e textos suscetíveis por sua vez à singu-laridade que se devem sobretudo a um conjunto de traços negati-vos: sem efeito de esboço, sem linha editorial, sem questionamentopolítico, sem verdadeira finalidade intelectual, pouca implicaçãoafetiva (por quem a dirige ou produz). A única história de Critiqueparece ser aquela dos textos que publica.

Sylvie Patron (tradução de Juliane Bürger).

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* * *

It must also be noted that Modernism arrived quickly in countriesthat had well-established literary traditions. Yet it was only with theactivities of the Canadian Authors’ Association in the early 1920sthat a general interest in Canadian writing began to develop. Twoconfederations poets, Charles G.D. Roberts and Bliss Carman, hadto leave Canada to make their literary reputations, while ArchibaldLampman, Duncan Campbell Scott, and others remained to languishin relative obscurity in Canada. Reminiscing about his return toCanada from Oxford in 1923, F. R. Scott noted that there “ was verylittle culture coming out of Montreal at that time.”

Louis Dudek argues that little magazines are “embattled literaryreaction of intellectual minority groups to the commercial middle-class magazines of fiction and advertising which had evolved inthe nineteenth century”. But in Canada there was little of anintellectual majority to rebel against. F.R. Scott, A. J. M. Smith, andLeo Kennedy took the first tentative steps towards a Modernist poetry,and they were able to level criticisms at the Canadian Authors’Association and the Confederation poets; but they themselves hadto establish a national setting in which their writing could bepresented. The Canadian magazines of the 1920s were not verybohemian when compared with their English parallels, Blast or TheEgoist, and the commercial magazine was not very strong in Canadain 1920. Magazines available to the educated middle class werelikely to be American products such as Harper’s, The AtlanticMonthly, and Scribner’s Magazines. Canadian periodicals thatattempted to compete with these publications in the late nineteenthcentury, such as the Dominion Illustrated Monthly, Massey’s Maga-zines, and Our Monthly, could not match the American magazi-nes’ financial resources, and quickly disappeared. A notableexception was Canadian Magazine, which lasted for three decades.

Modernism, then, had a slow and tentative start in Canada. Itwould be until the 1940s that Modernism, equipped with embattledlittle magazines, would re-enact the cultural drama in Canadianterms. It can also be argued that it was not until the 1960s thatavant-garde literary magazines began to appear in Canada — somefifty years after the outburst of radical European Modernism. InCanada, modernist evolution went through a series of gradual shifts,beginning with very moderate experiments, proceeding throughstages of radical political and aesthetic development, until the entirerange the modern revolution was explored. This will be our story.

Ken Novris - The Little Magazine in Canada 1925-1980 its role in the

development of Modernism and Post Modernism in Canadian Poetry. Toronto,

ECN Press, 1984, pp. 8 -9.

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Deve ser notado que o Modernismo chegou rapidamente empaíses que tinham tradições literárias bem estabelecidas. Contudo,foi somente com as atividades da Associação Canadense de Auto-res, no começo dos anos 20, que um interesse geral por autorescanadenses começou a desenvolver-se. Dois poetas Confederados,Charles G.D. Roberts e Bliss Carman, tiveram que deixar o Canadápara construir suas reputações literárias, enquanto ArchibaldLampman, Duncan Campbell Scott e outros permaneceram enfra-quecidos, em relativa obscuridade no Canadá. Rememorando acer-ca de seu retorno de Oxford ao Canadá em 1923, F.R. Scott obser-vou que “havia muito pouca cultura saindo do Canadá naqueletempo”.

Louis Dudek argumenta que aquelas pequenas revistas são “aconturbada reação literária de grupos minoritários às revistas co-merciais classe-média de ficção e publicidade que tinham tomadoconta do século dezenove”. Mas no Canadá havia muito pouco deuma maioria intelectual contra a qual rebelar-se. F.R.Scott,A.J.M.Smith e Leo Kennedy deram as primeiras tentativas de cami-nhada na direção de uma poesia modernista, e eles foram capazesde elevar críticas à Associação dos Autores Canadenses e à Confe-deração dos Poetas; mas eles mesmos tiveram que estabelecer umcenário nacional no qual seus escritos pudessem ser apresentados.As Revistas Canadenses dos anos vinte não eram muito boêmias secomparadas às suas correspondentes inglesas, Blast, ou The Egoist,e a revista comercial não eram muito fortes no Canadá em 1920.Revistas disponíveis para educar a classe média eram provavelmenteas produções americanas tais como Harper’s, The Atlantic Monthlye Scribner’s Magazine. Periódicos canadenses que tentaram com-petir com estas publicações no fim do século dezenove, tais comoDominion Ilustrated Monthly, Massey’s Magazine e Our Monthlynão puderam confrontar as fontes financeiras das revistas america-nas e desapareceram rapidamente. Uma notável exceção foi aCanadian Magazine, a qual durou por três décadas.

O Modernismo, então, teve um começo lento e hesitante noCanadá. Somente nos anos quarenta é que o Modernismo, equipa-do com pequenas revistas polêmicas, re-colocariam em pauta aque-le drama cultural em termos canadenses. Pode também ser argu-mentado que somente nos anos sessenta é que revistas literárias devanguarda começaram a aparecer no Canadá – algumas depois decinqüenta anos da explosão do Modernismo Europeu radical. NoCanadá, a evolução modernista deu-se através de uma série demudanças graduais, começando com experimentos moderados econtinuando através de etapas de desenvolvimento político e esté-tico-radicais, até que uma inteira extensão da revolução modernafosse explorada. Esta será nossa história.

( Ken Novris, Tradução Wladimir Garcia).

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1980. Uma foto em preto e branco (ou cinza e amarelo claro?),feita de contornos imprecisos, de claro-escuro, ocupa cerca de doisterços da capa do primeiro número de uma nova revista. No centroda foto, um pequeno barco à vela, quase um esboço. Esmaecido,seu contorno apenas se deixa entrever sobre o brilho das águasque refletem a luz tênue e fosca de um sol em meio à névoa. Soli-tária travessia. Como uma sorte de moldura, à esquerda da foto,duas linhas verticais e paralelas atravessam toda a capa, formandouma coluna em que se inscrevem letras grandes, uma sobre a ou-tra: TRAVESSIA. Completando a moldura, no alto da foto, um sub-título, provavelmente o que se deixa primeiro ler nesta capa: Revis-ta de Literatura Brasileira. No rodapé, a legenda impossível para afoto que o encima: “Contribuição das vanguardas”; “As propostasdo grupo Sul”; “O ensino da literatura”; “Estudos críticos”; “Rese-nhas”; “Poesias”. Apesar do estranhamento suscitado pela foto nocentro da capa, subtítulo e rodapé, lidos em conjunto, poderiamproduzir, no leitor afeito às coisas do mundo literário, a expectati-va de estar diante de uma típica “revista literária”. Para estes leito-res, além do explicativo subtítulo, a palavra Travessia ainda pode-ria evocar tanto um longínquo tópico da literatura, o da viagem,quanto, mais proximamente, a grande travessia na literatura brasi-leira do século XX, aquela empreendida por Riobaldo, seja namemória, seja na reescritura da vida, seja no deserto do Sussuarão– grande sertão, veredas.1

2000. O chamativo vermelho vivo atrai o olhar para a capa,sem fotos e sem figuras, de uma nova revista. Naquela superfícievibrante destacam-se, não sem um certo acanhamento, as letrasbrancas, bem no centro, palavra sobre palavra, formando um pe-queno retângulo à moda de poema: “revista de/ literatura/ brasilei-ra/ Teresa”. O nome – Teresa – é subtraído ao poema homônimode Manuel Bandeira, inscrito parcialmente na capa e com ela qua-se se confundindo no mesmo vermelho, com exceção, é claro, daúltima palavra do primeiro verso, a mesma Teresa do título embranco. Apenas o brilho e o leve relevo das letras, das palavras dosversos do poema - filigrana sem fio, marca d’água sem transparên-cia - traçam o esboço que mal os distingue, produzindo, no entan-to, um belo efeito estetizante.2 A prescindibilidade do nome dopoeta, omitido nos créditos, remete à idéia de um campo fechadode conhecedores da literatura brasileira, de amantes da nossa poe-sia modernista, potenciais leitores de uma revista literária, que po-derão reconhecer esta Teresa e outras Terezas e Theresas.

Guardadas as devidas diferenças de tempo, requinte gráfico,possibilidades técnicas de produção e impressão e visível disponi-bilidade orçamentária, ambos os periódicos definem-se como Re-vista de Literatura Brasileira. O termo “revista de literatura”, ou “re-vista literária”, evoca aquele tipo de publicação periódica inde-pendente das instituições, de tiragem reduzida, de alcance restritopor vocação, que recusa grandes públicos, não dispõe de circuitos

Para Antonio Dimas

Maria Lucia de Barros CamargoUniversidade Federal de Santa Catarina - CNPq

1 E por falar em Minas, nas Gerais, oleitor de 1980 certamente selembraria daquela talvez menosnobre “Travessia”, então referênciacerta nos cânones da música popularbrasileira “de qualidade” (para usar oqualificativo de José MiguelWisnick), popularizada, desde ofestival de 1967, na voz de seu autor,Milton Nascimento, e, depois, na desua principal intérprete, Elis Regina.

2 Evidentemente, toda esta capa, talcomo um poema, poderia seranalisada detidamente: as palavrasou os fragmentos de versos que sedestacam pela posição (porexemplo, “estúpidas”, “novo”,“velho”), o que fica na capa e o queestá por trás, na contra-capa (“Aprimeira”, “achei”, “achei”,‘quando”, “achei”, “os olhos”), osefeitos da fragmentação, etc. Deixotudo isso, no entanto, para outraoportunidade.

SOBRE REVISTAS, PERIÓDICOS EQUALIS TAIS.

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comerciais de distribuição e venda, nem deseja um mercado deconsumo amplo. São geralmente idealizadas e produzidas por gru-pos de intelectuais - poetas, críticos, artistas, escritores, em suma –que nelas encontram o veículo de suas idéias, de seus princípiosestéticos e políticos, de suas obras, ou seja, da produção crítica ecriativa desse mesmo grupo.

Podemos imaginar a surpresa de nosso hipotético e desavisadoleitor quando, ao virar a capa das nossas “Revistas de LiteraturaBrasileira”, encontra outro tipo de informação, outro subtítulo: emTravessia, no verso da capa e encimando os créditos do periódicolemos - “Revista do Curso de Pós-Graduação de Literatura Brasilei-ra – UFSC”, seguido de local e data: “Florianópolis – 2o. semestrede 1980 – No. 1”; em Teresa, no rodapé do verso da página derosto, lemos: “Teresa é uma publicação do programa de pós-gra-duação da área de Literatura Brasileira do Departamento de LetrasClássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo” (grifos meus).

A duplicidade da definição, ou a indefinição, não é ex-clusividade das duas revistas tomadas aqui como mote para estasreflexões: o subtítulo ostentado na capa, mais genérico, evoca as“revistas literárias” e delas se aproxima; seu outro, quase escondi-do nas dobras da capa, mais específico, especialista, desfaz a pri-meira leitura: o segundo e discreto subtítulo – talvez mais adequa-do, posto que menos charmoso – subtrai Travessia / Teresa do cam-po das “revistas literárias” como veículos de formações indepen-dentes para inseri-las no campo institucional das revistas universi-tárias, “científicas”. Mas se a possibilidade de equívoco ou de que-bra de expectativa do leitor pode ser fruto de um cálculo editorial,de uma estratégia “de mercado” para atrair o amante de literatura enão apenas o “especialista”3, a duplicidade de designação podeser lida também como um sintoma dos lugares cambiantes ocupa-dos pelos dois periódicos que tratam de literatura e, especialmen-te, das mudanças institucionais da própria literatura. Tais oscila-ções parecem conter a própria historicidade deste gênero de publi-cação, forma fragmentária e moderna, cujas origens se confundemcom o lugar e com as formas do literário na modernidade, especi-almente com a consolidação da crítica como forma de saber. Po-demos ler aí, nestas significações oscilantes, nessas ambigüidades,traços de uma história que, embora recente, porta as marcas deuma tradição.4

A história deste gênero derivado do jornal se confunde com aprópria história da imprensa periódica e determina, de algum modo,os múltiplos sentidos da palavra “revista”. Observando alguns deseus usos contemporâneos, e ficando, por enquanto, no campo daliteratura, vemos que “revista” denomina, direta ou indiretamente,um conjunto grande e diversificado de periódicos, podendo desig-nar, igualmente: a) periódicos institucionais, ligados a universida-des ou a associações científicas5; de algum modo, estas revistastrazem também, em seus subtítulos, marcas das áreas disciplinaresconstituídas pela forma de organização dos estudos literários nauniversidade, destacando-se o estudo da literatura nacional, umadas mais tradicionais formas de organização desse saber6; b) perió-dicos independentes e de tiragens reduzidas, em que a palavra re-vista, geralmente no subtítulo, tem o poder e a função de anunciarao leitor que se trata de uma publicação periódica que não é ojornal, a que se acrescentam seus campos de atuação, distintos,nestes casos, das áreas disciplinares constituídas: poesia, cultura,literatura e arte, ou seja, variações sobre o mesmo tema; neste con-junto também encontramos os periódicos em que a palavra “revis-

3 Agradeço a Renata Telles, que mechamou a atenção para essapossibilidade de um certomascaramento, na capa das revistas,de sua verdadeira condiçãoinstitucional, universitária, já queesta poderia afastar leitores,especialmente para a venda emgrandes livrarias, como é o caso deTeresa, que tem distribuiçãonacional apesar da tiragem deapenas 1.000 exemplares, o que,afinal das contas, nem é tão poucose considerarmos as precáriastiragens brasileiras.

4 Estas marcas ainda pesam quandoprecisamos definir, por exemplo, oque é e como deve ser uma revista“científica” de literatura, ou um“periódico”, como agora se diz.Voltarei a esse ponto mais adiante.

5 Servem como exemplo, além deTravessia e Teresa, a RevistaBrasileira de Literatura Comparada(da Associação Brasileira deLiteratura Comparada – ABRALIC), aRevista da ANPOLL (da AssociaçãoNacional de Pós-graduação ePesquisa em Letras e Lingüística –ANPOLL), e várias outras publica-ções do mesmo tipo, incluindo-se asque não evitam demonstrar, na capa,seus vínculos acadêmicos, de que ébom exemplo a Gragoatá – Revistado Programa de Pós-graduação emLetras (UFF).

6 O que chamamos de “tradicional”,neste caso, remonta apenas aoséculo XIX, data anterior, comosabemos, à criação de universidadesno Brasil: “La organizaciónuniversitaria del saber sobre laliteratura le otorgó históricamente unnuevo estatuto de existencia culturala la literatura misma, al consagrarpor medio de disciplinas escolares ladisolución [...] de la anterior unidadde las ‘Bellas Letras” [...]. Laorganización universitaria delestudio y la enseñanza de laliteratura, tal como se los practicahasta nuestros días, no se remontamás alla del siglo XIX.” Altamirano,Carlos; Sarlo, Beatriz. Literatura /Sociedad. Buenos Aires: Hachette,1983, p. 90.

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ta”, mesmo ausente em títulos e subtítulos, designa tais publica-ções através da menção nos editoriais de lançamento7; e c) perió-dicos de ampla circulação, como é o caso de Cult – Revista Brasi-leira de Cultura.

É interessante notar como a palavra funciona, inclusive, ao serrepelida, ou melhor, pela recusa ao termo inevitável - revista -,como se vê no editorial de lançamento de quaisquer:

quaisquer é um periódico mas não é uma revista, porqueantes de mais nada é um espaço de criação e, como sevê, não se presta a rever o acontecido, ainda que se espereseja lido, visto, relido e revisto muitas vezes. Em quaisquerconvivem autores, sempre convidados, com larga ereconhecida obra ao lado de jovens que já têm produçãodigna de nota. Trata-se de um espaço, de veiculação dacriação, muito aberto, em que, no entanto, não cabe tudoe qualquer um, porque tem compromisso assumido coma qualidade.8

Ao afirmar negando, ou negar reafirmando, o editor de quais-quer procura diferenciar o novo periódico do que seria um concei-to de revista, inscrito na composição e etimologia da palavra. Mas,na verdade, parece que a diferença que deseja marcar estaria naausência, em quaisquer, de ensaios críticos, de resenhas, de estu-dos, enfim, daquele tipo de texto que costuma freqüentar as revis-tas de literatura e que podemos encontrar em quaisquer dos perió-dicos elencados, independentemente de sua inserção. Ao destacara “criação”, quaisquer parece recusar o segundo termo do binômioque constitui o campo literário (ou das artes, de um modo geral):criação e reflexão, ou seja, literatura e crítica.

Como se vê, não é necessariamente o tipo de texto que distin-gue, por exemplo, Teresa (periódico acadêmico, universitário), Ini-migo Rumor (periódico dirigido por poetas e publicado por umaeditora) e Babel (periódico publicado por um grupo de poetas eintelectuais), ou mesmo Cult, mas a presença, em todas, de criaçãoe crítica: ensaios, resenhas, poemas, contos, autores tanto contem-porâneos quanto canônicos, colaboradores reconhecidos e desco-nhecidos. Quais seriam os critérios para, efetivamente, distinguirum tipo de revista de outro? Mas para pensarmos um pouco sobretais elementos, é preciso, antes, perguntar: afinal, o que é uma“revista”?

Quando buscamos a palavra em seu estado de dicionário, ve-mos que o verbete aparece duas vezes. Num deles, encontramosas acepções derivadas de “re + vista”, ou seja, o ato de examinar,de ver outra vez, de ver detidamente, de inspecionar (que inclui ouso militar do termo, “passar tropas em revista”), definição que seaplica, em sentido amplo, ao exercício da crítica, matéria das re-vistas; no segundo verbete, e o que em princípio nos interessa maisdiretamente, lemos que “revista” é a

publicação periódica, destinada a grande público ou apúblico específico, que reúne, em geral, matériasjornalísticas, esportivas, econômicas, informaçõesculturais, conselhos de beleza, moda, decoração etc.[Algumas revistas destinam-se a um público especializado,assumindo, portanto, um determinado formato:jornalístico, científico, literário, esportivo etc.] ETIM trad.do ing. review ‘publicação periódica dedicadaprincipalmente a críticas e ensaios’.9

7 O primeiro grupo pode serexemplificado com Babel – Revistade Poesia, Tradução e Crítica; Sibila– Revista de Poesia e Cultura;Inimigo Rumor – Revista de Poesia;Coyote – Revista de Literatura e Arte;e a portuguesa Relâmpago – Revistade Poesia; para o segundo grupo,cito Sebastião – novos olhos sobre apoesia brasileira; Cacto – Poesia &Crítica; Rodapé – Crítica deLiteratura Brasileira Contemporânea.Todos essas revistas são publicaçõesem circulação no momento em queescrevo.

8 Rocha, Valdir de Oliveira.“quaisquer por quê?” em quaisquern.1. São Paulo, outono 2000, p. 1. Aafirmação de um “compromisso coma qualidade” é uma espécie de lugar-comum, um topus para os editoriaisde lançamento de revistas (seja qualfor o sentido de “qualidade”), assimcomo a afirmação de “abertura,porém não para todos”.

9 Houaiss, Antonio e Villar, Mauro deSalles. Dicionário Houaiss da línguaportuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva,2001, p. 2454. As mesmas(in)definições se repetem em outrosdicionários.

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Neste verbete, o dicionário registra a abrangência da palavra ea grande diversidade de tipos de publicação periódica que o termopode designar, incluindo dos mais especializados aos mais genéri-cos. Ou seja, as dificuldades para definir com precisão o tipo deperiódico que se designa com o termo “revista” não se resolvematravés dos dicionários. E sequer o manuseio das distintas publica-ções que levam o nome “revista” é suficiente para identificá-lasentre si, nem para distingui-las, seja de um jornal, seja de um livro.

Estudando as revistas de São Paulo no início do século XX, ahistoriadora Ana Luiza Martins defronta-se com essas mesmas difi-culdades e abre as tentativas de definição citando também um di-cionário:

O dicionário Le Robert informa que, derivada da palavrainglesa review, data de 1705 o primeiro uso do termorevista, hoje mais divulgado no sentido de publicação,definindo-o como: “publicação periódica mais ou menosespecializada, geralmente mensal, que contém ensaios,contos, artigos científicos etc., apresentando comosinônimos seus correlatos magazines, hebdomadários,anais e boletins”.10

Tomados como sinônimos, os vários correlatos – magazines,hebdomadários, anais e boletins – ampliam a imprecisão e a varie-dade do termo.11 Destes, é o primeiro que parece apontar, ao me-nos parcialmente, para a distinção entre os dois grandes tipos derevista, ambos com muitas variantes, que se vão delineando e seopondo ao longo da própria história deste tipo de publicação: asrevistas de variedades, para grandes públicos, e as revistasespecializadas, para pequenos e seletos públicos.

Esta grande divisão dicotômica (redutora, é certo, porém útilnesta etapa da discussão) entre os periódicos de leitura amena, decaráter lúdico, e aqueles altamente especializados, dedicados àsúltimas descobertas científicas, está na história das primeiras pu-blicações periódicas. Ana Luíza Martins registra, por exemplo, queo francês Journal des Savants (1665-1795) é considerado o pionei-ro dentre o periodismo literário, enquanto na Alemanha operiodismo se inaugura com o que podemos chamar de precursordas revistas científicas, a Acta Studiorum (1682-1731), que,publicada em latim, veiculava exclusivamente assuntos científicos– matemática, botânica e física – e era dirigida a um determinado erestrito público leitor. De um certo modo, já nos primeiros periódi-cos de que se tem notícia, a literatura (e a incipiente crítica), parteda vida social letrada, é veiculada em vernáculo para os “muitos”que sabem ler, enquanto as ciências “duras”, que dizem respeito àpequena comunidade que domina seu código, utilizam veículosauto-discriminados, inclusive pelo uso da língua.12 A partir deChartier e Martin, Ana Luíza Martins registra que, no século XIX,

Não obstante o sucesso do gênero, as revistas conheceram al-guma discriminação por parte de especialistas, que alegavam pola-rização de seus conteúdos. Por um lado, recriminavam o caráterrigorosamente científico de algumas, dirigidas a leitoresespecializados; por outro, o conteúdo absolutamente frívolo dasdemais, como os magazins semanais de Londres, que selecionavamde pronto o receptor, longe de interessar o leitor mais sério. (p. 40).

Frívolos ou não, é importante lembrar, com Habermas, que aprimeira forma de articulação institucional da crítica, e que temparte considerável na consolidação do conceito moderno de lite-ratura, se dá nos periódicos do século XVIII: “Las gacetas de críticaartística y cultural como instrumentos de la crítica de arte

10 Martins, Ana Luíza. Revistas emrevista – Imprensa e práticasculturais em tempos da República –São Paulo (1890-1922). São Paulo:EDUSP : FAPESP : Imprensa Oficialdo Estado, 2001, p. 45. Nas váriasoutras menções que farei desteestudo, fonte principal das informa-ções históricas que utilizei, citareiapenas as páginas, entre parênteses,no corpo do texto.

11 Ana Luíza Martins lembra que otermo hebdomadário – ou seja, apublicação com periodicidadesemanal – foi utilizado pela primeiravez por Voltaire, em 1758; embora amarca principal deste tipo deperiódico seja o preciso intervalo de7 dias que separa uma edição deoutra, isto é, seu período, a palavra“hebdomadário” designaria tambémuma publicação “de cunhoinformativo técnico e político” (p.43). O termo anais também sedefine, desde sua origem latina, apartir do tempo, significando oregistro ou a narração dos aconteci-mentos de cada ano; relativamenteàs publicações, o termo é usado naacepção de “publicação regular ouperiódico de caráter científico,literário ou artístico”, segundo oHouaiss; já o termo boletim estáassociado, inicialmente, aodiminutivo, isto é, aos informesbreves, mas, no campo daspublicações e segundo o mesmoHouaiss, trata-se de “publicaçãoperiódica destinada à divulgação deatos oficiais e governamentais, ou deentidades de classe, instituiçõesprivadas etc.” (p. 481), o que mostracomo esses termos podem ser muitasvezes intercambiados e utilizados,de fato, como sinônimos para“revista”.

12 Ocioso lembrar que o inglês, onovo latim, vem se tornando alíngua “oficial” das publicaçõescientíficas contemporâneas.

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institucionalizada son creaciones típicas del siglo XVIII.”13 É o de-senvolvimento da imprensa que irá consolidar, no século seguinte,a figura do crítico como um profissional e a atividade crítica comocategoria cultural moderna, já desvinculada da unidade das “belasletras”.

Se a crítica literária e das artes se institui primeiro através doperiodismo para depois se tornar um saber universitário, o sabercientífico estava ligado às agremiações e às academias científicas,que sustentavam (e freqüentemente ainda sustentam) as revistasespecializadas, meio de comunicação entre seus membros, entrepares. É interessante observar que, até hoje, uma revista de grandeprestígio, a britânica Nature, preserva ainda alguns traços dos anti-gos protocolos de comunicação, de anúncio das recentes desco-bertas científicas dentro daqueles círculos: a carta aos confrades,ou aos pares da Royal Society, hoje as “Letters to Nature”. Por issomesmo, até alguns anos atrás, uma comunicação dessa ordem, re-latando avanços e resultados de pesquisas ao grupo que poderianão apenas entendê-las, mas especialmente avaliá-las e legitimá-las, era introduzido pelo “Dear Sir”14, marca, ao mesmo tempo, dasubjetividade própria à correspondência e da tradição dos infor-mes científicos tão plenos de objetividade.

No capítulo dedicado às revistas científicas e institucionaispaulistas, Ana Luíza Martins registra a importância dessas revistascomo elemento “aglutinador e decisivo para a subseqüente cria-ção de entidades” (p. 327), isto é, associações científicas e institu-tos de pesquisa, que freqüentemente dependiam de anúncios delaboratórios farmacêuticos para manterem seus periódicos. Exem-plo interessante, citado pela pesquisadora, é o caso da Revista daSociedade Científica de São Paulo, criada em 1905, e que funcio-nava como elemento legitimador da própria Sociedade, um dosraros espaços para conferências científicas na provinciana São Paulodos inícios do século XX. Destinada à publicação dos trabalhosinéditos de seus sócios, o primeiro número continha 60 páginasredigidas em francês (passando depois a contar com 16 páginasem folheto bilíngüe): “trazia características muito próprias, sem ilus-tração, com artigos transcritos de publicações estrangeiras, ou de-senvolvendo pequenas teses científicas” (pp. 336-337). É digna denota, dentre as conferências proferidas na Sociedade, a “miscelâ-nea de títulos de que escapavam ao tratamento científico, mas quese valiam daquela associação [a Sociedade Científica de São Pau-lo] para legitimar o rigor e a seriedade das pesquisas, a despeito deinscritas na chave da área de humanas” (p. 337). Ou seja, tal comopreconizava o Positivismo, era preciso eleger a “ciência” como oúnico saber válido, em detrimento das “humanidades”, considera-das de cunho bacharelesco. E o mais curioso é que as “humanida-des”, para se legitimarem, buscassem (como ainda buscam) se con-fundir com as “ciências”, para não serem confundidas (como o são)com as “amenidades”, cujo lugar estaria nos populares magazines.

A palavra “magazine” serviria para designar, segundo nossa his-toriadora, “a revista ilustrada por excelência, representativa de umademanda de caráter ligeiro e de teor fortemente publicitário”15 (p.43), definição que evoca a origem etimológica da palavra: deriva-da do árabe mahazin, nosso “galicismo” se aplica aos bazares, aosarmazéns, aos grandes estabelecimentos comerciais que expõem evendem de tudo um pouco. Fiel a sua origem, o magazine/revistatambém é um depósito de informações diversas, lugar de veiculaçãode tudo um pouco, dirigido a um público amplo e, evidentemente,regido pela lógica comercial, isto é, a do mercado. Como um sinô-nimo para magazine, a expressão “revista ilustrada”, este gênero

13 Habermas, citado por Beatriz Sarloe Carlos Altamirano, op. cit. p. 93.

14 Agradeço esta informação a PauloEmílio Lovato.

15 O Dicionário Houaiss registra, noverbete “magazine”, as seguintesacepções: “1.estabelecimentocomercial que expõe e vende grandevariedade de mercadorias organiza-das de acordo com o gênero delas;2. B. publicação periódica, emformato de revista, ger. ilustrada, quetrata de assuntos diversos; [...]GRAM.VOC. considerado gal. pelospuristas, que sugeriram em seu lugar:loja, revista . ETIM [...] de mesmaorigem [árabe mahazin], através doinglês magazine (1731) acp.‘depósito de informações’, ou seja,‘publicação periódica que contéminformações variadas sobre umassunto ou que veicula informaçõessobre assuntos variados’.” (p. 1810).

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periódico tão difundido no século XIX, ainda hoje serve para de-signar estas revistas de grande circulação, de variedades, geralmentede caráter ameno, e tributárias da grande evolução tecnológica dasartes gráficas e das possibilidades de impressão, que também mar-caram, definitivamente, além do tipo de texto ali veiculado, as ino-vações estéticas na própria linguagem literária. A título de exem-plo, podemos pensar em diversas revistas ilustradas ou magazinescontemporâneos, como a hebdomadária Veja, as mensais Cult eBravo16, e muitas outras de distintos níveis e temáticas.

Dentre as revistas ilustradas do século XIX que tão fortementeusavam e faziam avançar as técnicas de ilustração gráfica, vale apena lembrar a Revista Moderna, Magazine Quinzenal Illustrado,destinada aos públicos português e brasileiro e, como soía aconte-cer, impressa em Paris. Nela foi publicado o romance A ilustre casade Ramires, de Eça de Queirós, devidamente fatiado em folhetins,e para um mesmo número, por exemplo o número 9, anunciava-setanto o “retrato artístico do grande escritor brasileiro Machado deAssis” como o suplemento de modas, com 4 páginas de gravurasreproduzindo os últimos modelos parisienses.17 Este híbrido conví-vio, num mesmo periódico, entre a literatura de grandes autores ea moda destinada a atrair o público feminino perdurará ao longodo século XX, e produzirá, também, acaloradas discussões sobre olugar da literatura, entre a “torre de marfim” e as páginas dos jor-nais e das revistas ilustradas.18 E não podemos esquecer que, aindae especialmente no século XIX, o adjetivo “ilustrada” alude nãoapenas às imagens gráficas, signo de modernização e de “progres-so” tecnológico, mas também à função moderna de “ilustrar”o pú-blico leitor, à missão civilizadora. É o mesmo Eça de Queirós quem,ao apresentar a Revista Moderna, em 1897, enfatiza:

Mas o melhor serviço desta Revista será quando nos guieatravés da obra incessante da civilização – ou antes vigieà beira da imensa torrente da civilização, e rapidamentedetenha e colha as obras melhores, antes que todastumultuariamente passem e mergulhem no escuro marque as devora. Pensemos que a França escreve cada anodez mil livros! e a Inglaterra catorze mil! e a Alemanhadezasseis mil! E quantos quadros se pintam! E quantasestátuas se modelam! E quantas conclusões da ciência! Equantas invenções da fantasia! Toda essa produção rolacom brilho vacilante: e como poderiam, aqueles que nãovivem parados a observar a estranha corrente, saber dobom livro, ou da fina obra de arte, ou da descoberta dosaber, ou da gentil elegância, se a Revista, com rápidasegurança, não escolhesse e apanhasse, dentre a vagafugitiva, a obra que merece ficar, enquanto outras seembrulham e somem na névoa que tudo apaga? [...] Nemme retardo mesmo em a louvar pela graça e luxo comque ela se veste e se adorna, para passear, conduzindo oseu público, através da civilização...19

Fazendo o elogio da imagem e da cultura transmitida em resu-mos, Eça destaca o papel de “guia” que as revistas culturais exerce-riam através das escolhas do “melhor”, para com isso ilustrar osespíritos e os corpos elegantes – função pedagógica, crítica e legis-ladora, essencialmente moderna, que presidirá durante muito tem-po o funcionamento do campo das publicações periódicas “cultu-rais”, formadoras de “opinião”. A Revista se transforma, assim, nopróprio “juiz artístico”, o crítico profissional que, para Habermas,“asume una tarea peculiarmente dialéctica: se considera a la vezcomo un mandatario del público y como su pedagogo.”20 Sobre a

16 Uma hipótese, a ser desenvolvidaem outro lugar e hora, é a de queBravo pode ser lida como sucedânea“fin-de-siècle” daquela outra revistade cultura mundana, Kosmos, tãobem estudada por Antonio Dimasem Tempos eufóricos: análise daRevista Kosmos: 1904-1909. SãoPaulo: Ática, 1983.

17 Cf. Ana Luíza Martins, pp. 54-55.

18 Estudando os suplementosliterários dos anos 50 (século XX),Alzira Alves de Abreu registra que “Aorigem de alguns suplementosliterários se encontra nas páginas ousuplementos femininos, onde semisturavam receitas culinárias,moda, assuntos infantis e poesia,como é o caso do Jornal do Brasil,do Diário de Notícias e do DiárioCarioca, entre outros. Os suplemen-tos estavam voltados para a vidafamiliar; a mulher era, ainda nestadécada, a grande consumidora daprodução literária, de poesias,crônicas, romances. Muitosescritores tinham basicamente nopúblico feminino os seus leitores,como Érico Veríssimo”. “Ossuplementos literários: os intelectu-ais e a imprensa”, em A imprensaem transição: o jornalismo brasileironos anos 50. Alzira Alves de Abreu(org.). Rio de Janeiro: FundaçãoGetúlio Vargas, 1996, p. 21.

19 Eça de Queirós, A Revista (artigode apresentação da “RevistaModerna”), em Notas Contemporâ-neas. Obras de Eça de Queiroz, volII. Porto: Lello & Irmão, 1958, p.1568.

20 Apud Altamirano e Sarlo, op. cit.,p. 94.

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atividade deste crítico (um especialista diante do público leigo,cuja autoridade emana de sua “opinião cultivada”, e um mandatá-rio deste mesmo público diante dos artistas) que atua nas publica-ções periódicas – jornais e revistas ilustradas –, Sarlo e Altamiranolembram que, embora profissionalizada, esta atividade crítica ain-da não constitui uma “disciplina”. Nem veículo próprio. A críticacomo um saber institucionalizado e gozando de outra ordem deprestígio, somente ocorrerá com o que denominam “ciclo da críti-ca universitária”, que disporá de sua própria rede de veiculação.

É no mínimo curioso lembrar que a própria história doperiodismo no Brasil começa com uma publicação cujo subtítuloé uma tradução de “magazin”: Armazem Literario é o aposto aotítulo do famoso marco inaugural da imprensa brasileira,freqüentemente considerado como nosso primeiro “jornal”.21 Masnada aqui é ponto pacífico:

Numa discussão sem fim, há quem atribua o pioneirismo[como revista] ao Correio Braziliense, que o exilado gaúchoHipólito José da Costa editou em Londres de 1802 a 1822.Com o subtítulo “Armazem Literario”, cerca de cem páginase conteúdo mais opinativo e analítico do que noticioso ouinformativo, o Correio Braziliense, marco inaugural daimprensa brasileira, bem poderia, para os padrões da época,ser chamado de revista [...], mas é mais comumente tratadocomo jornal.22

Se, por um lado, a história de nossa imprensa tem conside-rado como “jornal” um periódico cujo subtítulo é uma traduçãodo francês magazin, ou seja, “revista”, acrescido de um “literário”em sentido amplo de tudo que se escreve, lettera, letra, por outro oque essa mesma história considera uma revista cultural em sentidoforte, a Revista Brazileira, trazia ao ser lançada, em meados doséculo XIX, o subtítulo “Jornal de Sciencias, Lettras e Artes” – oque, evidentemente, não faz deste magazine uma “revista científi-ca”, um journal of chemistry, por exemplo. Como se vê, nesta his-tória, sequer a distinção entre “revista” e “jornal” é inequívoca:seriam o papel jornal, o tamanho, a disposição das matérias emcolunas e o formato in folio suficientes para caracterizar um perió-dico como jornal, distinguindo-o das revistas? 23 Ou, por outro ân-gulo, seria o tipo de matéria veiculada, ou melhor, os gêneros tex-tuais adotados – ensaios, crítica, resenhas, poesia e ficção, enfim,matéria opinativa, analítica e criativa – suficientes para caracteri-zar um periódico como revista? A base da distinção entre ambos osgêneros periódicos deveria vir dos sentidos implicados nas própri-as palavras que os designam, isto é, o jornal seria o periódico queapresenta, relata, noticia o mais imediato e efêmero, o dia-a-dia,enquanto a revista seria o periódico que passa em revista, exami-na, analisa, opina sobre os temas de que trata? Ou, em outras pala-vras: o jornal pressupõe um curto intervalo de tempo entre umaedição e outra, um dia, enquanto a revista requer intervalos maislongos, necessários à tarefa analítica?

Os casos empíricos mostram que a resposta é negativa. Nesteterreno movediço, Ana Luíza Martins menciona ainda outro crité-rio, mesmo que não exclusivo nem suficiente, para distinguir asrevistas dos jornais: “o que os distingue com freqüência é a exis-tência da capa na revista, acabamento que não ocorre no jornal;mais do que isso, é a formulação de seu programa de revista, divul-gado no artigo de fundo, que esclarece o propósito e as caracterís-ticas da publicação” (p. 46). Pelo critério da capa, mesmo comrelação a periódicos mais recentes, mantêm-se as imprecisões: como

21 Embora duvide da brasilidadedeste periódico, Nélson WerneckSodré não hesita em atribuir-lhe adesignação “jornal”. Cf. História daimprensa no Brasil. 2ª. ed. Rio deJaneiro: Graal, 1977, pp. 24 e ss. JáPaulo Duarte enfatiza a indefinição:“Hipólito José da Costa PereiraFurtado de Mendonça [...] fundouem Londres, em junho de 1808,aquele primeiro jornal, ou melhor,aquela primeira revista mensal [...]”.Apud Ana Luíza Martins (p. 47).

22 A revista no Brasil. São Paulo:Editora Abril, 2000, p. 18.

23 Assim como “hebdomadário”, apalavra “jornal” está marcada pelotempo: apesar das divergênciasquanto aos seus caminhosetimológicos, o certo é que oprovençal “jorn” = “dia” está na basedesta tradução do latim tardio“diurnale”. Em sentido estrito, ojornal é a publicação diária, comnotícias dos fatos do dia relativos aquaisquer assuntos. O DicionárioHouaiss registra, todavia, a extensãodo termo para “qualquer periódico”(p. 1687).

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classificar, por exemplo, o auto-denominado “jornal” Versus, queentre 1975 e 1978 publicou, com periodicidade predominante-mente bimensal, poemas, contos, ensaios, resenhas, entrevistas ereportagens, sempre envoltas em chamativas capas? Ou ainda Bei-jo, dissidência da editoria de cultura do também encapadohebdomadário Opinião, a que Ana Cristina Cesar, uma de suascriadoras, se refere quase ao mesmo tempo como “a revista” e “ojornal”: “Chegou o Montenegro e a revista se animou. Não adian-ta, é isso mesmo. Ficou resolvido que vamos parar com definiçõesteóricas e manifestos e grupos para discussão e apresentação dalinha do jornal”.24 Poderíamos incluir Versus e Beijo no gênero re-vistas e, no limite, até os suplementos de jornais, como o Mais! , daFolha de S.Paulo, que em seu formato mais recente abandonou asfolhas soltas e adotou o tamanho tablóide.25 Por outro lado, umsuplemento que marcou época, o Suplemento Literário D‘O Esta-do de S.Paulo, sem capa e com o mesmo formato do jornal em quese encartava, foi planejado para funcionar como uma revista, se-gundo seu idealizador, Antonio Candido:

Um dos pressupostos é que não havia revistas literáriasnaquele momento no Brasil. Regulares, boas. Então oSuplemento deveria preencher um pouco a função de umarevista. [...] Já haviam existido muitas delas. Havia algumasque duravam e passavam. No momento não havianenhuma revista satisfatória, duradoura. Então eu achavaque o suplemento deveria preencher em parte as funçõesde uma revista literária. Mas não podia ser uma revistaliterária, isto é, não podia ter artigos maiores de cinco,seis laudas, porque era um jornal, de artigos curtos. Mascom um tom, uma estrutura que revelasse as preocupaçõesde uma revista literária. Por exemplo, as seções. Seçõesde Literatura Estrangeira, seções de Teatro, de Cinema,como uma revista faz.26

Esta caracterização do suplemento remete, de um lado, ao pa-drão e ao conceito de revista literária adotado por Clima27, e, deoutro, à tradicional prática da crítica literária no jornal, ou melhor,à dimensão dos textos que ocupavam os rodapés literários; de umcerto modo, Candido parece ter operado, com sucesso, a sínteseentre a crítica “jornalística” e a crítica “especializada”, tema detantas polêmicas na constituição da crítica brasileira em meadosdo século XX. Opera-se aqui, em chave “elevada” e num mesmoveículo, a coexistência, mencionada por Beatriz Sarlo e CarlosAltamirano, dos dois “ciclos” da crítica, isto é, a crítica profissio-nal, ligada aos grandes periódicos, aos meios de comunicação demassa, e a crítica como um saber específico, ligada à universidade:

Los usos del término crítica anudaron, por decirlo así, enuna misma categoría, los dos ciclos y los diferentes tiposde discursos que circulan a través de sus respectivas redes,que no han podido coexistir sin afectarse mutuamente.Lo que contribuye a explicar, entre otras cosas, las dos“almas” que forcejean en la definición de la crítica comoactividad intelectual: la crítica como ejercicio del gusto yla sensibilidad, y la crítica como producto de un saberobjetivo. Entre estos dos paradigmas, que tienen comoideal dos modelos de discurso, el discurso “artístico” sobrela literatura y el discurso “científico”, se producencombinaciones y variantes.28

24 Ana Cristina Cesar, em Correspon-dência incompleta, Ana C.; org.Armando Freitas Filho e HeloísaBuarque de Hollanda. Rio deJaneiro: Aeroplano, 1999, p. 154.Grifos meus.

25 Não entro aqui no mérito dasmatérias veiculadas, o que poderiaaproximar ainda mais este suple-mento de uma revista, e, até, de umarevista “universitária”, especialmentena área da cultura, das humanida-des. Não por acaso, boa parte dosensaios ali publicados tornaram-secapítulos de prestigiados livros.

26 Depoimento de Antonio Candidoa Marilene Weinhardt. Cf.Weinhardt, Marilene. O SuplementoLiterário D’O Estado de S.Paulo:1956 -1967 . Brasília: InstitutoNacional do Livro, 1987, vol.II, pp.449-450.

27 Trata-se da revista que, nos anos40, marca a institucionalização deum tipo de crítica que já podemoschamar “universitária”. A esserespeito, e mais especialmente sobrea atuação do “grupo Clima”, ver oestudo de Heloisa Pontes, Destinosmistos: os críticos do grupo Climaem São Paulo (1940-1968). SãoPaulo: Companhia das Letras, 1998.

28 Op. cit., p. 94.

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A coexistência dos dois modos de crítica pressupõe, evidente-mente, a autonomização do campo literário e intelectual, de umlado, e a institucionalização universitária do saber literário, de ou-tro. Neste último caso, se inclui também a rede de publicações,como os livros e as revistas “acadêmicas” (universitárias ou não). Eo surgimento destas revistas faz com que a distinção entre revistase livros seja arbitrária quanto a distinção entre jornais e revistas. Eaqui deixamos o campo dos magazines e dos jornais, sem que,necessariamente, entremos no território das “revistas científicas”.

Freqüentemente muito semelhantes, salvo pela promessa de pe-riodicidade, as revistas culturais “acadêmicas”, ou de cunho pre-dominantemente universitário, tendem a se parecer com os livros,talvez por fazerem parte do mesmo circuito. Mas, segundo Sarlo eAltamirano, a diferença entre estes dois tipos de publicação não émeramente técnica:

Toda revista incluye cierta clase de escritos (declaraciones,manifiestos, etc.) en torno a cuyas ideas busca crearvínculos y solidariedades estables, definiendo en el interiordel campo intelectual un “nosotros” y un “ellos”[…]. Éticoo estético, teórico o político, el círculo que una revistatraza para señalar el lugar que ocupa o aspira a ocuparmarca también la toma de distancia […] respecto de otrasposiciones incluidas en el territorio literario. […] Otrorasgo, que puede tomar a veces la forma de libro peroparece inherente a la forma revista, es que éstahabitualmente traduce una estrategia de grupo.29

É ilustrativo observar as duas fases da Revista Civilização Brasi-leira: a primeira, publicada entre 1965 e 1968, define-se comoRevista a partir do título (e do editorial-manifesto do número 1),uma vez que o formato, os textos e o tamanho (alguns númerostêm mais 300 páginas) lhe dão toda aparência de livro; já a segun-da, Encontros com a Civilização Brasileira, publicada entre 1978 e1981, resta indefinida. É a voz retrospectiva de seu editor, ÊnioSilveira, que, despida de falsas modéstias (e descontando-se umcerto exagero no auto-elogio), define-a como revista:

Marco refulgente [...] foi a edição da Revista CivilizaçãoBrasileira, que teve curso de maio de 1965 a dezembrode 1968, sendo interrompida com a promulgação do AtoInstitucional no 5 (que equivaleu à cristalização daditadura), e ressurgiu, teimosamente, sob o nomeEncontros com a Civilização Brasileira, de julho de 1978a julho de 1980 (sic). Considerada nos meios culturais euniversitários do Brasil e do mundo inteiro como umpadrão de dignidade da intelligentsia brasileira diante dasforças do obscurantismo, essa publicação, em suas duasfases, constitui um dos maiores galardões de minhacarreira e marcará para todo o sempre a presença daeditora na história cultural do país.30

Embora este discurso do editor, feito dez anos após o encerra-mento da publicação, estabeleça a relação metonímica ou de con-tigüidade entre os dois periódicos, a Encontros com a CivilizaçãoBrasileira fora definida pelo mesmo Ênio Silveira, no editorial donº 1, como “uma coleção de livros [...] [que] amplia a linha deconduta intelectual que, de 1964 a 1968, cercou de tanto apreço aRevista Civilização Brasileira.”31 Comparando as duas séries, é difí-cil dizer o que faria da segunda uma coleção de livros e não umarevista, e vice-versa.32 Neste sentido, a diferença entre uma “anto-logia de ensaios” em livro e a Encontros estaria, efetivamente, na

29 Op. cit., p. 97.

30 Trata-se do discurso de posse deÊnio Silveira como membro titulardo Pen Club do Brasil, pronunciadoem 20 de agosto de 1991. cf.Moacyr Félix (org.). ÊnioSilveira:arquiteto de liberdades. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, pp.77-78. a Encontros foi publicada, defato, até 1981 e não até 1980.

31 Encontros com a CivilizaçãoBrasileira, no 1. Rio de Janeiro, 1978,pp. 7-8. Grifo meu.

32 A respeito destas distinções, AnaLuíza Martins cita a definição derevista dada por Clara Rocha, bemcomo a distinção que esta pesquisa-dora traça entre revistas e livros.Embora apenas técnicas e atésuperficiais, reproduzo-as aqui:“uma ân:revista é uma publicaçãoque, como o nome sugere, passa emrevista diversos assuntos, o que [...]permite um tipo de leitura fragmen-tada, não contínua, e por vezesseletiva. [...] é um tipo de publicaçãoque, depois de re-vista, se abandona,amarelece esquecida, ou se deitafóra. Enquanto objeto material, arevista distingue-se do livro por sermais efêmera: só os bibliófilos, osestudiosos e certos interessadospelas letras e pelas artes guardam arevista. Essa efemeridade [...] tem aver com a sua solidez material.Enquanto o livro dura [porque é maisresistente, tem uma capa sólida aprotegê-lo], a revista é [pode ser]mais frágil em termos de duraçãomaterial. [...] é normal que o livrotenha reedições, e já não o é tantoque apareça uma segunda edição deuma revista. Ainda outra característi-ca: uma revista é em geral menosvolumosa do que um livro. E, last butnot least, uma revista é quase semprea manifestação de uma criação degrupo: ao contrário do livro que,salvo algumas excepções, costumaser produzido por um só autor.[...][sic]”. Clara Rocha, RevistasLiterárias do Século XX em Portugal,Lisboa: Imprensa Nacional/Casa daMoeda, 1985, pp. 33 e 25, apud AnaLuíza Martins (pp. 45-46).

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marca temporal, em sua periodicidade, sua fatal efemeridade. 33

Tem razão Ana Luíza Martins quando constata que apenas o exa-me caso a caso, através do “artigo de fundo” ou do editorial delançamento, pode auxiliar no entendimento do sentido que a pala-vra adquire ao ser estampada numa capa. Isso para não dizer queuma revista é o que seu editor chama de revista. Ou seja, a cadarevista, uma revista.

Em sua indecidibilidade, a palavra “revista” tem valores duplos,contraditórios, e se aplica a contextos distintos. A dicotomia quevínhamos registrando entre as “revistas ilustradas”, os magazinesdo século XIX, e as “revistas científicas”, não levava em conta ooutro contexto, o do surgimento daquelas “revistas literárias”, as“pequenas revistas”34, nem o daquelas acadêmicas, com “cara delivro”, como é o caso da Revista Civilização Brasileira. Beatriz Sarloe Carlos Altamirano lembram que

[...] hay que distinguir entre la publicación periódica‘culta’, dirigida al conjunto de las capas ilustradas de lamiddle class y que tuvo su reinado sobre todo en el sigloXIX, de lo que hemos denominado revista literaria ointelectual, que es típica de nuestro siglo [XX]. Esta última,como señala [Lewis] Coser, ‘apareció em escena despuésque habia tenido lugar uma diferenciación considerableentre el público de escritores literários, artísticos y, en umcerto grado, políticos’[...]. Solo entonces la revista seconvierte em uma de las principales formas deorganización del território literário y vehículo de esasestratégias llamadas escuelas o tendencias. 35

Pensar as revistas literárias como formas organizadoras do campoliterário e artístico significa considerá-las ao mesmo tempo como oelemento que institui e dá voz a grupos de artistas e intelectuais,que, elegendo afinidades, valem-se das revistas para constituir-se epara defender e propagar novos valores literários, estéticos e, tam-bém, políticos. Este tipo de revista, “una de las redes de la crítica”,funciona, portanto, como elemento formador e legitimador do pró-prio grupo que a faz, garantindo, a seus participantes, visibilidadee reconhecimento e, muito freqüentemente, antagonismos e con-flitos, na proporção direta ao grau de polêmica e de novidade sus-citado pela produção do grupo. Não é preciso lembrar que o reco-nhecimento se dá, inicialmente, no restrito público leitor que cons-titui o campo de legitimação que lhe é próprio, ou seja, o grupo deletrados que a pode ler e louvar. Glórias maiores são geralmentepóstumas (pelo menos à própria revista), e apenas o trabalho dotempo (e da crítica) irá institucionalizar os novos princípios, auto-res e valores no cânone literário. Não por acaso, Raymond Williamsdestaca a manifestação pública de um grupo através de um perió-dico como uma das formas de organização das formações cultu-rais independentes, distintas das instituições, que, “sob os nomesde ‘movimento’, ‘escola’, ‘círculo’, e assim por diante, ou sob orótulo assumido ou recebido de um determinado ‘ismo’, são tãoimportantes [...] particularmente na história cultural moderna [...]”.36

Elemento estruturante das “formações”, este tipo de revista podeser encontrado no Brasil, ainda em finais do século XIX, nas revis-tas simbolistas que, coerentemente com a defesa da “torre de mar-fim”, excluem-se dos círculos mais amplos e mundanos freqüenta-dos pelo parnasianismo.37 Mas serão as revistas modernistas, jábastante estudadas, que irão consolidar entre nós este tipo de “pe-quena revista”, que, mesmo sem se caracterizar como “revista ci-entífica”, não deixa de ser especializada, dedicada a públicos “se-

33 Não cabe aqui desenvolver estaanálise, mas apenas registrar que aRevista foi lançada, em 1965, comoreação, ou instrumento de resistên-cia ao golpe militar de 64, articulan-do o discurso do grupo de intelectu-ais que se organizava em torno doeditor Ênio Silveira e tinha o PartidoComunista como referência comum.Este lugar de resistência estavafortemente marcado e propiciadopelo contexto político do momentoem que a Revista foi lançada –momento irrepetível, obviamente, àépoca do lançamento da Encontros,que já não tem como manter amesma estratégia. Estes e outrosaspectos podem demonstrar comoambas, a Revista e a Encontrosfazem jus aos respectivos nomes.

34 Lionel Trilling, escrevendo emcomemoração aos 10 anos da Parti-san Review, uma militante revistaliterária, refere-se a ela e similarescomo “little magazine”. A traduçãoargentina opta, mais adequadamentepor “revista literária”, enquanto atradução brasileira fica com o literal“pequena revista”. Ver: Trilling,Lionel. La funcion de la revistaliteraria. La imaginación liberal. Trad.Enrique Pezzoni. Buenos Aires:Sudamericana, 1956; e, do mesmoautor, A função da pequena revista.Literatura e sociedade: ensaios sobrea significação da arte e da idéialiterária. Trad. Rubem Rocha Filho.Rio de Janeiro: Lidador, 1965, pp.113-123. O titulo original do livro,publicado em 1950, é The liberalimaginacion. O artigo sobre aPartisan Review já fora publicado em1946. Nele, de um modo geral,Trilling defende as “pequenasrevistas”, isto é, as revistas literárias,como a reserva de qualidade, ou daboa literatura, contra o gosto médio,contra a satisfação das massas ou amanipulação propagandística emprol de qualquer ideologia. Opõe aliteratura ao populismo e vê nessasrevistas literárias o necessárioreservatório de qualidade e deresistência contra o conformismo.

35 Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo,Literatura / Sociedad. Buenos Aires :Hachette, 1983, p. 96.

36 Raymond Williams, Cultura,Trad.Lólio Lourenço de Oliveira. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1992, p. 62.

37 Andrade Muricy elenca 29 revistassimbolistas, a mais antiga de 1890.Cf. MURICY, José Candido deAndrade. Panorama do movimentosimbolista brasileiro. 2ª. ed. Brasília:Conselho Federal de Cultura eInstituto Nacional do Livro, 1973,pp. 1208-1212.

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letos” de leitores, um público feito de “pares”, que reuniria as con-dições necessárias para apreender a nova “qualidade literária”, parafruir os novos princípios estéticos e críticos que passam a ser divul-gados por tais periódicos, geralmente de baixa longevidade (sofri-am do “mal dos sete números”, como dizia ironicamente OlavoBilac). Klaxon, Terra Roxa e outras terras38, A Revista, Estética, Re-vista da Antropofagia, e, mais tarde, Festa, formaram e informaramo modernismo brasileiro e consolidaram um novo conceito de “re-vista literária”.39

É verdade que poderíamos lembrar, como contra-argumento his-tórico, que já no início do século XIX a divulgação do Romantismose fazia através dos periódicos.40 No entanto, foi no caminho dasespecializações e do processo de autonomização do campo literá-rio que as revistas literárias e culturais ganharam, paradoxalmente,seu espaço e prestígio. Ou seja, à redução e à especificação dopúblico correspondeu um ganho de reconhecimento, um maiorcapital simbólico, mesmo que a posteriori. É preciso considerar,neste aspecto, as mudanças relativas ao lugar que a literatura ocu-pava na sociabilidade, já que, como diz Antonio Candido, a litera-tura era, por aqui, o fenômeno central da vida do espírito:

a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e asciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.[...] O poderoso ímã da literatura interferia com atendência sociológica, dando origem àquele gênero mistode ensaio, construído na confluência da história com aeconomia, a filosofia e a arte, que é uma forma bembrasileira de investigação e descoberta do Brasil. [...] estalinha de ensaio, – em que se combinam [...] a imaginaçãoe a observação, a ciência e a arte, – constitui o traço maiscaracterístico e original de nosso pensamento. [...]funciona como elemento de ligação entre a pesquisapuramente científica e a criação literária.[...] Ora, nosnossos dias houve uma transformação essencial desseestado de coisas. Deixando de constituir atividadesincrética, a literatura volta-se sobre si mesma [...]; aofazê-lo, deixa de ser uma viga mestra, para alinhar-se empé de igualdade com as outras atividades do espírito.41

Falando em meados do século XX, Candido descreve, de umcerto modo, o momento em que a mentalidade universitária e aca-dêmica se implanta no Brasil, como resultado da criação das uni-versidades e suas faculdades de filosofia, ciências e letras, ocorridanos anos 30. Momento também em que a crítica se institucionalizacomo área de conhecimento, primeiramente sob a forma dos estu-dos historiográficos das literaturas nacionais e depois sob o aporteda teoria da literatura, criada entre nós como disciplina universitá-ria apenas na década de 60. Até então, o lugar onde se veiculava aprodução dos críticos, isto é, o lugar da crítica, eram as revistasliterárias e, especialmente, o rodapé dos jornais. O que justifica,mais uma vez, a referência ao projeto de criação do SuplementoLiterário d’Estado de S.Paulo, lançado em outubro de 1956, conce-bido, como vimos, para preencher a “lacuna” de boas revistasliterárias, mas que cumpria, ele também, um projeto formador,civilizador. No entanto, diferentemente das preocupações de Eça,a formação agora deveria advir da nova “mentalidade universitá-ria”. Alzira Alves de Abreu constata os vínculos do grupo do“Estadão” com a Universidade de São Paulo:

Diferentemente do Rio de Janeiro, onde se encontravamos melhores suplementos do país, São Paulo se

38 Este periódico se inclui, explicita-mente, no gênero “jornal”; na página5 do primeiro de seus 7 números,publicado em 20 de janeiro de1926, um quadrinho em destaque noalto e à direita anunciava: “Leiamterra roxa o melhor jornal literáriodo Brasil. Quinzenalmente crónicasde arte, musica, teatro, poesia efilosofia. Inéditos dos melhoresescritores modernos. Todo brasileiroculto deve assinar terra roxa”. Terraroxa e outras terras [introdução deCecília de Lara]. São Paulo: Martins :Secretaria da Cultura, Ciência eTecnologia, 1977 (reprodução fac-similar). Os sublinhados são meus.

39 É curioso constatar que, a despeitoda sua importância histórica, estasrevistas não passariam, hoje, pelocrivo dos “qualis”, já que o tipo deprotocolo adotado na escolha decolaborações se pautava pelo graude afinidade com o grupo, ou depertencimento a ele, e não por umsistema supostamente universal de“arbitragem por pares”. O conceitode pares, nestas revistas, é outro.Mas são inegáveis a sua importânciae o seu grau de “impacto na área”,fortes a ponto de criar o paradigmaestético e crítico do século XX e depropiciar um novo cânone literário.

40 Ana Luíza Martins aborda o casoda Niterói, Revista Brasiliense,Ciências, Letras e Artes, com apenasdois números, publicados em Parisem 1836: “De proposta abrangente,pretendendo-se revista de altacultura, vinha com o mesmoobjetivo de Ilustrar o País. [...]balizou o surgimento do Romantis-mo nas letras brasileiras, gênero quepresidiu o seqüente conjunto derevistas literárias, fortementeinfluenciadas pelos cânonesromânticos”. Op. cit. p. 49. Quantoàs outras revistas românticas, aautora remete a Werneck Sodré.

41 Cf. Antonio Candido, Literatura esociedade: estudos de teoria ehistória literária. 5ª. ed. São Paulo:Editora Nacional, 1976, especial-mente pp. 130 e ss. O ensaio emdestaque, “Literatura e cultura de1900 a 1945 (Panorama paraestrangeiros)”, traz nota informandoque foi escrito em 1950.

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caracterizava por ter o melhor centro universitário do país.O Estadão, em sua nova orientação, deveria refletir essamarca. A seção cultural de O Estado de S. Paulo,reformulada como suplemento, foi concebida, segundopalavras de Antonio Candido, “como uma espécie decruza entre o suplemento e a revista literária, isto porqueSão Paulo não tinha uma boa revista literária”.42

Sob tal orientação, o Suplemento exerceu não apenas o papelde uma “revista literária”43, no sentido de exteriorizar a produçãode um grupo de intelectuais, de constituir uma linhagem crítica,mas também o de uma revista de base universitária, que procuroucumprir um papel pedagógico e “civilizador”. Tal função educativatambém fazia parte da própria concepção do suplemento, comorelata Antonio Candido no mesmo depoimento a MarileneWeinhardt:

Outra idéia que eu lancei é que nós não deveríamosprocurar fazer suplementos literários como havia algunsno Rio de Janeiro, que eram muito combativos, muitobrilhantes, muito movimentados, cheios de polêmicas,porque eu dizia: até o momento o que São Paulocontribuiu realmente para a cultura brasileira foi aUniversidade. [...] esse suplemento, sendo emboraliterário, vai refletir um pouco o tom da intelligentsiapaulista, que é um tom de estudo, de ensaio, de reflexão.44

Estudo, ensaio, reflexão: produtos das lides universitárias nashumanidades, isto é, da crítica institucionalizada como saber, ouparadigmas que articulam os saberes das várias áreas e disciplinasdos campos afins, esses seriam os elementos necessários à constru-ção de uma cultura que, tendo ainda o literário como eixo“civilizador”, ampliaria depois seu foco e seu campo para o que sechamamos hoje “crítica da cultura”. Por outro lado, a “oposiçãoRio / São Paulo” mencionada por Candido pode ser pensada, aqui,como a distinção entre as revistas literárias, mais experimentais, devanguarda, e aquelas revistas culturais que podemos chamar “aca-dêmicas”, ou seja, que veiculam o produto do estudo, da pesquisa,da reflexão, daquilo que caracteriza, de algum modo, a produçãouniversitária (independentemente de se fazer ela na universidadeou fora dela), e que publicam, predominantemente, ensaios. Ou,na formulação de Sarlo e Altamirano, “revistas independientes delas instancias académicas, pero en cuya producción y en cuyo con-sumo el número de los que provienen de la universidad essobresaliente.”45 Tais características podem ser encontradas tantoem alguns suplementos dos grandes jornais quanto, especialmen-te, em revistas culturais, como, nos anos 60, a já citada RevistaCivilização Brasileira e a Tempo Brasileiro, ou, nos anos 70, Argu-mento, Escrita-Ensaio, Almanaque, José, Ensaios de Opinião, ou ain-da, nos anos 80, a Novos Estudos – CEBRAP .

Com o que constatamos até aqui e observando as publicaçõesperiódicas brasileiras nas últimas décadas do século XX,notadamente no campo da literatura e da cultura, vemos que oquadro de periódicos é bastante mais complexo que aquele doséculo XIX: não se limita a uma divisão dicotômica entre, de umlado, magazines e jornais para públicos diversificados e os maisamplos possíveis (atendendo à lógica de mercado), e, de outro, asrevistas científicas (que tratam das ciências) para um público restri-to e especializado, e cujo prestígio era garantindo pelo positivismotriunfante.46 É preciso, portanto, reformular algumas das distinçõese categorizações anteriormente feitas.

42 Abreu, op. cit., p. 53.

43 Substituindo-se o “literário” por“cultural”, pode-se dizer que este é,até hoje, o papel exercido pelossuplementos, como é o caso daFolha de S.Paulo e seu Mais!.

44 Op. cit., p. 450.

45 Altamirano e Sarlo, op. cit., p. 95.É claro que esta última formulaçãotem de ser relativizada no casobrasileiro, tendo em vista que, noBrasil, as universidades foramcriadas muito tardiamente.

46 É bem verdade que o triunfo dopositivismo enquanto valorideológico não retirava o atraso e odesprestígio da ciência que se faziano Brasil. Como relata Ana LuízaMartins, no Brasil do início doséculo XX, “as publicaçõescientíficas careciam de respaldo e osestudiosos da área preferiram inserirseus trabalhos em publicaçõesespecializadas estrangeiras. Emmonografia de língua francesa EmílioRibas, Pereira Barreto, SilvaRodrigues e Adriano de Barrospublicaram em primeira mão as suasexperiências sobre a transmissão damalária pelo mosquito.” (p. 327) Umséculo depois, podemos constatarque, se o centro do poder mundialpassou da França para os EstadosUnidos e, conseqüentemente, alíngua universal da ciência deixoude ser o francês para ser o inglês, oreconhecimento interno naprovíncia, ou a falta dele, nãomudou muito. Cada vez mais, oscritérios de avaliação dentro docampo científico dependem quaseque exclusivamente dos artigospublicados em revistas estrangeirase, claro, devidamente escritos eminglês, ou, até, de revistas brasileiraspublicadas em inglês e sempreconstando de determinados índexque lhes dêem as bênçãoscanônicas. Também continuamvigentes para a área das humanida-des os protocolos de legitimação dasciências.

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47 Restrinjo-me aqui não apenas aosperiódicos claramente literários e/ouque incluam a literatura como umade suas áreas de atuação mastambém às formas tradicionais deedição, isto é, às publicações empapel; quanto às várias revistaseletrônicas, suspeito que tendam arepetir os tipos existentes em papel;mas apenas um estudo mais acuradopode confirmar, ou não, estahipótese.

Em primeiro lugar, registre-se que neste período assistimos auma dupla consolidação: por um lado, a autonomia do literário edas artes propiciou o surgimento das pequenas e vanguardistas re-vistas literárias na primeira metade do século XX; por outro, a con-solidação das universidades no Brasil e, especialmente, da literatu-ra e da crítica como saberes universitários propiciou tanto osurgimento das revistas “acadêmicas” de literatura e cultura, deque foi bom exemplo a revista Clima, como a criação das revistas“universitárias” institucionais.

Talvez se possa dizer que o lugar da crítica não mudou de modofundamental com o fim da “instituição do rodapé” e o advento daespecialização universitária – na verdade, ao contrário das reitera-das afirmações nostálgicas que lamentam a perda deste “lugar daliteratura”, pode-se dizer que houve uma ampliação, com maiorgrau de complexidade, da rede de publicações periódicas que, jun-tamente com outras formas e gêneros (teses, dissertações,monografias, etc.), sustentam e permitem o desenvolvimento daárea. Assim, resumindo, vemos que o lugar da crítica e da literaturase espraia por vários tipos de periódicos, que procuro exemplificara partir daqueles atualmente em circulação47:

a) “magazines” literários e culturais frutos de empreendimentoscomerciais, dirigidos a um público mais amplo e não especializa-do, porém “culto” (ou “chic”), como Cult, Bravo, Ventura ou apernambucana Continente; são ricamente ilustrados e, embora pu-bliquem alguns ensaios críticos, dão espaços maiores às reporta-gens culturais e às entrevistas; podem ser pensados como a versãocontemporânea e mais “especializada” das revistas ilustradas doséculo XIX; podemos incluir também neste grupo algumas revistasde divulgação publicadas por institutos culturais, como a Veredas;

b) revistas literárias e culturais independentes, de circulaçãomais restrita e dirigida a um público mais específico, aos “pares”que se interessam pela literatura; apresentam como ilustração tra-balhos gráficos artísticos ou reproduções de obras de arte e veicu-lam criação e crítica, freqüentemente com ênfase na primeira; dentreestas, podemos lembrar das “independentes” (talvez as mais próxi-mas daquelas “revistas literárias” que constituíram formações críti-cas), como Inimigo Rumor, Sibila, Babel, Coyote, Sebastião, Iararana;

c) revistas literárias institucionais, dirigida a públicos “cultos”,de circulação mais ampla que as “independentes”, finamente ilus-tradas e impressas, como Poesia Sempre ou Cadernos de LiteraturaBrasileira;

d) revistas culturais “acadêmicas”, dirigidas também a um pú-blico mais específico, isto é, mais intelectualizado, “universitário”;em geral não são ilustradas e veiculam predominantemente ensai-os. Podem estar vinculadas a instituições de pesquisa e, mesmo, auniversidades, como é o caso da Novos Estudos-CEBRAP, ou daRevista USP, ou a grupos e/ou editoras, como Tempo Brasileiro,Revista de Cultura Vozes, Praga, Crítica Marxista, Rodapé, ou aindaa instituições culturais, como algumas revistas dos Gabinetes Por-tugueses de Leitura;

e) suplementos culturais da grande imprensa, que apresentamcaracterísticas muito semelhantes às das revistas acadêmicas, sal-vo por uma presença maior de ilustrações e de resenhas, como é ocaso do Mais! e do Jornal de Resenhas (ambos da Folha de S.Paulo),ou do Idéias, do Jornal do Brasil. Neste grupo cabe ainda o longevoSuplemento Literário do Minas Gerais;

f) revistas universitárias (“científicas”), que pouco diferem dasrevistas acadêmicas, salvo pela vinculação: estão ligadas a distin-

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tas instâncias universitárias, especialmente programas de pós-gra-duação (Travessia, Teresa, Alea, Brasil/Brazil, Contexto, Cerrado,Gragoatá, Grifos, Literatura e Sociedade, PaLavra, Remate de Ma-les, etc.etc.), bem como às associações científicas (Revista daANPOLL, Revista Brasileira de Literatura Comparada).

Esta proposta de tipologia dos periódicos em que circulam aliteratura e a crítica, baseada em seus vínculos de sustentação eque não pressupõe nenhuma hierarquia valorativa entre os diver-sos grupos, poderia sugerir, a princípio, grandes diferenças entre ostipos de textos neles publicados. Mas não é o que efetivamenteocorre: quando olhamos os textos críticos, os ensaios, vemos queas características são as mesmas em todos os tipos de publicação –variam os suportes teóricos, variam os valores adotados, varia o“gosto” estético e varia, certamente, o grupo de leitores. Mas não otipo de texto. E, muitas vezes, nem mesmo variam os autores.Quantas vezes já não lemos um mesmo autor nas páginas de umarevista acadêmica, de um suplemento, de uma revista universitá-ria, de um magazine cultural e de uma revista literária, publicandoo mesmo tipo de ensaio, produto do mesmo estudo, das mesmaspesquisas e reflexões? Quantas vezes reencontramos esta mesmaprodução, supostamente esparsa, recolhida num livro de ensaios?Quantas vezes já não lemos nas páginas do suplemento de umgrande jornal o mesmo paper “inédito” que o scholar de prestígioapresentou num congresso científico? Certamente não poucas ve-zes, podemos responder, e sem nenhum demérito a seus autores,sejam eles escritores e jornalistas culturais especializados, sejameles conhecidos pesquisadores e professores universitários.48

Tais constatações evidenciam os equívocos cometidos quandoassumimos, para a avaliação qualitativa da produção discursivasobre a literatura, enquanto área de saber disciplinarmente consti-tuída, critérios baseados em uma tipologia dos periódicos, umavez que não é exatamente o tipo de publicação que determina anatureza mesma desta produção. E quando pensamos que um mes-mo ensaio pode estar em publicações aparentemente muito distin-tas, ficam evidentes as dificuldades de reduzirmos uma complexae diversificada gama de publicações periódicas a um modelo biná-rio, dicotômico e hierarquizado como o encontrado no “currículoLattes”, de preenchimento obrigatório para qualquer pesquisadorbrasileiro, seja ele um jovem bolsista de iniciação científica, ou umrenomado “pesquisador I-A do CNPq”.

Se a palavra “revista” é, como vimos, abrangente a ponto decobrir um amplo e diversificado elenco de publicações periódicas,a escolha do termo “periódico”, utilizado no “Lattes” e adotadotambém pela CAPES para designar um certo tipo “nobre” de revis-ta, a “científica”, em oposição a um tipo “menor” denominado“revistas (magazines) e jornais”, amplia as imprecisões e impropri-edades, já que “periódico” é, por definição, muito mais abrangenteque “revista”.49 Afinal, esta palavra – periódico – é relativa a perío-do, isto é, ao tempo que transcorre entre duas datas, e refere-seàquilo que reaparece a intervalos regulares, àquilo que é cíclico.Obviamente, ao ser aplicada a publicações, inclui todas aquelasedições que tenham como característica o reaparecimento dentrode uma regularidade no tempo, valendo tanto para um jornal quantopara qualquer tipo de revista, das mais populares e comerciais àsmais restritivas, superespecializadas, científicas.

Talvez se possa pensar que este modelo adotado para o registrogeral da produção universitária, que também vem determinandoos procedimentos para sua avaliação, para a montagem do seuqualis, faça jus ao nome: podemos ler no ato da denominação,

48 Os exemplos são inúmeros:Roberto Schwarz, Flora Süssekind,Silviano Santiago, Walnice NogueiraGalvão, João Alexandre Barbosa,Davi Arrigucci Jr., Leyla Perrone-Moisés, Raul Antelo, Haroldo deCampos e muitos outros.

49 Ana Luíza Martins nos lembra que“Rui Barbosa, em parecer sobre aclassificação do gênero periódico,opôs-se à inclusão de revistas ejornais na categoria de obras,propondo inseri-los em publicação”(p. 43).

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além da homenagem a nosso grande físico César Lattes, e pourcause, a vigência dos protocolos de comunicação e avaliação das“ciências duras”, adotados mais uma vez como critério de valida-ção das “humanidades” em geral e dos estudos literários em parti-cular. Curiosamente, em inícios do século XXI, voltamos àsdicotomias e preconceitos do século XIX. Curiosamente, nuncafomos tão positivistas.

Como sabemos, os critérios de validação das publicações peri-ódicas vigentes nas áreas das ciências físicas e biológicas, assumi-dos como modelo “universal”, baseiam-se em dois pontos mutua-mente complementares: processo de seleção das matériaspublicáveis através de um corpo de avaliadores constituído por“pares” detentores de notório saber na área, e o registro da publi-cação em certos indexadores, especialmente aqueles que medemas citações, isto é, o grau de impacto de artigos, autores, revistas.Assim, os artigos a serem publicados são previamente submetidosao corpo de arbitragem, que, a seu arbítrio, arbitram. As revistasfuncionam, portanto, mais como instância de avaliação das maté-rias do que como veículo da produção de um determinado grupo.

É preciso lembrar ainda que um “artigo científico” não vale emsi mesmo, em sua linguagem, mas pelo seu referente, por aqueleoutro que lhe dá sentido – a função referencial que aí atua e lhe dácredibilidade: deve relatar a descoberta, a experiência feita e osresultados obtidos, de modo a permitir, inclusive, o teste de suareprodutibilidade. E por tudo isso um simples artigo de três páginaspode ter vários autores, pois não é o trabalho da escritura que im-porta, mas os resultados do outro trabalho que ali se relata. Nadamais distante da tradição crítica e ensaística dos estudos literáriose seus periódicos, cujo prestígio decorre, primordialmente, do re-conhecimento de seus colaboradores.50 Trata-se de uma especi-ficidade do saber literário, que usa o ensaio enquanto forma, e quenão pode ser comparada com as especificidades de outras áreas deconhecimento.

Parece claro que as dificuldades em classificarmos adequada-mente nossos periódicos no qualis, ou até em preenchermos nos-sos Lattes, decorre, de um lado, dessa verdadeira “cama de Procusto”que precisa conter algo maior e mais complexo do que ela e, deoutro, da própria tradição dos periódicos no campo da literatura.Neste modelo, as dificuldades de inserção de uma revista da áreade literatura como “revista” (magazine) ou como “periódico” (ci-entífico) parecem ser da mesma ordem daquela oscilação de títu-los que vimos em nossas Travessia / Teresa, isto é, da ordem dahistoricidade do próprio periodismo, em que a divisão entre “ma-gazines e jornais” de um lado e “revistas científicas” de outro, res-quício do século XIX, já foi superada com folga na rede crítica dosestudos literários. Será lastimável se não soubermos valorizar a ri-queza de nossa diversidade, a despeito de nossas precariedades.

Para concluir, um último registro: a criação e a consolidaçãode um sistema de pós-graduação no país, a partir dos anos 60, pôsem cena um conjunto de novas revistas institucionais, vinculadasaos programas de pós-graduação, com o objetivo claro de divul-gar, na comunidade acadêmica, os trabalhos – a crítica, digamos –desenvolvidos pelos integrantes desses cursos. Ou seja, revistas “ci-entíficas”, sim, mais voltadas, no entanto, a constituir um canalpara, ao mesmo tempo, ampliar e para dar a conhecer a produçãode seus integrantes, do que para funcionar como instância de ava-liação de toda a área. Servem de exemplo os lançamentos, apesardo intervalo de 20 anos, de Travessia e de Teresa.

50 Vale a pena lembrar a relevância(o alto “impacto”) de algumasrevistas na área das humanidades,que mantinham seus próprioscritérios de “arbitragem”, veiculavama produção do grupo que fazia arevista e seus afins, como foi o casodas revistas estruturalistas francesas.A despeito da importância quetiveram, talvez não pudessem ser,hoje, classificadas como “periódi-cos”.

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1980. No editorial do número de lançamento de Travessia, lemos:

Partindo da necessidade de dinamizar o nosso curso ebuscando alternativas paralelas ao sistema acadêmico,lançamos TRAVESSIA. Essa revista, por ser nossa, estaráaberta especificamente à literatura brasileira, e todosteremos a oportunidade de ter publicadas as produçõesanalíticas, críticas e teóricas feitas em função dos cursosou estudos individuais, de acordo com os interesses decada um. [...] Nosso primeiro número procurou atingiresse objetivo. Contou para isso com a colaboraçãoespontânea de professores e alunos do curso de Pós-graduação em Literatura Brasileira de nossa Universidade,e esperamos que esse espírito continue sendo a constantedesta nossa TRAVESSIA.51

2000. No editorial de número de lançamento de Teresa, lemos:

Teresa não é um fato isolado. Este primeiro número darevista do programa de pós-graduação da área de LiteraturaBrasileira faz parte de um processo iniciado entre osprofessores e que tem como objetivo incentivar aparticipação de alunos e orientandos. [...] Um dosprincipais objetivos da revista é constituir-se num espaçode encontro, de debate, de exposição e de trocasintelectuais.[...] Procurando refletir o conjunto dosprofessores e alunos, com todas as suas diferenças, semescamotear a variedade de concepções, Theresa não éuma voz unívoca. [...] está aberta à colaboração deestudiosos e a vozes de fora, não só no terreno da crítica[...] como no da criação. [...] Sujeita ainda a muitosobstáculos, ela só ganhará efetiva existência quando forassumida pelo conjunto dos professores e orientandos dapós-graduação.52

Não deixa de ser saudável, por outro lado, que, hoje, muitasrevistas universitárias ligadas a programas de pós-graduação, emface de suas necessidades como instância avaliada, estejam bus-cando se adequar ao modelo de “periódico” como instância deavaliação, buscando constituir grupos de consultores para efetiva-mente analisar os artigos propostos para publicação, e abrir o espa-ço para colaborações vindas de quaisquer lugares, em vez de man-ter-se fechada no próprio grupo, com todas as escolhas determina-das pelos editores da revista. Com certeza trará bons resultados,desde que não desapareçam os outros tipos de publicação periódi-ca, sob pena de empobrecimento cultural. De qualquer modo, co-meça a mudar o perfil que animou o lançamento de Travessia eainda persiste em Teresa. Mudará também nossa Travessia. Oxalápara melhor.

51 TRAVESSIA, n.1. Florianópolis, 2ºsemestre 1980, p. 3.

52 TERESA, n. 1. São Paulo: Ed. 34,2000, pp. 6-7.

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1. Cigarro e revista

Uma vez, (...), encontrei uma prostituta perfumadíssimaque fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmotempo olhavam fixamente um homem que já estavasendo hipnotizado. Passei, imediatamente, para melhorcompreender, a fumar de olhos entrefechados para oúnico homem ao alcance de minha visão intencionada.Mas o homem gordo que eu olhara estava mergulhadono New York Times. E meu perfume era discreto demais.Falhou tudo.1

Depoimento:

Cinco longos anos de lutas na direção da Travessia, os números26-36, sua mudança e sua atualização periódica

Hoje, o tempo de duração de leitura dos periódicos é o tempode uma viagem de avião de meia hora a duas horas, ou até bemmais que isso dependendo das circunstâncias, do tempo de via-gem, e das exigências de atenção de uma revista. Quando fumarera permitido no avião, a viagem podia durar um charuto, dois ouaté três cigarros, ou, em termos de periódicos, um New York Times,uma Veja, uma Cult ou uma Casa e Jardim conforme a preferência.Assim como há revistas que pedem um olhar distraído, há tambémaquelas que exigem um olhar cúmplice. Os modos de ler resultamde uma disponibilidade leitora que tem mudado bastante, confor-me o lugar e o tempo. Pois o caráter utilitário do tempo faz comque ou existam olhares para preencher o tempo, ou tempo para serpreenchido por olhares. Mas é fato consumado que, hoje, as prefe-rências de um mercado de consumo por uma leitura que seduz eque distrai acabam ganhando longe da leitura que induz ao pensa-mento.

No presente depoimento sobre o meu trabalho de cinco anosna direção da revista de literatura da Pós-Graduação em Literaturada Universidade de Santa Catarina, a Travessia, procurocorresponder ao convite que me foi proposto pela sua presentedireção, dada a ocasião em que ela chega ao seu quadragésimonúmero. Daí eu procurar fazer, em seguida, uma tentativa de ba-lanço deste período de direção relativamente ao anterior, desen-volvendo um ensaio a partir destas considerações.

Ter chegado ao quadragésimo número, para os que não acom-panharam as agruras do percurso de Travessia, pode parecer ummilagre e uma ocasião de comemoração. Certamente o esforço (otermo adequado seria “teimosia”?) dos que conseguiram chegaraté aqui merece ser congratulado, principalmente tendo em vista oque discorrerei sobre as dificuldades próprias que enfrentei, e a

NAS ASAS DO PAPEL, ENTRE DOBRAS:LIVRO, LEQUE, REVISTA(Depoimento sobre a Travessia em seu quadragésimo número)

1 Clarice Lispector, “EncarnaçãoInvoluntária” in Felicidade Clandesti-na, Rio de Janeiro: Francisco Alves,1971, p. 168.

Ana Luiza AndradeUniversidade Federal de Santa Catarina

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situação de abandono geral da revista por parte da instituição, quecontinua a mesma: o atraso da periodização da Travessia fala bemalto de suas dificuldades em atualizá-la, o que na ocasião em quedeixei a revista, consegui fazer, não sem muito esforço. Dez núme-ros em cinco anos, dos quais os cinco últimos números foram, pa-rodiando os feitos de Kubitchek em Brasília, cinco anos em cincosemanas. Como a comemoração às avessas de nossos quinhentosanos de colonização na América Latina, a primeira impressão quegostaria de deixar bem registrada aqui é a de que nestes cinco lon-gos anos de árdua travessia, apesar da indiscutível satisfação depoder ver os números prontos com o melhor em revista literáriaque naquela ocasião me era possível levar a cabo em termos deconteúdo e de forma, é a de ter rumado sempre e demasiado dura-mente contra a corrente: verba exígua do departamento por faltade rubrica, falta de fundos do CNPq, falta de reconhecimento edescrédito tanto de gente distante quanto de gente muito próxima.

A estas formas injustas de descrédito acrescenta-se outra, queincide sobre a mudança de formato da revista, que de monográficae de assuntos esparsos freqüentemente denominados de modo ar-bitrário como “miscelânea” (pois se agrupavam sem propósito de-finido) passa à sua forma mais atual, publicando assuntos canden-tes, da pauta do dia, procurando resgatar o debate de uma “tribunacomum”, no dizer de Machado de Assis, enquanto contemporâ-neo do início da indústria das folhas volantes culturalmente provo-cadoras. Proponho me deter nesta questão, e mais precisamentenos desdobramentos sobre livro, leque e revista que se seguem aopresente fragmento. Ao retomar a questão que gira ao redor do quehoje se pode resgatar em termos de revista (para depois se pensarespecificamente em revista ou forma em literatura), recolho maté-ria para os pontos seguintes, partindo do que parece ter sido a ori-gem de mal entendidos quanto à razão de mudança de enfoque daTravessia em relação à direção anterior. Não se trata aqui de umajustificativa tardia, porém se trata de uma constelação de questõesrelacionadas que articulei em forma de ensaio, a partir desta “ori-gem incompreendida”.

Houve muitos questionamentos quanto a esta mudança deenfoque da Travessia que, de saída, foi entendida estritamente comouma mudança do campo literário para o campo cultural, caso emque não se adequaria ao título de revista de literatura. Evidente-mente, esta impossibilidade de ler a mudança que de fato aconte-cia, demonstrava, por um lado, uma recusa a entendê-la, e poroutro, denotava a falta de atualização de leituras não só sobre masde revistas literárias. Estas, precisamente nesta época, começavama reaparecer em maior número nas universidades e no mercadomais amplo, concentrando-se em especializações que diziam res-peito a segmentos sociais e profissionais em termos de recepção(para negros, para lésbicas, para gays, assim como para adeptos dorock’n’roll, para decoradores, para designers, etc.,), além das quejá existiam sobre literatura de maneira geral. As primeiras (que ti-nham públicos específicos nos segmentos sociais e profissionais)com formatos gráficos novos, com um visual colorido e muito so-fisticado, na sua maior parte cediam a uma nova demanda de mer-cado de consumo. Por outro lado ainda, a ignorância sobre a mu-dança que ocorria no formato da Travessia (o que ocorreu comóbvia resistência), não só seguia a ilusão promovida por esta lógicacapitalista do mercado de consumo de revistas, como significava,de fato, a completa sujeição aos seus mecanismos, apagadores doscortes responsáveis pela alienação em séries. Esta ignorância tam-bém dizia respeito às fases históricas politizadas e contestatórias

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das revistas que se registravam em relação às mudanças no campoliterário tanto no Brasil quanto no resto do mundo: entre suas fasesmais interessantes estariam as das revistas surrealistas, as anarquis-tas, as revistas, enfim, imbuídas do espírito moderno debatedor deque falavam Hugo e Machado de Assis em seu pioneirismo dasidéias democratizantes nos inícios da imprensa de distribuição emlarga escala.

As revistas do início do século XX, pertencentes a uma fasemodernista da literatura como as brasileiras Antropofagia, Pau Bra-sil, Verde-Amarelo, para mencionar só três, e muitas outras, nasdécadas que se seguiriam, anteriores à da periodização mais pa-dronizada e consumista que se implanta com a “globalização” daseditoras (iniciada, evidentemente, com mais afinco durante a dita-dura militar), tinham posturas ideológicas precisas, linhas temáticasou questões a serem debatidas, ao contrário das que resultariam,com as finalizações utilitárias do acirramento do mercado de con-sumo editorial, nos números mencionados em segmentadas séries(até mesmo acadêmicas) para exclusivo atendimento da demandaconsumidora dos correspondentes segmentos sociais, raciais, étni-cos, sexuais, profissionais. Justamente ao segmentá-los, alienando-os uns dos outros, diluem as questões críticas originárias responsá-veis por tal fragmentação, e, como conseqüência disso, as revistasliterárias, sem conseguir encaixar-se nessas secções, pois avessas àação do mercado, versam evidentemente sobre as relações entreelas e ao que dá origem à fragmentação. Mesmo assim, acabampor sucumbir à sua armadilha consumista, ao publicar artigos-mer-cadoria, fechados em si e sem ligações uns com os outros. Por isso,as miscelâneas de artigos fragmentários da Travessia, característi-cas do período anterior, se faziam em razão direta da falta de clare-za da direção quanto ao potencial crítico de uma revista literária.

Evidentemente, este quadro adverso agravado, em suamicropolítica universitária, refletia um quadro maior de políticaseconômicas adversas, por parte do governo, que diminuía as ver-bas das universidades públicas para dá-las às privadas e com issopressionava para que gradualmente se privatizasse a universidade,colocando a educação à venda, quadro que hoje tem piorado bas-tante em intensidade. Esta que deveria ser a questão maior em pau-ta, acaba perdendo sua pertinência, enquanto a ordem do governoé seguida à risca como um incentivo aos professores dando eco àssuas vaidades autorais: em sua micropolítica, dirigem periódicosuniversitários que se conformam às estratégias mercadológicas daspolíticas econômicas governamentais em seu objetivo principal deimplantar formas de lucro mais eficientes através dosdesmembramentos, ou seja, da alienação política de seus mem-bros. A recente aprovação oficial do atrelamento das pesquisasuniversitárias às empresas foi um passo incontestável nesta dire-ção, numa bem sucedida política do governo para obter lucrosatravés da educação. A pedagogia por trás de revistas que vendemseus artigos como mercadorias isoladas umas das outras, causandoo efeito de colchas de retalhos em liquidação, vai, inclusive, deencontro ao que se promove, hoje, nas agências institucionais aca-dêmicas: se sua maior preocupação é gerar novas formas de lucro,a sua menor preocupação seria precisamente a de gerar pensa-mento crítico em relação a estas formas. A valorização à pesquisapelas disciplinas da área das humanidades, geradoras de um pen-samento crítico cultural contrário à lógica capitalista às quais te-mos nos submetido, não é prioridade no momento histórico quevive o Brasil. Muitos percebem isto, mas ao invés de exercerempressão contrária, tentam driblar o sistema, e acabam caindo den-

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tro dele, pois não é possível driblá-lo, seria necessário expor seusequívocos. Vivemos em um tempo em que não existe mais censurapor não haver mais necessidade dela: basta limitar os meios paraconseguir os suportes da produção.2 Não há clareza política que semostre nos discursos institucionais quanto aos resultados que sepossa esperar de uma educação que se vende, para um país comoo nosso, terceiro em desigualdade social no mundo, onde privatizara educação seria fato ecológico de conseqüências catastróficas pois,destituindo-nos de autonomia de pensamento, nos colocaria comonovos escravos da globalização: profissionais da indústriaglobalizada, sem qualquer poder criativo ou decisório, sem falarno memorativo (pois o apagamento da memória histórica já é tra-balho anestésico eficiente iniciado há bastante tempo).

Quando Derrida coloca que a razão é a origem impensada dauniversidade – “um fundamento cujo próprio fundamento perma-nece invisível e impensado”3 – especialmente quando na França odebate gira em torno de “finalização” de pesquisa (pesquisa orga-nizada tendo em vista sua utilização) e pesquisa “fundamental”(exercício desinteressado da razão), volta à dissociação, feita porHeidegger, do princípio da razão, da própria idéia de técnica noregime de sua modernidade. Lembra Derrida que Kant queria defi-nir os fins essenciais e nobres da razão que ensejam uma filosofiafundamental e os fins acidentais, ou empíricos, cujo sistema só sepode organizar de acordo com esquemas e necessidades técnicas,para concluir que “Hoje, na finalização da pesquisa, (...) já é im-possível distinguir estas finalidades.” Isto para mostrar que as fina-lidades são também militares, e inclusive utilizam-se da filosofiapara servir (mesmo em sua inutilidade) aos fins da guerra. O apeloà responsabilidade, por parte deste discurso de Derrida, se faz nosentido de chamar a ela aqueles que “jamais procuraram compre-ender a história e a normatividade própria de sua instituição, adeontologia de sua profissão”. Procura, assim, definir “a necessi-dade de uma nova formação que preparará para novas análises afim de avaliar essas finalidades e escolher, quando possível, entretodas elas.”4

É fácil ver hoje como os números imediatamente anteriores aosque dirigi, da Travessia, acabavam conseqüentemente se pautandopor quantidade de artigos ou obras de autores divulgadas e criticadasarbitrariamente, ou seja, sem uma pesquisa que questionasse a basede sua razão para fundamentar tais ou quais escolhas, que se viaminclusive (des)orientadas por cederem a um apagamento da me-mória que minava por um lado, e por outro se voltavam às falsasinovações do mercado. Daí também a insistência ultrapassada so-bre os números monográficos, as capitalizações sobre o nome doautor que era o caminho mais seguro e mais fácil. Isto desvaloriza-va, por um lado, a leitura de inéditos que viessem a ser publica-dos na revista, e por outro, as resenhas e os artigos críticos doscolaboradores (alguns deles, por sinal, muito bons) que, uma veznela publicados, acabavam entrando na mesma mistura forjava umapostura democrática ao igualar todos os artigos e todos os colabo-radores na vala comum das mercadorias, os melhores sendo preju-dicados por terem, obviamente, seus artigos padronizados pelomodelo dos piores, ou seja, ao serem nivelados por baixo.

No primeiro número que dirigi, o 26, que por falta de experiên-cia, não saiu graficamente satisfatório, havia uma intenção clara deinserção literária no debate cultural: Litera(cultura). Nos númerosseguintes, a partir dos 26 e 27 – este último, apesar de aindamonográfico, pois centrava-se em Nelson Rodrigues, buscava amultiplicidade na estética cultural do dramaturgo, enfocando o te-

2 Jacques Derrida, O Olho daUniversidade, introd. de MichelPeterson, trad. Ricardo Iuri Canko eIgnacio Antonio Neis, São Paulo:Estação Liberdade, 1999, p. 143.Daí a necessidade, segundo Derrida,de uma pesquisa sobre a não-aprovação dos estudos pelasagências legitimadoras de pesquisa.

3 Jacques Derrida, O Olho daUniversidade, p. 138.

4 Jacques Derrida, O Olho daUniversidade, p. 148.

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atro, as crônicas, o erotismo folhetinesco e as relações com a in-dústria cultural em sua obra – procurava-se enfocar questões cultu-rais mais atuais em debate, que poderiam, inclusive, durar váriosnúmeros da revista, caso esta se dispusesse a publicá-los (as provo-cações dos números 27 ao 36 estavam em cada número para aque-les que se decidissem a tomar a peito um debate) à moda maisinteressante das revistas cuja vida é, por excelência, o debate. Noentanto o fogo do debate não foi acendido, e não aconteceu, maispor causa daqueles que teimavam em não querer ver o méritodestes números, e que ao invés de admitir em toda a honestidadeintelectual, este simples fato, mantinham-se teimosamente fiéis àsua “falta de entendimento” do significado desta mudança no for-mato da revista, justamente para certificar-se de que o mesmo nãotivesse a possibilidade de acontecer, o que, evidentemente, impe-dia a boa divulgação e tirava qualquer apoio possível ao seu de-senvolvimento. Procurava-se, ao contrário, igualar a Travessia, re-vista da pós-graduação, à revista da graduação, apagando-lhes adiferença , tanto a de nível de qualidade, quanto a de aspiração aodebate.

Considero o número 33 (A Estética do Fragmento) o 34/35(Constelações)e os dois números sobre o canibalismo (36:Gastronomia e Antropofagia, e 37: Canibalismo e Diferença)ilustrativos bem sucedidos da revista, no período aqui enfocado. Oprimeiro comenta justa e criticamente a estética fragmentária dosperiódicos, sendo muito apropriadamente encabeçada pela tradu-ção do ensaio de Susan Buck-Morss “Estética e Anestética: o en-saio sobre a arte de Walter Benjamin reconsiderado”, seguido poruma série de fragmentos dobrados de escritores sobre escritores ede leituras comemorativas de textos de Machado de Assis, LucioCardoso e Osman Lins. O número 34/35 segue a orientação frag-mentária do número 33. As Travessias sobre o canibalismo coinci-diram com a XXIV Bienal de São Paulo, e aproveitaram excelentesfragmentos publicados do catálogo organizado pelo seu curador,Paulo Herkenhorf, Antropofagia e Histórias de Canibalismo (1998),do qual o número 37 se nutre muito apropriadamente, além deconter fragmentos teóricos importantes. O número 36, em home-nagem a Câmara Cascudo, cujo material de pesquisa, guardadopor mais tempo, selecionava vários fragmentos preciosos dentrode um tópico bem negligenciado, como tem sido a tradição estéti-ca alimentar e o paladar, de modo geral, e a culinária brasileira emespecial, de um livro pouco consultado do mestre Cascudo, alémde trazer um inédito de Clarice Lispector em suas “políticas indiges-tas”, e outros artigos críticos significantes para o assunto colocado.

A bem dizer, o formato exterior da revista continuava o mesmo,pois, por falta de verba, não nos era permitido mudar mais literal-mente a cara da revista, quanto ao tamanho, às cores impressas, àgrafia ou à qualidade do papel. Contra este outro tipo de possívelquebra de padronização, a editora da Universidade Federal deSanta Catarina mantinha parâmetros rígidos, esforçando-se em equi-pará-la às outras revistas da universidade. Só nos era permitidomudar o conteúdo, e quanto a isto fizemos realmente o que pude-mos, e coloco o pronome no plural pois na maior parte dos casospude contar com a interlocução de idéias e com apoio, em relaçãoà pesquisa, do Prof. Dr. Raul Antelo e com o trabalho de digitaçãoe de diagramação dos estudantes do Núcleo de Estudos Literários eCulturais, que começava então a funcionar como núcleo, ligado àcatalogação de revistas literárias e culturais.

No entanto, quanto a tudo o mais, era o abandono completo.Quanto a tudo o mais, no sentido de divulgação, de trocas com

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bibliotecas, de correspondência, com leitores ou com conselhei-ros, ou mesmo quanto à administração das assinaturas que ficavasempre a cargo da Editora da UFSC (o que me alienava o controleda interlocução principal que seria saber sobre sua recepção, e donúmero real destas, tratando-se de recepção mais imediata da re-vista). Todas estas tarefas administrativas, evidentemente, deixarama desejar de minha parte, e eu admito isso, pois, além de tudo era-me impossível continuar a lecionar, preparar aulas, para a gradua-ção e para a pós-graduação, e exercer todos estes encargos relaci-onados à revista ao mesmo tempo e praticamente só. E sem ganharum centavo a mais por quaisquer pesquisa de revista, por quais-quer inéditos publicados, por qualquer mérito possível que fosse aela relacionado. Talvez a palavra clandestinidade fosse adequadapara o que eu fazia, pois quando fui diretora da Travessia o tempodedicado à revista não era sequer reconhecido como um tempolegítimo pela instituição. Para não falar em qualquer reconheci-mento dos colegas; abro uma enorme exceção para um conselhei-ro de muito longe, que sempre escrevia ao receber a Travessia, e aquem aqui expresso publicamente minha gratidão por este apoio:o professor Pierre Rivas... Mas o isolamento ainda era pouco. Paraalém de todos os impedimentos mencionados, a revista era cons-tantemente ameaçada, de fato, de extermínio definitivo, da parteda editora, por falta de assinaturas...

Parece-me que ainda é.

2. A via dupla das asas: o manuscrito e a imprensa

O revêuse, pour que je plongeAu pur délice sans chemin,Sache, par un subtil mensonge,Garder mon aile dans ta main.5

Para se entender melhor o periodismo em geral é necessáriovoltar à sua origem: o livro. A significação do livro modifica-secom a indústria cultural, principalmente com o aparecimento dojornal e os avanços técnicos da imprensa de larga escala, rápidadivulgação e consumo. Desde Mallarmé, a preocupação em culti-var o livro como arquitetura de expressão literária monumental cres-ce, da parte de alguns escritores, precisamente diante dos progres-sos técnicos que começam a se fazer sentir cada vez mais comouma ameaça a seu desaparecimento. Pois os escritores sensibili-zam-se aos modos conflitivos de produção entre o manuscrito e aimprensa, o que os afeta diretamente. No entanto Machado de As-sis, à feição de Victor Hugo, o grande entusiasta da imprensa, quea via como distribuidora do “pão eucarístico” do povo, participatambém do entusiasmo que causa o aperfeiçoamento das técnicasde reprodutibilidade.6 Em seu “O Jornal e o Livro” e em “A reformapelo jornal” o ensaísta Machado de Assis reconhece o monumen-tal valor da tradição cultural do livro, como arquitetura – usando aexpressão “catedral do pensamento”, também de Hugo – porémnão se furta aos elogios ao jornal, que chega, como ele muito luci-damente observa, com a industrialização do próprio dinheiro, comoum modo de trocar dentro de uma economia capitalista de crédi-tos em relação à nova categoria empresária da imprensa. Machadoreconhece no jornal, inclusive, “a grande monetarização da idéia”.Se a forma arbitrária deste novo tipo de negócio vai ser criticada

5 Stephane Mallarmé, Poésies, MaxiPoche classiques français, Paris:Booking International, 1995.Consultar o artigo de ManuelBandeira sobre este poema, em “Ocentenário de Stéphane Mallarmé”,in Poesia e Prosa, OC II, Introd.Geral de Sérgio Buarque deHolanda, Rio de Janeiro: JoséAguilar, 1958, p. 1216. Agradeço astraduções de algumas de minhascitações em francês feitas porDaniel Felix, ao longo deste texto.

6 Consultar sobre uma crítica dasopiniões de Machado de Assis sobreo jornalismo, em seu ensaio “Ojornal e o livro”, Ana Luiza Andrade,Transportes pelo Olhar de Machadode Assis, passagens entre o livro e ojornal, Grifos: Chapecó, SC, 1999.Consultar, sobre a reprodutibilidadetécnica, o famoso ensaio de WalterBenjamin in Walter Benjamin,Magia e Técnica, Obras Escolhidas I,trad. Sérgio Paulo Rouanet, pref.Jeanne Marie Gagnebin, São Paulo:Brasiliense, 1994.

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em outros de seus escritos, o jornal tem a grande vantagem, para oescritor, de promover o fogo da discussão, ao debater pontos devista diferentes de uma “tribuna comum”, o que é “propriedade doespírito moderno”:

Mas restabeleçamos a questão. A humanidade perdiaa arquitetura, mas ganhava a imprensa; perdia oedifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso;preenchia as condições do pensamento humano?Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; não era aindaa tribuna comum, aberta ‘a família universal,aparecendo sempre com o sol e sendo como ele ocentro de um sistema planetário. A forma quecorrespondia a estas necessidades, a mesa popular paraa distribuição do pão eucarístico da publicidade, épropriedade do espírito moderno: é o jornal.7

Se, por um lado mais aparente, Machado adere ao progressismoda sua época, creditando ao jornal seu potencial transformadordas desigualdades sociais, mesmo como instrumento capitalista;por outro lado menos empolgado e mais denunciador, em váriascrônicas, contos e romances, ele se torna um crítico cultural ma-gistral dos falsos mecanismos capitalistas de progresso. Primeiroescritor e cronista brasileiro a produzir na mão dupla da manufatu-ra (ao escrever o manuscrito) e da imprensa industrial, como jorna-lista, e portanto por modos conflitivos em relação a valor e a tem-po de produção, para citar apenas duas diferenças importantes,fica em Machado clara a discrepância entre a economia capitalistapautada pelo crédito de confiança mútua, e a paradoxal falta deética na prática de venda lucrativa. Ele representa ficcionalmente ologro do lucro, e registra, mais clara e definitivamente em suascrônicas, troco miúdo de seus escritos, o sistema falsificador damais valia, o embuste por detrás do ato de consumo.8 Assim comona Falsa Moeda de Baudelaire, ele subverte as trocas capitalistaspelas ficcionais. Ao vender a sua moeda falsa como ficção, a fazpassar por verdadeira. Em outras palavras, o valor da troca, porarbitrário, torna-se mais falso do que a ficção, e esta, ao alertarsobre a falsidade daquele, mais verdadeira.

Mallarmé refere-se a esta verdade mágica coincidente à ficçãoreferida por Baudelaire como moeda falsa, poeticamente, comoum vôo de pássaro que dá asas à imaginação, o que se configurano papel desdobrado do livro como objeto alado, e daí a sua com-paração:

Jusqu’au format oiseux: et vainement concourt cetteextraordinaire, comme un vol recueilli mais prêt as’élargir, intervention du pliage ou le rythme, initialecause qu’une feuille fermée, contienne un secret, lesilence y demeure, précieux et des signes évocatoiressuccèdent, pour l’esprit, à tout littérairement aboli.9

Ora, é destas múltiplas voltas imaginativas por convolutasespiraladas, e do silêncio literário que se amplia das folhas volan-tes de suas páginas, qual o espírito que se solta e voa de uma ououtra delas, que Mallarmé extrai a metonímia deslocada na meta-fórica asa desgarrada de um pássaro. Estas asas passam a ser resí-duos de um gesto sedutor cujo enlevo mimético evoca toda a artede sedução do próprio folhear do livro: o ato de leitura. Se por umlado esta “escritura alada”10 do folhear contemplativo do livro seinterioriza ao culto ritualístico do ato de leitura enquanto gestohabitual exterior, com a chegada da imprensa jornalística, por ou-

7 Machado de Assis, “O Jornal e oLivro”, primeira publicação em OCorreio Mercantil (10 e 12 de janeirode 1859), em nota de AfrânioCoutinho (org.), Obras Completas,vol. III, São Paulo: Nova Aguilar,1992.

8 Também em Ana Luiza Andrade,Transportes pelo Olhar de Machadode Assis, consultar o fragmentointitulado “Idéia, Pai, Capital (dolucro ao logro)” na utilização daleitura da ficção como falsa moeda,do livro de Jacques Derrida Dar( el)tiempo: La moneda Falsa. Trad.Cristina de Peretti, Barcelona,Buenos Aires, México: PaidósIbérica, 1995.

9 Stephane Mallarmé, Poésies, MaxiPoche classiques français, Paris:Booking International, 1995, p. 213:“Pássaros até à silhueta: e em vãoconduz de modo extraordinário,como um vôo retraído, entretantopronto para se alçar, intervenção aodobramento ou ritmo, causa inicialcuja folha fechada guarda umsegredo, nela o silêncio assiste,signos preciosos e evocatóriossucedem ao espírito e a tudoliteralmente abolido.”

10 Expressão de Mallarmé, registradapor Derrida em La Dissémination, p.308, nota de rodapé (62) sobre aqual apresenta lista variada de “asas”em suas diversas séries metafóricascomo as “penas” ou as “plumas” ouainda as “canetas de asa” , etc, napoesia de Mallarmé. Aí também se lêque no espelhamento do livro, daasa de pássaro e da cama, o espaçoíntimo se anula à força da intimidadee não há mais distância entre o “eu”e sua imagem (p. 308).

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tro lado, existe a franca ameaça de sua queda em desuso. É poreste lado do olhar superficial, atento ao lado de fora, ou ao ladopúblico de “tribuna comum” e coletiva, desencadeado pelas in-dústrias de comunicação tais como a imprensa, que erotismos an-teriormente ligados a um limiar entre “dentro” e “fora”, como aqueleque conserva um célebre “mistério não revelado de Conceição”em “Missa do Galo”, se revelam agora através de um ato aparente-mente sedutor, superficial e frívolo11 como o da arte de abanar-secom o leque, este objeto que foi instrumento e linguagem eróticarepresentativa da passagem da privacidade doméstica à saída à corte,e em seguida, às ruas, das mulheres.

Esta asa de papel cujo poder de interlocução excedia o de “me-ras páginas literárias”, transforma o resíduo fragmentário de ondese origina, na composição sintética de suas partes montadas, ondea figura pintada de uma flor emudece, ao tocar os lábios, a suaportadora. Vincent Kaufmann observa, sobre Mallarmé, que a opo-sição entre uma obra circunstancial e o livro absoluto é trazida àbaila pelo escritor, mas ela pode até acabar por não se justificar, aoreconhecer um estatuto irredutivelmente virtual para o livro que seinclina a reabilitar o circunstancial. Kaufmann coloca o cartão devisitas, para Mallarmé, como o corpo-condutor de uma circulaçãosimbólica dentro da qual ele se encontra, muito freqüentemente,como intermediário, pois enquanto cartões de visita, vazios de outroconteúdo além de significar uma lembrança, representam a varian-te mais transparente de um dispositivo de endereçamento reen-contrado sob as formas mais complexas, dentro das Poesias e tam-bém dentro dos “Poemas Críticos”. Loisirs de la Poste constitui umexemplo de uma equação irônica entre escrever e endereçar-se. Acircunstância é suprimento de reserva do livro que se deve publicarmesmo fragmentariamente. Mallarmé não favorece um regime priva-do de escritura. A circunstância será, em resumo, o gênero que sesubtrai a um livro impossível ou ausente, com respeito a uma lógicaparadoxal, ou seja, tanto da parte do autor como do leitor.12

3. Elo e dom: entre os poemas-que-se-endereçam e os poemas-oferenda

La verdad del don equivale al no-don o a la no-verdaddel don. Esta proposición es un desafío evidente parael sentido muy singular, el vínculo sin vínculo, sinbind, sin bond, sin obligación o atadura, nos recuerdaMauss; pero, por outra parte, no hay don que no debadesvincularse de la obligación, de la deuda, delcontrato, del intercambio, por lo tanto, del bind.13

Outros aspectos da função simbólica dos “versos de circuns-tância” de Mallarmé passam ao primeiro plano com os poemasEventails, os Dons de fruits glacés , as Offerendes, etc, não só por-que cada objeto representa a “prova” do poema que o acolhe, masporque esta também, em cada caso representa um “dom”, o queconfere, como se sabe depois de Mauss, um valor eminentementesimbólico. Os poemas explicitam as razões da oferta, dando-ascomo regra e sentido, e se apropriam assim de certo modo da cha-ve da ligação instituída pelo dom. O elo ou ligação será então oassunto do poema e não o objeto que ele apóia. O poema se inte-gra ao gesto simbólico do qual ele parecia antes não ser mais que ocomentário, como se ele se tornasse reflexivamente seu própriocomentário:

11 Consultar a respeito da frivolidadena economia dos signos e dodiscurso: Jacques Derrida,L’Archéologie du Frivole, Paris:Galilée, 1990.

12 Vincent Kaufmann, Le livre et sesadresses (Mallarmé, Ponge, Valéry,Blanchot) Paris: MéridiensKlincksieck, 1986.

13 Jacques Derrida, Dar (el) tiempo,p. 35.

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14 Vincent Kaufmann, Le Livre et sesAdresses, p. 34.

15 Vincent Kaufmann, Le livre et sesadresses, p. 37.

16 Vincent Kaufmann, Le livre et sesadresses, p. 35.

17 Manuel Bandeira em Advertênciaà sétima antologia de seus poemas,acrescenta a eles a inclusão de“poemas de circunstância, constan-tes do livro Mafuá do Malungo , etraduções [que fiz de poetasestrangeiros,] tiradas do livro PoemasTraduzidos”. In Manuel Bandeira,Antologia Poética, Rio de janeiro:Editora do Autor, 1961, p. 6.

A Mlle. Geneviève Mallarmé

Là-bas de quelque vaste aurorePour que son vol revienne versTa petite main qui s’ignoreJ’ai marqué cette aile d’un vers.

A une dame polonaise

L’an nouveau qui vous caressaToujours la même dans ratureApporte aussi ce fruit et saMonotone littérature.14

Assim, Kaufmann nos explica sobre o endereçamento emMallarmé: no primeiro poema a preposição “vers” ou “em direçãoa”, no lugar da rima, se entende como aposição a “vôo”, o quepode sugerir a temática do vôo do leque pelo poema que acaba detorná-lo parasita, ou ainda, a idéia de uma volta do leque sob aforma de verso. Kaufmann define o dom como um “cavalo de Tróiado verso ao qual serve de suporte”. Conforme às leis da troca, elesupõe um outro dom em retorno, tratando-se aqui de um contratoantes imposto ao donatário-destinatário colocado na obrigação derestituir a um nível completamente outro. Seria preciso seguir to-das as virtualidades de “s’ignore” que deixa entender toda a pro-blemática da assinatura e do valor (“signe-or”), interventores, deuma certa maneira, à questão do destinatário do dom. O dom apa-rece assim quase anulado pelo poema, que literalmente o dobra eo coloca em seu lugar, fazendo do objeto dado o espelho (e agarantia) do gesto simbólico envolvido pelo escrito:15

A ce papier fol et saMorose littératurePardonne s’il caressaTont front vierge de rature.16

Os textos de circunstância permitem ao leitor fazer a economiade sua própria implicação em um gesto endereçado dado. O obje-to perdido que se transmite pelo poema que sempre se reconciliacom o poema de amor, se materializa, caso de todos os poemas–oferendas que consistem precisamente na desaparição do objetoque lhes serve de apoio, para fazer lucrar uma relação pura. Todasestas oferendas, é preciso lembrar, se dirigem a mulheres, colocan-do em jogo os objetos íntimos ligados ao corpo (leques, lenços,frutas carameladas, espelhos, etc) predestinados ao desaparecimentopela matéria de que são feitos, elo atrás do qual estes objetos sepermitem significar. Os “Jogos Onomásticos” de Bandeira se apro-ximam bastante destes versos (aos quais Bandeira chama de “poe-mas de circunstância”17) endereçados a mulheres, de Mallarmé.Neles, o poeta brinca com os nomes qual objetos a quem se ende-reçam os seus versos. Por exemplo, no poema Teu Nome ainterlocução do poema-que-se-endereça propõe-se chamamentomais forte que a poética voz das sereias, ou no poema dedicado aMarisa, onde o próprio título, coincidente ao nome da endereçada,é dom da brisa, do mar:

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18 Stephane Mallarmé, “Quant aulivre”, Poésies, Maxi Pocheclassiques français, Paris: BookingInternational, 1995, p. 206: “Para oextremo-oriente, a Espanha edeliciosos iletrados, o leque adiferença próxima que esta outra asade papel mais viva: infinitamente ebreve em sua dobradura, escondeparcialmente a face para trazer aoslábios uma flor muda pintada comoa palavra próxima intacta e nula dodevaneio pelos batimentos.”

19 Stephane Mallarmé, “Quant aulivre”, Poésies, Maxi Pocheclassiques français, Paris: BookingInternational, 1995, p. 206 (doisparágrafos depois da citaçãoanterior): “O volume, refiro-me aoscontos ou ao gênero, procede aoinverso: contraditoriamente ele evitao tédio dado por um encontrocontínuo com o outro e multiplica ocuidado que somente nós oencontramos frente a frente oupróximo a nós mesmos: atentos aoperigo dobrado.”

Teu Nome

Teu nome, voz das sereias,Teu nome, o meu pensamento,Escrevi-o nas areias,Na água, -escrevi-o no vento.

Marisa

Muitas vezes à beira-marSopra um fresco alento de brisa,Que vem do largo a suspirar...Assim é o teu nome, Marisa –,Que principia igual ao marE acaba mais suave que brisa.

Enquanto Bandeira faz soprar a brisa no registro de seus poe-mas de circunstância, apagando-os ao seu sabor efêmero, Mallarmédestaca o leque em seu abano provocador, já que a relaçãointerlocutória de seu gesto, intermediária entre a do objeto de artee o objeto de comunicação, o faz falar sedutoramente, ao apontarjustamente para o circunstancial da antiga função do folhear o li-vro. O leque, hoje objeto abandonado ou fora-de-uso, vem à lem-brança como um pano de fundo de que se utiliza Mallarmé parasuas analogias com o livro, porém seu uso cultural, apesar dedescontextualizado de sua origem oriental, era freqüente nos tem-pos de Mallarmé. Se o ato solitário de leitura do livro na virada desuas páginas lembra os golpes rápidos e leves desta singular asa depapel, já o ritmo de suas batidas corta os altos vôos literários pelaaproximação comunicativa de quem traz o leque em sua mão. Doato de fragmentação de leitura passa-se ao ato fragmentário do ges-to: não há mais a atividade contemplativa e exclusiva do livro. Oleque aproxima a distância de sua, agora ilusória, origem oriental,para se comunicar à moda ocidentalizada, com os seus próximos:

Ce que pour l’extrême-orient, L’Espagne et de délicieuxilletrés, l’éventail à la différence près que cette autreaile de papier plus vive : infiniment et sommaire enson déploiment, cache le site pour rapporter contre leslèvres une muette fleur peinte comme le mot intact etnul de la songerie par les battements approché.18

4. A obra, entre poesia e prosa, livro e leque

Le volume, je désigne celui de récits ou le genre,procède à l’inverse: contradictoirement il évite lalassitude donnée par une fréquentation directe d’autruiet multiplie le soin qu’on ne se trouve vis-à-vis ou prèsde soi-même: attentif a danger double.19

Blanchot resgata o Mallarmé das dobras entre o jornal e o livrono seu anseio ao puro movimento das relações. A volta cultural àsexigências literárias das relações desenvolvidas no livro, ao qual seincorpora o triunfo dos versos de circunstância, cujas asas expres-sas na metáfora da multiplicidade de “pássaro numeroso” originá-rio em Mallarmé, já parte da ameaça mais próxima de um possível“desaparecimento da literatura” e se acirra com o que ainda seescondia como pano de fundo histórico: a comunicação de massa,

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com o crescimento da indústria midiática, em específico o apare-cimento da televisão. O livro se faz lugar de negação desta telavisual de um só plano, que tal como o leque corta a sua profundida-de calculada no encolhimento superficial de suas dobras. Ao contrá-rio: ao escapar do ato circunstancial e casuístico, o livro transformaas coisas ao abri-las ao seu ritmo silencioso e à sua ausência:

Le livre qui est le Livre est un livre parmi d’autres. C’estun livre nombreux qui se multiplie comme en lui-mêmepar un mouvement qui lui est propre et où la diversité,selon des profondeurs différents, de l’espace où il sedéveloppe, s’accomplit nécessairement. Le livrenécessaire est soustrait au hasard. Echappant au hasardpar sa structure et sa délimitation, il accomplit l’essencedu langage qui use les choses en les transformant enleur absence et en ouvrant cette absence au devenirrythmique qui est le mouvement pur des relations.20

A dimensão de puro devir do livro se imagina ao se desdobra-rem as asas poéticas de Blanchot às próprias asas de papel de suasfolhas. Para Blanchot o livro se faz puro como um último desejo

no pressentimento de sua morte próxima, o que se dá bem con-cretamente com o advento da comunicação de massa. Por issotorna-se o livro mais livre, como se ele mesmo fosse presença emausência de objeto, liberando-se mais puro em seu desejo de vôocomo um irresistível canto de sereias. Este canto silencioso e sim-bólico de um livro despojado, sem propriedades ou proprietários,que já se desliga do autor e do leitor, para Blanchot, equivaleria, aoque, no dizer de Clarice Lispector, teria o poder abstrato de um“verdadeiro pensamento” que não tem autor, nem leitor, e nemlugar por assim dizer “literário” que lhe restringisse os seus limitesespecíficos ao que então começa a se formar em torno da lingua-gem como uma prisão: uma cadeia comunicativa que doravante secristaliza como a do autor – leitor – obra.

Le livre est sans auteur, parce qu’il s’écrit à partir de ladisparition parlante de l’auteur. Il a besoin de l’écrivain,en tant que celui-ci est absence et lieu de l’absence.Le livre est livre, lorsqu’il ne renvoie pas à quelqu’unqui l’aurait fait, aussi pur de son nom et libre de sonexistence qu’il est du sens propre de celui qui le lit.21

Parafraseando Blanchot em sua referência ao grau zero da es-critura de Barthes, ainda sobre o livro de Mallarmé: a solidão dolivro, ao se cumprir como elo de si mesmo, torna-se dupla afirma-ção sobre a obra em sua exigência essencial, que se justapõe, se-parada por um hiato lógico e temporal, do que o fez e do ser aquem pertence, indiferente ao “fazer” – a simultaneidade entre suapresença instantânea e o devir de sua realização: uma vez cumpri-da, cessa ela mesma sem dizer nada além disso: que é.22 O livro édo leitor. Como obra de arte, para Mallarmé, se confundiriamimeticamente ao leque como objeto simbólico que representa aobra de arte, pois Blanchot observa como seu devir é passagemhistórica, é corte e ruptura, “tout s’interrompt, effectif, dans l’histoire,peu de transfusion”. A obra literária moderna, como o leque, seanima de uma descontinuidade extremada sujeita às mudançastemporais, aos “arrêts fragmentaires” como signo de uma essêncianova de mobilidade e às acelerações, como o tempo que se anun-cia: “ici devançant, là remémorant, au futur, au passé, sous uneapparence fausse de présent”.23

20 Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,Paris: Gallimard, 1959, p. 307: “Olivro que é o Livro é um livro dentreoutros. É um livro numeroso que semultiplica como nele-mesmo por ummovimento que lhe é próprio e ondea diversidade segundo profundezasdiferentes do espaço onde ele sedesenvolve, se cumpre necessaria-mente. O livro necessário ésubtraído ao acaso. Escapando aoacaso pela sua estrutura e sualimitação, ele cumpre a essência dalinguagem que usa as coisas,transformando-as em sua ausência eao abrir esta ausência ao futurorítmico que é o puro movimento dasrelações.”

21 Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,p. 310: “O livro é sem autor, porqueele se escreve a partir do desapareci-mento falante do autor. O livroprecisa do escritor enquanto ele éausência e lugar de ausência. O livroé livro, enquanto ele não remete aninguém que o teria feito, tão purode seu nome e livre de sua existênciaque ele é o sentido próprio daqueleque o lê.”

22 Maurice Blanchot, Le Livre a Venir,p. 311.

23 Maurice Blanchot citandoMallarmé, Le Livre a venir, p. 311.

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Mas é Jacques Derrida que vai finalmente aclarar esta relaçãoentre livro e leque que tem a ver com a passagem moderna de umolhar dialético entre o antigo e o moderno, fundo e superfície, inte-rior e exterior. Ele observa, com Blanchot, que a comparação entrea alma e um livro (bibliô) é de tal sorte que o livro aparece comouma instância do discurso (logos) silencioso, interior, palavra quese volta para dentro. Mas desde o instante em que o diálogo setorna possível com um interlocutor presente, ao contrário deBlanchot, Derrida mimetiza-o ao interiorizá-lo: “entretenho-mecomigo mesmo em um comércio interior”. Ele deixa claro que des-de o momento em que a alma se assemelha a um livro, esta conver-sação reduzida ou murmurada como um falso diálogo, equivale auma perda de voz. Ainda observa que o livro torna-se ícone oufantasma desde que a relação silenciosa entre a alma e ela mesma,ao imitá-lo, sendo uma a imagem semelhante do outro, se compa-ra à do desenho, à da pintura, a arte do espaço, que, enfim, seinscreve, fora do livro: “as imagens que correspondem às palavras”,para ilustrar no livro do discurso, o pensamento de dentro, saben-do o pintor restaurar a imagem nua da coisa tal qual ela se dá aoolhar, como cópia de cópias. Assim, a articulação metafórica doleque enquanto livro permanece nesta dobra analógica que fran-queia o interior ao olhar de fora. O próprio olhar de fora, dentro deum ritual de leitura antigo, se fazia violador desde o momento emque as folhas eram cortadas à medida em que eram lidas, e a ana-logia de Mallarmé é precisa quanto ao olhar de fora de um leitorpenetrador, que desvirgina a página ao apropriar-se do que lê:

Le reploiement vierge du livre, encore, prête à unsacrifice dont saigna la tranche rouge des aciens tomes;l’introduction d’une arme, ou coupe-paier, pour établirla prise de possession. Combien personnelle plus avant,la conscience, sans ce simulacre barbare: quand ellese fera participation, au livre pris d’ici, de là, varié emairs, devinné comme une énigme – pesque refait parsoi. Les plis perpétueront une marque, intacte, conviantà ouvrir, fermer la feuille, selon le maître.24

Além disso, de acordo com Derrida, ainda quanto a analogiaentre livro e leque, este se apresentaria como tela protetoraindicadora da virgindade25 ou película entre o dentro e o fora docorpo da mulher, assemelhando-se ainda à cartilagem de certospeixes ou às asas de certos insetos ou bichos que, como aranhas,urdem uma rede, uma obra, um texto. Derrida destaca o imensopoder destas metáforas pois a urdidura de seus fios em todas assuas gazes, véus, telas, asas, penas, cortinas e leques incorporadosàs suas dobras, vão constituir tudo – ou quase – do corpusmallarmeano. Aqui se entreabre, então, a potência artística e cultu-ral do leque como obra ou objeto simbólico de Mallarmé, sejalivro ou leque, em seu entreabrir-se, seu entrefechar-se. Trata-se dehímen ou intervalo do “entre” que confunde contrários e em cujasdobras fica o espaçamento entre o desejo e sua realização. Seujogo de beirar o ser fica em suspensão viciosa e sacra, mediadora emidiática “donc image sans modèle, ni image ni modèle, milieu (aumilieu: entre, ni/ni; et milieu: élément, éther, ensemble, medium)”26,chegando a Sonho que é percepção, lembrança e antecipação(desejo) e cada um dentro do outro, não sendo de fato, nem um enem outro, falsa aparência, ficção de penetrar o ventre conservan-do-o virgem, ao mesmo tempo: tecido sobre o qual se escrevemtantas metáforas do corpo.27 A analogia imita a diferença, segundoDerrida, como o leque imita o hímen: simulacro que simula o de

24 Stephane Mallarmé, “Quant auLivre”, in Poésies, Maxi Pocheclassiques français, Paris: BookingInternational, 1995, p. 215: “A dobravirgem do livro nesse instante,pronta para o sacrifício, revela osangramento vermelho de fatia dostomos antigos; a introdução de umaarma, ou corta-papel, para estabele-cer a tomada de posse, apesar dessegesto bárbaro, como antes nosdamos conta do ato de posse:quando ela se fará na participação,do livro tomado, levado daqui, de lá,aos ares de descoberto tal como umenigma – quase rarefeito por si. Asdobras perpetuarão uma máculaintacta que convida pronta a abrir ea fechar a folha, de acordo com omestre.”

25 “Virginité qui solitairement,devant une transparence du regardadéquat, elle-même s’est commedivisée em ses fragments de candeur,l’un et l’autre, preuves nuptiales del’Idée.” In Stephane Mallarmé,Poésies, Maxi Poche classiquesfrançais, Paris: Booking International,1995, p. 225: “Virgindade quesolitariamente, frente a umatransparência do olhar adequado,ela-mesma sendo como dividida emseus fragmentos de candidez, um eoutro provas nupciais da Idéia.”

26 Jacques Derrida, “La DoubleSéance” in La Dissémination, Paris:Les Editions du Seuil, 1972, p. 239:“portanto imagem sem modelo, nemimagem nem modelo, meio (aomeio: entre, nem/nem; e meio:elemento, éter, conjunto, mídia).”

27 Jacques Derrida, “La DoubleSéance”, pp. 209-238.

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Platão assim como a cortina hegeliana cujo interior se abre ao in-terior puro anulando seus extremos e fazendo desaparecer o meio-termo.28 Ao dobrar-se sobre si mesmo, o texto se desdobra enquan-to leque, jogando a partir de uma cena dupla que opera de lugaresdiferentes, sendo atravessado e não–atravessado. Sua entre–aber-tura é entre–ato cuja fachada misteriosa esconde o fundo.

5. O romance, o volume

Impersonnifié, le volume, autant qu’on s’en séparecomme auteur, ne réclame approche de lecteur. Tel,sache, entre les accessoires humains, il a lieu tout seul:fait, étant.29

Le livre fait “bloc”, mais c’est um bloc de feuillets.Une “perfection cubique” ouverte. Cette impossibilitéde se fermer sur soi, cette déhiscence du livremallarméen, comme théâtre “intérieur”, c’est lapratique et non la réduction de l’espacement. Cettepratique mise sur la structure du pli et de lasupplementarité, elle y joue.30

Reconhecendo a liberdade das relações móveis do livro, po-rém diferentemente de Blanchot ou Derrida, Michel Butor já partedo livro como resíduo, ou seja, o livro enquanto obra industrial,mercadoria decaída de um mundo cultural fragmentado pelo con-sumo, para, novamente, contrapô-lo aos meios técnicos mais mo-dernos de catalogar ou arquivar tais como os da gravação eletrôni-ca. No entanto, ainda a escrita é melhor captável pelo olho do quepelo ouvido, em seus fios facilmente disponíveis “ao leitor [quetem] uma grande liberdade de movimento em relação ao “desen-rolar” do texto, uma grande mobilidade, que é o que mais se apro-xima de uma apresentação simultânea de todas as partes de umaobra.”31 Ao contrário da tela unidimensional que agora se visualizana imagem superficial e frívola de um leque aberto à interlocuçãocomunicativa, como na televisão, o livro como objeto, de acordocom Michel Butor, viria de outra série na lógica moderna dos des-dobramentos. O livro se relaciona ao discurso, para Butor, que aceitasuas dimensões tridimensionais de volume ou objeto, o que até seentende melhor na imagem do cubo, que resplandece em suaslimitações, como Osman Lins destaca, retomando Mallarmé.32 ParaButor, como Lins percebe mais tarde, o volume do livro, como odo discurso, tem uma referencialidade simbólica, o que lhe em-prestaria singularidade espacial em sua mobilidade temporal: “Autilização feita pela geometria da palavra “volume”, bem afastadade sua etimologia volumen, mostra bem com que clareza as trêsdimensões aparecem no livro, no momento em que ele tomou asua forma atual.”

Além disso, Butor retoma a importância histórica dada à arqui-tetura do livro por Hugo, com a vantagem, agora, de ter sido libe-rada de seu lugar: “Hugo declarava que o livro era uma transforma-ção moderna da arquitetura tornada plenamente móvel pelo fatode ter sido liberada de seu lugar”.33 Compara, com Mallarmé, olivro ao teatro, mas também à Ópera, “dito ou cantado no palco”de acordo com “as inscrições da sala”, “os programas ou livretes”e a sonoridade da partitura. Diz ele que, como as civilizações“ressuscitáveis”, devemos acompanhar os movimentos, implica-dos nas misturas que se acrescentam ao livro pois, como a literatu-ra, ele “é uma transcrição suspensa entre um passado a conservar eum futuro a preparar, mas [como] ela funciona também no espaço,

28 Jacques Derrida, “La DoubleSéance”, nota 24, p. 248, sobre acomparação entre Mallarmé e Hegelem Fenomenologia do Espírito,quanto ao hímen, que como umacortina se abre ao interior em suavisão do Homônimo sem distinção,em relação à consciência de simesmo. Atrás da cortina que deverecobrir o Interior, não há o que ver,a menos que nós não nos penetrás-semos atrás dele, tanto para queexista alguém para ver como paraque haja qualquer coisa a ser vista.

29 Mallarmé citado por Blanchot inMaurice Blanchot, Le Livre a venir, p.310: “Não personificado, o volumesepara-se tanto quanto o autor, nãoreivindica a aproximação do leitor.Sabe-se que entre os acessórioshumanos há lugar inteiramente só:feito, sendo.”

30 Jacques Derrida, “La DoubleSéance” in La Dissémination, p. 264:“O livro faz “bloco” todavia é umbloco de folhas. Uma “perfeiçãocúbica” aberta. Essa impossibilidadede se fechar sobre si, essa deiscênciado livro de Mallarmé como o “teatrointerior”, é a prática e não a reduçãodo espaçamento. Essa prática põe-sesobre a estrutura da dobra e dasuplementação e a manifesta.”

31 Michel Butor, “O livro comoobjeto” in Repertório, trad. e org.Leyla Perrone Moisés, São Paulo:Perspectiva, 1974, p. 216.

32 Osman Lins, Guerra Semtestemunhas (o escritor, suacondição e a realidade social), SãoPaulo, Ática, 1974.

33 Michel Butor, Repertório, p. 241.

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e portanto com relação ao presente.” Sua preocupação com o tem-po e o espaço do livro e da literatura se expressam de forma repre-sentativa em relação ao romance e suas modificações quanto aospontos de inserção relacionados entre o leitor e as figuras roma-nescas, o que se ilustra em especial e magistralmente em seu ro-mance A Modificação.34 Tendo tido direto contacto com Butor,Osman Lins expressa-se em consonância com suas idéias ao quali-ficar as linhas que relacionam a obra e o escritor como as de ummóbile.35

Esse espaço simbólico [do livro], expressão enigmáticade um anseio, desaparece na imprensa periódica, nãodeixando de ser significativo que as revistas mundanas,quando publicadas mensalmente, tragam uma capadecorativa, em geral sobre motivo fútil mas sem relaçãocom os últimos acontecimentos do mundo, enquantoque a tendência dos semanários ilustrados é paraestampar em cores, sob o título da publicação,fotografias ligadas a algum fato recente. Tanto maisestreita é a duração prevista para a vida de taispublicações, quanto maior sua ligação com otemporário, expressa através do próprio assunto dacapa. Assim é que o jornal, por sua natureza ligado aodia-a-dia, expressão do fato em andamento ou apenasconsumado e prestes a ser esquecido, substituído,dispensa toda espécie de separação entre o textoimpresso e o mundo. Reflexo do transitório, ele mesmoexemplo das coisas que não permanecem, não temintegridade alguma a resguardar. Ligado estreitamenteao tempo, sobrevém para fugir, passar, ser esquecido.36

É bom lembrar que Lins se refere aqui à ligação com o tempode trabalho assalariado, ou seja, o tempo que equivale ao dinheiroe não ao tempo que dá, ou o do dom. Em Guerra Sem Testemunhasele dá o seu testemunho da luta solitária porém culturalmente soli-dária à literatura, ao manifestar-se abertamente contra a indústriacultural que ameaça invadir as relações entre o escritor e sua obra.Acreditando ser possível a profissionalização do escritor sem queeste seja corrompido pelas relações com o mercado (“ainda quenem os melhores pod[em] estar seguros de conservarem-se imunesà sua pressão”37) Lins apela para os valores de integridade interiortransmitidos pelo livro (entendido enquanto obra de arte, como emBlanchot e Butor) em oposição ao best-seller, com suas “intençõesilegítimas, [que] deix[am] transparecer de modo claro um despre-zo total pelo leitor e um alheamento indisfarçável com referênciaaos problemas essenciais da nossa época” (...). Por outro lado, há o

público apressado, que [o escritor casual] não admiteem condições de elevar-se e de cujas insuficiênciasconstitui-se beneficitário. Esse gênero de escritor, paraos que condescendem em admitir, na civilizaçãoindustrial, a literatura, passa por ser o exigido pelostempos, nos quais só haveria lugar para aquelas obrascapazes de atender à capacidade das grandesimpressoras, e competir na preferência dos leitores,com o cinema e a televisão, de modo que um autorcomo Kafka seria um anacronismo. Erro ou artimanha?A máquina surgiu como resposta ao velho clamor dotexto; veio para servi-lo e a inversão pretendida – quepasse o texto a servidor da máquina, de sua apetência– afigura-se bem estranha.38

34 Michel Butor, A Modificação, trad.de Oscar Mendes, Belo Horizonte,Itatiaia Limitada, 1958.

35 Osman Lins, Guerra Semtestemunhas, 1974, p. 48.

36 Osman Lins, “O escritor e o livro”in Guerra Sem testemunhas, 1974, p.106

37 Osman Lins, “O escritor e o livro”in Guerra Sem testemunhas, 1974, p.135.

38 Osman Lins, “O escritor e o livro”in Guerra Sem testemunhas, pp.136-137.

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Lins reserva às capas e às ilustrações das revistas a impressãodas cores, porém pensa que o conteúdo de um livro não deve sercontestado em sua forma (como algumas coleções de livros de bolso,cujas editoras desmerecem, por suas capas, completamente os seusescritos). Desta maneira, Osman Lins parece antecipar as editorasque só estão preocupadas com a sua embalagem ou aparência ex-terior, vendendo-os a alto preço, ou seja, nas belas edições, emdetrimento das palavras que contém, ou bem as que não respeitamestas últimas tendo por objetivo único a quantidade de vendas.Reclamando ao escritor à sua obra e à literatura um espaço digno,a exemplo do “espaço literário” já reivindicado por Blanchot39 aocomentar a obra de escritores, como também a exemplo de Butor,na dimensão do “livro como objeto”40, Osman Lins percebe a crisecultural que adentra o campo da literatura ao desmembrá-lo, nãosó com o advento da indústria cultural, mas principalmente comos problemas inculturais que levam a menosprezar o livro e aprestigiar o mercado de consumo. As várias partes de seu livro sãotestemunho claro dos cortes capitalistas em sua açãodesmembradora. Semelhantemente a Butor41, Osman Lins afirma atridimensionalidade estrutural do livro em seu romance Avalovaraenquanto se trata de romance que se representa através da formado livro. Portanto Avalovara, livro que não tem medo de apresen-tar-se como tal42, torna-se uma afirmação cultural do livro comoforma, estrutura que se dobra sobre si mesma ou objeto simbólicodentro de um mundo que o pensa .

Ainda em Guerra Sem testemunhas, quando acompanha passoa passo os estágios técnicos pelos quais atravessa o livro em suapassagem de um modo de produção manufaturado a um modo deprodução industrial, para a facilitação da leitura, destaca o códice,pelo qual o livro se fez mais acessível permitindo ser folheado en-quanto “a mudança verdadeira se realiza quando as folhas de per-gaminho passam a ser, não mais enroladas, e sim sobrepostas, es-critas nas duas faces, unidas mediante uma costura à esquerda emais tarde recobertas por uma capa, tomando portanto um aspec-to bem semelhante ao que até hoje se conserva.”43 Lins chama aatenção precisamente para a passagem da domesticidade à publi-cidade que a ultrapassagem desta fronteira técnica representa:

Contemplem-se os degraus interpostos entre ashabitações humanas e o leito da rua; os muros e jardinsem torno dos palácios; as calçadas largas diante dostemplos e, no interior das igrejas, a extensão da naveentre o pórtico e o altar-mor. Sempre um resguardo,uma fronteira material busca isolar do século as coisaspermanentes ou aquelas para as quais desejaria ohomem uma vida que ultrapassasse a duração da sua.Tais espaços, ungidos de perenidade, são postos dealgum modo fora do alcance do tempo, do fluirdevorador dos acontecimentos. O livro, com o rolo emais tarde, com suas folhas costuradas, reflete estaobscura intenção.

Certamente, o que separa a defesa da maior duração do livropor Lins, de sua abertura à comunicação levada ao “triunfo da cir-cunstância” por Mallarmé, é a diferença do momento histórico,quanto aos valores de culto e aos valores sociais afetados pelasmudanças nas trocas econômicas, com uma indústria cultural queafeta radicalmente a percepção estética dos antigos leitores/novosconsumidores. No desmembramento capitalista que corta as con-tinuidades habituais antigas para produzir descontinuidades de um

39 Maurice Blanchot, O EspaçoLiterário, trad. Álvaro Cabral, Rio deJaneiro: Rocco, 1987.

40 Michel Butor, “O livro comoobjeto” in Repertório, trad. e org.Leyla Perrone Moisés, São Paulo:Perspectiva, 1974.

41 Sandra Nitrini, “Da intermediaçãocultural ao diálogo cifrado. (OsmanLins e Michel Butor)”, textoapresentdo no Congresso daABRALIC em Belo Horizonte, 26 dejulho de 2002. O texto se refereantes à busca comum pela cidadeideal e ao tema das viagens queexiste em ambos os autores do quepropriamente às suas preocupaçõesculturais referentes ao livro emespecífico.

42 Antonio Cândido, “A espiral e oquadrado”. Apresentação deAvalovara, de Osman Lins. SãoPaulo: Melhoramentos, 1973.

43 Osman Lins, Guerra semtestemunhas, p. 125.

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modo de produção fragmentário, a folha acaba se soltando do li-vro para o jornal assim como os cadernos de um livro encadernadodariam lugar às séries de revistas.

6. A estética do efêmero e suas leitoras

Disfarçado em cronista da moda em La Dernière Mode,Mallarmé lança oito publicações por subscrição desta revista, e,no que Kaufmann considera um gesto contraditório de sua parte,prescreve às suas leitoras, sob uma série de rubricas indicando asua função em relação ao modo e à sua ordem de leitura, o seulugar em relação ao que elas são convidadas a ler. Saltam à vistatanto o fato de, em uma das rubricas, Mallarmé se referir ao fato deque não existem mais leitores e sim leitoras, propondo-se à valori-zação de suas identidades femininas, além de elogiar uma práticadistraída da leitura. Na revista, propõe, a despeito de que as apa-rências lhe dêem um caráter frívolo, comentar o gosto da atualida-de, além das obras do espírito, dando às mulheres o seu parecersobre os perfumes, as jóias ou os personagens de uma obra. Aque-les ou aquelas que seguem a moda são “falados” por ela, o que areconcilia a um tipo de ritual onde o simulacro se casa à sua pró-pria verificação. Quanto ao seu comentário, por exemplo, sobreuma túnica-écharpe colante que se vê nas ruas todos os dias,Kaufmann observa que já estando a moda na rua, não haveria maiso que dizer pois amanhã ela não estaria em lugar nenhum, ao serapagada por uma outra. O crítico ainda observa quanto à estéticaligada ao efêmero do cronista Mallarmé, que ela permite materiali-zar a “aparência falsa de presente” que o escritor explora como aanalogia entre a lógica temporal à que se submete a moda, e a quese implica pela circulação da escritura mesma. De fato, os ganhosprincipais desta obra dita circunstancial de Mallarmé representamum ápice enquanto jogo do “simbólico”: colocar em seu lugar aficção como dado garantido, sublinhada em específico através dohumor e da ironia. O caráter efêmero da moda possibilitaria so-nhar a intemporalidade do livro.44

Do lado da moda efêmera favorecida pela freqüência com quea morte a visita, Walter Benjamin definiria esta túnica-écharpe deMallarmé, em sua “falsa aparência de presente” como umafantasmagoria mercadológica indicativa de suas perdidas origensarcaicas, de culto, que, com o desuso, leva-a a ser exibida em seunovo valor de troca, em sua forma residual, mercadoria para con-sumo de moda efêmera, sujeita a ser substituída por outra.. Interes-sante é a comparação do manuscrito, anterior à chegada da im-prensa, por Machado de Assis, a uma “túnica flutuante” (como umareferência arcaica, cujas origens remontam às túnicas gregas) quesó se fixaria (o que resulta em ilusória expectativa) com a impres-são.45 Outra analogia de flutuação efêmera estaria precisamenteentre o manuscrito e o leque: se ambos têm o valor de uso em seumanusear, o último passa ao valor de troca, já em suas séries (ospanfletários, os artísticos, os decorativos, etc) como fatias fragmen-tárias que se abrem isoladas umas das outras, já como signo deatração do sexo oposto, que toma a parte pelo todo. Quando istoacontece, passa de seu feitiço antigo ao erotismo publicitário, e de“terceira mão da mulher”, torna-se fetiche, voltando-se às trocaslucrativas industriais, como indica um artigo sobre os leques cujoautor se vê no afã do colecionador frustrado em recuperar as suasorigens perdidas:

44 Vincent Kaufmann, Le livre et sesadresses, p. 42

45 Machado de Assis, “O caso doRomualdo”, Obras Completas vol. II,org. Afrânio Coutinho, RJ: Aguilar, p.911.

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Aqui, confesso que tinha vontade de escrever umahistória de leque, em todas as suas formas, em todasas civilizações; mas confesso também que não sei nadaa este respeito. Conheço as ventarolas antigas, e assimas dos povos asiáticos; mas a bagagem é magra paraviagem tamanha; deixemos partir o trem, e fiquemosna estação, na Estação.46

Este periódico brasileiro – A Estação – poderia ser comparadoao La Dernière Mode de Mallarmé, não só por se dirigir a leitoras enão a leitores e, daí, ter exclusiva recepção feminina, mas tambémpor que seu conteúdo era o gosto da atualidade, as modas, em suaestética distraída, efêmera e frívola. Tinha, além disso, resenhassobre uma ou outra obra literária lançada, ou a publicação de fic-ção curta, como contos. Talhadas pelo figurino moderno das refor-mas industriais e do valor de troca capitalista, estas publicaçõesperiódicas que tinham como objetivo a “monetarização da idéia”não se dirigiam às mulheres por acaso. Indicavam, ao contrário,que a saída das mulheres às ruas, tanto como prostitutas (Baudelaireas considerava a quintessência da cidade moderna) objetificadasnas mercadorias, como também enquanto trabalhadoras, ou peçasda máquina do capital industrial, ou ainda mesmo como artistas,cantoras de ópera e donas de casa que abriam seus salões aomecenato das artes, demandavam, antes um olhar estético que seorientasse pelo movimento do consumo de um progressismo téc-nico nas reformas e modas, visando os mesmos fins do culto aoconsumo, do que pelos cultos de antigos símbolos patriarcais. Nestecaso, o olhar que conservava ainda os antigos cultos ficava relega-do ao campo masculino.

7. A estética do fragmento: o leque, forma residual do livro,ur-forma das revistas

Leque. Ter-se-á feito a seguinte experiência: quandose ama alguém, ou mesmo quando se está apenasintensamente ocupado com ele, encontra-se quase emtodo o livro seu retrato. E, aliás, ele aparece comoprotagonista e como antagonista. Nas narrativas,romances e novelas, ele comparece em metamorfosessempre novas. E disto se segue: a faculdade da fantasiaé o dom de interpolar no infinitamente pequeno,descobrir para cada intensidade, como extensiva, suanova plenitude comprimida, em suma tocar cadaimagem como se fosse a do leque fechado, que só nodesdobramento toma fôlego e, com a nova amplitude,apresenta os traços da pessoa amada em seu interior.47

O ato de abrir e fechar o leque, a partir da singularidade simbó-lica de uma só dobra proliferadora de múltiplos sentidos, ilustra,em seu modo de produção, a significação artística de unidade namultiplicidade alegórica nas dobras48 entre arte erudita e artesaniapopular, virtuosismo e utilitarismo, ornamento e funcionalismo, arteorgânica e industrial. Teoricamente, o leque se faz visível e inteligí-vel, legível e sensível, ostentando ele próprio, em sua reversibilidadedentro/fora, uma dobra entre o objeto e o sujeito e a idéia ou espí-rito que dele emana. Modo de ver e de ler, entre enunciado eenunciacão, de uma só vez prática e teoria, objeto como extensãodo sujeito (objéctil) ele encarna barrocamente o conceito de dobra

46 A Estação, Jornal Illustrado para aFamília. Editores ProprietáriosLombaerts & Comp., Agência Geralpara Portugal, Livraria Chardon:Porto, 1884. “Os nossos leques”(pseudônimo Nhonhô), in A Estação,n. 29, 31 de outubro de 1884.

47 Walter Benjamin, Rua de MãoÚnica, Rubens Rodrigo Torres Filho,Obras Escolhidas III, São Paulo, Ed.Brasiliense, 1997, p. 41.

48 Gilles Deleuze, A dobra Leibnitz eo barroco, SP: Papirus, 1998

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que desenha, remetendo à estrutura filosófica da mônada, segundoLeibniz.49 Como objeto oriental de uso feminino cujo valor simbó-lico se transforma no valor utilitário de troca durante a intensifica-ção da moda no século dezenove ocidental, ele é historicamentecontemporâneo da expansão capitalista com a revolução industri-al. Usado para alívio de calor durante o verão, analogamente aofolhetim dos jornais, nos inícios da reprodutibilidade técnica, de-sencadeia suas dobras episódicas e prolifera as suas séries enquan-to panfleto revolucionário, enquanto propaganda industrial de con-sumo, enquanto cartão postal ou mensageiro de recados. Maleávele rígido, move-se para frente e para trás no vaivém das mãos paraagitar o vento, e se distancia de seu propósito de uso (de abanar-sepor calor) ao se aproximar do gesto frívolo50 de coqueteria: distraí-do de sua função significante de economia doméstica, junto comas mantilhas que cobriam a cabeça, os biombos, os xales, as luvase as capas que protegiam do exterior, o leque passa modernamentea assumir o gesto erótico sedutor que anuncia a sua saída para arua: ao abrir-se, assinala inibição, esconde o rosto ou a intimidade.Contrariamente, ao fechar-se, mostra o interior, o rosto nu que seexpõe.

As analogias entre livro, folhetim, revistas e leque falam elo-qüentemente destas passagens de um erotismo doméstico a umerotismo de publicidade, a partir de suas economias simbólicas,no transitar dos modos de produção manufaturados e orgânicos,de primeira natureza, aos modos de produção industrializados einorgânicos, ou de segunda natureza. Como as folhas que se sol-tam dos galhos naturais de uma árvore genealógica, ou as fatiasdobradas no encadeamento do leque, as folhas do livro dantes en-corpado e encadernado, se soltam para as das revistas. Enquantoobjeto, o livro, como o leque, se desfolha pelas mãos e se destacapela domesticidade pré-industrial de suas folhas costuradas. Nosentido de leitura, no entanto, o leque tem suas folhas encurtadas esuas mensagens passam a ser codificadas nos gestos do sujeito queo manipula, perdendo em profundidade interior e ganhando emexterioridade superficial. Daí ser análogo ao fragmento, ao folhe-tim episódico, às séries fragmentárias das revistas. Como o folhe-tim, se faz mais desejado quanto mais enigmático em seus mistéri-os e formas de suspense, prenunciando o episódio seguinte assimcomo um rosto feminino que se esconde atrás de um leque, em seurecato oriental, pode atrair o desejo do olhar por entre as brechasvislumbradas ou adivinhadas através de suas dobras. O lequetrivializa a grande arte e inaugura a circunstância, como o folhe-tim, a crônica, o cartão postal, as revistas ilustradas.

Na passagem de mãos das economias simbólicas às capitalis-tas, o uso do leque enquanto um signo feminino de sedução equi-vale ao uso da bengala ou do charuto, objetos de uso masculinoque também perderam o seu significado doméstico de cavalheiris-mo originário. Segundo Jacques Derrida em “A poética do tabaco”,o fumo do tabaco se diferencia por constituir-se em símbolo dossímbolos masculinos, ou selar uma aliança masculina com a hu-manidade, cuja troca se economiza no limite do espaço de exclu-sividade dos homens de sexo masculino.51 Assim, se poderia dizerque em seu poema Chama e Fumo Bandeira dedica a sua lealdademasculina ao fumo, o que se contrasta à efemeridade feminina dachama de amor ardente, nas três estrofes aqui transcritas:

49 Gilles Deleuze, A dobra Leibnitz eo barroco, pp. 17-19.

50 Jacques Derrida, “La frivolitémême” in L’Archéologie du frivole,Paris: Galilée, 1990, p. 122: “Lafrivolité consiste à se payer desjetons. Elle naît avec le signe ouplutôt avec le signifiant qui, de neplus rien signifier, n’est plus umsignifiant. Le signifiant vide, vacant,inutile.C’est Condillac qui le dit.” “Afrivolidade consiste em se pagarfichas. Ela nasce com o signo, ouantes com o significante que, de nãosignificar mais nada, não é mais umsignificante. O significante vazio,vago, inútil. É Condillac que o diz.”Logo após: “Une philosophie dubesoin – celle de Condillac –organise tout son discours em vue dela décision: entre l’utile et le futile.”(p. 123): “Uma filosofia da necessi-dade – esta de Condillac – organizatodo o seu discurso em vista dadecisão: entre o útil e o fútil.”

51 Jacques Derrida, Dar (el) tiempoLa Moneda Falsa . Trad. CristinaPeretti, Barcelona, Buenos Aires,México, Paidós Ibérica, 1995.

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Chama e Fumo

Amor-chama, e depois, fumaça...Medita no que vais fazer:O fumo vem, a chama passa...

Gôzo cruel, ventura escassa,Dono do meu e do teu ser,Amor-chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! E, por desgraça,Queimado o que melhor houver,O fumo vem, a chama passa...

O leque, em contrapartida ao fumo, é signo de atração do sexooposto, para além do objeto artístico original cujo valor de uso setransforma, desde então, em valor de troca. O leque é chama, épuro apelo, é entrega ou abandono completo ao sentimento deprazer no sentido cuja raiz é livro ou livre, em francês: délivrer,livrer. Como a auto-referencialidade do poema sugere, lê-lo é dei-xar-se queimar pela ardência de seus versos, virar fumaça. Quantoao leque, a sua forma artística se prostitui ao entregar-se àefemeridade da oferta à venda e o histórico das suas origens ou seperde (vira fumaça), ou se transforma em item de colecionador. Porisso também, as modas femininas nascem e morrem como um li-vro que se abre e que se fecha, aproximando-se ao desfolhar supér-fluo e efêmero de revistas. Entre o tempo patriarcal do ócio antigo,cujos hábitos selavam laços masculinos com a humanidade nastrocas do fumo de tabaco, e o tempo do negócio moderno, com odesenvolvimento do hábito do cigarro industrial pelas mulheres,os papéis se invertem, no sentido em que as mulheres, saindo deseu âmbito doméstico, no período do auge da industrialização,enquanto operárias e consumidoras, vítimas do choque e colabo-radoras da máquina capitalista industrial que o produz, se viciamprimeiro na forma de contra-choque do tabaco mais apropriadaaos intervalos menores de entre-choques automatizados em que otempo de ócio diminui, descontínuo. Esta forma moderna, ao acom-panhar a eficiência temporal da fábrica, se encurta no cigarro, oucigarette.

Este valor de uso viciado confunde-se ao signo de troca femini-no ligando sexualmente o tabaco às mulheres fumantes, a partir daópera Carmen de Bizet. Produtoras e consumidoras, confundidasaos objetos sexuais, sua saída de casa e sua entrada simultânea parao tempo rápido da produção industrial na fabricação do tabaco re-gistra-se assim: “Expressões coquettes! / Todas fumando, da pontados dentes, / O cigarro.”52 Lê-se em João Cabral de Melo Neto:

52 Linda Hutcheon, “Where there’ssmoke there’s...”, in Opera, Desire,Desease, Death, Lincoln andLondon: University of NebraskaPress, 1996, pp. 161 e 183.

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A Fábrica de Tabacos

Para fábrica de tabacos,Fernando Sexto edificouo que mais parece um conventoQue fosse sem Regras e Prior.

Lá trabalharam as cigarreiras,quase nuas pelo calor,discutindo, freiras despidas,teologias de um certo amor.

Enquanto enrolavam cigarros,se trocavam jaculatórias,com palavras desse amor cruomitidos pelas retóricas.

Lá um tempo trabalhou Carmen,adensando mais a atmosferade sexo, de carne mulher,que isso tudo emanava dela.

Sobre o portal um anjo de pedra:pronta, na boca, uma trombeta.faria soá-la, se dizia,se um dia entrasse uma donzela.

Hoje, não há mais operárias.hoje em dia, é a Universidade.Tudo mudou, exceto o anjoque mudo ameaça ainda, debalde.53

Na invasão da casa pela rua, o entrelugar dentro/fora transicionalentre um patriarcalismo antigo e um capitalismo moderno transfor-ma o cavalheirismo antigo em truculência e a sedução femininatroca o leque pelo cigarro, em seu gesto de conquista mais atual,passando da mão à ponta dos dedos. Um quadro espanhol repre-sentativo da passagem da mulher à rua, pintado por FranciscoMasriera y Manovens (1842-1902) Jeune Fille avec cigarrette ouJeune Fille Reposant (Cason del Buon Retiro, Madri, 1894) encenauma moça repousando com as duas mãos ocupadas com gestos deócio contraditórios: com uma mão ela segura um leque e com aoutra, um cigarro.54 Esta imagem faz transitar a dobra dentro/forada mulher para a modernidade através de dois objetos incompatí-veis, ou signos eróticos disjuntivos: o leque, proteção do fora, ante-rior ao cigarro, vem de um tempo de elaboração de técnicas do-mésticas de conquista erótica social, enquanto o cigarro, em suaforma fálica, inorgânico, ao entrar no corpo orgânico, dobra-o ra-pidamente ao seu paladar padronizado destituindo-o de suaunicidade. Passa-se pois, de um hábito de linguagem gestual desedução ou “arma sutil e agilissima” da antiga “esgrima amorosa”(Fernando Ortiz) ou de um cetro com que um sujeito soberanoatraía o seu objeto, a um moderno e fálico vício sedutor que apro-xima a estética feminina da masculina.

53 João Cabral de Melo Neto, SevilhaAndando, Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1989, p. 49.

54 Michelle Perrot, Mulheres Públicas,trad. Roberto Leal Ferreira, SãoPaulo: Fundação Editora UNESP,1998, p. 44.

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8. Conclusão: leitura cúmplice, leitura distraída

Quizá me engañen la vejez y el temor, pero sospechoque la especie humana – la única – está por extinguirsey que la Biblioteca perdurará: iluminada, solitaria,infinita, perfectamente inmóvil, armada de volúmenespreciosos, inútil, incorruptible, secreta.55

A linguagem ao infinito que Blanchot observa em Borges proli-fera-se a partir do espaço da biblioteca. O ato da leitura (o espaço dabiblioteca) busca a ficção como objeto de desejo. Em “Pierre Menard,autor del Quijote” através do uso metafórico da “duplicidade” justa-põe-se uma realidade de autor a uma de ficção, que passa a existircom direitos próprios (dupla) independentemente de que sua relaçãocom ele faça supor um processo de leitura de uma escritura: assim aleitura do protagonista do século XX (que supõe sua ficção de séculoXX) supunha a leitura do original de D. Quixote de Cervantes. Tambémna ficção de Cortázar, por meio da busca de um “outro”, seu duplo,expande-se o “eu” na contraposição de dois níveis de realidade, umdeles irrompendo inesperadamente no outro, desarticulando a rotina,transformando-a em fantasia, aventura, ato de leitura. Este é o processode leitura de uma escritura em que o autor se anula em seu ponto zero.Por isso, o enigma deste duplo, a ser decifrado pelo leitor, coincide aoato de buscar na biblioteca, ambos escritores exigindo um leitor cúm-plice na tarefa criadora da escritura, onde leitor e escritor coincidiriamna experiência de leitura ficcional como se um fosse o duplo do ou-tro.56 Para Cortázar, enquanto o “lector-hembra” (leitor-fêmea) fica coma fachada e até com o trompe l’oeil, o “lector-cómplice” (leitor cúmpli-ce) busca e engrandece o mistério que o autor de um romance montaatravés do deciframento de suas pistas.57

A escritura parece coincidir à dobra do ato de leitura “hembra-cómplice” – termos residuais de estéticas de fim-de-século, remis-sivas à frivolidade feminina do leque e ao aprofundamento mascu-lino no livro, respectivamente ao que era considerado móvel,efêmero e fútil em relação ao imutável, ao permanente e ao útil –,cruzando modernamente necessidade e desejo em seus contínuosmovimentos de separação e união com o significante. Pode-se, pois,relacionar estes movimentos escriturais às entredobras de ficção eteoria, fundo e forma, metáfora e metonímia, espírito e matéria, nacadeia virtual livro, leque, folhetim e revistas. Como o movimentoantigo de abrir e fechar o leque, as pálpebras dos olhos ao se abri-rem e se fecharem ou até ao se “entrefecharem” na descrição dasedução em epígrafe de Clarice Lispector, como um ato de fumarde olhos entrefechados pela prostituta imitada pela narradora, noinício deste ensaio, descrevem uma mudança de um tempo de re-flexão para um outro tempo, “heterogêneo àquilo que reflete e tal-vez dê tempo para aquilo que se chama o pensamento.” Este vemsubstituindo a sedução do leque, com “a sorte de um instante, (...)de um piscar de olhos ou de um bater de pálpebra”.58

E se dantes, como Mallarmé nos recorda, havia a desvirginaçãodas páginas do livro com o corta-papel, hoje a leitura necessita demuita tesoura e cola virtuais para ligar citações, e citações de cita-ções, tratando-se de uma escritura que perde os direitos de propri-edade para o anonimato, fragmentando-se cada vez mais, numadisseminação de brancos.59 Ler e escrever, como recortar e colar,também se tornam, enfim, partes de uma mesma dobra que vai doinconsciente ao consciente60 cuja memória se junta e se recompõeno papel, esta dobra ou jogo de escritura que ao desejar, endereçao corpo ao objeto ausente assim como, com o espírito, abraça oobjeto presente, e se desdobra em desvãos61, nas asas do papel.

55 Jorge Luis Borges, “La Bibliotecade Babel” in Ficciones, Buenos Aires:Emecé, 1956.

56 Ana Luiza Andrade, “Uma leituracúmplice: a função do duplo em‘Meu Sósia’ de Gastão Cruls” inKentucky Romance Quarterly 28,1981, pp. 417-425.

57 Julio Cortázar, Rayuela, BuenosAires: Sudamerica, 7a. edición, 1968,pp. 453-454.

58 Aqui Derrida fala a respeito doexercício do pensamento nauniversidade, em período de “crise”,decadência ou renovação dainstituição, justamente quando existea provocação para se pensar em suamemória e seu futuro. In O Olho daUniversidade, p. 156.

59 Derrida fala da disseminação debrancos em Mallarmé, da série neve,cisne, papel, virgindade, que produzuma estrutura tropológica circulandoinfinitamente sobre ela mesma, coma própria dobra do branco enquantomarca e vazio. In La Dissémination,p. 290.

60 Jacques Derrida, “Freud e a cenada escritura” in A Escritura e aDiferença, SP: Perspectiva, Debates49, 1967, p. 179.

61 Clarice Lispector , Água Viva, Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.18: “E doidamente me apodero dosdesvãos de mim, meus desvarios mesufocam de tanta beleza.” Parece,como no livro inteiro, descreverenquanto cria os movimentos daescritura dobrada sobre si mesma.

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Estou dirigindo, há anos, duas revistas italianas sobre as cultu-ras de língua portuguesa. Os nomes indicam, por si mesmos, osobjetos investigados por elas: a primeira – e a mais antiga, vistoque já vai no vigésimo primeiro ano de idade – intitula-se Letteratured’America e trata das culturas hispano-americana, anglo-america-na e brasileira, com números monográficos saindo com cadênciatrimestral e com um quarto número, chamado Tuttamerica, em queum tema único, escolhido pelos redatores (o próximo, por exem-plo, vai estudar a importância da Bíblia nos diferentes âmbitos cul-turais americanos), é tratado a partir das várias perspectivas nacio-nais; a segunda revista, por contra, tem por título Studi Portoghesi eBrasiliani, é anual (acaba de sair o terceiro número) e analisa todasas culturas de língua portuguesa. Este imenso trabalho editorial tem,obviamente, o seu lado, por assim dizer, “manual” e obscuro (comoa leitura e a correção das provas), mas obriga-me também a refletire a redefinir continuamente o meu estatuto de estudioso italianodas literaturas lusófonas e, mais em geral, me impõe um trabalhoconstante de revisão da minha função e do meu lugar de interme-diário cultural.

O meu intuito é o de expor aqui, embora de modo ainda precá-rio e incompleto, as minhas (escassas) opiniões e as minhas (nume-rosas) dúvidas sobre a questão da mediação e sobre a prática deestudo e divulgação de textos e autores estrangeiros num contextocultural que os desconhece ou que os conhece de modo superfici-al e confuso – porque, afinal de contas, é este o meu trabalho diá-rio na sala de aula. É fatal, aliás, que eu me refira sobretudo aoensino e à difusão da cultura brasileira na Itália, visto que é nesteâmbito que eu devo enfrentar as dificuldades maiores (o exotismoeuropeu em relação ao Brasil, com efeito, mudou talvez na suaforma exterior, mas não, com certeza, no seu caráter “pré-conceituoso”).

Nesta perspectiva, é bom precisar de modo prévio que eu con-tinuo analisando a cultura brasileira do meu ponto de vista de ita-liano e, ao mesmo tempo, tento explicar a realidade brasileira, paraos meus alunos e para os leitores das revistas, me colocando doponto de vista de um brasileiro. Acho, com efeito, que o meu “lu-gar” é justamente esta margem ambígua, esta passagem na qualestou obrigado a me deter, sem ir além – órfão de história (daminha história) e, por isso, sem passaporte –, mas também sem mefechar no aquém, sem me enclausurar numa hipotética centralidadeda cultura européia, o que me levaria a interpretar e divulgar odiscurso cultural brasileiro numa perspectiva simplificadora eesquemática, marcada, mais uma vez, pelo preconceito.

O espaço cultural em que eu vivo e opero pode, de fato, serencarado como uma dimensão não medível, ou melhor, pode serdefinido só pela ausência de definições, se determinando apenasnos limites, se materializando nas bordas entre espaços diferentes.E aquilo que eu quero é, justamente, continuar suspenso entre o

MEDIAÇÕES E MEDIDAS:O ENTRE-LUGAR DA INTERPRETAÇÃO

Ettore Finazzi-AgròUniversidade de Roma “La Sapienza”

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aqui e o ali, baloiçando entre os lugares, na liberdade infinita e nainfinita limitação desse entremeio que se localiza – sem se situar,isto é, sem nunca se constituir em “sítio” – entre duas geografiasintelectuais e artísticas, entre duas cronologias histórico-culturais,apresentando-se, às vezes, como amplamente heterogêneas e sen-do, ao mesmo tempo, profundamente interligadas.

* * *

Quando me ocorre de pensar no meu ofício, isto é, na questãoda mediação cultural e nas minhas experiências neste âmbito, meacode às vezes o título de um filme inglês já velho (saiu em 71), deJoseph Losey, tirado de um romance de Leslie Poles Hartley e adap-tado para o cinema (mediado, então, por sua vez) por Harold Pinter.O título original dessa belíssima obra, que o distribuidor italianotraduziu, ou melhor, substituiu com Mensageiro de amor, era naverdade The Go-between, termo que poderíamos traduzir com oportuguês “intermediário”, perdendo todavia algo desse movimen-to, desse “ir-entre” que a palavra inglesa encerra e indica.

O tema tratado no filme de Losey parece, aliás, bastante lon-gínquo daquele que se poderia supor ser o assunto da minha refle-xão – visto que, afinal de contas, eu deveria sobretudo estar pen-sando na minha prática de divulgação de literatura brasileira numpaís europeu como a Itália. Mas achei sempre que fosse importan-te não deixar cair logo a sugestão escondida nessa associação sú-bita entre uma imagem (“o ir-entre”) e uma função (a mediaçãocultural), sem pelo menos verificar se existe um modo de tornarprodutiva esta conexão. De fato, The Go-between conta a históriade um adolescente que vai passar o verão do ano de 1900 na man-são de um seu amigo do college. Ali, sem ter plena consciênciadisso, ele se torna aos poucos o mensageiro dos recados amorosostrocados entre uma jovem aristocrática e um feitor da fazenda.Quando o namoro é descoberto, o camponês é mandado emboracom desdouro e também o jovem é afastado da vila. Claro que ofilme denuncia, sobretudo, as rígidas convenções éticas e sociaisda época vitoriana e a hipocrisia das suas regras formais, mas atrásdesse retrato negativo é possível descobrir, a meu ver, alguma coi-sa a mais.

Aquilo que eu acho sensível no filme, é de fato a atmosfera de“trânsito”, de “passagem” que nele respiramos: em primeiro lugar,a história é suspensa entre dois planos temporais, entre o passadoe o presente (os protagonistas, já velhos, relembram e contam parao público aquele verão dramático); em segundo lugar, é significati-vo o ano em que tudo acontece – ano suspenso entre dois séculos,ano marcando uma transição entre duas épocas; em terceiro lugar,o jovem protagonista se encontra numa idade intermédia (o ro-mance de Hartley, intitulado, também ele, The Go-between foi tra-duzido, com efeito, para o italiano com o título A idade incerta –confirmando, entre outras coisas, uma certa dificuldade em en-contrar uma tradução fiel do substantivo inglês); ele se situa, então,entre a infância e a adolescência. Se tudo isso tem um sentido, ofilme carrega, a meu ver, significados mais amplos, não ligadossimplesmente a uma crítica dos costumes vitorianos, mas à repre-sentação de uma situação liminar, ondeante entre dois tempos edois espaços. E assim a imagem apontada pelo título se identifica ese confunde com a função: The Go-between seria o sinal concreto,o índice lingüístico de uma situação liminar que une e separa cul-turas diferentes, entre as quais se coloca ou “vai” um personagem“incerto”, que vive até o fim esta condição mediana e de media-ção.

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Nesta perspectiva, acho bastante evidente a razão pela qual,refletindo sobre o meu papel de divulgador da cultura brasileira naItália, me lembro às vezes do filme de Losey e do seu título: porquetambém eu (mesmo não sendo com certeza um adolescente) soulevado a me identificar inconsciamente com aquele que, de modohesitante, incerto, “vai-entre”. Mediar entre culturas, com efeito,me parece uma atividade errática que, colocando-se num centrohipotético, na verdade, não tem centro ou descobre a vacuidadede qualquer noção de “centro”; uma função, aliás, que, se identifi-cando num limite, numa fronteira, desconhece todavia as frontei-ras – uma prática sem garantias, então, impedindo a equidistância;um trabalho, afinal, perenemente suspenso entre a proximidade eo afastamento, entre o rigor e a liberdade.

Escrevendo isso, obviamente, me dou conta de que esta incer-teza poderia ser a mesma que afeta o trabalho do tradutor, mas euacho justamente que mediar entre culturas e traduzir um texto po-dem ser encaradas como experiências afins. Elas exigem de fato,por parte de quem as pratica, por um lado, uma fidelidade absolu-ta ao objeto, pelo outro, uma capacidade subjetiva de colocar,reinventando-o, esse mesmo objeto num contexto (lingüístico oucultural) que é fatalmente “outro”. Em ambos os casos, na traduçãoe na mediação, a gente tem a ver com atividades altamente arrisca-das, obrigando aquele que “vai-entre” os textos (e entre os discur-sos, e entre as instâncias…) a ficar numa condição suspeita esuspensa, numa espécie de vazio que nada pode preeencher.

Esta situação duvidosa depende, evidentemente, de uma ambi-güidade fundamental e de fundo que é própria da mediação/tradu-ção, visto que se existem normas a serem respeitadas, existe tam-bém uma inevitável latência do sentido, uma margem de indecisãoque nenhuma norma pode ajudar a apagar por completo. No casoda tradução, tudo isso é bastante claro: as palavras são, obviamen-te, refratárias a uma transcodificação completa, a um espelhamentosem restos – e não só no caso da linguagem literária, mas tambémnaquele de outras linguagens especializadas (razão pela qual, diga-se de passagem, todas as tentativas de uma tradução automáticasão destinadas a naufragar, freqüentemente, no grotesco). Tambémno caso da divulgação de uma cultura num contexto outro existe,todavia, o mesmo perigo que se liga, mais uma vez, a uma impos-sibilidade de fazer passar para uma situação cultural diferente ele-mentos próprios de um espaço, de um tempo, de uma sociedadepeculiares. Posso dar um exemplo banal, que ocupa os dois cam-pos (o lingüístico e o cultural), me referindo a uma palavra comosertão: palavra de fato intraduzível (pelo menos nas línguas que euconheço) e que define também uma dimensão sócio-cultural, his-tórico-geográfica, além de literária, peculiar, dificilmente compre-ensível para um europeu. Claro que a gente pode chegar a dar umaidéia bastante completa daquilo que sertão realmente significa, mastudo aquilo que nessa idéia é implicado ou implícito, fica inevita-velmente mergulhado numa latência de sentido que nenhuma nor-ma ou código podem reduzir a um grau zero da diferença, a umacompleta indiferença ou identidade de significado. E isso sem falarem palavras que estão incluídas naquela palavra-guardachuva ounas imagens que a figura do “sertão”, por assim dizer, constela, taiscomo seca, vereda, jagunço, retirante, etc, cada uma das quaisexpõe ao mesmo perigo de inconcludência ou de incompreensão.

Transvasar um elemento tão importante, na sua latência (que éprópria, aliás, também da cultura brasileira), para um significadopontual numa outra língua se apresenta, por isso, como uma tare-fa, não apenas difícil e arriscada, mas impossível. Tanto assim que,

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se for preciso instituir uma analogia “científica” para o trabalho demediação, eu diria que esse ir-entre culturas diferentes, mais que auma operação química, remeteria para uma espécie de opusalchemycum, isto é, para uma tentativa de transmutação mágicada essência originária para uma essência diferente. E a nossa pro-cura, a procura de uma tradução absoluta e/ou de uma mediaçãocompleta, se assemelharia, nesse sentido, à busca da pedra filosofal:daquela Rebis, afinal, que sendo uma “coisa dupla”, permitiriahabitar em duas dimensões (em duas línguas, em duas culturas) aomesmo tempo, indo ou circulando entre elas sem se aperceber denenhuma diferença. Busca absurda, obviamente, para o pesquisa-dor moderno, mas busca que nos confirma, porém, como a medi-ação pura ou absoluta, metaforizada na res bis, seja uma quêteimpossível, excluindo desde o início o conseguimento do seu ob-jeto.

A conclusão prévia e incontornável, de fato, é que entre doiscontextos tão diversos (como, no meu caso, o italiano e o brasilei-ro) permanece sempre uma margem de diferença que pode serreduzida mas nunca apagada, que os discursos/percursos históri-co-culturais podem ser, com certeza, confrontados, registrando ospossíveis lugares de encontro, as encruzilhadas eventuais entre sen-tidos diferentes, mas sem que isso permita chegar a uma anulaçãodas (respectivas) peculiaridades. Aquilo que eu quero dizer é que,se podemos talvez medir a distância que se abre e se oculta namediação, isto é, se podemos recusar, na prática, uma interpreta-ção que seja infiel e arbitrária; se, mais em particular, podemos (eé este, com efeito, um dos trabalhos mais difíceis que eu tenho queenfrentar diariamente no contexto italiano) se podemos e devemoscensurar todo recurso ao lugar comum, a um exotismo enraizado eteimoso tentando simplificar a complexidade brasileira, nunca po-deremos, porém, fazer com que o hiato existente entre as duasculturas (e as duas histórias, as duas geografias, as duas realidadessociais…) chegue a desaparecer por completo. A diferença, afinal,pode ser reduzida a uma pequena fresta – e seria esse o alvo dumaboa mediação cultural – mas sem poder fechar totalmente a portada (recíproca) incompreensão, sem poder suturar por completo apequena racha separando textos e contextos fatalmente diferentes.

Voltando à tradução para dar um exemplo desta “impossibili-dade”, eu poderia citar o caso de uma grande tradutor que foi,aliás, um importante mediador entre a cultura brasileira e a italia-na. Refiro-me, evidentemente a Edoardo Bizzarri e às suas tradu-ções das obras de Guimarães Rosa: sabemos que o seu foi um tra-balho paciente e erudito de transcodificação do texto rosiano esabemos, também, da cooperação que ele aviou, por correspon-dência, com o próprio autor para uma melhor compreensão e tra-dução da escrita de Rosa. No livro reunindo as cartas trocadasentre os dois1, temos um testemunho concreto das dificuldadesenfrentadas na prática da tradução e da mediação cultural (em queentra também uma figura freqüentemente ignorada como o editorou o seu representante, tentando – e conseguindo, às vezes – im-por o seu ponto de vista). O escritor mineiro, como se sabe, ficouencantado com a tradução de Bizzarri e eu não posso não concor-dar com ele sobre o valor e a importância da empreitada. Aquiloque eu devo, apesar de tudo, anotar é que também esse trabalho“dificultoso”, “difícil: como burro no arenoso”, não conseguiu to-davia apagar as marcas da diferença. E isso, a partir do título queaparece mutilado de um dos seus elementos fundamentais: isto é,se Bizzarri fez questão de manter Grande Sertão (é isso já é algumacoisa, se pensarmos nas traduções inglesa e francesa da obra2),

1 João Guimarães Rosa, Correspon-dência com o tradutor italiano, SãoPaulo: Instituto Cultural Italo-Brasileiro, 1972.

2 Como todos sabem, a traduçãoinglesa saiu com o título: The Devilto Pay in the Blacklands [New York:Knopf, 1963]. A tradução francesafoi publicada sob o título: Diadorim(“Le diable dans la rue, au milieu dutourbillon”) [Paris: Albin Michel,1965].

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nada pôde fazer para guardar os dois pontos e uma palavra aindamais inexplicável para o público italiano como Veredas (o títulocompleto foi, de fato, arriscado, que eu saiba, só na tradução espa-nhola de Angel Crespo: Grande Sertón: Veredas). Mas, para alémdisso, no corpo da tradução aparecem com freqüência interpreta-ções arbitrárias do texto originário: uma das últimas em que topeime deu um verdadeiro susto, visto que é um dos elementos sobreos quais apoiei a minha interpretação do romance rosiano.3 Defato, a pergunta inicial e decisiva em volta da qual se enrosca ecresce a escrita romanesca, ou seja, “O diabo existe e não existe?”,aparece, na tradução italiana, na forma disjuntiva mais tradicionale banalizante: “Il diavolo esiste o non esiste?”4, – escolha que, sejadito de passagem, confirmou a minha idéia sobre os perigos implí-citos no papel do Go-between e me obrigou a dar uma aula sobre“as belas infiéis”, explicando aos meus alunos o caráter fatalmentetraiçoeiro de qualquer tradução.

O caso de Bizzarri, de fato, poderia nos levar a algumas consi-derações sobre o “lugar impossível” do intermediário, daquele,enfim, que se colocando num limite é, todavia, obrigado a desco-nhecer os limites ou, pelo menos, a aboli-los no mesmo ato comque os reafirma. Acho, nesse sentido, que a imagem mais apropri-ada da impossibilidade duma tradução/mediação perfeita e semresíduos esteja dobrada exatamente nas edições bilíngües, isto é,no uso do texto bifronte: pôr lado a lado o texto original e a suatradução significa, de fato, evidenciar necessariamente aquele bran-co, aquele vazio que une e separa as duas versões (e os dois tem-pos, e os dois espaços ocupados por elas) – abismo que não podeser colmatado mas que o sentido, porém, deve atravessar para sereencontrar fatalmente outro, renovado, re-escrito na página su-cessiva. O agente desta passagem através, desta travessia dos sig-nos se identifica só nesse trabalho que é ao mesmo tempo “hermé-tico” e “hermenêutico”, ou seja, etimologicamente, nessa práticapatrocinada pela figura de Hermes/Mercúrio: o deus das passagens,aquele que guia e desvia, o protetor das estradas cultuado, justa-mente, na herma, na estátua bifronte colocada nas encruzilhadas.Figura, enfim, ilocável, ambígua, que faz as ligações entre duasdimensões sem se situar em lugar nenhum, consistindo apenas nainconsistência do seu teimoso “ir-entre”.

Hermes, então, como presença numinosa à qual podemos fi-nalmente ancorar o sentido implícito na ação do intermediário, doGo-between, sabendo, porém, de antemão que esse deus não tempropriamente lugar mas se localiza apenas num entremeio, no es-paço mediano que se abre no confronto/relação entre forrmas cul-turais heterogenêneas, entre dimensões aparentemente incompa-ráveis. Como esse deus, de fato, também o mediador é destinado anão ter nunca um lugar próprio ou fixo, a não ter nunca uma pátriamas a se colocar, isso sim, entre as pátrias, na fronteira onde senti-dos diferentes se enfrentam e/ou se misturam. Espaço-tempo incer-to e inconcludente em que a verdade, porém, às vezes se manifestana sua precária evidência, na sua opaca luminosidade, na sua plu-ral coerência, levando a nos interrogar sobre um aspecto que euacho fundamental no papel do intermediário e que eu não saberiadefinir senão como o seu lado “ético”.

De fato, são dois os atributos que eu conferiria com certeza ao“bom intermediário”, ambos encerrando uma conotação de ordemmoral: o respeito e o pudor. Quanto ao primeiro, acho evidenteque qualquer mediador deve ter essa capacidade de olhar atrás e,ao mesmo tempo, de re-ver (é este, como se sabe, o significado doverbo latino respiciere) as culturas que ele põe em contato ou em

3 Ettore Finazzi-Agrò, Um lugar dotamanho do mundo (Tempos eespaços da ficção em João Guima-rães Rosa), Belo Horizonte: Ed. daUFMG, 2001.

4 João Guimarães Rosa, GrandeSertão, 3ª ed. Milano: Feltrinelli,1986, p. 11. Antes da tradução doromance (cuja primeira edição saiuem 1970), Bizzarri já tinha publicadoa sua versão de Corpo de Baile(Corpo di ballo, Milano: Feltrinelli,1965).

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diálogo. O respeito é, nesse sentido, aquilo que se poderia aindadefinir com o termo resguardo5, isto é, um vigiar obstinado, umtomar continuamente “sob guarda” elementos que o uso incessan-te, o hábito de olhar em superfície ou do interior da sua própriacultura (da sua própria pátria) deixaria fatalmente escapar, sem in-terrogar o seu significado mais profundo que se esconde justamen-te no seu aspeto “trivial”. Um trabalho, então, que poderia ser assi-milado ao do guetteur barthesiano, ou seja, de quem – ainda comoHermes –, se coloca na encruzilhada entre os discursos, “en positiontriviale par rapport à la pureté des doctrines (trivialis, c’est l’attributétymologique de la prostituée qui attend à l’intersection de troisvois)”.6 A “ética”, como se vê, não deve ter necessariamente umconteúdo aceite pela moral dominante, pela norma vigente, masse referir, por contra, a um ethos, a uma tarefa a ser cumprida comamor e teimosia, mesmo fora das regras, numa corajosa anomia,numa arriscada atopia. Só assim, de fato, poderemos entender comoo resguardo, o respeito que devemos aos discursos ou aos textosseja contrabalançado pelo olhar, pela atenção, pela espera obsti-nada que eles, os discursos e os textos, reservam aos seushermeneutas: respeitar a cultura outra que a gente deve interpretare divulgar, significa não apenas ver ou olhar mas ser também vistose pré-vistos por ela, já que cada discurso tem respeito para quem orespeita, é “trivial” com quem sabe “trivializar” os seus elementosformais ou de conteúdo, ocultados debaixo da superfície ou torna-dos insignificantes pela inércia do olhar.

Quanto ao pudor, enfim, creio que o objetivo de um pacientetrabalho de mediação é também o de saber medir as distâncias e,sobretudo, o de manter, de saber guardar a mesura, no sentido queos antigos trovadores atribuíam a esta palavra, isto é, o conheci-mento e o respeito daquilo que pode ser dito ou feito em certascircunstâncias, sem exceder as fronteiras, móveis porém sagradas,correndo entre instâncias heterogêneas. O mediador, então, não éapenas aquele que medeia mas é também aquele que mede asdiferenças, ficando na sombra do seu ambíguo “dever-ser” – devo-tando-se, por um lado, a uma perigosa anomia, mas resguardando,pelo outro, o seu penoso, quanto necessário, anonimato.

Só assim, a meu ver, só repensando sem fim o seu estatuto “im-possível” que baloiça entre a fidelidade e a traição, só praticando onão-lugar que se abre entre lugares diversos, só habitando compudor amoral a distância, só ficando suspenso perto do “limite”entre as culturas (o pudor, de fato, é sobretudo uma epokhé, umasuspensão do juízo) é que o Go-between vai conseguir talvez des-cobrir a proximidade entre elas, a sua escondida capacidade defalar – de falar-entre, obviamente; de nos dizer o segredo que estáinter-dito em qualquer mediação e que apenas o nosso incansável“ir-entre” pode, eventualmente, nos permitir de enxergar e de tor-nar escandalosamente evidente.

Roma, julho de 2002.

5 Sobre esses dois termos, cf. JeanStarobinski, L’Œil vivant. Paris:Gallimard, 1961.

6 Roland Barthes, Leçon, Paris: Seuil,1978, p. 26.

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Desde el contexto actual, sería imposible emprender unareflexión productiva sobre la función de la cultura y particularmen-te sobre el papel mediador de las revistas literarias y culturales deAmérica Latina sin atender a dos ejes principales: el primero, tieneque ver con la larga tradición continental, que reserva a la prensaperiódica y luego a las revistas, tanto académicas comoindependientes, una función principal en el diseño de las culturasnacionales y transnacionales, y en el asentamiento de las basesideológicas y culturales que conforman la noción de ciudadanía y,más ampliamente, regulan el funcionamiento de la sociedad civil.1

En segundo lugar, sería imposible no reconocer los múltiples ycomplejos procesos de resignificación cultural que están teniendolugar ante nuestros ojos en el contexto de la globalización, y quedesde hace décadas están modificando sustancialmente el campocultural.

Respecto al primer punto, ya ha sido exhaustivamente analizadoel papel que jugaron, en las distintas épocas, revistas que impulsaronno solamente la cristalización de nuevas formas de subjetividadcolectiva sino la representación de nuevos actores sociales quesurgían a la escena social tratando de definir no sólo una voz através de la cual expresar sus perspectivas y demandas, sino inten-tando al mismo tiempo crear un público que funcionara como sis-tema de control y caja de resonancia de las nuevas agendas. Paracitar sólo algunos ejemplos, en el siglo XIX, O Jornal das Senhoras,creado por la argentina Juana Manso en Rio de Janeiro, es unaempresa transnacionalizada de temprano feminismo americano quenuclea, como alternativa a los proyectos estatales de homo-geneización ciudadana y patriarcalismo socio-cultural, a un sectorque reclamaba nuevas formas de representatividad política yrepresentación simbólica. En el siglo XX, la cubana revista de avance(1927-1930) o Amauta, (publicada “en tres actos” entre 1926 y1930) en el Perú, son órganos fundamentales en la diseminación yfertilización del pensamiento marxista en América Latina y en laredefinición de la relación entre identidades colectivas y gestiónestatal. La famosa Revista de Antropofagia (cuyos 26 números sepublican en dos “denticiones”, entre mayo de 1928 y agosto delsiguiente año) marca a su vez, en el Brasil, un momento fundamen-tal en la búsqueda de una comprensión productiva de las culturasnacionales en América Latina y su relación con los proyectosmodernizadores y occidentalistas a nivel continental. Finalmente,para el análisis de la cultura actual, situada en la encrucijada creadapor el deterioro de la cultura letrada, la globalización y las políti-cas culturales del neoliberalismo, son imprescindibles los aportesde revistas como Punto de Vista y Revista de Crítica Cultural (surgidasen 1978 y 1990, respectivamente), que ofrecen lecturas disparespero convergentes de las problemáticas regionales y de su diálogocon vertientes diversas del pensamiento crítico-cultural a nivel in-ternacional.

REVISTAS CULTURALES Y MEDIACIÓNLETRADA EN AMÉRICA LATINA

Mabel MorañaUniversity of Pittsburgh;

Directora de Publicaciones, Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana

1 Un buen ejemplo de la trayectoriay función de las revistas en AméricaLatina puede verse en el libroeditado por Saúl Sosnowski, Lacultura de un siglo: América Latinaen sus revistas, Madrid, BuenosAires: Alianza Editorial S.A., 1999.

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Como instrumento de mediación cultural (que actúa en la zonade contacto entre políticas culturales hegemónicas y proyectos al-ternativos, entre creación artística y grupos receptores, entre el sectorintelectual o académico y el lector que es introducido al productocultural a través de la interpretación o la selección que lapublicación le presenta), la revista es casi siempre una empresaeducativa – política y pedagógica – aunque más no sea por lasmaneras en que organiza y filtra los relatos de identidad y traza losvínculos ente el campo cultural y sus afueras (regionales, nacionales,internacionales). Es, asimismo, un vehículo del gusto de determi-nados sectores sociales o intelectuales, que buscan proponerlo,difundirlo, legitimarlo, a través de diversas operacionesconceptuales, y de diferentes apuestas estético-ideológicas. Ycuando me refiero al gusto quiero abarcar a todas las selecciones,elecciones y preferencias – así como a las exclusiones de ciertasformas de producción cultural – que marcan una determinadaadscripción a la dinámica cultural en su totalidad, es decir, al siste-ma dominante de valores, ordenamiento social y proyectos políti-cos que forman el entorno al que la práctica cultural inevitablementese refiere. Las polarizaciones entre “alta” cultura y cultura popularno son ajenas, por ejemplo, a ese establecimiento del gusto, quedepende de la compleja red de producción, reproducción y con-sumo de mercancías culturales, en las distintas épocas y lugares, yde los valores que esos productos descalifican o consagran. Almismo tiempo, la mediación letrada que la revista asume estádirectamente inmersa en la totalidad de la institucionalidad social,o sea interactúa y depende, en distintos grados y formas, de laspolíticas culturales dominantes, ya sea para confirmarlas y ayudara su implementación, ya sea para contrarrestarlas con una nuevavisión de los términos en que se define el protagonismo cultural, ydel reconocimiento que merecen sus reclamos de legitimidad polí-tica y social.

Encabalgada así entre la institucionalidad cultural, lasimposiciones y lógicas internas del mercado cultural, y la definiciónde sus propias agendas referidas a la representación y administraciónde bienes simbólicos, la revista es una pieza fundamental en elprocesamiento y divulgación de mensajes, la interconexión desectores sociales y la canalización de nuevos proyectos que se venobligados a negociar constantemente su lugar en la esfera pública.

Por la revista circula y se recicla la tradición, al pasar por laprueba de nuevos públicos, nuevas lecturas, nuevas demandas. Através de la revista se producen rearticulaciones del archivo de lacultura burguesa, y se construyen experiencias de recepción queexploran las audiencias y tratan de capitalizar o dirigir sus intereses.También a través de la revista se desafían procesos y políticas,interpretaciones y programas, proyectos y dinámicas. Se inventano se ignoran fenómenos sociales, políticos o culturales, o seinvisibilizan las vinculaciones siempre complejas pero no siempreevidentes entre esos niveles. O sea, la revista es una pieza centraltanto en la reproductibilidad técnica de relatos, programas y dis-cursos, como en el fortalecimiento o debilitamiento de suauratización. A través de esta forma particular de mediación, enque el crítico es la pieza intermedia entre el producto de arte y surecepción, y el que trata de gestionar los impactos de la mercancíasimbólica y regular su inserción en el imaginario colectivo, las zo-nas resistentes a la letra (la oralidad, las formas vastas y variadas dela cultura popular, los nuevos productos culturales para los que noexiste aún una retórica interpretativa formalizada) enfrentan con lainstitucionalidad letrada sus más diversos estatutos, apoyos y re-

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clamos, disputando zonas aunque sea marginales – con frecuenciade fuerte potencialidad cuestionadora y contracultural – del espaciopúblico.

Si la representación, tanto simbólica como política, es ya uncampo de batalla por la hegemonía de los discursos, el mercadotraduce esas tensiones a niveles materiales que decretan lacontinuidad o desaparición de las publicaciones que compitenpor el consumidor cultural. Es indudable que los procesos deglobalización han acentuado notoriamente estos fenómenos,complicándolos en la medida en que agudizan desafíos que lamodernidad sólo insinuara en la primera mitad del siglo XX, endistintos grados, en las diversas partes del continente. Para empezar,la globalización necesita lenguages capaces de crear puentesculturales y facilitar la traductibilidad de códigos y parámetrosvalorativos.2 Junto a la variada gama de lenguages y soportesvisuales, electrónicos, y sígnicos, las lenguas se sitúan en unacompetencia no sólo enfrentada a las interacciones multimediáticas,sino también colocadas ante nuevos conflictos y luchas de poder.3

Sería ingenuo pensar que la simultaneidad de tiempos y de espaciosque la revolución electrónica ha creado a nivel planetario creasolamente flujos de integración y de intercambio que democratizan,sin otras consecuencias, el espacio cultural transnacionalizado. Másbien, resulta imprescindible enfocar la realidad de nuevas oreforzadas hegemonías que atraviesan el campo cultural globalizadoen un impulso por capitalizar los procesos de resignificacióndiscursiva y gestionar las dinámicas de hibridación que sedesarrollan en distintos contextos.4

En este sentido, quiero destacar solamente la refuncionalizaciónque se registra en la relación centro y periferia, que en algunosaspectos podemos hacer equivaler al dualismo ‘moderno’ Norte/Sur, pero que se duplica también dentro de las regiones, a nivelnacional, entre áreas urbanas y rurales, entre grupos étnicos,géneros, sectores políticos, etc. Me refiero a la presión que ejercenen cualquiera de esos terrenos fuerzas hegemónicas en el afán pormonopolizar la representación apelando a la existencia o a laformación de un público universal, capaz de recibir y aceptarmensajes o mediaciones manufacturados desde posiciones de po-der a partir de las cuales los discursos monopólicos intentan reducir,negar o cooptar la diferencia, que es esencial a la comunicacióncultural.5

En el caso particular de las revistas literarias o culturales que seproducen en Estados Unidos, por ejemplo, las luchas por elpredominio linguístico se conectan directamente no sólo con elestado actual de lo que tradicionalmente se conociera como “elhispanismo” o los estudios luso-brasileños en relación al amplioespacio del latinaomericanismo (entendido éste como la arena enla que se dirimen las luchas representacionales e interpretativasque tienen como objeto a la totalidad de América Latina). La batallapor el predominio lingüístico se vincula también a la competenciapor el mercado de las lenguas dentro de la estructura socio-culturaly particularmente académica, a distintos niveles. Del complejo pro-blema que esta competencia apareja, que se relaciona a temas comolos de la traductibilidad cultural, la apropiación de la otredad y elestatuto epistemológico desde el cual aprehender y “administrar”la diferencia cultural, quiero rescatar solamente la problemática delo local, no sólo en términos geoculturales, sino también en térmi-nos simbólicos. Me refiero, entonces, a las localidades o formas delocalización (o de co-locación) de los discursos y de las mediacionesa través de las cuales estos discursos se diseminan socialmente,institucionalmente, comercialmente, en distintos contextos.

2 Gerardo Mosquera indica que “laglobalización necesita lenguages,instituciones, yusos internacionalesque hagan posible la comunicacióna escala planetaria”; citado porGeorge Yúdice, “La reconfiguraciónde políticas culturales y mercadosculturales en los noventa y siglo XXIen América Latina”, RevistaIberoamericana, número especial:Mercado, editoriales y difusión dediscursos culturales en AméricaLatina, Maria Julia Daroqui yEleonora Cróquer, eds., LXVII, 197(Octubre-Diciembre 2001), p. 640.

3 Sobre las modificaciones de lacultura del libro y los nuevosproblemas de la representaciónliteraria, ver Giselle Beigelman, Olivro depois do livro, 1999 (http://desvirtual.com/giselle/).

4 Sobre algunos de los desafíos queenfrentan las revistaslatinoamericanas o sobre AméricaLatina en Estados Unidos, ver AndrésAvellaneda, “Desde las entrañas:Revistas de y sobre Latinoamérica enlos Estados Unidos”, en SaúlSosnowski, ed., La cultura de unsiglo: América Latina en sus revistas,op. cit, pp. 549-566.

5 Yúdice ha hablado de la relaciónlocal/global respecto a estosproblemas, y de la necesidad de“una nueva división internacionaldel trabajo cultural”. Ver “Lareconfiguración de políticasculturales y mercados culturales enlos noventa y siglo XXI”, p. 640.

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Evidentemente, la globalización crea la necesidad de unareinserción de lo local en el nivel de lo transnacional, obligando almismo tiempo a la redefinción de agendas locales, regionales,sectoriales, etc, capaces de empujar productivamente los flujos ace-lerados y homogeneizantes de la superintegración planetaria. Peropor otro lado, la reivindicación de lo local, que a muchos niveles,como George Yúdice ha analizado, asegura rentabilidad a los dis-cursos porque introduce la diferencia como una variante (comouna mercancía) que estimula el consumo de bienes simbólicos,esa misma reivindicación corre el peligro de ser absorbida dentrode los modelos de exotización que administra la lógica del merca-do cultural, perdiendo entonces fuerza, autenticidad, capacidadcontracultural, es decir, potencialidad para desafiar proyectos omodelos hegemónicos.6 En este sentido, el dilema planteado porNelly Richard, “Cómo intersectar Latinoamérica con ellatinoamericanismo?” sigue teniendo la mayor vigencia, porquenos enfrenta con los compromisos político-ideológicos que tenemosque asumir como mediadores de la cultura latinaomericana y delos conflictos sociales que ella re-presenta simbólicamente.7 Quéco-locación adquieren entonces los discursos culturales que lasrevistas diseminan, proponen, implementan? Y al mismo tiempo,cómo regular la función que el locus de enunciación está llamadoa tener en los intercambios ideológico-culturales en el contexto dela globalidad? Cómo construir una territorialidad cultural para Amé-rica Latina que sea específica sin ser cerrada y autoreferida, queadmita flujos culturales y migraciones discursivas sin convertirseen una tierra de nadie, que sea nuevamente política sin ser sectaria,ni conservadora, ni fundamentalista? Que sea dialógica y hastapolifónica sin convertirse en un campo babélico donde Calibánsólo puede seguir balbuceando en la lengua del amo? Quereconozca y sea capaz de integrar los flujos de lo latinoamericanohacia otras inserciones geoculturales y la incorporación de otrasculturas en la propia sin que ésta se sienta necesariamente degluti-da, desnaturalizada, recolonizada?

Creo que las revistas, tanto por su alcance y características deobjetos culturales, como por los protocolos de lectura que proponeny el público que son capaces de convocar, tienen un papel funda-mental que jugar en el proceso de definir, delimitar y defender esaterritorialidad. Para mencionar sólo algunos de los desafíos a quedebe responder la revista cultural en la actualidad, podemosreferirnos a los siguientes:

a) demandas del multiculturalismo, no ya en el carácter de“anodina noción liberal” que Homi Bahbha reconociera en él,sino en tanto realidad directamente derivada de los fenómenos demigración de sujetos e ideas, implementación de estrategiasculturales regionalizadas (tipo Mercosur, NAFTA, Pacto Andino, etc)e hibridación étnica, linguística y cultural a todo nivel.

b) multilinguismo, entendido no sólo como un espacio deintercambio y comunicación abierta –tampoco como el lugarbabélico donde los mensajes no llegan en realidad a conectar –sino como una arena de lucha y conflicto por la hegemonía y aveces por el monopolio de los discursos y los saberes. Creo queahora que las lenguas compiten no sólo entre sí sino con lenguagesvirtuales y sígnicos de distinta naturaleza, es importante reconocerque las áreas de competencia y actuación de las distintas lenguasestán directamente relacionadas con formas de poder y dedominación cultural, de penetración y re-colonización de territoriosgeoculturales y simbólicos, que luchan por el predominio – a veces

6 Yúdice es uno de los investigadoresque más ha trabajado la cuestión demercados culturales,institucionalidad y difusión dediscursos. Para ver las dimensionessociales de los estudios culturales enAmérica Latina ver su artículo“Estudios culturales y sociedadcivil”, Revista de Crítica Literaria 8(Mayo 1994), pp. 43-53. Para lo quetiene que ver con industriasculturales, diferencia cultural yglobalización ver “Lareconfiguración de políticasculturales y mercados culturales enlos noventa y siglo XXI en AméricaLatina”.

7 Nelly Richard, “IntersectandoLatinoamérica con ellatinoamericanismo”, en Teorías sindisciplina. Latinoamericanismo,poscolonialidad y globalización endebate, Santiago Castro-Gómez yEduardo Mandieta, coordinadores.México: Ed. Porrúa, ColecciónFilosofía de nuestra América, 1998;pp. 245-270.

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sólo por la presencia – en el contexto de las dinámicas globales.Mientras que algunos esfuerzos en la actualidad están encaminadosa impulsar el reconocimiento de la estética del bilinguismo o delmultilinguismo – tratando de administrar así, productivamente, ladiferencia cultural – creo que debe seguirse insistiendo en las polí-ticas culturales que están detrás de los conflictos linguisticos, y enel caracter político de estas luchas. Reconocer, entonces, que setrata de luchas representacionales, tanto en el sentido de larepresentación simbólica, como de la representatividad política dedeterminados sectores sociales y culturales que se expresan en có-digos diversos.

c) transdisciplinariedad o incluso, según algunos, post-disciplinariedad, que nos enfrenta a interrogantes, cuestionamientosy búsqueda de respuestas innovadoras a problemas que atraviesanlos campos del saber, limitando al mínimo la posibilidad de unasuperespecialización sobre todo en el área del conocimiento cul-tural no-científico. En este mismo sentido, el cuestionamiento ydebilitamiento del lugar de las humanidades como forma deconocimiento abarcador y totalizante, obliga a nuevas formas delegitimación del papel de la cultura y las “ciencias humanas” den-tro de los procesos actuales dominados por la comunicación demasas, los mensajes visuales y electrónicos, y los trasiegos deinformación a nivel planetario.

d) modificación del campo cultural y de la función intelectual.Ante la pérdida de vigencia de la función mesiánica heredada entiempos de secularización cultural de las antiguas alianzas entreIglesia y Estado, la función pedagógica, “heroica” e iluminada delintelectual de los siglos XIX y buena parte del XX va dejando lugara formas de tecnificación que rearticulan la relación entre cultura,instituciones y sociedad civil. Mientras que en muchos contextosel intelectual se recicla como advisor gubernamental en temas re-lacionados con el análisis de mercados y la definición de políticasculturales (educativas, de financiamiento o subvención de las ar-tes, de institucionalización o regulación del acervo histórico, an-tropológico, etc.) en otros casos el intelectual lucha por retenerespacios de relativa y cada vez menor autonomía con el propósitode ejercer una labor “independiente” en organismos de acciónsocial (ONGs) o en proyectos culturales acotados a problemáticaslocales, sectoriales, etc, que pueden alcanzar grados diversos deincidencia y proyección social. Las revistas son fundamentales comoplataformas de debate y transformación de estas funciones, y comotermómetros que miden la temperatura social en el campo especí-fico de la acción cultural.

e) surgimiento de nuevas zonas de análisis aparecidas aconsecuencia de los cambios sociales, económicos y culturales queacompañan a la globalización. Así tenemos por ejemplo laintersección fuerte y productiva de estudios de cine, feminismo,Latino Studies, estudios gay, estudios étnicos, etc, que convergen,por ejemplo con el análisis literario, cultural e ideológico,proponiendo nuevas formas de integrar el conocimiento de lasciencias sociales (historia, antropología, sociología, ciencias polí-ticas) que antes mantenían un dominio independiente, en el estudiode productos y políticas culturales. Muchas de estas nuevas zonasde estudio cultural mantienen obvias correspondencias con elsurgimiento de movimientos sociales (movimiento de los sem ter-ra, Madres de la Plaza de Mayo, zapatistas, movimiento homosexual,feminismo, ecologistas, etc.) que constituyen nuevas formas deresistencia y acción social en el contexto marcado por el modeloneoliberal. Se vinculan también con el recrudecimiento y cambio

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de signo de fenómenos como la violencia urbana, la intensificaciónde las comunicaciones, la emergencia de nuevas formas desubjetividad colectiva, que obviamente empujan a la escena políti-ca, social y cultural nuevos actores, sujetos, agendas, que requierenrepresentación. Finalmente, los impulsos aportados por elpensamiento poscolonial, la teorización sobre la “condiciónposmoderna” y la correlativa crítica de la “modernidad periférica”en América Latina, la fuerza de los Cultural Studies, etc, diversificanotoriamente, quizá con una intensidad antes desconocida ennuestro campo de trabajo, las ofertas y las demandas del trabajointelectual. Este, que ya no se puede limitar al espacio antes preser-vado de la función letrada, académica y pedagógica, ni se identifi-ca necesariamente con el “compromiso” político, ni goza de losprivilegios del mesianismo ni del reconocimiento que el “productorcultural” tuvo en los años de la Guerra Fría, se enfrenta ahora aldescentramiento y a la desauratización de la cultura letrada y alpredominio de la razón instrumental que busca transformar lafunción intelectual y los mensajes y códigos en que ésta se apoyaen dispositivos que transmiten un saber especializado (expertise) yal mismo tiempo negociable en el mercado vasto de los bienessimbólicos.

f) reacomodos políticos en el interior de los campos culturales.Sería largo pero imprescindible analizar los cambios que ha sufridolas nociones de “hispanismo” y de luso-brasileñismo, por ejemplo,desde su orígenes (que pueden rastrearse a la época colonial) hastanuestros días. De estas reconfiguraciones depende la relación “delengua” entre las “madres patrias” europeas y las culturas nacionaleslatinoamericanas, y el modo en que se ha concebido a través delas épocas esa vinculación. En el caso de Hispanoamérica, lasinstancias de la colonia, la independencia, la Guerrahispanoamericana de 1898, la Guerra Civil española, la RevoluciónCubana, las celebraciones del Quinto Centenario, por ejemplo,son sólo algunos de los momentos que pautan el largo caminoiniciado por el colonialismo y sostenido por más disimuladas for-mas de reanexión cultural, reapropiaciones ideológicas, etc, quemantienen algunas revistas simbólica o estratégicamente asociadascon contextos culturales y políticos anteriores, propiciando oimpidiendo otras asociaciones. Ejemplo: Revista Iberoamericanasigue asociada por su nombre al componente “ibérico”, desde sufundación en 1938, lo cual es uno de los factores que la mantieneajena a la cultura latino/chicano/riqueña que se desarrolla en Esta-dos Unidos, entre otras cosas en atención a la tradición de laslenguas ibéricas como marcas de diferenciación y, a su vez, denexos culturales.8

g) vaciamiento ideológico que se registra a nivel social, en ge-neral, en América Latina. Este fenómeno se hace evidente en par-ticular en la constitución del campo cultural, que acusa el impactodel debilitamiento del estado y las instituciones mediadoras – polí-ticas y culturales – , los efectos de la privatización neoliberal, lapérdida de plataformas políticas a nivel nacional e internacional,la proliferación y diversificación de agendas sectoriales, eldescaecimiento de lenguages y estrategias de convocatoria popu-lar, la descreencia en discursos totalizadores, y el fraccionamientode la trama social a diversos niveles. Todo lo anterior indica quenos encontramos no solamente ante una crisis de representación anivel simbólico sino ante una más profunda aún crisis derepresentatividad social (política), donde amplísimos sectoressociales han perdido la voz, que es cooptada por el oportunismoideológico que trata de capitalizar el vaciamiento de la izquierda

8 Ver, al respecto, para un recorridosobre estos aspectos del hispanismo,el ensayo de Sebastiaan Faber, “‘Lahora ha llegado’. Hispanism, Pan-Americanism, and the Hope ofSpanishAmerican Glory (1938-1948)”, Ideologies of Hispanism,Mabel Moraña, ed. (en prensa).

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viendo los estudios latinoamericanos como una tierra de nadie quepuede ser recolonizada por las teorías centrales. De aquí que lapregunta por la legitimidad de los discursos salvíficos desde/sobreAmérica Latina, y la redefinición de las dinámicas Norte/Suradquieran una nueva vigencia para el análisis cultural en el con-texto de la globalidad post-Guerra Fría. Esto, y la urgencia de unreagrupamiento aunque sea estratégico del pensamiento deizquierda que permita efectuar una crítica productiva de las políti-cas culturales del neoliberalismo. La cuestión principal no es,entonces, a mi criterio, desde qué lugar geopolítico se produce lacrítica o la teoría cultural, sino desde qué lugar – desde que co-locación – ideológica se efectúa el cuestionamiento de los impac-tos que el neoliberalismo está teniendo en la producción y en elanálisis de la cultura latinoamericana.9

Para terminar, pienso que es imprescindible, en el contextoactual, una atención cuidadosa a los desafíos antes anotados, yuna implementación sagaz de nuevas estategias tanto profesionalescomo político- ideológicas, en el campo de la producción y la crí-tica de la cultura. La inserción de los aportes y las agendaslatinoamericanas en el espacio cultural globalizado exige unacomprensión amplia y abierta del espectáculo de la cultura a nivelplanetario: del modo en que funcionan sus avenidas virtuales yeconómicas, sus mensajes sígnicos y simbólicos, y sobre todo, susactores, en la lucha por insertar las agendas locales dentro de losconflictos, intereses y fuerzas que actúan a nivel transnacional peroque repercuten directamente en nuestras comunidades culturales.Las revistas constituyen, a mi juicio, no sólo bases para proyectoscríticos sino también plataformas desde las cuales se discute oaprueban, se revelan o invisibilizan aspectos de la conflictividadsocial y de sus representaciones simbólicas. Los lenguages que enellas se manejan, las mediaciones que a través de ellas se efectúan,los espacios que se abren en sus páginas reales o virtuales remitensiempre, con mayor o menor inmediatez, a dinámicas mayores. Laproliferación de centros en las periferias tanto como los inmensosy múltiples suburbios que existen en el interior de los grandes nú-cleos de la globalidad exigen nuevos tránsitos, nuevos vehículos, yenergías renovadas en actores culturales que tienen a su favor, enel caso de América Latina, una larga tradición de resistencia ycreatividad liberadora. Desde esas bases es que debe emprenderse,a mi juicio, el reagrupamiento de los intelectuales para rehacer lasagendas de acuerdo con los desafíos que nos imponen los tiempossimultáneos de la globalidad, recordando que por mássuperestructurada que pueda parecer, toda política termina siendosiempre local, individual y cotidiana.

9 Avellaneda se refiere a este puntoal tratar la relación entre estudiosliterarios y culturales. El tema hasido, sin embargo, ampliamentedebatido por Román de la Campa yWalter Mignolo, entre otros.

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I – O itinerárioEntre os anos de 1977 e 1982 o Folhetim1 ofereceu um conjun-

to de textos que expunham os principais assuntos e polêmicas dopaís (formando uma certa unidade de interesses), entretanto, a par-tir de 1983 este conjunto de textos passou a ser apresentado deforma segmentada e desorganizada. Neste último período, os cole-cionadores do Folhetim foram obrigados a agir de forma tópica.Alguns temas estavam tão distantes das preocupações dos especia-listas que as coleções particulares começaram a ser orientadas pe-los interesses particulares, e não mais pela lógica de se colecionartodos os números. Dependendo do tema veiculado, o suplementopode ter destinos bem distintos: ora ele é protegido como umapreciosidade, ora ele é condenado à reciclagem. Neste ponto, nota-se um novo direcionamento da coleção. Os especialistas (o econo-mista, o historiador, o sociólogo, o professor de literatura) passa-ram a organizar suas coleções com os fascículos que falavam deperto sobre seus interesses mais imediatos. Assim, a dinâmica dacoleção, que havia norteado as duas primeiras fases (entre 1977-1979 e 1979-1982) do suplemento (quando tudo era “interessan-te” e a coleção tinha valor por ter um ritmo de continuidade), vaisendo substituída pela necessidade do especialista, que imprimeum novo perfil à coleção: a parcialidade, o recorte. A lógica docolecionador benjaminiano, embora anacrônica, serve para nossacompreensão do que acontecia. Entre 1977 e 1982, tem-se a figurado colecionador “clássico”, aquele que recolhe “tudo”, que reco-lhe uma totalidade, aquele que pretende dar forma ao caos univer-sal. Angariando amostras de tudo, pode-se pensar no colecionadorclássico como um enciclopedista, que está preocupado em com-preender a totalidade do universal. A partir de 1983, o leitor do

A CIRCULAÇÃO DAS IDÉIASLITERÁRIAS NO FOLHETIM

E seja como for, para nós, homens de um século que sereconhece no estilhaçamento de Joyce e Picasso, no absurdo de

Kafka, no contrapelo da música serial, — para nós a sua força nãovem desta concepção unitária.

Antonio Candido

E os artistas, os escritores principalmente, que imaginam estarfazendo arte pro povo não passam duns teóricos curtos, incapazes

de ultrapassar a própria teoria.

Mário de Andrade

Marco Antonio Maschio C. ChagaUniversidade Federal do Paraná– RD-CNPq

1 Folhetim foi um suplementocultural/literário publicado pelojornal paulista Folha de São Pauloentre 1977 e 1989. A coleçãocompleta do Folhetim se encontradepositada na biblioteca do NELIC(Núcleo de Estudos Literários eCulturais), Centro de Comunicação eExpressão da Universidade Federalde Santa Catarina.

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Folhetim passa a se adequar mais à figura do colecionador moder-no, ou seja, este indivíduo passa a recolher os cacos que mais lheinteressam, ou que estão disponíveis, para edificar o seu mosaicoparticular, obedecendo à “lógica” mais conveniente, talvez a únicaa seu alcance. Neste caso, o colecionador contemporâneo admitea sua condição parcial; admite, mesmo sem querer, que o paradigmada exclusão está batendo a sua porta. Sendo assim, a coleção “com-pleta” do Folhetim começa a ceder espaço a outro regime de prio-ridades: a urgência dos fragmentos específicos, cujo interesse sedireciona a áreas profissionais exclusivas. O interesse declina deforma proporcional ao abandono da idéia da formaçãoenciclopedista. Deixando de lado o caráter “total” da coleção, oFolhetim assume o ônus de não mais contemplar às exigências doleitor médio, passando a buscar um filão específico e, em últimainstância, o suplemento se elitiza.

A existência de um suplemento cultural que atravessou mais deuma década em um país marcado pela perenidade deste tipo deiniciativa é por si um elemento que chama a nossa atenção. Evi-dentemente, em doze anos de publicação era de se esperar guina-das importantes que nos servissem para esclarecer a atuação emdiversos ramos da cultura. É patente, por exemplo, na trajetória dosuplemento, o abandono de práticas de consagração e a retomadade atitudes mais críticas em relação aos fenômenos da cultura. Masmeu interesse, neste momento, é refletir sobre os mecanismos queserviram de orientação para que o Folhetim se destacasse tambémcomo um veículo de discussão sobre os fenômenos literários dofinal do século XX.

Como pretendo demonstrar, a primeira e a segunda fases dosuplemento serviram como uma abertura para se questionar o lu-gar da produção da literatura. Carregados pelas crônicas politizadase pela ampliação do conceito de reportagem, os “jornalistas cultu-rais” começaram a requisitar o termo literatura para suas produ-ções, trazendo, para o campo da teoria da literatura, um problemaque se tornaria cada vez mais freqüente entre nós. Paralelamente aesta relativização da produção literária (difundida pelos jornalis-tas-cronistas), e enquanto nas universidades o currículo oficial dadisciplina “literatura brasileira contemporânea” parava em ClariceLispector, o “jornalismo cultural” construía, à revelia dos cânonesacadêmicos, um quadro de referências que pretendia reviver, emalguns anos, décadas da história literária do século XX. Esta seria atônica dos temas literários que circularam no Folhetim até o iníciode 1982.

A partir de meados de 1982, durante a terceira fase, o suple-mento passou a exigir um grau de especialização e de formaçãodos colaboradores, sendo que os jornalistas não mais puderam re-sistir às pressões de um mercado que exigia um suplemento desti-nado aos especialistas. Assim, os jornalistas cedem espaço para osurgimento de um suplemento que passaria a vender a imagem deespecificidade, voltando-se, exclusivamente, aos leitores iniciadosem literatura, psicanálise, filosofia, história, economia. Talvez a idéiaeditorial fosse a marcação clara da distância e da diferença entre oantigo e o novo. Neste caso, o antigo seria representado por atitu-des literárias engajadas, em sintonia com o desejo de abertura de-mocrática e política. O novo, por sua vez, representava a reconci-liação com os bancos universitários e com escritores e poetas dereconhecimento nacional, comprometidos, sobretudo, com a qua-lidade de suas produções. Quando me refiro à criação de um su-plemento voltado à literatura, não penso necessariamente na pu-blicação de escritores, contistas e poetas. Penso, exclusivamente,

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nas publicações de textos que discutem as diversas maneiras de selidar com os artefatos literários: ou seja, escrevo a respeito da pro-fusão de teorias da literatura. Sem dúvida, a trajetória do Folhetimcomprova isso: há uma disputa sendo travada entre os defensores dacrítica apadrinhada (somente como mecanismo de consagração) e,por outro lado, os colaboradores, pós 1982, dotados de um arsenalcrítico que tornaria a literatura um exercício de difícil e restrita aces-sibilidade. As teorias literárias vão re-posicionar questões como ovalor literário, a autoria e a história literária, por exemplo.

Portanto, ao longo da década de oitenta, o Folhetim corrobo-rou a ascensão da idéia de que o ato de leitura do texto literáriopode estar cravado por uma pluralidade de acepções e orientaçõesteóricas, ao contrário das abordagens em defesa do “senso comum”que, naquela altura, se encontravam em franco declínio. De ummodo geral, esta seria a dinâmica das publicações que povoaramas páginas do suplemento da Folha de S.Paulo ao longo dos anosoitenta. Ao mesmo tempo, este será o movimento que pretendopercorrer quando me proponho a discutir as diversas orientaçõesteóricas que foram assegurando espaço à discussão do literário noFolhetim.

II - Primeira fase (1977-1979): A crítica apadrinhada

A primeira fase do Folhetim pode ser facilmente reconhecidacomo um período preocupado em divertir informando o leitor. Esteperíodo pode ser considerado “literário” não por apresentar textosvoltados aos conceitos e à discussão das diversas possibilidades dacrítica literária em lidar com os artefatos literários da época, massim por preencher um grande percentual de suas páginas com crô-nicas e “experimentos literários” de seus colaboradores mais pró-ximos. Derivada em larga medida da situação política do país, acrônica política, determinada pela atuação do cronista engajado,teve em Josué Guimarães, João Ubaldo e em Plínio Marcos os prin-cipais articuladores da cena literária do período. Percebe-se que aliteratura foi um instrumento político para se atingir as finalidadesatreladas aos ideais de liberdade e, em última instância, o fato deser “ficção” funcionava como um trunfo final e um drible adicionalnos mecanismos da repressão e da censura do Estado. Assim, po-dia-se tratar da situação miserável de uma grande parcela da popu-lação, da falta de segurança pública, da situação de descaso naqual se encontrava o “balaio” das questões da cidadania, dacorrupção reinante nos meios governamentais, entre outras denún-cias. Porém, o problema do valor literário destes textos persiste.Silviano Santiago2 se refere à produção de dois grupos de textosdurante os anos setenta: as ficções de sobrevivência, entre 69 e 74;e as de resistência, de 75 a 79. A primeira fase do Folhetim seajusta não apenas em relação ao segundo período histórico citado,mas sobretudo ao tipo de “resistência” que é propagada pelas crô-nicas. Vejamos como, em linhas gerais, se definiria a atividade dacrônica neste caso:

O texto de resistência é antes de mais nada uma réplicaaos meios de comunicação que foram selecionadospela censura ou pelos zelosos ‘copy-desks’ da imprensaobjetiva. E como réplica que é, usa a mesma formaretórica (o discurso jornalístico) (...). Narra o fato ou anotícia de maneira apaixonada; narra subjetivamente

2 Silviano Santiago, “Uma década deonze anos”, Folhetim, 13 de janeirode 1980, n. 156, p. 2.

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o mesmo fato que a imprensa não narrou, ou narrouobjetivamente. Sendo jornalístico, trabalhou com orepertório (tanto estético quanto temático) de qualquerleitor brasileiro. Daí o sucesso. Não causou aestranheza como o texto do barato e da metáfora. Otexto da resistência, por ser jornalístico, parece negara literatura ao constituir-se em livro, pois se constróina descrença de que existam processos propriamenteliterários. Qualquer forma de desmistificação daretórica literária é sempre bem vinda.3

Nestas crônicas, o literário se encontrava esvaziado porque nãoproduzia estranhamento? Não o produz porque não consegue ouporque não quer ver seu público reduzido? À beira do populismo,o regime das crônicas não pretende se distanciar do leitor. A justi-ficativa para este tipo de atuação encontrava respaldo da críticaveiculada pelo suplemento. O interesse inicial do Folhetim estevevoltado e de certa forma seduzido pelos “brilhos” da televisão, comseus shows de variedades; entretanto, houve um espaço mínimopelo qual puderam se manifestar os porta-vozes da “crítica” literá-ria. Utilizo a palavra crítica entre aspas porque será possível verifi-car que os jornalistas-cronistas e os romancistas envolvidos nesteperíodo dispensavam um tratamento nada respeitável à crítica: acrítica é aqui entendida como julgamento, como um juízo pessoal.

Contudo, a crítica não seria apenas um procedimento que pre-tende homenagear a verdade do passado, ou a verdade do outro, acrítica deve ser compreendida como uma construção do inteligívelde nosso tempo. Como veremos adiante, a acepção da palavra “crí-tica” nos primeiros Folhetins esteve muito próxima das homena-gens e da verdade do “outro”. Para esclarecer a atividade crítica dosuplemento durante esta primeira fase, apresento a seguir um tre-cho de uma entrevista concedida por Jorge Amado a Josué Guima-rães. Além de revelar a postura teórica do Folhetim (resumindo asprincipais metas a serem perseguidas), o entrevistado demarca oterritório a ser protegido, enfatizando quais seriam os alvos de ata-que, ao mesmo tempo em que revela o que deveria ser preservado.O principal articulador dessas idéias era o escritor Jorge Amado.4

Na opinião do escritor,

A crítica se coloca sempre contra. (…) E eu me honromuito da estima que tem por minha obra certos leitoresda mais alta qualidade intelectual – não vou citar nomes– mas até que poderia falar num Alceu, por exemplo,num Antonio Houaiss ou num Antonio Candido, porexemplo. E de ser, além disso, um escritor que qualquerhomem do povo pode ler e entender. (…) É umprivilégio que hoje estamos pagando caro, nós oshomens que estamos criando no Brasil literatura e arte.(…) Uma coisa é você fazer literatura assim e outra évocê se trancar no gabinete, ler livros e querer criarpersonagens, falar da angústia do povo e da coisa quevocê nem conhece.5

Percebe-se que há uma clara distinção entre “a literatura” (e aarte) e “a crítica”. Há, portanto, uma clara separação: a literaturanão deve ser crítica e a crítica não deve ser confundida com aliteratura. Crítica, neste caso, se traduz por um juízo de valor posi-tivo ou negativo sobre determinado texto. Não está em jogo ape-nas a avaliação sobre a presença ou não da literariedade (que, nes-te caso, pode ser entendida como estranhamento) nestes textos, aí

3 Idem. Ibidem, p.2. Em virtude dosreferidos textos aparecerem,principalmente, em jornais, talvezfosse mais preciso se referir a elescomo crônicas. Antonio Candidoenfatiza que o gênero se proliferoupor causa de sua extrema dependên-cia ao jornal. O autor resume suahistória: “No Brasil ela tem uma boahistória, e até se poderia dizer quesob vários aspectos é um gênerobrasileiro, pela naturalidade com quese aclimatou aqui e a originalidadecom que aqui se desenvolveu. Antesde ser crônica propriamente dita foi‘folhetim’, ou seja, um artigo derodapé sobre as questões do dia –políticas, sociais, artísticas, literárias.Assim eram os da seção ‘Ao correr dapena’, título significativo a cujasombra José de Alencar escreviasemanalmente para o CorreioMercantil, de 1854 a 1855. Aospoucos o ‘folhetim’ foi encurtando eganhando certa gratuidade, certo arde quem está escrevendo à toa, semdar muita importância. Depois,entrou francamente pelo tom ligeiroe encolheu de tamanho, até chegarao que é hoje”. CANDIDO, Antonioet al. “A vida ao rés-do-chão”, in: Acrônica, A crônica: o gênero, suafixação e suas transformações noBrasil. Campinas/ Rio de Janeiro: Ed.da UNICAMP/ Fundação Casa de RuiBarbosa, 1992, p. 15.

4 Não devo esquecer de mencionar aimportância de Érico Veríssimo nestecontexto. Seu nome foi semprelembrado pela equipe de editores epelo próprio escritor baiano. A duplaformada por Érico Veríssimo e JorgeAmado desempenhou um papel maisamplo dentro do cenário político darepressão. Silviano Santiago lembra(em “O teorema de Walnice e suarecíproca”, Folhetim, n. 275, 25 deabril de 1982) que os exemplos deÉrico Veríssimo e de Jorge Amadotinham sido utilizados por WalniceN. Galvão por conta de dois fatos:primeiro, porque eles podiam efalaram contra a repressão militar e,em segundo lugar, eles eram osgrandes exemplos de escritores quenão dependiam do Estado.

5 Jorge Amado; Josué Guimarães,“Meu encontro com Jorge Amado”,Folhetim, n. 43, 13 de novembro de1977, pp. 2-6. No final da entrevista,Josué Guimarães intervém: “Eutambém sou da mesma opinião,estou inteiramente contigo, pensoassim”. Embora publicada nonúmero 43 (o primeiro sob a direçãode Nelson Merlin), a entrevistareforça o perfil antiacadêmico dosuplemento, enfatizando o regime deconcessões do Folhetim. (continua)

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também se inclui o aval da crítica sobre o que deve ou não servendido. O que se exige do crítico é a corroboração e a tácitaafirmação a respeito do valor positivo do texto. Quando, por qual-quer motivo, se aponta para falhas, repetições ou esgotamentos, apolítica da crítica se torna pessoal e o ciclo do contra (a crítica docontra) é iniciado novamente. Também se quer atingir o excesso deteorização no qual está imerso o mundo acadêmico, fechado so-bre os grandes nomes que fortalecem os cânones ocidentais e na-cionais e que, por muitas vezes, se nega a discutir o papel dosnovos escritores.

Quando se diz que estas crônicas espelhavam algum ideal deresistência política, contrária ao regime autoritário em voga na-quele momento, deve-se acrescentar um outro tipo de resistência,a ser mais bem explicitado. Trata-se da resistência à teoria. Procu-rou-se jogar com “valores literários” que distanciavam cada vezmais o senso comum das formulações teóricas fundadas emespecificidades sobre os juízos de valor construídos a partir dasteorias literárias. Em O demônio da teoria, Antoine Compagnonanalisa a história dos enfrentamentos entre o senso comum e ateoria. O maior problema para os defensores de uma teoria a-teóri-ca reside nas sucessivas derrotas que o senso comum vem acumu-lando ao longo do século XX, principalmente depois dos anos ses-senta. A teoria questionou as crenças (ou as ilusões, comoCompagnon prefere chamar) mais caras dos defensores do sensocomum.

O objetivo da teoria é, na verdade, desconsertar o sensocomum. Ela o contesta, o critica, o denuncia comouma série de ilusões — o autor, o mundo, o leitor, oestilo, a história, o valor — das quais lhe pareceindispensável se libertar para poder falar de literatura.Mas a resistência do senso comum à teoria éinimaginável. Teoria e resistência são impensáveisseparadamente, como observava Paul de Man; sem aresistência à teoria, a teoria não valeria mais a pena,como não valeria a pena a poesia, para Mallarmé, seo Livro fosse possível. Mas o senso comum nãorenuncia nunca, e os teóricos se obstinam. Na falta deum acerto de contas final, com suas ovelhas negras,eles se atrapalham.6

Sendo assim, era preciso sustentar a produção e a circulaçãoda ficção justificando a sua funcionalidade. A consolidação dasuniversidades acelerou a substituição do crítico não especialistapelo crítico scholar. O contorno acadêmico e especializado, que apartir da década de cinqüenta suplantava a crítica de rodapé naimprensa brasileira, foi questionado por esta fase do suplemento,que preferiu “reinventar” a figura do jornalista crítico semi-especi-alista. Todavia, deve-se ressaltar que esta semi-especialização docrítico não foi suficiente para aproximá-lo do crítico de rodapé,com aquela prática impressionista e hierarquizante dos anos qua-renta. “Assim sendo, [complementa Silviano Santiago] aquele co-nhecimento não especializado tem também o seu lugar, lugar dedivulgação, que não é a sala de aula ou o seminário, mas a im-prensa semi-especializada, ou não, grande ou nanica”.7 SilvianoSantiago8 defendia, em 1979, uma posição mais conciliatória en-tre professores e jornalistas.

Vemos então que, para que a discussão entre o níveldo ‘especializado’ e do ‘geral’ se possa dar com

Desta forma, também fica evidenteque a saída de Tarso de Castro daeditoria não significaria nenhumamudança no perfil da publicação,continuando a prevalecer a linhaeditorial anterior e a manutenção deseus colaboradores.

6 Antoine Compagnon, O demônioda teoria. Literatura e senso comum,Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999; p.257.

7 Silviano Santiago, Vale quantopesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982; p. 198.

8 “As incertezas do sim”, “Arrumar acasa, arrumar o país”, “O teorema deWalnice e a sua recíproca”, “A corda pele” e “As ondas do cotidiano”foram os textos de Silviano Santiagopublicados entre 1979 e 1982,portanto, durante a segunda fase doFolhetim.

9 Silviano Santiago, Vale quantopesa, p. 198.

10 Silviano Santiago, “Democratiza-ção no Brasil – 1979-1981 (culturaversus arte)”, in: Declínio da arteAscensão da cultura. Florianópolis:Edição da Abralic, 1998, p. 11.

11 Silviano Santiago, “Uma décadade onze anos”, Folhetim, n. 156, 13de janeiro de 1980, p. 2; “Aincerteza do sim”, Folhetim, n. 226,17 de maio de 1981, p. 3; “Entre

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rendimento para ambas as partes, é preciso que seacertem antes os relógios. Ou então temos o que vemosde maneira geral hoje: certos jornais metendo o pauna crítica universitária por considerá-la ‘estrangeirada’ou elitista, de difícil acesso ao grande público, ou entãocertos professores universitários (de reconhecido valorintelectual) usando o espaço-jornal com artigosdificílimos que obviamente lá não deviam estar, poisnão levam em consideração a competência de quem,em princípio, os deve ler naquele lugar.9

Mesmo que reconheçamos como justa a reivindicação deSilviano Santiago, a atitude dos editores do suplemento não cami-nhava a favor do consenso entre acadêmicos e jornalistas. Por ou-tro lado, os argumentos do crítico se ajustam ao perfil do suple-mento, pois desconfio que, nesta época, o Folhetim não dividia seuespaço com a crítica universitária por considerá-la elitista e obses-sivamente estrangeira. Aliás, esta confluência de elementos revela,mais uma vez, que a orientação teórica partilhada por sua equipede editores, sobre a função da literatura, era em larga medida deorigem gramsciana. Camaleônico, o jornalista escrevia crônica,entrevistava “astros” e “estrelas” da televisão, políticos em evidên-cia e outras personalidades, ao mesmo tempo em que escrevia crô-nicas, poemas e manifestos. No campo literário, gostaria de desta-car duas características do período. Em primeiro lugar, observa-seum deslocamento geográfico das atenções: enquanto a crítica aca-dêmica estética ou sociológica ocupava o horizonte do eixo Rio-São Paulo, o Folhetim restringia seu espaço a Jorge Amado e ÉricoVeríssimo como pontos de referências. A segunda característica,derivada da anterior, é que os autores referências do período forne-ciam o prestígio necessário para assegurar legitimidade aos jorna-listas cronistas, reforçando a noção do nacional-popular de suaspublicações. Deve-se notar também que não há nenhuma referên-cia direta a Gramsci nestas páginas do Folhetim, ausência esta querevela uma sintomática necessidade de se ocultar (ao mesmo tem-po em que se enfatizavam os autores nacionais) a herança estran-geira desta teoria, que, em última instância, se recusava a ser teóri-ca. Mas o que mais interessa, neste momento, é que este ativistaengajado também se fazia de crítico literário, promovendo a litera-tura nacional-popular. Ressalte-se que esta formação genérica dojornalista corresponde ao perfil traçado por Gramsci, que tambémobservava, como seu principal defeito, a superficialidade que apostura genérica poderia gerar.

III – A segunda fase (1979-1982): os primeiros sinto-mas do culturalismo brasileiro

Para melhor avaliar os efeitos do debate entre a perspectiva cul-tural da crítica e a crítica literária (cultura versus arte), SilvianoSantiago acentua a necessidade de ressaltar uma série de aconteci-mentos que podem servir como marcos de algumas importantespassagens do final do século XX.

Quando é que a cultura brasileira despe as roupasnegras e sombrias da resistência à ditadura militar e seveste com as roupas transparentes e festivas dademocratização? Quando é que a coesão das

Marx e Proust”, Folhetim, n. 231, 21de junho de 1981, pp. 3-5; “As

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esquerdas, alcançada na resistência à repressão e àtortura, cede lugar a diferenças internas significativas?Quando é que a arte brasileira deixa de ser literária esociológica para ter uma dominante cultural eantropológica? Quando é que se rompem as muralhasda reflexão crítica que separavam, na modernidade, oerudito do popular e do pop? Quando é que alinguagem espontânea e precária da entrevista(jornalística, televisiva, etc.) com artistas e intelectuaissubstitui as afirmações coletivas e dogmáticas dospolíticos profissionais, para se tornar a forma decomunicação com o novo público? A resposta àsperguntas feitas acima levam a circunscrever omomento histórico da transição do século XX para oseu ‘fim’ pelos anos de 1979 a 1981”.10

A segunda fase do Folhetim funciona como uma resposta paravárias das questões acima. Esta fase do suplemento responde deduas formas aos questionamentos enunciados. Em primeiro lugar,corrobora-se a pertinência de se pensar uma certa implosão dasesquerdas; ocorrem diversas tentativas de se cogitar uma aproxi-mação entre o erudito e o popular (os textos que debatem a respei-to desta questão são os do próprio autor); “a linguagem espontâ-nea e precária” das entrevistas e dos acalorados debates inundamde esperança o horizonte da década de oitenta, embora as “afirma-ções coletivas e dogmáticas dos políticos” ainda tivessem muitoespaço no suplemento. Sendo assim, a segunda fase do suplemen-to abrange um período de mudanças significativas da vida nacio-nal: a educação, a política, a economia e, sobretudo, a democrati-zação irreversível da cultura. O processo de democratização dacultura servia como a porta dos fundos pela qual entravam algunspertinentes questionamentos sobre o panorama da crítica literária.Também foram irreversíveis os desdobramentos teóricos do pós-estruturalismo que se assentava, naquele momento, sobre a defesae a inclusão das minorias culturais como fontes alternativas às abor-dagens estritamente literárias. Por outro lado, assegurava-se o es-paço da crítica literária voltada à grande literatura.

Por exemplo, entre novembro de 1981 e maio de 1982, a pro-fessora Bella Jozef publicou quatro textos. Neles, Stefan Zweig,James Joyce, Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato foram analisados,tendo-se o formalismo russo e o estruturalismo como principaispontos de referências teóricas. Estes ensaios procuravam se centra-lizar sobre o problema da leitura e da linguagem empregada porestes consagrados escritores. Enquanto Fábio Lucas escrevia sobrea história do modernismo e Hernani Bruno a respeito da suprema-cia de Joaquim Manuel de Macedo como romancista, Silviano San-tiago aparecia com um incômodo ensaio sobre a poesia de umcerto Adão Ventura.

Vale comentar a trajetória dos seis textos11 de Santiago nestafase do Folhetim. Em “Uma década de onze anos”, o autor realizaum balanço da produção literária de seus contemporâneos. Noque pese a destreza para não citar nomes nem arranhar o verniz deautores consagrados, o texto é ímpar em um contexto de polêmi-cas acirradas sobre a adesão política dos escritores. Trata-se de umtexto que opta por classificar a perspectiva dos autores sem, noentanto, excluí-las. Sendo assim, percebe-se uma certa tendênciaaos processos de inclusão, que deixa de lado a avaliação sobre ovalor literário, ressaltando-se outros aspectos das obras, tais comoa inclusão de autores que souberam resistir à repressão e de outros

ondas do cotidiano”, Folhetim, n.237, 2 de agosto de 1981, pp. 5-6;“A cor da pele”, Folhetim, n. 240, 23de agosto de 1981, p. 12; “Oteorema de Walnice e sua recíproca(I parte)”, Folhetim, n. 275, 25 deabril de 1982, pp. 6-7; II parte,Folhetim, n. 276, 2 de maio de 1982,pp .8-9; III parte, Folhetim, n. 277, 9de maio de 1982, p.9.

12 Walnice Nogueira Galvão, in:Saco de gatos. São Paulo: Ed.Perspectiva, 1984.

13 Silviano Santiago, “O teorema deWalnice e sua recíproca”, Folhetim,n. 275, 25 de abril de 1982, p. 8.

14 Idem. “A crítica literária nojornal”, in: Nuevo texto crítico, n.15/16, jul.94-jun.95, p. 64.

15 José Paulo Paes não travounenhuma polêmica direta com os

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que engendram a perspectiva antropológica em seus textos. Em “Aincerteza do sim”, abre-se um outro flanco para se pensar o com-prometimento subjetivo que a linguagem opera, da qual sempre seescapa uma parcela da biografia daquele que escreve. Esta ausên-cia de controle das margens da linguagem serve para se analisar apoesia de João Cabral de Melo Neto. Apostando em outro grandenome da literatura brasileira, o ensaio “Entre Marx e Proust” refor-ça a noção de que a postura política, histórica e literária de CarlosDrummond de Andrade lhe renderam uma posição de destaquedentro do modernismo brasileiro. Este texto fecha um ciclo. A se-guir, em “As ondas do cotidiano”, o autor defende, em um ensaiomais teórico, que seria necessário ampliar as margens do fenôme-no literário, caso se quisesse entender a situação dos estudos literá-rios à época. Assim, o autor questiona a idéia de se apreender ocotidiano como se houvesse algum princípio de racionalidade ge-ral, que fosse capaz de organizá-lo. Ao contrário, afirma o autor,seria necessário se pensar em um conjunto de medidas para seconceber o cotidiano como processo caótico, pois, somente as-sim, seria possível pensar em mecanismos de inclusão como, porexemplo, o das minorias sociais. Em “A cor da pele”, o autor exer-ce um rompimento com a tradição de somente comentar autoresconsagrados. A perspectiva “culturalista” marca seu primeiro ten-to. Aquilo que havia ficado indicado indiretamente nos ensaiosanteriores se manifesta de forma clara. Neste ensaio, a poesia deAdão Ventura serve como modelo para se pensar não apenas nosmodelos excludentes da sociedade, mas reforça a noção de que omodelo literário precisava ser ampliado para incluir outras preocu-pações. Então, o valor literário deixava de ser a única moeda detroca e a condição social passava a ter valor semelhante nesta ou-tra forma de hierarquizar a produção contemporânea. Como con-seqüência, era de se esperar o início de uma polêmica, mas comoa polêmica não se concretizou, o próprio autor tratou de expormelhor as linhas gerais de atuação do escritor. O sexto ensaio (pu-blicado em três partes nos números 275, 276 e 277) analisa o texto“Teresa Batista cansada de guerra,”12 de Walnice Nogueira Galvão,no qual se procura rastrear, ao longo da história brasileira, os dife-rentes posicionamentos dos escritores diante do mercado, do Esta-do e do público. A tônica do texto gira em torno da posição con-temporânea do escritor, que deveria negociar melhor a ampliaçãodos temas e andar no fio da navalha entre o mercado e o público,não tendo o Estado como único ponto de apoio financeiro. A auto-ra apontaria para o paradoxo que distancia o escritor das garras doEstado, mas joga-o de encontro às velhas fórmulas de sucesso bemao gosto do grande público. Silviano Santiago problematiza erelativiza o peso da indústria cultural e ressalta que o elitismo artís-tico começa a ser nefasto quando deixa de lado a sua principalfunção: a formação do público. Sobretudo, o autor questiona afunção da crítica contemporânea de “indicar” o caminho do bomgosto a seus leitores.

A necessidade que vimos surgir na década de oitentaé a de desvincular a visão de público da concepçãoque se encontra na tradição clássica ocidental, semque, por um lado, o intelectual abdique da suacondição de formador do novo público, e, por outrolado, sem que caia na relação imobilista do sucessopelo Ibope e pelo metal, pregada pelos veículos decomunicação de massa.13

representantes do Concretismo. Oautor apenas publica “A tradução noBrasil” (Folhetim, n. 348, 18 desetembro de 1983), procurandomostrar que a tradução tinha, antesmesmo de o Concretismo surgir, umahistória no Brasil e, além disso, a

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Formar um público tendo-se em vista o metal nos leva a umadúvida sobre os caminhos pelos quais passam esta “função” delegislar em causa própria. Lembremos que, durante a primeira fasedo Folhetim, era precisamente esta situação que se desenrolava,quando um grupo de jornalistas havia marcado um encontro comseus leitores, em um futuro próximo, em livros e adaptaçõestelevisivas.

Até há pouco tempo [escreve Silviano Santiago] eraimpensável que um grupo de intelectuais nãoencontrasse numa redação de jornal o período inicialda sua metamorfose em geração literária. Comoresquício desse estado de coisas, sobrevive hoje acrônica literária. Textos curtos e de fácil leitura,comprometidos em geral com os acontecimentosfamiliares e do cotidiano que, enfeixados em livros,viram sempre um produto descartável. Mas mesmoassim a crônica jornalística não pode ser facilmentedesprezada, pois serve para tornar popular o nome doautor, podendo por isso ajudá-lo a vender seus livrosmais ‘sérios’.14

Até aqui, por volta de 1981, o Folhetim havia percorrido umatrajetória inversa ao que se poderia esperar de um suplemento nas-cido no final da década de setenta e que perduraria até o limiar dosanos noventa. O Folhetim passa de uma perspectiva “cultural” (deum suplemento cultural) para um viés especificamente “literário”(definindo-se, a partir de 1982, como um suplemento literário). Aprimeira fase (1977-79) tenta desfrutar de um certo desbunde (en-tretenimento e diversão) que ainda tinha espaço em fins da décadade setenta, para, a seguir, comemorando a abertura democrática,voltar-se ao debate social, cuja amplitude pôde abarcar o surgimentode uma nova concepção da cultura entre nós.

Neste caso, devo enfatizar que o espaço destinado à discussãodas idéias de Silviano Santiago neste texto não ocorre por acaso,pois o escritor e crítico se inclinou em direção às mesclas em vári-os sentidos. Esta inclinação possibilitou-lhe fazer parte e, em largaescala, fomentar o crescente debate sobre a inclusão de outras pers-pectivas sobre o fenômeno literário e cultural do período. Percebe-se, igualmente, que são os críticos fluminenses que dominam acena desta segunda fase do suplemento. A ausência da maioria doscríticos e dos professores das universidades paulistas até este mo-mento no Folhetim talvez seja decorrente da colaboração recentedestes profissionais com o suplemento literário do jornal concor-rente, O Estado de São Paulo. Contudo, com a entrada de CaioTúlio Costa na editoria do Folhetim, esta situação sofreria uma drás-tica inversão nos meses subseqüentes.

IV – A terceira fase (1982-1989): contra o tédio — dosestudos literários à formação cultural

Não se pode dizer que a primeira fase do Folhetim tenha sidouma época destinada ao debate literário, do mesmo modo, o má-ximo que se pode dizer em relação à segunda fase é que haviauma preocupação paralela sobre a discussão literária, com desta-que, principalmente, para uma certa tendência ao culturalismo.Ao contrário destas linhas tangenciais, a terceira fase é um períodomarcado, majoritariamente, pela publicação de ensaios teóricossobre a literatura e também de ficção.

tradução possuía uma tradição comdiversos representantes contemporâ-neos que não estariam preocupados

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A terceira fase do Folhetim é o período mais complexo para seperceber a circulação dos diferentes tipos de orientações teóricasque estavam em jogo. Esta movimentação ocorre em parte porquefoi a fase de maior afluxo de textos relacionados aos processos dere-posicionamento da discussão em torno do fenômeno literário.Enquanto a rotina de publicação dos ensaios sobre as mais diver-sas teorias literárias experimentava uma curva quantitativa ascen-dente, a publicação de contos, de fragmentos de romances e depoemas, decrescia em ritmo acelerado ao longo do período. Odeclínio do espaço destinado à ficção não deve ser visto de formaisolada. Reside neste ponto uma crise que começa a se manifestarde maneira mais clara à medida que avançam os anos subseqüen-tes.

Paralelamente ao decréscimo da ficção, observa-se o aumentorápido dos ensaios literários; contudo, seria apressado dizer que osuplemento tenha servido a esta ou àquela vertente teórica, poishá, sem dúvida, um certo equilíbrio entre as principais teorias so-bre a interpretação das teias literárias, embora, pontualmente, ocor-ram períodos de desequilíbrio da balança. Antes de observar maisde perto o movimento interno desenhado pela alternância de op-ções teóricas dos ensaístas do período, gostaria de lembrar que aprincipal característica subjacente à segunda fase, quando oculturalismo esteve em voga, será silenciada na medida em que seresgatam as “altas literaturas” e, simultaneamente, um novo nívelde compreensão é exigido do leitor. Sendo assim, o clima quentedo debate cultural cede lugar a polêmicas tópicas e específicas,destinadas a um público especializado. No mesmo sentido, perce-be-se um recrudescimento de teses consagradas pela tradição aca-dêmica dos estudos literários.

Além do aumento do grau de especificidade das discussões li-terárias, outros aspectos estavam sendo beneficiados com as mu-danças. Talvez a saturação dos veios literários nacionais e a surpre-sa das gavetas vazias do início da década de oitenta tenham sido oprincipal combustível das traduções; assim, elas ganham força im-pulsionando a circulação de literaturas de outras línguas. Esta es-tratégia reforçava a idéia de uma literatura cosmopolita, cuja estra-tégia central parece ser a de vender sofisticação e refinamento.Vale lembrar que o retorno gradativo das garantias individuais as-segurava espaço para que os colaboradores do suplemento nãonecessitassem mais marcar, a todo custo, uma postura deengajamento político, mas sim um compromisso com o bom gos-to. Além disso, a consolidação da união com os professores paulistasgarantia a publicação do que havia de mais “recente” nas pesqui-sas acadêmicas de uma das principais referências universitárias dopaís. O Folhetim assumia, aos poucos, a tarefa de porta-voz dacomunidade acadêmica do país e, concomitantemente, o espaçotambém se abria para alguns poetas que se destacavam no cenárionacional exercitarem seus domínios críticos e criativos, publican-do ensaios e poemas, respectivamente.

A partir de 1982, começam a proliferar as teorias literárias quedariam forma ao regime de vinculações do suplemento. Ao lado de“antigos colaboradores”, como Silviano Santiago e Wilson Martins(que já havia colaborado em fases anteriores), detectam-se as pri-meiras publicações de Haroldo de Campos, Décio Pignatari e JoséPaulo Paes no Folhetim, indicando uma certa tendência às discus-sões sobre teorias da tradução, e que colocam o Concretismo naberlinda. As publicações de Haroldo de Campos e de Décio Pignatariselam, definitivamente, a aproximação do jornal com os professo-res das universidades paulistanas. Primeiro, publicam os professo-

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res da PUC, posteriormente o leque se abre até a chegada dos pro-fessores da USP. Procurando se afastar de qualquer conotaçãoregionalista, percebe-se ao mesmo tempo a estratégia do suple-mento de dar espaço a colaboradores radicados fora do eixo Rio-São Paulo, visto que, desta forma, a amplitude e o tom nacional doFolhetim não poderiam ser questionados.

Em 1982, surgem os primeiros sinais de uma longa série deensaios que tinham como meta principal a consolidação da tradu-ção como uma das principais bases de uma teoria da literaturafundada em Pound e Benjamin. Inicialmente, a Teoria Concretaencontra resistência em nomes díspares como, por exemplo, JoséPaulo Paes15 e Wilson Martins16. Mais tarde, em 85, seria a vez deRoberto Schwarz travar uma polêmica, talvez a mais conhecida,com Augusto de Campos. Contudo, nos anos subseqüentes a 82,percebe-se o fortalecimento de nomes ligados ao Concretismo, sejaatravés da publicação de ensaios, seja por meio da publicação depoetas-tradutores originários ou simpáticos ao movimento. NelsonAscher, João Moura Júnior, Régis Bonvicino e Paulo Leminski for-mavam o segundo esquadrão, que tinha nos Irmãos Campos osprincipais protagonistas e difusores das idéias vinculadas ao movi-mento. Não por acaso, Nelson Ascher, João Moura Júnior e RégisBonvicino, ao lado de Augusto de Campos, destacam-se como osprincipais tradutores do período. Ajustados ao “Plano piloto dapoesia concreta”, o regime das publicações oriundas e associadasao Concretismo asseguraram, nas páginas do suplemento, um pre-cioso espaço de divulgação e ganharam, a partir de então, um amploreconhecimento nacional, tornando-se uma passagem “obrigató-ria”, para muitos jovens poetas, escritores e candidatos às fileirasuniversitárias.

Enquanto a proliferação concreta ganhava defensores apaixo-nados, não se pode perder de vista que o suplemento também fa-zia circular outras formas de se lidar com as tramas literárias. Adiferença, neste caso, se encontra no caráter individual das outraspropostas. Enquanto o Concretismo agia como uma vanguarda,possuindo “esquadrões” que cumpriam tarefas específicas e tendoum núcleo dirigente, como, aliás, tinha sido apontado por RobertoSchwarz, as outras alternativas de análise quase sempre pareciamdesarticuladas diante de um emaranhado de textos. Conseqüente-mente, não se pode dizer que havia um outro grupo fazendo frenteao Concretismo. Convivia-se com a situação. Contudo, as alterna-tivas teóricas desenham, retrospectivamente, outras séries que pas-sam a coexistir, adquirindo importância fundamental para se com-preender que o perspectivismo começava a fazer parte da rotinateórica da década de oitenta. Ao se observar a circulação dos tex-tos entre 1982 e 1989, tem-se a exata noção do jogo que era colo-cado em prática pelo Folhetim. A partir de 1982, para usar as cate-gorias de Raymond Williams17, o Concretismo já surge como umasérie dominante. O Concretismo adquire o status de uma sériedominante porque, além da presença constante entre os ensaios-literatura mais publicados (criando impacto em outras séries), pas-sa a atuar com amplo domínio na seleção do que era traduzido,emplacando também tradutores afinados com o movimento.

Nesta perspectiva, Wilson Martins faria parte de uma série resi-dual, já que havia colaborado com o suplemento desde sua cria-ção, mas desapareceria após 1982. Este conjunto de textos se pre-ocupava com um estilo de crítica literária baseada no julgamentode valor e na difusão de obras e autores bem próxima do rodapéliterário, que vinha sendo abolida de um cenário extremamentemarcado pelo surgimento de diversas teorias literárias.

com os rumos requisitados pelomovimento paulista.

16 Wilson Martins, por sua vez,publica “25 séculos de concretismo”(Folhetim, n. 305, 21 de novembrode 1982), texto que defende a idéiade que o concretismo, ao contráriodo que propagava, representava umretrocesso, já que o seu processocriativo se apoiaria em umaontologia linear. Sendo assim, noque se refere a suas origens, oconcretismo seria, no mínimo, umarepresentação do anacronismohistórico. O texto não teve respostade nenhum representante domovimento e, sintomaticamente, acolaboração de Wilson Martins noFolhetim se encerra em 1982.

17 Sobre as categorias de sériesdominante, emergente e residual, verRaymond Williams, Marxismo eliteratura, Rio de Janeiro, ZaharEditores, 1979; pp. 124-129.

18 Silviano Santiago se apóia emAntonio Candido para concluir quea crítica havia perdido toda a suaforça. “Antonio Candido, ementrevista concedida à revista Vejaem outubro de 1975, comentava avida e morte dessa produção: ‘NoBrasil, até trinta anos atrás, a críticase fazia em artigos de cinco a dezpáginas nos rodapés dos jornais,semanalmente. Escritos por pessoasintelectualmente sérias, produziam

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A série mais complicada para ser nomeada é a emergente. Estasérie, no Folhetim, é representada por um grupo de jovens profes-sores, que tinham obtido titulações nos fins dos setenta ou estavamfinalizando seus trabalhos acadêmicos à época, e começam aemplacar seus nomes, ao lado de seus consagrados “orientadores”,nas páginas do suplemento. Esses nomes, por terem formações di-ferenciadas, muitas vezes fora do núcleo das preocupações especí-ficas do Concretismo, ofereciam alternativas de leitura do fenôme-no literário, ao mesmo tempo em que se afastavam das polêmicasassociadas à “ordem do dia”. Esses autores passam a ter destaque ese consolidam depois de 1984. Para ficar em apenas dois exem-plos, já que eles figuram entre os mais publicados de alguns anose, ao mesmo tempo, tiveram suas formações em universidade loca-lizadas nos dois extremos do eixo Rio-São Paulo (embora não sepossa esquecer de vários outros nomes que não aparecem por te-rem, ou publicado menos ou de forma mais esporádica), FloraSüssekind e Raul Antelo constituiriam duas referências da sérieemergente, que venho tentando nomear. Porém, ao contrário doConcretismo (que pode e quer ser localizado como um grupo comramificações diversificadas sobre os ramos da cultura), a série emer-gente poderia ser mais bem explicitada se a tomássemos como umaformação, já que seria impossível pensar em eixo capaz de ofere-cer continuidade, ou que fosse adequado para definir um núcleocentral. Em outras palavras, esta série pode ser mais bem compre-endida se a aceitarmos como uma formação que não possui, ne-cessariamente, objetivos comuns, mas expressam individualida-des e trajetórias distintas.

Resta, e, neste caso, a categoria residual de Raymond Williamspode oscilar, a presença de Silviano Santiago, que foi o único cola-borador a ser mantido em todas as fases do suplemento. Estaperformance ou é, às avessas, residual (e desta forma teríamos duasformas de resíduos: uma que permanece e outra que desaparece),ou esta presença pode ser lida como uma categoria à parte, cujaprincipal característica é a regularidade. Neste caso, prefiro pensarna série “Silviano Santiago” como um residual regular. Porque elaseria regular parece-me claro. Mas, por que ela seria também resi-dual? Esta série procurou ser tolerante e camaleônica para se man-ter dentro dos limites do jornal. Para obter resultados, seus textostiveram que, muitas vezes, fazer concessões e, em muitos casos,abraçar o relativismo para se fazer entendido. A série “Silviano San-tiago” também procurou denunciar os excessos teóricos dos pro-fessores no campo jornalístico, buscando um consenso que unissea grande imprensa e a divulgação acadêmica sem os excessos epedantismos comuns ao meio universitário. Todo este enorme es-forço para se manter entre a ficção, a reportagem, o ensaio e orelato biográfico não serviram, contudo, para tornar esta práticadominante entre os meios acadêmicos. Esta série andou no fio danavalha: bom gosto demais para ser dominante entre os jornalistasengajados; tolerante e de mau gosto para se tornar parâmetro entreo meio universitário da década de oitenta. O bom gosto esperado ea sedução desejada viriam, mais tarde, com o adensamento denomes ligados ao Concretismo.

Todavia, para aqueles que apostavam em um regime de textosmais flexíveis e menos teóricos, este movimento representou umaumento significativo do abismo entre o suplemento e o leitor. Poroutro lado, não se deve perder de vista que o micro-arquivo “SilvianoSantiago” afeta direta e indiretamente a série emergente, influenci-ando-a a promover vários deslocamentos que marcarão os rumosdos estudos literários, transformando-os e ampliando seus limites

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até a abertura de seus canais para a discussão sobre o fenômeno dacultura.

Desse modo, gostaria de insistir em um ponto, um ponto queune e para o qual convergem dois diferentes modos de se estimu-lar, na série emergente, a ascensão da preocupação com os fenô-menos da cultura, relativizando-os às questões de domínio restritodos estudos literários. Se a série concretista permitia alguns aban-donos relacionados ao cânone dos estudos literários (mesmo queisso significasse a instauração de um outro cânone), questionandoas formas diacrônicas de se interpretar as questões literárias; se asérie “Silviano Santiago” apontava, talvez de forma mais clara, queseriam necessárias mudanças de perspectiva para se ampliar oslimiares da compreensão dos traços culturais de nossa literatura;existe neste momento um apelo sintomático que modificaria a nossacompreensão das tramas literárias do final do século XX.

A partir de 1982, a influência do paideuma poundiano e dateoria da tradução de Walter Benjamin passam a servir, cada vezmais, de norte para se implementar e disseminar os ideaisconcretistas entre nós. Neste contexto, o debate entre Augusto deCampos e Roberto Schwarz, apenas indicado anteriormente, pre-cisa ser retomado agora para esclarecer algumas passagens desteitinerário, que, sem dúvida, auxiliou na ampliação da liberdade dotrabalho teórico da série emergente.

Como resposta à publicação do polêmico poema “Póstudo”(Folhetim, nº 419, 1985), de Augusto de Campos, Roberto Schwarzescreve “Marco histórico” (Folhetim, nº 428, 1985), um ensaio noqual atacava o Concretismo por seu excesso de centralização dopoder. De acordo com o autor, “o poema ‘Póstudo’ é um exemplodo procedimento chave dos concretistas, sempre empenhados emarmar a história da literatura brasileira e ocidental de modo a cul-minar na obra deles mesmos, o que instala a confusão entre teoriae a auto-propaganda”. O número seguinte do Folhetim (nº 429,1985) trazia a resposta de Augusto de Campos ao ataque “socioló-gico e reducionista” de Schwarz. O texto procurava enfatizar ocaráter vanguardista e visionário do Concretismo e a sintonia domovimento ao que havia de mais sofisticado e atual em matéria deteorias contemporâneas. Ao contrário de Schwarz, que representa-ria o passado das análises literárias brasileiras, os concretistas esta-vam revestidos pela representação do futuro. Em dezembro de 1985,Schwarz publica “Mão no pau”, um poema “dedicado” aosconcretistas; o recado, segundo o poema indica, apontava para oonanismo teórico e ao egocentrismo das iniciativas concretistas nocampo da teoria literária.

Deixando os ataques pessoais de lado, deve-se reter que o de-bate trouxe à tona um problema de interpretação histórica, quesubjaz à discussão. Quando Augusto de Campos acusa RobertoSchwarz de ser um guardião da tradição, portanto, incapaz de re-conhecer o valor e a importância da vanguarda que o Concretismosignificava, parece-me, exageros à parte, que Augusto de Camposestá insinuando, apoiado em Haroldo de Campos, que a noçãodiacrônica da história literária havia sido, de uma vez por todas,derrocada com o advento do Concretismo. Sendo assim, a pers-pectiva diacrônica da história, impregnada pela noção de progres-so, não seria mais suficiente como metodologia capaz de explicaro fenômeno literário contemporâneo. Distendendo-se um poucomais, urgia-se por entender com maior amplitude a proposta de seefetivar análises sincrônicas do fenômeno literário. Neste contex-to, Roman Jakobson e Walter Benjamin foram instalados como es-tandartes “vanguardistas”, que respondiam, respectivamente, pe-

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uma visão empenhada, que aomesmo tempo informava e formava oleitor. Isso acabou’”. SilvianoSantiago, “A crítica literária nojornal”, in: Nuevo texto crítico, p.65.

19 “Desde 1948, com a sua colunadominical ‘Correntes cruzadas’,Afrânio Coutinho defendia a tese deser impossível ‘tratar o fenômenoliterário em termos puramentejornalísticos, como fazia a críticatradicional’, já que o ‘estudo daliteratura em bases rigorosas,inclusive científicas’ superava ‘ovelho impressionismo diletante evazio, baseado no gosto e naopinião’”. Silviano Santiago. Ibidem,

los princípios gerais dos eixos interpretativos (sincrônicos ediacrônicos) e pela crítica da noção de progresso oriunda da tradi-ção linear da história.

Baseado nesta exposição de motivos, entendo que o Folhetim— e o espírito da época exigia a mudança — estimulava a consoli-dação de análises e interpretações centradas na literatura, mas quejá ultrapassavam alguns limites dos estudos literários “puros”, quenão admitiam a excessiva aproximação com outros camposassociativos. Sendo assim, tanto a série residual regular quanto asérie dominante serviam de estímulo, mesmo que os pontos decontato fossem, muitas vezes, apenas tangenciais, para que a sérieemergente se desvencilhasse da praxis mais tradicional. Este seriaum dos possíveis cenários criados a partir do suplemento, embora,fugindo de meu alcance, não se possa perder de vista que outrosre-arranjos estavam sendo processados do ponto de vista externo àcirculação de idéias no Folhetim.

Ao se optar pela colaboração em um suplemento com as carac-terísticas do Folhetim, tinha-se em mente as restrições de espaçoinerentes às regras nada ortodoxas do ensaio. O ensaio advoga vá-rias renúncias por parte daquele que o escreve: o trabalho das cita-ções, bem como a extensão delas devem ser repensados, já que oespaço destinado ao texto tem limites precisos. A exposição dasidéias, a argumentação, não poderia obedecer à mesma metodologiade trabalhos acadêmicos, devido à redução do espaço. O uso dedados, estatísticas, depoimentos, gráficos, fotografias, úteis para secomprovar uma ou outra afirmação ficam prejudicados, compro-metendo, muitas vezes, a compreensão do texto. Para além dasrestrições espaciais, e já que a defesa de teses está comprometida,o ensaio se limita a uma urdidura mais leve e possibilita o lança-mento de alguma hipótese parcial de análise, sob medida para oescasso tempo do leitor e o espaço, não menos limitado, da grandeimprensa.

Neste contexto, o ensaísmo tinha a função de explicitar boaparte das mudanças que foram engendradas no interior das redesteóricas significando alterações importantes entre a “literatura” e a“teoria”. Portanto, o início do movimento de substituição da litera-tura pela “ficção teórica” seria reforçado, embora, naquela altura,não se reconhecesse boa parte da dinâmica do processo. Aliás,pode-se tomar a expressão “ficção teórica” como um dos possíveissinônimos para o termo ensaio, já que os rigores do cientificismonão se satisfazem com sua diversidade de incoerências.

Em “A crítica literária no jornal”, de 1995, Silviano Santiagoprocurava recolocar o problema do declínio e morte da crítica lite-rária nos jornais, enfatizando a necessidade de se pensar em alter-nativas que unissem a atividade da imprensa, da universidade e daliteratura.18 Neste texto, o autor aponta para o beco-sem-saída noqual haviam aportado o gênero ensaio, que pecava pelo “excessode pedantismo e de notas de pé-de-página”; e a crítica literária,por perder de vista a preocupação com o “exercício criterioso darazão”. De acordo com Silviano, foi durante a segunda metade doséculo XX que começaram a surgir os suplementos literários (liga-dos à grande imprensa) com a preocupação de minimizar o estadolitigioso no qual se encontravam os críticos impressionistas e osprofessores universitários. Este litígio, conseqüentemente, exigia,dos críticos impressionistas, uma especialização fundamentada emprincípios mais rígidos de análise do texto literário. Contudo, aformação ensaística derivada do Folhetim nesta terceira fase reor-ganiza o cenário desta disputa. Este conjunto de textos reorganiza-rá o campo para uma batalha que ainda estaria por vir.

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Quando o Folhetim é ocupado por consagrados professoresuniversitários ao lado dos estreantes, o resultado não traz de voltaa retomada do “exercício criterioso da razão”, revigorando, poroutro lado, o adensamento do “pedantismo” presente no ensaio. Oabismo entre a crítica literária e os professores universitários alar-ga-se quando se percebe, durante os anos oitenta, a importânciacrescente das teorias que mesclam e ampliam sua circulação poráreas até então pouco conhecidas da maioria dos especialistas. Seos críticos impressionistas foram criticados no passado pela faltade rigor científico19, os sucedâneos da crítica científica encontra-vam mesclas junto ao formalismo, ao estruturalismo, à semiótica,ao marxismo, à psicanálise; ou encontravam respaldo em outrasáreas do conhecimento como a história, a sociologia, a antropolo-gia, a filosofia; ou se abrigavam em abordagens culturais que in-cluíam o cinema, a música, o teatro. Nestes textos provenientes doensaísmo do suplemento, ao contrário de estamparem novos escri-tores, como se esperava do rodapé literário, ensaiavam-se análisese interpretações sobre especificidades relacionadas, por exemplo,ao ato de traduzir; do mesmo modo, eram propostos estudos sobrea linguagem, e seus usos, em romances consagrados, principal-mente da primeira metade do século XX; proliferavam as análisesde poemas, algumas de tanto impacto que se tornavam “parte” dopoema; alguns temas se tornam recorrentes: literatura e história,literatura e psicanálise, literatura e filosofia. Estas aproximações setornam uma rotina nos anos oitenta, transformando ainterdisciplinariedade em uma conseqüência “natural”.

É neste contexto, de abordagens literárias interdisciplinares so-madas ao suporte ensaístico e à atmosfera volátil e provisória dojornal, que se percebem as transmutações e os usos meta-teóricosque esta formação passa a desencadear. Neste caso, haveria pelomenos duas importantes formas para se enfrentar a formaçãoensaística proveniente da terceira fase do Folhetim. A primeira for-ma é individual e a outra, coletiva. Caso fôssemos examinar, textoa texto, a dinâmica das abordagens literárias publicadas neste perí-odo, poderíamos averiguar a regularidade persistente dos estudosliterários. Entretanto, quando pensamos neste conjunto de textoscomo uma formação, o foco de interesse se desloca para interpre-tações de outra natureza. Por exemplo, se pensarmos no ensaiocomo suporte destas análises literárias, este gênero, assistemáticopor natureza, enfraquece o método que ele carrega. Sendo assim,ao se interpretar o fenômeno ensaístico como um sintoma da as-cendência dos estudos literários, estaríamos, paradoxalmente, en-fraquecendo este enfoque. Este enfraquecimento da vertente dosestudos literários oferece uma brecha pela qual começam a brotaroutras séries que minam a preponderância dos estudos literários.Não se discute que a maioria dos textos publicados seja orientadapela perspectiva dos estudos literários (cujas principais caracterís-ticas podem ser facilmente reconhecidas pela manutenção de umaordenação canônica e um rígido sistema de valores de reconheci-mento universal).

Assim, pode-se pensar nas exceções. A série de ensaios quepolitizam a literatura latino-americana vem reforçar a perspectivacultural da teoria literária que, neste caso, precisa demonstrar asimplicações políticas de suas escolhas.20 Portanto, esta série aban-dona, gradativamente, os métodos puros da crítica literária. Emoutro sentido, devo citar um exemplo que utiliza ainterdisciplinariedade para reforçar o apelo literário. Dos quatroensaios publicados pela professora Leyla Perrone-Moisés21 no su-plemento, dois deles ampliam os limites da literatura, pois depen-

p. 67.

20A série dedicada à América Latinanão apresenta um grande número detextos. A média passa um pouco deum por ano, entretanto são asformulações sobre o tema quedespertam a atenção. Quando sepensa a literatura latino-americanase radicaliza o viés político e seressalta a necessidade de se pensar oliterário como cultural.

21 São estes os ensaios publicadospela autora: “Promessas, encantos eamavios”, Folhetim, n. 341, 31, jul.1983, pp. 6-7. “A querela deFassbinder x Genet”, Folhetim,n.361, 18 dez. 1983, pp. 10-11. “Oinventário de Danilo Kis”, Folhetim,n. 512, 28 nov. 1986, pp. .9-10.“Uma leitura plástica de Pessoa”,Folhetim,n. 595, 10 jun. 1988, pp.11-12.

22 Fredric Jameson, “Sobre los‘Estudios Culturales’”, in: EstudiosCulturales. Reflexiones sobre elmulticulturalismo, Trad. MoiraIrigoyen. Buenos Aires, Barcelona eMéxico: Ed. Paidós, 1998, pp. 71-72.

23 Otavio Frias, “Terceira dentição”Editorial, Folhetim, n.221, 12 deabril de 1981, p. 2.

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dem diretamente de outras áreas de conhecimento para dar contadas implicações interpretativas. Em “A querela de Fassbinder xGenet”, a autora analisa a transposição de Querelle de Jean Genetem filme homônimo, dirigido pelo diretor alemão Fassbinder. Otexto ressalta o reconhecido talento do diretor, que consegue, atra-vés da utilização de numerosos recursos cinematográficos, recom-por as perdas que a linguagem do cinema impõe às adaptações deromances. Segundo o texto, “Fassbinder, optando pelo mundo dosmachos, resgata o feminino, não como poder que vence, mas comoa soberania do amor, desejado e impossível”. Em “Uma leitura plás-tica de Pessoa”, a autora, interpretando alguns efeitos plásticos dosquadros do pintor português Costa Pinheiro, ressalta os principaisaspectos gerados pela influência do universo literário de FernandoPessoa. Neste caso, o texto indica, mais uma vez, a supremacia docampo literário sobre o universo das artes plásticas.

Nestes exemplos, percebem-se os usos políticos que o termointerdisciplinaridade suporta. Se a série “latino-americana” apon-tava um sentido que, muitas vezes, já indicava que o literário preci-sava equacionar melhor a divisão de seu espaço com outras áreasdo conhecimento, o segundo exemplo, mesmo que lançasse mãode um expediente parecido, deixava claro que o reconhecimentoda supremacia do literário sobre áreas tão próximas e, às vezesdependentes, determinavam um uso do interdisciplinar como re-sistência.

Atravessando os exemplos anteriores, gostaria de intercalar umterceiro caso que mostra uma outra faceta da crise na qual se en-contravam os estudos literários nos anos oitenta e, ao mesmo tem-po, pode auxiliar na compreensão das complicações adicionaisque a formação Folhetim carrega. Em “Anch’io sono scritore! (Eutambém sou escritor!)” (Folhetim, n. 495, 3 de agosto de 1986, pp.2-3), a professora Leda Tenório da Motta mostrava seu desespero eindignação diante da configuração de um cenário pouco profícuoao desenvolvimento da literatura e, conseqüentemente, isto pode-ria indicar um declínio de seus estudos. De acordo com o texto -que analisava uma enquête, realizada pelo jornal francêsLibération,com vários escritores que respondiam a pergunta: porque eles escreviam? –, os depoimentos dos escritores europeus ser-viam apenas para enfatizar a imensa falta de espírito e a completaperda de sentido da literatura, demonstrando a excessiva pobrezade idéias e de ações associadas ao campo literário. O texto nosinteressa, especialmente, porque dialoga com a série “América La-tina”, comprovando, de certa forma, a necessidade de se apoiarem outras disciplinas para continuar “a fornecer sentido” à matérialiterária, mesmo que isso significasse uma guinada cultural. Poroutro lado, o texto instala um grande problema para os defensoresda supremacia literária, pois ele advoga a ineficiência da literaturade toda uma época, empurrando, inexoravelmente, esta justifica-ção do literário aos limites de uma defesa do passado, na medidaem que questiona a falta de sentido do fenômeno literário contem-porâneo.

Durante a década de oitenta a teoria passa a suplantar a produ-ção ficcional para poder, de algum modo, retomar o papel anteriorda literatura, que havia sido o de delinear os principais traços denossa identidade, oferecendo os contornos de uma unidade racial,nacional, política e, sobretudo, cultural. Portanto, a retomada cul-tural da literatura, mesmo que esta retomada seja apoiada muitomais no ensaio do que na ficção (ou, de outro modo, o ensaiocomo ficção teórica), substitui e questiona várias tentativas de sesolucionar a crise estética dos anos oitenta: neste caso, o ensaísmo

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se apresenta como uma resposta estética da época. Sendo assim, aterceira fase do suplemento reforça o argumento da derrocada dosenso comum como crítica e, ao mesmo tempo, potencializa aidéia de que a crítica da década de oitenta não se encontraria maislocalizada na literatura (de resistência ou não), mas, longe dali, opoder da crítica estava sendo recuperado pelas diversas versões doensaísmo teórico.

Ao que parece, é a perspectiva cultural que sai revigorada, di-ante de tantas diferentes tentativas de mesclas metodológicas maisou menos felizes. Uma época que necessita do “antiparadigma”da ficção teórica e que não objetiva encontrar o cientificismo atodo custo parece ser um período ideal para a proliferação de li-nhas de fuga e desvios, onde o imperativo “cortar caminhos!” ser-ve como linha geral de uma arquitetura rica em crises (econômi-cas, políticas, sociais) que, invariavelmente, afetavam os domíniosliterários.

O redemoinho dos textos que circularam durante a terceira fasedo Folhetim parece estar respondendo de forma geral à queda dosgrandes modelos interpretativos que, formando modulações par-ciais dotadas de potenciais mesclas, iniciam um processo de pas-sagem do modelo exclusivamente literário para o perspectivismocultural. O cultural parece iniciar um movimento emergente quetraz consigo uma nova categoria crítica. Refletindo sobre a ques-tão, Fredric Jameson define a ascensão dos estudos culturais nosseguintes termos:

Na realidade, eu deveria pôr as cartas sobre a mesa edizer que assim como acredito que é importante agora(e interessante desde o ponto de vista teórico) discutire debater sobre os Estudos Culturais, não me preocupaparticularmente que tipo de programa finalmente selevará adiante ou se, em primeira instância, surgiráuma disciplina acadêmica oficial deste tipo.Provavelmente isto se deve a que, para começar, nãocreio muito nas reformas dos programas acadêmicos,mas sobretudo porque suspeito que uma vez que setenha levado a cabo publicamente o tipo de discussãoapropriada, se terá cumprido o propósito dos EstudosCulturais, para além do marco departamental em quetenha lugar dita discussão. (E este comentário serelaciona especificamente com o que considero aquestão prática mais importante que está em jogo aqui,a saber, a proteção dos jovens que estão escrevendoartigos nesta nova ‘área’, e a possibilidade de que essaspessoas conquistem postos de trabalho.)

Também deveria dizer, contra as definições (Adorno gostava derecordar-nos do rechaço de Nietzsche frente a tentativa de definiros fenômenos históricos como tais), que acredito que, de algumaforma, já sabemos o que são os Estudos Culturais; e que ‘defini-los’implica descartar o que não é, extraindo a argila supérflua da está-tua que emerge, traçando um limite a partir de uma percepçãoinstintiva e visceral, tentando identificar o porquê de ele não sertão abrangente. Finalmente, se chega ao objetivo, embora em al-gum momento deva surgir uma ‘definição’ positiva do termo.

Seja o que for, os Estudos Culturais sugiram como resultado dainsatisfação a respeito de outras disciplinas, não só por seus con-teúdos, como também por suas muitas limitações. Neste sentido,os Estudos Culturais são pós-disciplinares; porém, apesar disso, ou

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talvez precisamente por esta razão, uma das idéias fundamentaisque o define é a sua relação com as disciplinas estabelecidas. Pare-ceria apropriado, então, começar pelos protestos que fazem os ‘ali-ados’ dessas disciplinas com relação ao abandono, por parte dosEstudos Culturais, de objetivos que consideram fundamentais.22

Esta alternativa crítica, que vinha se incorporando e dava seusprimeiros passos nos anos oitenta, se nutria de algumas desconfi-anças em relação aos becos-sem-saída que os caminhos tradicio-nais da crítica haviam criado, impedindo os movimentos de ampli-ação de seus limites. Pretendeu-se, inicialmente, denunciar oconservadorismo e a resistência do meio universitário em dialogare dividir espaço com os jornalistas; depois, fechou-se o foco daspreocupações (quase as esgotando) em torno de nomes consagra-dos; a seguir, foram as tentativas de interdisciplinaridade que fo-ram, a todo custo, subvertidas para funcionarem como resistência;finalmente, os processos de exclusões literárias passam a convivercom os regimes de cotas sociais. Os estudos culturais não são aúnica resposta para as prementes questões finisseculares, mas fun-cionam como a principal oposição, capaz de “atravessar” os dis-cursos constituídos.

Ao gosto dos modernistas brasileiros, Otávio Frias23 se referiaàs fases do Folhetim utilizando a metáfora biológica das “denti-ções”. Ao longo de minha exposição, preferi não utilizá-la porqueas dentições humanas sugerem uma interpretação que pode serexcessivamente mecânica, embora, neste momento, valha a penalembrá-la. A primeira dentição é a mais breve e é aquela adequadaà digestão dos alimentos mais tenros e, ao mesmo tempo, ela nosprepara, moldando-se ao espaço interno da boca, a um período detempo maior. A segunda dentição deveria ser aquela que nos acom-panharia pelo resto de nossas vidas; embora isso raramente acon-teça, esta segunda dentição é, como a primeira, natural. A terceiradentição não é natural e inaugura, às vezes de forma prematura,uma época de implantes, o que transforma a nossa boca em umespaço destinado às mesclas e ao hibridismo, onde se pode encon-trar o natural ao lado do artificial em perfeita harmonia. Contudo,à primeira vista ou ao primeiro sorriso, é muito difícil aos olhos dosleigos detectar a existência ou não de implantes artificiais. Nestachave, o ensaio poderia ser entendido como uma série de textos“artificiais” dotados de mesclas e hibridizações.

É neste cenário que o ensaísmo poderia ser compreendido comouma decorrência da síndrome moderna do fragmento, que, trans-formando o instantâneo em estética, assume o ônus de inauguraruma dialética sem síntese, ou, para além da dialética, os sofismasinspiram uma jornada estéril, cuja hibridez não permite, pelo me-nos nas formas tradicionais, a geração de herdeiros. Iniciei estetexto depositando muitas expectativas em relação ao poder reativodo ensaio frente aos dilemas dos anos oitenta. Apostei na idéia deque o ensaio pudesse arcar com o peso e a responsabilidade demover estruturas culturais já consolidadas. Porém, creio ter perce-bido que, de alguma forma, o teor “revolucionário” do ensaio forasendo subvertido, transformando-o em um “gênero conservador”e, embora jovem, quase caduco.

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Pierre Menard resulta de um ser híbrido, mistura de StéphaneMallarmé e de Jorge Luis Borges, segundo Silviano Santiago emtorno de 1970:

Pierre Menard, romancista e poeta simbolista, mastambém leitor infatigável, devorador de livros, será ametáfora ideal para bem precisar a situação e o papeldo escritor latino-americano, vivendo entre aassimilação do modelo original, isto é, entre o amor eo respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzirum novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes onegue.1

*

Diante dessa espécie rara de canibal, deve-se perguntar, já quese trata do ponto de partida (e de chegada): que espécie de antro-pófagos devoravam-se na Argentina, naquele momento, senão seusnovos críticos, como aqueles reunidos em torno do projeto, dosprojetos da revista Los Libros? Sua intersecção fundamental, assimcomo aquela de Santiago – ou Leyla Perrone-Moisés, ou Haroldode Campos – no Brasil, se dá no período com os militantes dachamada teoria crítica francesa, denominados, problematicamen-te, telquelianos – voluntariosos manifestantes da diferença no ter-reno da cultura e da política, isto é, do pensamento 68 em uma desuas vertentes mais polêmicas e atuantes, aquela do terror teóricoe da dissidência, seja do surrealismo, seja do Partido ComunistaFrancês, ou conforme os termos de um tardio libelo de Julia Kristevanas páginas da revista.2

De modo que é preciso perguntar: qual o mito ou quais osmitos do telquelismo em sua constituição – através das mais diver-sas apropriações teóricas –, em sua expansão e também em seudeclínio?

*

Era preciso buscar as ruínas da destruição de um conceito “ide-alista” e de transparência ambígua, segundo a última vanguardafrancesa: o mito da linguagem vista enquanto presença. Visão que,mais tarde, será considerada convencionalista ao extremo – “ausens où elle s’est opposée à toute conception référentielle de lafiction littéraire”3 –, ao que não se deveria esquecer de retrucar quese tinha consciência disso, como no caso de Roland Barthes.4

É preciso criticar as ambições de ruptura e os limites da práticade um intelectual dissidente, que perpassam o ideário telqueliano– posto que havia chegado a hora – e analisar de que forma essaspedras-de-toque se manifestam em certas figuras, cujo nome sãomuitos nomes, com base em uma determinada noção de sujeito,vale dizer, à la Menard.

FRAGMENTOS DE UMA POÉTICAVERBIVOCOVISUAL NÃO NACIONAL*

* O ensaio aborda as idéias e osposicionamentos de grupos eperiódicos culturais franceses,argentinos, brasileiros e norte-americanos dos anos 60 e 70, e fazparte do primeiro capítulo da teseTelquelismos latino-americanos. Ateoria crítica francesa no entrelugardos trópicos. Pós- Graduação emLiteratura, UFSC, 2002.

1 Santiago, S., “O entrelugar dodiscurso latino-americano”, Umaliteratura nos trópicos, 2ª ed. Rio deJaneiro: Rocco, 2000, p. 23 (1ª ed.1978).

2 V. Kristeva, J., “Un nouveau typed’intellectuel: le dissident”, Tel Quelnº 74, Paris, hiver 1977, pp. 3-8.

3 Compagnon, A., Le démon de lathéorie. Littérature et sens commun,Paris: Seuil, 1998, p. 114.

4 V., p. ex., Culler, J., As idéias deBarthes, São Paulo: Cultrix/Edusp,1988.

Jorge WolffUNISUL

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*

Existem infinitas leituras da problemática proposta pelo grupoTel Quel (futuramente L’Infini), que entendia elaborar sistematica-mente uma teoria e uma prática revolucionárias da escritura masque, para os adversários, não poderia sequer se caracterizar comoum grupo.5 Com a abordagem de algumas delas, remeto às figurase problemas em foco e, ao mesmo tempo, delineio e informo mi-nha própria leitura, assim como o fazem os conceitos de texto eteoria, sujeito e dissidência, que tangenciam esta mescla de relatosdesencadeada por dois deles em particular, eleitos em função deuma certa cartografia contemporânea – a América do Norte em1973, a América do Sul em 1998, digamos.

Parto, portanto, de uma versão argentina do “fenômeno”, umavez que se trata de um ataque frontal, de uma interpretaçãohipercrítica, próxima no tempo e no espaço, além de bastante su-gestiva ao refletir sobre o tema pelo viés dos câmbios provocadospela explosão da cultura e dos meios de massa precisamente emtorno de 1970. Com isso, entre o conceitual e o anedótico, trato deintroduzir a série de problemas recorrentes no decurso de sua grandeguerra discursiva. Problemas estes incitados sobretudo pelas fre-qüentes mutações político-ideológicas, características da longa tra-jetória de sua “refinadísima revista” (no dizer de Beatriz Sarlo),6

sobre um certo e permanente substrato de literatura.

*

“En un movimiento progresivo, que alcanzó entoncessu culminación cuantitativa en los años sesenta, artistasy letrados se apropiaron del espacio público comotribuna desde la cual dirigirse a la sociedad, es decir,se convirtieron en intelectuales”. Claudia Gilman7

*

Em um artigo publicado por um jornal de Buenos Aires aostrinta anos de Maio de 68, Alfredo Grieco y Bario vê o que chamade “operación Tel Quel” enquanto uma capitalização desabusadae oportunista da insurreição parisiense por parte de intelectuais“desbordados”, cujas teorias “monumentais” se viram surpreendi-das pelos acontecimentos, que não teriam conseguido antever eque tratariam de reverter a partir de então em proveito próprio.8

Note-se que o texto é disparado com uma referência tão solta quantoobjetiva à metodologia do sociólogo Pierre Bourdieu, ilustre e fe-roz inimigo da “operação” (a quem remeto adiante), o que permitesituar desde já alguns dos principais contendores desta intriga departis pris e de idéias-força.

A operação teria sido desencadeada, segundo o articulis-ta, com a publicação, em fins de 68, da Théorie d’ensemble, aantologia manifestária que melhor define o chamado telquelismono período em que exerce grande influência intelectual, até diga-mos o declínio de uma certa imagem do império maoísta, construídaem torno de uma determinada teoria e de uma suposta prática derevolução cultural. “El de Tel Quel es tal vez el mejor ejemplo deun grupo que fue catapultado a la fama, por los acontecimientosde mayo”, acusa Grieco y Bario, com evidente vontade depolemizar, à maneira do líder do grupo visado:

Apropiarse del Mayo Francés permitía a Tel Quelaprovechar mejor que ningún otro grupo de izquierdauna situación de tránsito que ha caracterizado a la

5 O que define um “grupo”? Piglia,après coup, oferece uma idéiairônica do que, para ele, não o seria:“O último grupo literário de que fizparte foi o da revista El traje delfantasma, que editamos (1985-1988)com Juan José Saer e Juan CarlosMartini. Não sei se uma revista quesó publicava necrológios e panfletosé suficiente para formar um grupo”.Cf. “Retrato pessoal”, O laboratóriodo escritor, São Paulo: Iluminuras,1994, p. 47 (originalmente emBabel, Buenos Aires, dez. 1990).Antecipo aqui (mais) um paradoxo:quando Los Libros se torna um grupofechado, a partir de 73, poucopublica além de panfletos enecrológios.

6 Conferência “La literatura en laesfera pública”. Colóquio da Abralic,UFMG, Belo Horizonte, 3 ago.2001.

7 Cf. Gilman, C., Cap. II: “Elprotagonismo de los intelectuales yla agenda cultural”, Entre el fusil y lapalabra: dilemas de la literaturarevolucionaria, Buenos Aires:Sudamericana, 2003.

8 Greco y Bario, A., “La operaciónTel Quel y la alucinación según laEscuela de Frankfurt”. Radar/Página12, Buenos Aires, 3 mayo 1998, p. 7.

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cultura gala: el pasaje de la imprenta a la televisión,de escritores a celebridades; la transformación devolúmenes filosóficos y novelas en talk-shows (o enpretextos para talk-shows), de los movimientos literariosen modas culturales, de las obras maestrasdesconocidas en nombres famosos.

Duas observações pontuais: primeiro, o sociólogo argentinoapresenta a transição vivida à época como se fosse exclusividadeda “cultura gala”; e, segundo, todo polemista é ele mesmo um tipode oportunista, ao desejar antes de mais nada esquentar o que enun-cia, como se pretendesse publicar antes de escrever, conforme oaforismo de Osvaldo Lamborghini. Para este fim, o autor argumen-ta que a operação consistiu em relacionar ou confundir, em seustermos, o pensamento então dominante – o estruturalismo – com ainsurreição, transformando-os assim na própria definição de “Pen-samento 68”, em detrimento da “filosofia da consciência” e emcontradição com um movimento que, como diz de modo revelador(já que representa um lugar comum), privilegia “las estructuras so-bre la historia, lo frío sobre lo caliente”. Apesar do caráterdeterminista da argumentação, a crítica ganha alguma pertinênciaao atacar a junção de materialismo histórico com “un ahorasospechoso materialismo semántico”, proposta pela vanguardatelqueliana, que em torno de 69 se volta de modo religioso à figurade Mao Tse-tung e seu credo particular, em nome de uma retóricada revolução não apenas cultural mas também permanente ou in-finita.9

*

“Não que os estudantes tenham provocado as posiçõesrevolucionárias dos intelectuais, mas estas seincendiaram com o estopim universitário”. Leyla Perrone-Moisés10

*

Conforme implica ou impõe (mais que propõe) o seu sugestivotítulo – “La operación Tel Quel y la alucinación segundo la Escuelade Frankfurt” –, a segunda parte do artigo de Grieco y Bario analisaa relação não menos complexa dos frankfurtianos com o movi-mento desatado pelos estudantes franceses. Enquanto HerbertMarcuse, um best-seller entre os revoltosos, não deixaria de apoiá-los nos Estados Unidos de forma incondicional, são por outro ladobem conhecidas as posições categoricamente negativas adotadas àépoca por Adorno e Habermas. Amparado na racionalidade libe-ral, Habermas referiu-se à “confusión ininteligible” (no castelhanode nosso redundante crítico) entre tomada de poder de fato e inva-são de universidades, confusão que do ponto de vista clínicocorresponderia a “estados alucinatórios” – expressão que remeteao estado “absolutamente psicótico” apontado por Beatriz Sarlo,ao tentar definir o comportamento do grupo maoísta que monopo-liza despoticamente a revista Los Libros – ao qual estava ela mesmaligada – a partir do nº 29, durante o seu terceiro ano de existência,até o fim, com a ditadura militar implantada em 76.

Já o infinito aclimatado começaria, de certo modo, em 1978com Punto de Vista – embora o infinito aclimatado não seja obvia-mente L’Infini.

*

9 Na Histoire de Tel Quel devida aPhilippe Forest (Paris: Seuil, 1995),talvez o principal membro dasempre ativa claque de PhilippeSollers, a versão naturalmente éoutra. Forest pretende fazer ali umarevelação: os telquelianos, apesar deainda ligados ao PCF em 68, desdemuito antes e em segredo, já teriamse definido como pró-chineses...

10 “Os intelectuais e a revoluçãocultural”. Suplemento Literário/OEstado de S. Paulo, 10 ago. 1968,p. 1.

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Em 1983, Tel Quel vira em definitivo à direita com L’Infini.

*

Com o auxílio do crítico e da crítica argentina, todos caminhoslevam a Pierre Bourdieu, autor de, entre muitos outros, Contrafogos,polemista ele próprio, tanto quanto Sollers, conforme bem o de-monstra, por exemplo, em “Sollers tel quel”, um pequeno panfletoaparecido no Libération em 1995 (ano de resgate acadêmico e edi-torial do telquelismo), em resposta a um artigo no L’Express em queSollers reafirmava seu apoio a um político conservador.11

Para um irado e ao mesmo tempo satisfeito Bourdieu, “na con-fissão de um título, ‘Balladur tel quel’, condensado em alta densi-dade simbólica, quase bom demais para ser verdade”, se revelaria“toda uma trajetória: da revista Tel Quel a Balladur, da vanguardaliterária (e política) fajuta até a retaguarda política autêntica”. Pros-seguindo até o fim com esse gênero de vocabulário peso-pesado, oeminente sociólogo acusa o líder do suposto movimento de saberapenas “macaquear gestos do grande escritor, e até fazer imperar,durante um momento, o terror nas letras”.

*

Registre-se a oportunidade de enfatizar esse momento, propor-cionada pelo sociólogo francês em seu ataque, uma vez que apon-ta com precisão para a execução e a voga da “operação telqueliana”,nos termos de um discípulo sul-americano, a quem em nada soariainsólita a associação proposta por Bourdieu entre o diretor de TelQuel – e hoje L’Infini – e o finado François Mitterrand – “o equiva-lente em política, e ainda mais em matéria de socialismo, do queSollers foi para a literatura, e ainda mais para a vanguarda”.

A noção de momento no sentido de paradigma permite reme-ter ao estruturalismo e ao telquelismo, tomados como os dois la-dos de uma só moeda – falsa, diriam seus mais polidos detratores.Considerados justamente os poderes do falso, além da dinamizaçãodo banquete estrutural a partir dos idos de 67, importa distinguir omomento estruturalista – conforme o vê, por exemplo, o historia-dor François Dosse12 – e o momento telqueliano que o enxertaria(não se tratando de sucessão ou evolução), levando-se portanto emconta que este inclui e exclui simultaneamente aquele, e vice-versa.

*

O telquelismo, ainda que sem tal denominação, também passaa circular, e a peso de ouro, nas universidades norte-americanas apartir de 1966, sobretudo após o célebre colóquio de Baltimore,na Universidade Johns Hopkins, reunindo Jacques Lacan, RolandBarthes e Jacques Derrida, entre muitos outros. A escala de seuconsumo é, portanto, intensa desde os primeiros anos, e o ensaio“Tel Quel. Text & Revolution” (1973) de Mary Ann Caws é umadiminuta mas sintomática amostra de sua recepção – com os deta-lhes (díspares mas significativos) de que (i) a autora foi testemunhaocular13 do Colóquio de Cerisy-la-Salle dedicado a Artaud e Bataille,em julho de 72; (ii) a noção de telquelismo, talvez antes mesmo deexistir, seria logo sobrepujada por uma atualização da idéia dedesconstrução sob a responsabilidade de Derrida, a partir da filo-sofia heideggeriana; e (iii) o mesmo Derrida passa a ministrar umseminário anual disputadíssimo na Universidade de Yale a partirdesse mesmo ano de 73.

De modo que, para uma abordagem mais “gramatológica” domomento telqueliano, sucedendo àquela dogmática, funcionalista

11 Segundo texto de Contrafogos.Táticas para enfrentar a invasãoneoliberal (Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1998, p. 21-23), o artigo datade janeiro de 1995.

12 Dosse, F., História do estruturalis-mo, vol. 2, São Paulo/Campinas:Ensaio/Ed. da Unicamp, 1994, p.192.

13 Conforme observa Forest, aamericana não só esteve presenteentre o público, mas fez interven-ções nos debates (Histoire de TelQuel, op. cit., p. 438).

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mas não menos sugestiva de Grieco y Bario, lanço mão desta pre-coce leitura norte-americana do grupo ou da “operação” homôni-ma – em um país em que tais apropriações abundariam das formasmais banais às mais sofisticadas, revelando-se, no entanto, umas eoutras, como prática teórica ou meramente mercadológica, invari-avelmente lucrativas. Finalmente, remeto à própria Teoria de con-junto, especialmente ao que ela deve a Derrida ou, em outras pala-vras, de acordo com a sua apropriação peculiar da filosofia “dasdesconstruções”.14

*

“Para nós não é nova a idéia da ‘desconstrução’ doorgulhoso logocentrismo ocidental, europeu, à maneirapreconizada por Derrida, uma vez que já tínhamos aantropofagia oswaldiana, que é, por si mesma, umaforma ‘brutalista’ de ‘desconstrução’, sob a espécie dadevoração, da deglutição crítica do legado culturaluniversal”. Haroldo de Campos15

*

O texto introdutório da operação telqueliana nos Estados Uni-dos é antes um testemunho sobre o debate pós-estruturalista fran-cês in loco, embora se apresente sob a forma de uma resenha detrês livros ensaísticos – Semiotiké (1969) de Julia Kristeva,L’Enseignement de la peinture de Marcelin Pleynet (1971) e Logiques(1968) de Philippe Sollers. A autora reporta, por exemplo, nadamenos que uma representação pretensamente orgíaca da comédiatextual, em performance do romancista Pierre Guyotat (censuradoem seu país), realizada durante o mesmo Colóquio de Cerisy de72, cujo lema – chinês – era “Por uma Revolução Cultural”:

It may not be irrelevant to note here that Guyotat’s talkat the colloquium held at Cerisy, June 29-July 9, 1972,on Artaud and Bataille – a talk meant to be“insupportable,” dealing as it did with masturbationand the rather specialized problems attendantthereupon, particularly when the other hand isoccupied with the writing of an “orgiacal text” (“L’AutreMain branle”) – was remarkable mainly for its style.

Insistindo sobre o caráter de encenação do colóquio, acrescenta:

However, the risks and the nervousness were lessapparent, at least to some of those present, than was acertain elegance of presentation. Perhaps the effect TelQuel has had in persuading us of the importance ofthe text and the collective endeavor finally goes beyondany individual courage and any particular content, evenwhen the group might wish it otherwise.16

*

“A noção de revolução cultural é, obviamente, muitosedutora para movimentos culturais e grupos queprocuram articular arte com uma políticarevolucionária. Ela também explica, em parte, aexplosão do maoísmo na França depois de 1966”.Patrick ffrench17

14 Derrida diz preferir, hoje, adesconstrução no plural. Cf.Nascimento, Evando, “A máquina deguerra discursiva”. Mais!/Folha de S.Paulo, 3 set. 2000. p. 30-31. Note-sea propósito da desconstrução noplural que, do mesmo modo, já noinício de 69, Perrone-Moisés, beminstruída, alertava para a existênciade não um mas “vários estruturalis-mos”. Cf. “Por uma poéticaestrutural”, Suplemento Literário/OEstado de S. Paulo, 25 jan. 1969, p.1. O mesmo ocorre em certa revistaargentina, pouco depois: cf. Sázbon,J., “Qué es el estructuralismo”. LosLibros nº 6, dez. 1969, p. 20.

15 “Minha relação com a tradição émusical” (entrevista de 1983concedida a Rodrigo Naves).Metalinguagem e outras metas, SãoPaulo: Perspectiva, 1992, p. 261.

16 Caws, M. A., op. cit., p. 3 (ambasas citações).

17 The time of theory. A History of TelQuel (1960-1983). Oxford:Clarendon Press, 1995, p. 10.

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Ao abrir a edição da primavera de 1973 da revista Diacritics –seguida por, entre outros jovens escritores, Geoffrey Hartman,Edward Said e o próprio Jacques Derrida –, Caws aponta para oconceito em moda entre os intelectuais naquele momento de vogatelqueliana: o conceito de texto, visto como revolucionário, masem pouco tempo vitimado pela própria inflação. Questão de cren-ça: desde o início o trabalho da revista Tel Quel se debruça sobreuma prática do texto – e a autora procura explicar no artigo, com aajuda de Pleynet, por que o termo supostamente neutro de “texto”,em detrimento de obra, por exemplo. O que equivale a dizer quese detém sobre uma virtual infinidade de possibilidades de signifi-cação, tendo a revista, no entanto, levado seus preceitos a princí-pio antirreligiosos a um fanatismo digno dos mais cegos fiéis, adep-tos da seita dos “textualistas”, que conheceu fama e sucessoefêmeros, cooptou, agitou, deixou discípulos em novos periódicose logo desapareceu por completo (arrisco dizer) vitimada por suaspróprias e indisfarçáveis tendências teleológicas.

*

Postula-se, com o problema do texto, o fim das fronteiras entrecrítica e ficção: teoria e escritura são completamente identificadas,em função da dimensão teórica da escritura (segundo sua novaacepção), por um lado, e da recusa de uma abordagem puramenteinstrumental de sua linguagem, por outro. Como é sabido, a noçãode texto é capital tanto quanto “anticapitalista” para o seu pro-grama, ao incluir em si não somente o ensaio e a crítica, mas “tudoo que até hoje era o discurso intelectual e inclusive científico”.18

Em “Texte (théorie du)”, Roland Barthes demonstra em pri-meiro lugar o que não é um texto para a “nova crítica”: “C’est lasurface phénoménale de l’œuvre littéraire; c’est le tissu des motsengagés dans l’œuvre et agencés de façon à imposer un sens stableet autant que possible unique”. O texto possui importância funda-mental para o Ocidente – “la civilization du signe” – por significarestabilidade e permanência, e também a “legalidade da letra”, queforneceria ao autor o completo domínio sobre a unidade cerrada edefinitiva da obra:

La notion de texte est donc liée historiquement à toutun monde d’institutions: droit, Église, littérature,enseignement; le texte est un objet moral: c’est l’écriten tant qu’il participe au contrat social; il assujettit,exige qu’on l’observe et le respecte, mais en échangeil marque le langage d’un attribut inestimable (qu’il nepossède pas par essence): la sécurité.

*

“O primeiro número de Poétique começa com umartigo de título sugestivo e oportuno: ‘Par oùcommencer?’ e seu autor tem aí uma presençacarregada de conotações. Roland Barthes, o grandeinspirador das teorias de Tel Quel, presente em Changecom seu texto sobre a moda, batiza agora a recém-nascida Poétique. O número também termina comBarthes, pois sua última página é uma publicidade deS/Z. O nome de Barthes parece ser um traço de união,um terreno de entendimento onde todos se encontrame se reconhecem”. Leyla Perrone-Moisés19

18 Barthes, R. “Texte (théorie du)”.Encyclopœdia Universalis, tome XV,1973, p. 997. Em Oeuvrescomplètes: vol. II. Paris: Seuil, 1994,p. 1679-80.

19 “A floração das revistas” (seçãoLetras Francesas). SuplementoLiterário/O Estado de S. Paulo, 23 demaio de 1970, p. 1. Barthesreaparece em abismo em Poétiquenº 47, uma década depois, quandomorre, através de Derrida, em “Lesmorts de Roland Barthes” (conferên-cia de 1980, publicada em 81), quecito na versão espanhola: “(...) enPoétique, sería preciso subrayarahora el inmenso papel que jugó yque continuará jugando la obra deBarthes en el campo abierto de laliteratura y la teoría literaria (eslegítimo, es preciso hacerlo y lohago)”. Las muertes de RolandBarthes, México: Taurus, 1998, p.72.

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*

Em algumas linhas de um trabalho anti-enciclopédico des-tinado a uma enciclopédia, Barthes resume o ideário de uma épo-ca, com duas referências teórico-filosóficas maiores, o materialis-mo dialético e a psicanálise. Este ideário tem uma particularreceptividade na América Latina, através de alguns personagens deculturas em trânsito, aqui implicados: Héctor Schmucler estuda naFrança com Barthes, retorna em 69, e funda Los Libros, onde aomenos em parte se formam Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia, os quaisassumem depois a direção da revista. Perrone-Moisés e Santiago,nesse período, estão indo e/ou voltando das universidades france-sas – com o detalhe importante de que o segundo passa a décadade 60 entre a França e os Estados Unidos.20 Todos vivem e contri-buem com intensidade para o que se chamou de uma “mutaçãoepistemológica” concreta, na busca utópica deste objeto novo, otexto, que se caracterizava por colocar em questão a sua própriaenunciação:

Celle-ci [la mutation épistémologique] commencelorsque les acquêts de la linguistique et de la sémiologiesont délibérement placés (relativisés: détruits-reconstruits) dans un nouveau champ de référence,essentiellement défini par l’intercommunication dedeux épistémes différentes: le matérialisme dialectiqueet la psychanalyse. La référence matérialiste-dialectique(Marx, Engels, Lénine, Mao) et la référence freudienne(Freud, Lacan), voilà ce qui permet, à coup sûr, derepérer les tenants de la nouvelle théorie du texte. Pourqu’il y ait science nouvelle, il ne suffit pas en effet quela science ancienne s’approfondisse ou s’étende (cequi se produit lorsqu’on passe de la linguistique de laphrase à la sémiotique de l’œuvre); il faut qu’il y aitrencontre d’épistémés différentes, voire ordinairementignorantes les unes des autres (c’est le cas du marxisme,du freudisme et du structuralisme), et que cetterencontre produise un objet nouveau (il ne s’agit plusde l’approche nouvelle d’un objet ancien); c’est enl’occurrence cet objet nouveau que l’on appelle texte.21

É importante lembrar que, neste texto dedicado a uma pedago-gia do texto (e nele também apareceria o nome de Mao), Barthesdestaca amplamente o trabalho de Julia Kristeva – uma das “ante-nas” de Tel Quel –, que definiria os seus seis conceitos teóricosfundamentais:

pratiques signifiantes (“la notion de pratique signifianterestitue au langage son énergie active”), productivité(“une production où se rejoignent le producteur dutexte et son lecteur: le texte “travaille”, à chaquemoment et de quelque côté qu’on le prenne; mêmeécrit (fixé), il n’arrête pas de travailler, d’entretenir unprocessus de production”), signifiance (“la signifianceest un procès, au cours duquel le ‘sujet’ du texte,échappant à la logique de l’ego-cogito et s’engageantdans d’autres logiques (celle du signifiant et celle de lacontradiction), se débat avec le sens et se déconstruit(‘se perd’))”; phéno-texte (“le phéno-texte peut [...], sansqu’il y ait incohérence, relever d’une théorie du signeet de la communication: il est en somme l’objetprivilégié de la sémiologie”) e géno-texte (“c’est undomaine hétérogène: à la fois verbal et pulsionnnel

20 Também Haroldo de Campos, quefoi um precoce globe-trotterconcreto.

21 Barthes, R.“Texte (théorie du)”,Oeuvres complètes, t. II, p. 1679.

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(c’est le domaine ‘où les signes sont investis par lespulsions’))”; intertextualité (“épistémologiquement, leconcept d’intertexte est ce qui apporte à la théorie dutexte le volume de la socialité: c’est tout le langage,antérieur et contemporain, qui vient au texte, non selonla voie d’une filiation repérable, d’une imitationvolontaire, mais selon celle d’une dissémination –image qui assure au texte le statut, non d’unereproduction, mais d’une productivité”).22

Para Kristeva, a exilada búlgara, e para o grupo Tel Quel, trata-se de um momento de transição da dualidade (do signo) à produti-vidade (trans-signo), anunciada a partir do final do século XIX, comMallarmé, Lautréamont, Nietzsche e Marx (o último em um nívelparticularmente determinante, a seu ver).23 No comentáriobarthesiano ao “geno-texto” em Texte (théorie du), ressurge a idéiade transição: a passagem da estrutura à “estruturação”, à“estruturalidade da estrutura” (nos termos de Derrida), vai reapare-cer com ênfase, já que o grupo se situava na vanguarda, ou melhor,disputava de maneira voluntariosa o espaço à frente do cenáriointelectual, de maneira deliberadamente violenta e estridente, so-bretudo na voz de seu editor-fundador – por sinal, a figura maisvisível e menos importante do grupo, considerando a opinião dealguns de seus principais leitores latino-americanos.24

Não era essa, então, a aposta de Roland Barthes, na Universalisem 1973, ao fazer referência à melhor linhagem de escritores mo-dernos: “de Lautréamont à Philippe Sollers”; ou em Sollers écrivain,de 79. Nem de Foucault – ao menos em “Distance, aspect, origi-ne”, abrindo a Théorie d’ensemble – nem de Derrida – em LaDissémination, de 72.

*

Os debates da hora indicam, ao menos aparentemente, umaguinada de um marxismo-leninismo “ortodoxo”, apesar da mixagemcom o freudismo, a um presente (isto é, “em torno de 70”)engajamento acrítico à maolatria, segundo diziam os franceses,plenamente assumida a partir das “Posições do Movimento de Ju-nho de 1971”, que deixou mortos e feridos: em meio a uma grandediscussão via revistas e jornais, do Le Monde a La Nouvelle Criti-que (do Partido Comunista Francês) a Promesse, Jean Ricardou eJean Thibeaudeau deixam o grupo e, principalmente, dá-se o rom-pimento político de Tel Quel com Derrida, tido como mais um“dogmático-revisionista” ao apoiar a união da esquerda francesacontra não apenas o centro e a direita mas também contra o “peri-go amarelo”. Desse modo o grupo da revista retorna ao que haviacriticado, e na verdade se encontrava apenas reprimido, no movi-mento surrealista dos anos 30: um certo excesso de crédito em umregime totalitário com atrativos estéticos e propagandísticosirresistíveis durante certo espaço-tempo.

*

Ao contrário de hispano-falantes, que são leitores extremamen-te precoces da Teoría de conjunto,25 a “massa” de leitores de lín-gua inglesa teria de esperar até o final da década de 90, quando sefaz publicar The Tel Quel Reader, incluindo textos teóricos (a gran-de maioria) que permaneciam espantosamente inéditos na línguahoje hegemônica, segundo os organizadores, ffrench e Lack.26 In-dicadores como estes são insuficientes para medir o seu verdadei-ro impacto em um ou outro lugar e, no entanto, servem para mani-

22 Idem, ib., p. 1680.

23 Kristeva, Julia, “La productivitédite texte”, Sémiotiké. Recherchespour une sémanalyse, Paris: Seuil,1969, p. 183.

24 Para Schmucler, em entrevista aoautor, o que tinham era “unasoberbia infinita”.

25 A tradução da Editora Seix Barral,de Barcelona, feita por SalvadorOliva, Narcís Comadira e DolorsOller, aparece já em 1971.

26 ffrench, P. e Lack, R.-F., The TelQuel Reader, London/New York:Routledge, 1998. Apesar dos nomes“suspeitos”, trata-se de doisdedicados pesquisadores, em grandeparte responsáveis pela sobrevivên-cia do telquelismo em língua inglesahoje. Patrick ffrench é autor de Thetime of theory, uma variante inglesae menos laudatória da mesmahistória contada por Forest emHistoire de Tel Quel. Ambas forampublicadas em 95, ano da realizaçãodos “Colloques de Londres et deParis” sobre o tema “De Tel Quel àL’Infini. L’avant-garde et après”, cujaantologia foi coordenada precisa-mente por Forest, na parte francesa,e ffrench, na inglesa (Nantes: PleinsFeux, 1999).

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festar tempo e intensidade de interesse em um ou outro mercadoeditorial. Mas, enquanto a psicanálise lacaniana, por exemplo, vaisurgir na Espanha por intermédio de psicanalistas argentinos noexílio durante a última ditadura militar – cumprindo um esquisitoitinerário –, o telquelismo rapidamente esteve à disposição dehispanos desde a Catalunha.

*

Ao mesmo tempo dedicada e desconfiada em relação àquelesque se apresentam como “à la fois un groupe, une revue, unecollection”, Mary Ann Caws descobre com a ajuda de HenriMeschonnic (nos Cahiers du Chemin, em abril de 72) que aepistemologia deste “materialismo semântico-semiótico” é falha eque o recentemente assumido engajamento da revista resulta noque chama de “repetitive sloganism”, cujo vocabulário expressaum “emotional manicheanism”: quem não for maoísta, serárevisionista dogmático, conforme se pode ler entre um e outro pa-rêntese de Caws, momento em que toca nas grandes feridastelquelianas, da sua “mistificação tautológica” – “satirized as a‘metalinguistic process linked to the emission of a neo-pseudo-intra-linguistic-referent”– à megalômana homologia “texte/Sollers”,pretextada a partir da construção de uma sua China.

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Tel Quel, pressupondo-se sempre pós-estruturalista, condena omovimento estruturalista enquanto a-histórico, embora faça daChina “a dream of exotic science, a mistaken and idealizedinterpretation of a distant phenomenon”, conforme Meschonic re-portado por Caws, a qual, conforme se disse, responde de maneiracrítica e por outro lado se confessa aderente ao jogo de auto-exa-me que impregna o colóquio de que participou, assim como opróprio ar do tempo (“The present essay concerns itself with TelQuel at the moment of this writing”; “This objection [on an idealizedChina] seems far less answerable to me, but that no doubt betraysmy aesthetico/liberal/capitalist viewpoint”).27

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Versão esquerda da operação (defendida, aliás, por seu própriotimoneiro): a revista Tel Quel responde desde sua fundação a umademanda da indústria cultural francesa no pós-guerra. É fruto deuma aposta de uma editora, du Seuil, que vê perspectiva clara delucro em um certo nome e em um certo grupo de escritores emer-gentes, a fim de disputar novos nichos de mercado com as vizinhase concorrentes parisienses Minuit e Gallimard.28 Trocando em miú-dos: a editora é a “burguesia” e a nova revista recebe a procuraçãopara se trajar com rigor vanguardeiro.

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Nova intervenção crítica reportada por Caws provém da revistade Maurice Nadeau, La Quinzaine Littéraire de julho de 72, emartigo de Jean Chesneaux, “De Mao aux Maos”, no qual a palavra“movimento”, a exemplo do Movimento de Junho de 1971, é refe-rida em chinês a um movimento (“yundong”) de massas do qual osintelectuais recebem seu impulso inicial.

A pergunta é: pode esta direção ser invertida?

That particular question with the implied and obsessive sub-questions about the actual relationship between textual work and

27 Idem, ib., p. 4.

28 “Tel Quel’s formation had aneconomic motive. The promise ofSollers’s Une curieuse solitude wasostensibly the reason why Seuilagreed to the formation of a literaryreview around Sollers, as a goodinvestment. Seuil sought to establisha literary review of the same formand status as the NRF, from its ownstable of writers. (...) the formation ofthe review is not initially determinedby any kind of will to innovate or tocreate a new literary movement. Interms of the review’s orientation andthe history of ideas, it is anaccident”. Cf. ffrench, P., The time oftheory, p. 46-7.

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revolution of classes was the persistent undercurrent for much ofthe Cerisy meeting in both its formal manifestation, that is thetranscribed papers and debates, and its informal and unrecordedpolitical discussions, where a certain heat was generated along withcertain ill-feelings, acknowledged and then recanted in standardauto-critical fashion.29

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“Sollers est moins ‘révolutionnaire’ qu’il ne le paraîtet, là encore, il ne fait qu’aménager des positions depuislongtemps conquises. Son effort de synthèse n’en estpas moins brillant, d’autant qu’il a tiré profit, cheminfaisant, du travail des linguistes, des sémiologistes, desstructuralistes et qu’exploitant inteligemment sessources, il y trouve les arguments décisifs à l’appui desa thèse: peu importe qu’on appelle roman, poème ouessai l’ensemble de signes que trace un écrivain, peuimporte même l’homme qui les produit et peu importeson ‘oeuvre’; ce qui compte c’est le texte.

“Il faut attendre qu’ils [les écrivains de Tel Quel] soientadmis par des cercles plus larges de critiques et delecteurs, avant de s’aventurer à porter quelqueappréciation que ce soit sur des productions dont lesens et le but n’apparaissent point à la lecture des texteseux-mêmes. Peut-être s’apercevra-t-on alors que leslimites du roman – oeuvre de fiction, en prose, quipossède en elle-même sa propre signification – sonten effet largement transgressées, au profit d’un genre –ou d’un non-genre – qu’actuellement on ne peutdésigner que par le terme vague et labile de ‘texte’. Àquelles lois de production obéiront ces textes? Quellesfonctions seront-ils appelés à remplir? Toute réponse àces questions ne peut s’appuyer aujourd’hui que surdes théories, c’est-à-dire des déclarations d’intentions”.Maurice Nadeau30

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Versão direita da operação: o telquelismo é uma chaga crítico-teórica disseminada a partir dos anos 60 que atinge seu êxtase eseu paroxismo no início dos 70.

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E, no entanto, um trabalho cooperativo, como pretende ser otelqueliano, deveria estar situado no outro lado das relações depropriedade definidas, tradicionalmente, pelas idéias de autoria ede indivíduo, entendidas como o foram no calor do texto e da transou intertextualidade, através de uma crença ingênua em seu jogosurrealista de “engendramento e destruição mútuos”. A escrituraplural do scriptor devida a Roland Barthes, assim como a IsidoreDucasse ou a Julia Kristeva, em suas traduções chinesas, em nomede um pensamento coletivo, conforme blefa o indivíduo, o autorpor trás da Théorie d’ensemble, ao deixar-se entrevistar por JacquesHenric, nos termos de Caws:

Any staking of personal claims, any delimiting of theorigin of ideas is held to be a concession to marketvalue. Within the continuing dialectical process, thetext always open and unfinished is the property of all

29 Caws, M. A., op. cit., p. 4.

30 No calor da hora, o editor de LaQuinzaine faz sua leitura ponderadado telquelismo em expansão. Cf. “TelQuel”. Le roman français depuis laguerre, Nantes: LePasseur, 1992 (1ªed. Gallimard, 1970), pp. 170 e 174(grifos meus).

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and the result of a productivity including in itself itsannihilation. At the other pole from the tendency tolinearity and unequivocal speech characteristic ofbourgeois ideologies stands the plurivocality of thisconstantly renewed Théorie d’ensemble, literally atheory developed together, in which the group or theset provides a body of texts, each acting on the others,and in which all are directed toward a transformativeend: “a text has the exact value of its action inintegrating and destroying other texts” (Théorie, p. 75).

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Tel Quel acredita que a necessária interreferencialidade não podeser uma representação de uma autoridade mas o sinal de uma situ-ação anônima de protesto coletivo, de vontade de revolução e pro-duto de um claro posicionamento político com finalidade aberta-mente transgressiva contra os pesados códigos de propriedade so-cial ou lingüística. A fórmula básica é transgressão com autocríticapermanentes, conforme este relato americano de viagem à França,em seu último e agônico reduto vanguardista: “Corresponding tothe desired intertextuality (...), the following discussion is intendedas the ‘intersection of several codes’ (Semiotiké) rather than theexplicitation at length of any one of them”.31

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“Théorie doit être pris ici, dans le sens que lui donne, de façondécisive, Althusser: c’est ‘une forme spécifique de la pratique’”.Philippe Sollers32

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De qualquer modo, coexistiriam em todo coquetel telquelianoao menos os seguintes elementos, conforme levantados por Caws:o formalismo e o futurismo russos, uma fundamental filosofia dasdesconstruções – em especial as noções de trace, espacement edifférance –, a homologia escritura/revolução. Mais do que os en-saios inaugurais da Théorie d’ensemble, de Foucault e de Barthes,“La différance” e Derrida, que os sucedem no volume, marcam ofoco do desejo de transgressão manifestado por Tel Quel. É umpensamento que pretende se superpor e, simultaneamente, se oporàs estruturas sincrônicas, estáticas e a-históricas da maioria dospensadores cientificistas rotulados de estruturalistas. O passo alémvai consistir na fusão, entre outras coisas, do conceito de texto como de transformação (de outros textos), que também significaria pro-cesso, produtividade, diferença.

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Glossário:

“A interpretação, para Derrida, consiste em ‘tecer um tecidocom os fios extraídos de outros tecidos-textos’. É assim que em ‘LaPharmacie de Platon’, Derrida trabalha o texto platônico. A inter-pretação é um tipo de leitura que supletiva um texto, no momentoem que, penetrando no seu corpo, desconstrói-o e revela aquiloque estava recalcado.

“A filosofia da presença é posta em questão na críticanietzschiana da metafísica. O conceito de jogo propõe o aleatório,abalando o centro (origem e fim). Sem centro, o texto é uma estru-tura que deve ser pensada na sua estruturalidade, e essa naturezadinâmica é que possibilitará a polissemia.

31 Caws, M. A., op. cit., p. 4-5 (asduas últimas citações).

32 Théorie d’ensemble, op. cit., p. 72.

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“Se o texto se apresenta como enigma, o desfazer da sua trama,isto é, a interpretação, se constituirá de movimentos de leitura su-cessivos, e o deciframento do texto se efetivará por um sistemainterpretativo próprio”.33

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Quintuplicando a média de comercialização de Tel Quel, aedição dedicada à China (nº 59, outono de 1974) vendeu vinte ecinco mil exemplares.34

*

Uma teoria para uma nova história e um novo homem significaa criação de códigos próprios: – Se existe intenção da consumaçãodo ato produtor de uma escrita que é uma arquiescritura, escreve-se a partir de um discurso material porque ele é, ou existe... – Acópia desta teoria desconstrutiva da escritura poderia ser levada aoinfinito a partir de suas próprias idéias-força – a começar pela idéiade revolução permanente –, uma vez que se trata de combaterdiferentes tipos de “pares imperiais”, quer no campo da cultura,quer no da política, no da ciência ou no da filosofia, sob diferentesformas de “imperialismos”: o império da fala sobre a escrita, dedeus sobre o diabo, da idéia sobre a matéria, da alma sobre o cor-po, da forma sobre o informe, do sujeito sobre o objeto, e assimpor diante. É, portanto, necessário ajudar a combater o humanismo,a dissolver o logocentrismo, apagar todas as suas luzes. Como sesabe, as armas – pesadas – da teoria que tomam por base partemdo pensamento de Marx e de Freud e promovem um encontro en-tre Dante, Nietzsche, Sade, Lautréamont, Mallarmé. Armas pesa-das para lidar com uma equívoca produtividade sem dono. Suateoria do texto define-se por esta fórmula. Mais precisamente, parao grupo Tel Quel, o texto não representa um significado que o ex-cede, assim como não existe um sujeito transcendente que o im-ponha ou um autor que o traduza. Na base de seu pensamento“monumental” – englobando, conforme o subtítulo de sua revista,primeiro apenas “literatura” e “ciência”, depois, “literatura”, “filo-sofia”, “ciência”, “política” – aparece, é claro, o pensamentomarxiano e o que se imaginava ser o espaço de liberação represen-tado pela luta de classes, e o pensamento freudiano, a linguagemdo inconsciente em novo ataque à razão ocidental.

Urge promover um descentramento radical da linearidade,subverter os protocolos de circulação cultural do sistema, segundoo vocabulário da época, em nome de uma textualidade que sesituaria antes da oposição animal/homem, natureza/cultura, e se-ria encarada como o golpe de morte do etnocentrismo – uma vezque está em seu ponto zero, em um espaço material que é comuma todas escrituras em sua infinita diferença, ou seja, em um campoque anuncia a própria noção de entrelugar: a exemplo de Oswaldde Andrade, Silviano Santiago também vai descobrir a América emParis – com a diferença de que a França já se mudara para a Amé-rica do Norte.

Fosse onde fosse, a meta final era nada menos que umanova história, um novo homem, cujo valor não se mediria por seucapital significativo, ao contrário: a contra-utopia deste discursopolítico de vanguarda, “monumental” e múltiplo, se encontra emuma tríplice revolução, econômica, social e simbólica, na tentati-va de resolver a dicotomia literatura/revolução, quando ainda eramlevadas em conta estas miúdas e binárias verdades. Mas, para in-vestigar as obsessões teóricas telquelianas – e de seus avatares na

33 Glossário de Derrida. Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1976, p. 51.“Trabalho realizado [em 1974] peloDepartamento de Letras da PUC/RJ.Supervisão geral de SilvianoSantiago”.

34 Cf. Dosse, F. História do Estrutura-lismo, vol. II, op. cit., p. 187.

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América do Sul – é necessário esboçar (transcrever? reescrever?plagiar?) a teoria de uma teoria que chegará a ser identificada como demônio, quando ela pretendia ser simplesmente demoníaca,além de excessiva. O comando da teoria, em expressão do estudode Marx-Scouras (título de um de seus capítulos), começa por nãose confundir com a abstração, nem se opor ao concreto, conformese lê em entrevista de um teórico conhecido pelo refinamento e ocaráter camaleônico, sempre parasítico de si mesmo – conforme,também, os seus pares paulistas, cariocas ou portenhos. Entre olegível e o ilegível, entre a vanguarda e a instituição, Roland Barthesafirma que o comentário de Sarrasine de Balzac “foi tanto a análisede um texto como, segundo meu entender, uma teoria do texto, dotexto clássico, do texto legível”. Ficam aí desde logo bem explíci-tas as distâncias a se tomar, e a direção das convulsões ideológicasimaginadas:

Contre cela, j’imaginerais très bien, et même jesouhaiterais que des discours, évidemment nouveaux,assument un certain discontinu, une certaine naturefragmentaire de l’exposition, analogues presque à desénonciations de type aphoristique ou poétique et queces discours puissent constituer un discoursfondamentalement théorique. Je pense d’ailleurs quece discours théorique, qui romprait avec les habitudesrhétoriques du savoir, est en train de se chercher ici etlà; par exemple dans certains livres de Lévi-Strauss,dans les Mythologiques; je pense aussi quel’énonciation de Jacques Lacan doit être comprisecomme un effort de rupture par rapport au continu etau filé, au suivi de l’écriture théorique en général. (...)Maintenant, quant à definir ce qu’est la théorie, trèsprès de moi, ou moi étant très près d’elle, Julia Kristeval’a fait avec beaucoup d’insistance dans sons livreSèméiotikè, qui est précisément un livre de théorie.35

Sabemos que esta teoria tem um caráter paradoxal, quetrabalha freqüentemente contra si própria, no que segue a práticapsicanalítica e escritural de Jacques Lacan. Um infinitamente cam-biante Sollers, já na década de 80, diria em novo tom: “Quant à lasignification du mot théorie, on sait qu’il s’agit aussi d’uneambassade, d’une procession, d’une fête”.36

*

Deve-se procurar saber, por outro lado – se é questão deestar entre e em clima de revolução permanente –, por que BertoltBrecht aparece na capa de um obscuro livro argentino dos anos 70sobre a revista Tel Quel, sendo mencionado apenas uma vez e enpassant em um de seus textos.37 Parece se tratar de um daquelesverdadeiros enigmas bibliográficos: há poucas coisas demonstráveisaí, e justamente por isso talvez possam resultar elucidativas. Umasolução óbvia poderia utilizar o motivo da guerrilha travada duran-te toda a década. Uma solução, uma resposta oblíqua – uma entretantas – poderia estar no mesmo Barthes, que abre a coletâneaprecisamente com “Sur la théorie” (apesar da omissão do título),entrevista concedida em 1970:

La teoría es aquí un discurso esencialmente científico.No es sólo un discurso abstracto, generalizado ofundador, sino – y ésta es su marca distintiva – undiscurso que se vuelve sobre sí, un lenguaje que sevuelve sobre sí. (...) En efecto, es un discurso que se

35 Barthes, R., op. cit., p. 13-14.

36 Introdução a Théorie desexceptions. Paris: Gallimard, 1986.

37 Trata-se de um pequeno e singularvolume intitulado Literatura, políticay cambio, publicado na Argentinapor Ediciones Caldén (1976), nacoleção “El hombre y su mundo”dirigida por um colaborador dosprimeiros anos de Los Libros, Oscardel Barco, e inteiramente devotadoao telquelismo. Alguns detalhesfazem desta edição uma estranhacolcha de retalhos, de qualquerforma reveladora do modo (provavel-mente) mais caótico de recepção deTel Quel na América do Sul. Na capalêem-se quatro sobrenomes: Barthes,Sollers, Henric, Guyotat; na páginade rosto desaparece o nome deBarthes. A tradução está assinada porAlberto Drazul, e o prólogo por J. M.L. Em seguida, há uma entrevistacom Barthes, outra com Sollers, umartigo conhecido deste, “Le reflèxede réduction”, uma entrevista docomunista telqueliano Henric, outrado escritor telqueliano PierreGuyotat, e a partir da página 80 umasérie de apêndices: o “Programa” deSollers; algumas páginas de “Tesisgenerales” anônimas; outra entrevistade Sollers; as respostas de Tel Quel àNouvelle Critique; e, finalmente,outro ensaio de Sollers, “La escritura,función de transformación social”.Nas duas páginas finais aparecem as“Notas bibliográficas”, as quaisdenunciam que “o volume foipreparado cinco anos antes de suapublicação”. A primeira nota diz queTel Quel “fue fundada en 1960 y[grifo meu] hasta la fecha hanaparecido 46 números” – sendo queo nº 46 data de 1971. As demais trêsnotas apenas biografam Guyotat,Henric e Sollers, com o detalhe deque Barthes só aparece nelasenquanto comentarista destes.

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observa a sí mismo en una suerte de autocríticapermanente. Por otra parte, es probable que se busquepara destruirse. Pero no se destruye de inmediato yesta especie de prórroga produce la teoría.38

*

O jogo telqueliano consiste em trabalhar na linguagem e com alinguagem, já que, conforme o provérbio maoísta, “desde que vocêse dirige a alguém, está fazendo propaganda” (e este é, no fundo,um enunciado revelador de resíduos fascistas, sobretudo pensan-do na geléia estético-política que tal jogo vai gerar). Sendo menosmaoístas do que pensam, e muito freudianos, na realidade traba-lhariam com o texto enquanto instância inseparável do própriocorpo, das funções corporais, da masturbação e a excreção ao amore à morte. Um resultado do coquetel proposto pelos teóricos daconjunção é, por exemplo, a idéia de mécriture, devida a DenisRoche (Tel Quel nº 46, 1971), em nome de uma ruptura geral, tex-tual e política, decididamente contrária ao dogma de uma estrutu-ra central, ruptura que promoveria ao lado de Sollers ou Pleynetem ficções que se querem descontínuas, dispersas, deslizantes,quando não díspares e mesmo ilegíveis.39

*

Não satisfeitos em ser três, grupo/revista/coleção, almejarão ser“convulsão” – quando, textualistas, nada mais foram que lugar en-tão comum. “The textual revolution disrupts individual choice andtasteful limits, prevents artistic closure, and breaks through theordered system of language by the disarticulation and infraction ofcivil and linguistic codes”, segundo Caws lendo um texto deLogiques. Sua conclusão é a um tempo iluminadora e abrumadora,por trazer de volta a Gramatologia, “un texte qui [selon Sollersdans “Le reflèxe de reduction”] éclaire ces dernières années et lesmodifie radicalement”; Gramatologia cuja lógica paradoxal a ope-ração telqueliana reclama ao romper e rompe ao reclamar, diante– hélas! – de um agora “idealista” Derrida. Conclusão ainda maisiluminadora e abrumadora por finalmente invocar a noção debrisure, “a discourse made articulate in its constant discontinuity”e por concluir de modo fielmente autocrítico:

Yet it is clear that meta-commentary such as this aboutsuch texts cannot be either revolutionary or non-revolutionary, cannot actually embody rupture in spiteof its obviously fragmented vision, nor articulation, inspite of its attempt at the relation of opposed texts. Itturns, like Tel Quel itself, only about its own image,remaining its own fiction.40

*

O voluntarismo costuma ser venenoso e não seria diferente comos devotados telquelianos ao idealizarem, acima de tudo, o con-ceito de escritura – que pretendiam desconstruir – enquanto ferra-menta simultaneamente política e estética. A escritura enquantofunção da transformação social, conforme texto homônimo do editorda Teoria de conjunto; a escritura enquanto sinônimo de revolução– dogma e antidogma; a escritura enquanto arma na tarefa urgente,premente de revolucionarização, entendendo a expressão não comoaquilo a que não se chega, mas como aquilo que não se chega aentender: o efêmero que se crê eterno.

38 Literatura, política, cambio, op.cit., p. 15. Nas Oeuvres complètes,tomo II, p. 1032.

39 Cf. Caws, M. A., op. cit., pp. 5-6.

40 Caws, M. A., op. cit., p. 8 (todascitações do fragmento).

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*

“Como lutar por mudanças revolucionárias numasociedade tão convencional e tão covarde quanto afrancesa? Não será certamente através de um modo depensar, também convencional e covarde, cuja tônicaé o medo de incorrer em pecado público passível denão ser perdoado pelos novos papas da política. Nãoponham os pés na Exposição Colonial. Não se muda aopinião de um indivíduo, de uma pessoa dentro deum grupo, não se muda o modo de pensar e agir deum grupo, só porque alguém, por mais inteligente queseja, tenha resolvido cair fora do grupo por motivaçõesnem sempre muito claras, e lá de fora, pela força dasua vontade e não a do seu desejo, queira convenceros antigos companheiros a acompanhá-lo pelo novocaminho da salvação”. Antonin Artaud41

*

Contrariamente ao que pensa o crítico argentino de Tel Quelpós-Tel Quel, a ideologia da revista francesa vende o desejo deresponder com rigor retórico e teórico a Maio de 68 através de suaTeoria de conjunto, que, lembrando Lenin – “não há movimentorevolucionário sem teoria revolucionária” –, surge ao lado de umGroupement d’études théoriques (GET). Por quê? A resposta é deseu porta-voz:

Pour ne pas sombrer dans l’impuissance duspontanéisme, pour ne pas s’enliser dans lesrevendications médiocres du réformisme, il convientde se donner à soi-même les armes intellectuellesnécessaires au combat. Dans le champ propre où elleagit, chaque avant-garde doit remplir cette mission.42

Eis o telquelismo oficial pela voz de seu historiador oficial emsua história – Histoire de Tel Quel – oficial. A ênfase na militânciateórica suscitou ataques de todos os lados, de cientificistas aanticientificistas: o meio literário reclamaria mais poesia e menosciência em Tel Quel; o meio científico, da lingüística à matemática(caso se desse ao trabalho de pedir algo) lhe pediria menos ciênciae mais poesia. Não obstante, Sollers sonha com a “subversão gene-ralizada”, sendo alguém que, segundo a versão obediente de Forest,não passaria de um incompreendido:

Non pas: la littérature au service de la théorie (comme presquetout le monde semble l’avoir cru de Tel Quel) mais très exactementle contraire. Les sciences du langage, la philosophie, la psychanalyseaidant à dégager un tissu de fiction à proprement parler infini.43

Enunciá-lo a posteriori (no prefácio de 80), porém, é o que sepoderia chamar de conversa fiada: vivem-se a esta altura os estertoresda revista, já que o telquelismo triunfante como que evaporou. Onegócio da hora é partir rumo ao infinito recôndito (e confortável)da literatura que já deixara de se pretender escritura. Mas naquelemomento essa escritura – mitificada – é o lugar da transgressão àfilosofia e às ciências humanas. – Não somos cientificistas outeoricistas porque jogamos com a teoria em nome da literatura,com nossa habitual virulência retórica, em nome de um terrorismocaracterístico de uma pós-vanguarda, uma vanguarda pós-moder-na.

41 Santiago, S., Viagem ao México,Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 65-6.

42 Forest, P., op. cit., p. 299.

43 Idem, p. 299 (grifo meu). Trata-sede citação do prefácio de Sollers àedição de 1980 de Théoried’ensemble.

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A fim de servir ao seu modelo, Forest trata de jogar o grupopara as margens, recusa-lhe a posição hegemônica, pretendendominimizar-lhe a influência, ao mesmo tempo que reconhece seuperíodo áureo e seu declínio:

Aucun document ne m’a permis d’établir qu’au tempsdu telquelisme triomphant les éditeurs aient cesséd’éditer ou les facultés d’enseigner: malgré Barthes ouDerrida, on continua d’étudier Racine et Rousseau àla Sorbonne; malgré Sollers, on ne renonça pas àattribuer les prix Goncourt ou Femina; malgré Pleynetou Roche, l’émouvant chant des poètes ne cessa pas;étrangement, les travaux de Kristeva n’incitèrent pasGallimard ou Grasset à refuser la littérature naturalistedont l’édition fait ses choux gras.44

Duas observações: Barthes e Derrida nunca deixaram de difun-dir o prazer dos textos ditos clássicos; com o fim da revista em1982-3 – há muito encerrado o sonho de vanguarda telqueliano –, Sollers muda-se para a editora Gallimard onde, de um posto pri-vilegiado, lança O Infinito – este velho conhecido.

*

Il faut ajouter qu’un travail aussi marginal et aussi risqué– dont le Groupe d’études théoriques formé par TelQuel est la matérialisation sociale – n’aurait pas étépensable sans une réalité anonyme à l’oeuvre entrequelques individus dont toute l’ambition est dedisparaître le plus possible dans les transferts d’énergieprovoqués par la poursuite d’une pratique sans reposet sans garanties. Pour l’instant, voici où en estl’expérience: nous la laissons se formuler seule, d’unplan à un autre, d’un fond à un autre fond, avec lanécessité mais aussi la chance toujours suspendue d’unjeu. Octobre 1968.45

Assim termina a divisão do conjunto, feita por Sollers, de quemForest é devoto: marginalidade e anonimato, mitos rapidamentedestruídos.

Como de hábito, o biógrafo oficial do grupo se deslumbra coma “extraordinária” defasagem entre meios mobilizados e o “fantás-tico” barulho provocado pela empresa telqueliana. Ora, de caronano pensamento inovador (para o bem ou o mal) de ninguém maisou menos que Derrida (que, por sua vez, parasita os textos de Sollersem proveito próprio) e Barthes, além de Foucault, Lacan e Althusser,ao abrigo de uma sólida instituição do vasto mercado persa doslivros franceses, a entelqueléquia só poderia atrair e prosperar: vi-rou moda e saco de pancadas, sucesso mundano e “problématiquelittéraire centrale”. Ser ou não ser hegemônico, o biógrafo do gru-po ainda teria a coragem de perguntar. Logo ele, Forest, o homemque leva a “operação” ao salão de beleza, com um romantismoque deveria soar estranho, mas acaba calhando no conjunto:

La beauté de l’opération se situe bien là: ne disposantque d’un soutien logistique limité, ne s’autorisant qued’elle-même, une parole s’impose qui, par sa seuleforce, apparaît à chacun comme une intolérableagression, une imminente menace. “Terrorisme”paradoxal qui ne connaît d’autre arme que les mots.46

44 Idem, p. 301 (grifo meu).

45 “Division de l’ensemble”, Théoried’ensemble, op. cit., p. 12. Não háassinatura, apenas a data.

46 Forest, P., op. cit., p. 302.

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Que a Teoria de conjunto seja um manifesto coletivo não háque negar: duas dúzias de ensaios esparsos, publicados nas revis-tas Critique ou La Nouvelle Critique ou nas atas do colóquio deCluny. Com ênfase às intervenções de Sollers, Kristeva, Baudry ePleynet, à parte a santíssima trindade. O estruturalismo já cumpriuseu dever. A nova ruptura está por vir, através de uma nova visão domundo feita de uma mescla de artes e discursos a qual se chamaria“telquelisme”, segundo os círculos intelectuais franceses progres-sistas de Paris, cuja visão pedagógica e pós-romântica do poder daliteratura informa como mirar a sua própria (teoria) crítica da litera-tura.

Seria o caso de dizer que Forest me confirma delatando-se, aoempregar o verbo convocar: “A cette fin, un certain nombre deréférences immédiatement contemporaines sont égalementconvoquées: Foucault, Barthes et Derrida; mais également, demanière plus discrète, Althusser et Lacan”.47 A ambiciosa aposta domomento, repita-se, é: como unir o marxismo, a psicanálise, a lin-güística, a literatura e o maoísmo (ainda reprimido) contra a vastaburguesia – “táticas para enfrentar a invasão neoliberal”, diriam,como diria mais tarde Pierre Bourdieu.

*

Célebres pelos modos afetadamente irados, os telquelianos sãoem seu momento – quer dizer, antes de sua paradigmáticadesaparição – tão provocadores quanto alvo de violentos ataques,em que seu vanguardismo cientificista é sempre posto em questão.Entretanto, repita-se, estão ou estiveram a seu lado os pensadoresmais inovadores da filosofia e da literatura dos anos 60. O que nãoos exime de nenhum crime, ao contrário. É justamente ancoradosem pressupostos teóricos ricos ao extremo e sempre desafiadores,permanecendo ao mesmo tempo afirmativos e negativos, que ostelquelianos vão estabelecer sua reputação através de umvoluntarismo capaz de tudo, oscilando entre a biblioteca e a ruade maneira ambígua, indecidindo-se sobre seu próprio lugar deenunciação, cujo desfecho sob a forma do “infinito” em revistanão se cumpre como se cumpria sob outra denominação.

Afinal, não é verdade que Tel Quel não era tal qual, e que L’Infininão é o infinito?

*

O que é, o que há em um nome? “Mettre en question le nom denom”, lê-se ao fim de “La différance”.48 O nome é o nome do pai esua disseminação tem o vezo de um parricídio afirmativo. Mas oque fazer com um ismo? Um ismo é um nome elevado à enésimapotência, um nome dilacerado portanto, um nome que pretendeestar em todo lugar e pode simplesmente não ter pertencimento.Tal qual a vertente em vista: no início do “momento” do periódicofrancês – o decênio cujo exato intervalo corresponde a 1970, quan-do a história parece fazer um looping –, seu corpo mutante aban-dona em definitivo a fidelidade a Valéry e à Literatura Francesa. TelQuel segue sendo Tel Quel mas já poderia levar outro nome, pornão ser mais tal qual 1960 no plano dos valores culturais e políti-co-ideológicos. Great divide, a mutação fica carimbada de fato nassucessivas mudanças de razão intelectual da sólida empresa “duSeuil”: a partir de 67, em que reivindica, isto é, aparenta uma iden-tidade fortemente demarcada, “Science/Littérature”; a partir de 70,com a grande explosão: “Littérature/Philosophie/Science/Politique”;sendo que apenas nos estertores, 1978-9, surgem as três letras deArt (sempre com maiúscula), que no fundo e na superfície estive-

47 Idem, p. 304. Embora tanto Lacanquanto Althusser jamais tenhampublicado na revista de Sollers.

48 Théorie d’ensemble, op. cit., p. 68.

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ram desde o início (em 60) apensas a Tel Quel, vale dizer, a FelipeSóarte, seu todo-poderoso eterno-infinito diretor – em tradução bemliteral ao bom português do pseudônimo que se auto-outorgara,gloriosa e estudadamente, Philippe Joyaux (Bordeaux, 1936): Sollers,de sollus, com dois ‘l’, e ars, e era só, segundo só uma das váriasversões.49

*

Na visão dos talvez últimos promotores do telquelismo no uni-verso – os responsáveis por The Tel Quel Reader, se houve umgrupo com esse nome, ele deve necessariamente incluir os nomesde Barthes, em primeiríssimo lugar, bem como os de Guy Scarpetta,Jean-Joseph Goux, Pierre Guyotat, Maurice Roche e Severo Sarduy– o escritor cubano anticastrista que se exilou em Paris e seria apa-drinhado por ninguém senão Barthes (as descrições do período,quase sem exceção, começam e terminam neste nome).

O grande golpe publicitário do mercado das letras novas, comum slogan que poderia ter sido “por uma crítica teórica da práticado texto”, consistiu em reunir, já em 1968, uma constelação destar-names (a expressão é de inteira responsabilidade dos autoresdo Reader) como Foucault e Derrida, em apropriações um tantoindébitas. Tel Quel deu lugar a uma estratégia política, teórica eliterária, cuja retórica oscilaria entre a transgressão e atranscendência, conforme concluiriam mais recentemente ffrenche Lack, e conforme anteviam, mais próximos no tempo, seus leito-res latino-americanos.

*

Philippe Sollers justifica-se, naturalmente que em provei-to próprio, a propósito do “gigantesco erro” do maoísmo. Decla-rou a Bernard Henry-Lévy, em “As aventuras da liberdade” (odocumentário de 1990 sobre os intelectuais franceses), que a Chi-na terrorista, “por mais chocante que pareça, liquidará nossas últi-mas ligações stalinistas”. Ele vai mais longe, como é de seu feitio:os ex-maoístas, em sua opinião, deveriam receber homenagens “portentar reinventar a democracia na França”, ou seja, por liquidarcom a lei do silêncio imposta pelos Partidos Comunistas oficiais,abrindo uma “fissura no ponto mais sensível desse fenômeno”, vis-to e vivido enquanto uma enorme e terrível sombra.

A esta altura, o entrevistador é levado a reconhecer que surge,em torno de Tel Quel, uma “nova maneira de pensar”.

*

Sabe-se, porém, que o telquelismo não franqueia certas frontei-ras – a não ser a posteriori, com suas figuras já classificadas, querdizer, desclassificadas, caso dos Estados Unidos. Kristeva é a exce-ção, informam ffrench & Lack, mas seu trabalho se separa de TelQuel ao ser vertido ao inglês; exemplo disso é a exclusão de seuimportante ensaio sobre Sollers, “L’engendrement de la formule”,de qualquer compilação kristeviana existente na língua do Tel QuelReader, do mesmo modo que a produção literária dos membros docomitê de redação da revista, ao contrário de outros satélitestelquelianos:

This situation is more markedly the case when it comesto the fiction and poetry produced by the group. Whilethere is a singular lack of translated fiction or poetryby, say, Pleynet, Roche, Sollers and Baudry, the English-speaking reader can access translations of Maurice

49 A poética verbivocovisual nãonacional diante do espelho: “Thereare various interpretations of thename ‘Sollers’ given by the writerhimself: ‘tout entier intact’ (from H(Paris, 1973, II) is the Latin definition,‘possessed entirely of an art, hence,skilful, clever, adroit’ (Cassell’s LatinDictionary). It is also ‘le surnomd’Ulysse’ (also H, II). It is linked tothe Greek ‘holos’, thus to‘holocauste’, ‘sacrifice sans reste’(interview with Sollers by author)and to ‘hologramme’, suggesting awriting ‘en trois dimensions’ (voice-image-text)”. Cf. ffrench, P. The timeof theory, op. cit., p. 45 (nota 1).

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Roche, Pierre Guyotat and Severo Sarduy, all writersfor whom Tel Quel was a decisive influence, whopublished in the review and were at various timesgrouped with Tel Quel at conferences, but who werenot part of the committee itself. Tel Quel’s influence isrelayed via its periphery.50

*

A última nota do prólogo de J. M. L. (?) relativa a Literatu-ra, política y cambio – texto este que é um decalque caricato dosmandamentos do telquelismo – propõe mais uma lista de figuras-chave às outras tantas lidas nestes fragmentos. De modo especial-mente interessado, diria-se que não é uma relação qualquer:“Dijimos Marx, Freud, Nietzsche, Sade, Mallarmé, Lautréamont,Derrida, Tel Quel; podemos decir Lenin, Mariátegui, Borges”.

*

Seria preciso perguntar, por conseqüência, de que modo ostelquelianos lêem o “texto” Jorge Luis Borges, e não apenas comoos latino-americanos o fazem.51 A utopia cultural e política, quetorna o contradiscurso referido muito datado, define suas propos-tas de abolição de qualquer limite – propostas revistas depois, aomesmo tempo que os vanguardistas encontram, de um modo ou deoutro, seu lugar nas diferentes instituições – do meio acadêmico aomeio editorial. – Não há mais críticos, anunciaram, apenas escrito-res – uma vez que “la seule pratique que fonde la théorie du texteest le texte lui-même” (com grifo, no original). A conseqüência éevidente, segundo Barthes: “si un auteur est amené à parler d’untexte passé, ce ne peut être alors qu’en produisant lui-même unnouveau texte (en entrant dans la prolifération indifférenciée del’intertexte)”. E não só: “de par ses principes mêmes, la théorie dutexte ne peut produire que des théoriciens ou des praticiens (desécrivains), mais nullement des “spécialistes” (critiques ouprofesseurs); comme pratique, elle participe donc elle-même à lasubversion des genres qu’elle étudie comme théorie”.52

Mas qual seria o novo lugar – de que mapa se estaria fa-lando – já que os câmbios de posição no período são quase frené-ticos: o apoio à revolução, mais exatamente à revolução culturalda chamada “nova China”, cessa em 1975-6.53 É o lugar utópico,“paradisíaco”, em que haveria apenas textos. No entanto, tamanhautopia não é vista enquanto tal, quer dizer, enquanto algo inatingí-vel. Pelo contrário, a exigência teórica ligada a uma situação histó-rica e política bem definida levava então o nome de Mao Tsé-tung– aquela enorme tartaruga mole, na descrição televisiva feita, maistarde e confortavelmente, por Sollers.

Nesse sentido, Borges seria outro monstro, outro “Mao”.

*

Nunca indiferentes às metáforas de tipo zoológico dafisionomia, Jorge Luis Borges e Stéphane Mallarmé são escritoresatingidos na retina pela página de um livro que é também a páginaem branco. Borges possui a condição peculiar de ser o cego quemelhor lê e de ser o cego que, além disso, apregoa a superioridadeda leitura. O maior clichê mallarmaico repete e volta a repetir que omundo acaba na página de um livro, o que não torna a sua figuramenos ambígua no interior da célula político-cultural francesa que –autodenominada vanguarda revolucionária – dizia como as coisasdevem ou têm de ser, o que supõe, se sabe, subjetividades fortes.

50 ffrench, P. e Lack, R. F. The TelQuel Reader, op. cit., p. 243-44.

51 Quanto ao “autor” Borges, trata-sede um dos dois únicos argentinos apublicar na revista. O outro é opoeta Roberto Juarroz.

52 Barthes, R., “Texte (théorie du)”,op. cit., p. 1000.

53 V. Marx-Scouras, D., op. cit., p.180.

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A relação entre estes dois nomes tem a ver com o statusque a revista Tel Quel conferia a Mallarmé, e tem a ver com ostatus que a revista Los Libros conferia a Jorge Luis Borges – ambasfiguras incluídas exclusivamente, homo sacer que são (conforme oensaio homônimo de Agamben)54 nos respectivos grupos, ambosescritores mais ou menos reprimidos em seu interior. O escritor deFicciones enquanto sombra esquiva e onipresente sobre a cidadelacada vez mais profundamente ideologizada de Los Libros, em suabusca de produção textual aliada à confrontação ideológica, à moda(e à diferença) da teoria crítica telqueliana. O poeta de Un coup dedés enquanto problemático e cauteloso duplo do scriptor nos ter-mos de Tel Quel, cujos colóquios se deram em nome do Marquêsde Sade ou do Conde de Lautréamont (o que tem a ver certamentecom sua dívida, e sua dissidência, com o surrealismo) mas não deStéphane Mallarmé.

*

Esta digressão deflagra e exige uma nova digressão, nadireção de uma teoria do sujeito telqueliano, que antes de maisnada é um sujeito lacaniano, que com “Função e campo da fala eda linguagem” (1958), provoca efeitos sabidamente avassaladores,da psicanálise à lingüística, à crítica e à literatura.

A teoria do sujeito segundo Tel Quel postula o seu oposto, querdizer, coloca-se em confronto com a noção de sujeito nos moldesdo pensamento ocidental: o sujeito enquanto vazio, enquanto va-riável, conforme as bases lançadas por Lacan, que, segundo JohnIrwin, leu de modo especial (isto é, via Edgar Allan Poe) a ficção deJorge Luis Borges,55 que, por sua vez – e talvez malgré lui –, seencontra na base de toda a filosofia desconstrutiva. Como afirmarade modo didático Barthes, era imperioso subverter e mesmo abolira separação dos gêneros literários e dar ao leitor o seu lugar dedestaque: o sujeito está cindido na teoria do texto barthesiana, tan-to quanto na escritura e na leitura borgianas:

Si la théorie du texte tend à abolir la séparation desgenres et des arts, c’est parce qu’elle ne considère plusles œuvres comme de simples “messages”, ou mêmedes “énoncés” (c’est-à-dire des produits finis, dont ledestin serait clos une fois qu’ils auraient été émis), maiscomme des productions perpétuelles, des énonciations,à travers lesquelles le sujet continue à se débattre; cesujet est celui de l’auteur sans doute, mais aussi celuidu lecteur. La théorie du texte amène donc la promotiond’un nouvel objet épistémologique: la lecture (objet àpeu près dédaigné par toute la critique classique, quis’est intéressée essentiellement soit à la personne del’auteur, soit aux règles de fabrication de l’ouvrage etqui n’a jamais conçu que très médiocrement le lecteur,dont le lien à l’œuvre, pensait-on, était de simpleprojection). Non seulement la théorie du texte élargità l’infini les libertés de la lecture (autorisant à lirel’œuvre passée avec un regard entièrement moderne,en sorte qu’il est licite de lire, par exemple, l’Oedipede Sophocle en y reversant l’Oedipe de Freud, ouFlaubert à partir de Proust), mais encore elle insistebeaucoup sur l’équivalence (productive) de l’écritureet de la lecture.56

Este sujeito que desaparece sob o significante – à maneirado autor “mortificado” segundo Foucault ou o próprio Barthes –

54 Agamben, G., Homo sacer. Elpotere sovrano e la nuda vita, Torino:Einaudi, 1995.

55 Irwin, J., “Lacan con Borges”,Descartes nº 15-16. Buenos Aires,jul. 1997. O texto é parte do livroMistery to a solution. Baltimore,Hopkins University Press, s. d.

56 Barthes, R., “Texte (théorie du)”,op. cit., p. 1000.

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ocupa, por isso, um entrelugar nos significantes do Outro. Lacan,comentando a Carta 52 de Freud no Seminário 11, vai situar olugar do Outro “no intervalo entre percepção e consciência”.57 Aradical ex-centricidade do sujeito para ele mesmo, no dizer deLacan, implica no fato de que a relação do sujeito com o Outro, noque diz respeito ao significante, “dá-se sob a forma da alienação,da subordinação do sujeito ao campo do Outro. Mas se o estatutodo sujeito é o da falta em ser, ele derivará na cadeia significantesegundo o vetor do desejo, e nenhum significante poderá esgotá-lo, dizer o que ele é”.58 Convém observar, no entanto, que este é opensamento de Lacan nos anos 60, extremamente influente, o qual– uma vez que trabalha sempre contra si mesmo – vai se modificarem seu último período, durante os anos 70, deixando de dar pri-mazia ao grande Outro, falando de sua inexistência e insistindoque o que há, na verdade, é “um”.

Porém, o sujeito que é falta, o sujeito que treme – no dizerde César Aira em seu ensaio sobre Alejandra Pizarnik59 – é aqueledo chamado Lacan “clássico”, sofregamente consumido por TelQuel, em que o “eu” se constitui na linguagem. Como trata deentender Aira (e, sobretudo, este seu leitor):

En realidad toda su teoría se basa, si es que heentendido bien, en que la constitución del Sujeto sehace en la lengua, y no hay un sujeto “verdadero”anterior a lo simbólico, como no sea en el campo delmito. Luego, Lacan habla de la “coincidenciaimposible” del Yo con la palabra “yo”. El sujeto delenunciado es una máscara, infinitamente variada, delsujeto de la enunciación. Ese infinito tiende de modoasintótico a la coincidencia de Yo y “yo”, sin llegarnunca a ella. Todo esto lo ejemplifica con un sueño deFreud, o mejor dicho con la frase con que Freudcomenta la aparición en un sueño de su padre, muertoaños atrás: “Él no sabía que estaba muerto”. El que losabía era el soñador, el hijo, que aparece como sujetode la frase en lo absurdo de ésta. Según Lacan, aquí elsujeto “tiembla”. Creo que esta pequeña parábolademuestra que la salida del sujeto simbólico olingüístico no está atrás, en un supuesto sujeto “real”refugiado en la Vida o la Naturaleza, sino adelante, enlos cul de sac poéticos de la lengua.

Pode-se afirmar, portanto, que os cul de sac poéticos da línguachamam-se, em última instância, Borges, Mallarmé, isto é, os es-critores segundo os preceitos fundamentais do grupo Tel Quel, emseu determinante mas indeterminável entrelugar.

*

Pode-se, não obstante, insistir com Lacan e sua leitura da tragé-dia de Antígona. Pode-se então perguntar pela situação dos sujei-tos implicados no entrelugar do discurso latino-americano – e apartir daí pensar nas protohistórias de Silviano Santiago ou deRicardo Piglia (que chegam, digamos, a 1980): até que ponto con-seguem franquear um limite – limite, por sinal, autoproclamado –como o faz Antígona na zona fronteiriça do “entre-deux-morts”?60

Sua imagem seria a da paixão, que na América Latina, em torno de1970, se transforma em paixão revolucionária e, particularmenteem Los Libros, em uma sensação reprimida do abandono do Pai,seja ele Borges ou Perón: eis sua tragédia.

57 Cf. Nahas Riaviz, Vanessa,Alienação e separação: a duplacausação do sujeito. Dissertação deMestrado em Psicologia.Florianópolis, UFSC, 1998, p. 150; eLacan, J., Seminário 11. Os quatroconceitos fundamentais dapsicanálise, Rio de Janeiro, JorgeZahar, 1988, p. 48.

58 Nahas Riaviz, V., op. cit., p. 154.

59 Aira, C., Alejandra Pizarnik,Rosario: Beatriz Viterbo, 1998, p. 60.

60 Lacan, J., “L’éclat d’Antigone”(1960), Le Séminaire. Livre VII, Paris:Seuil, 1986, p. 317.

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“¡Tel Quel! Nosotros estábamos muy atentos a lasposiciones de Tel quel porque en Tel Quel había unacombinación de estructuralismo, maoísmo, críticaliteraria, psicoanálisis, que era un poco el climaintelectual común que en Buenos Aires tenía una fuerzamuy grande. Incluso yo estuve en un proyecto paratraducir Tel Quel en Buenos Aires, con Jorge Álvarez,que era el director con quien yo publiqué mi primerlibro [La invasión, 1967]. Conseguimos los derechospara traducir Tel Quel en Buenos Aires, cosa que ya seestaba haciendo con Communications, la revista deCommunications que se publicaba en Buenos Aires.Entonces estávamos en el proceso, yo incluso preparéalgunos números y después cesó, creo que vino elgolpe militar, no sé qué pasó y no se hizo. O sea, quela relación con Tel Quel no era una relación personalpero una relación con una vanguardia que nosinteresaba, ¿no?” Ricardo Piglia61

*

O telquelismo latino-americano constitui, sem dúvida, umavertente absolutamente difusa. Sua face mais óbvia seria cubana edissidente em Paris, através da figura do escritor Severo Sarduy,cuja relação com Barthes e o universo intelectual francês é bemconhecida. Investigá-la onde ela aparentemente não se situa, con-tudo, parece ser tão produtivo e desafiador quanto uma análise daescritura crítico-ficcional barroca de Sarduy. A revista argentinaLos Libros (1969-76), de Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia, deve serabordada em perspectiva similar, buscando ler tanto a primeira eta-pa, em que a presença francesa se faz avassaladora (o que não ébom nem ruim em si), quanto a segunda – que reage raivosamenteao estruturalismo, mas não consegue se desfazer totalmente dele,e foi menos enfocada pela crítica.

*

Telquelismo latino-americano significa e não significaLoslibrismo. A propósito, Los Libros não estaria mais próxima deChange, a principal dissidência de Tel Quel? Seu contato tupiniquimimediato era ninguém senão o poeta Haroldo de Campos. Na Ar-gentina poderia estar um tradutor (abortado) de Tel Quel, RicardoPiglia, inclusive por seu rechaço de Derrida.

*

“El día que llega la revista Tel Quel a Buenos Airescon los poemas de Mao escritos en chino y la foto deKristeva, Roland Barthes y Phillipe Sollers en la PlazaRoja de Pekín, me dije: bueno, efectivamente, esto esasí, la revolución cultural china y las vanguardiasfrancesas pueden coincidir en la página de un libro. Ycomo ya se sabe que el mundo existe para coincidiren la página de un libro, el teorema quedabademostrado. Cosas así hoy parecen casi extravagantes,pero entonces eran casi un lugar común”. Beatriz Sarlo62

61 Entrevista ao autor.

62 Hora, R. e Trimboli, J. (org.),Pensar la Argentina – Los historiado-res hablan de historia y política,Buenos Aires: Ediciones El Cielo PorAsalto, 1994, pp. 162-196 (citaçãopp. 168-9).

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Diante de um ismo, tudo apenas parece mais simples: a expres-são telquelismo latino-americano chega a ser uma contradição emtermos (em termos), ao menos do lado europeu. Examinando acoleção da revista em sua longa trajetória (1960-83), encontram-seene alusões à China e quase zero, por exemplo, ao Chile; há Borges,Sarduy, um poema, vertical e isolado, de Juarroz, e um único en-saio brasileiro (na verdade franco-lusitano-brasileiro) de Perrone-Moisés, intitulado “Pessoa personne?” (Tel Quel nº 60, hiver 1974).O que leva a pensar, de acordo com Gilman, que os fenômenos dolatino-americanismo e do boom significaram séria ameaça paranouveaux romanciers, critiques et philosophes telqueliens.63

Do lado de cá, a incidência é assaz evidente. Não, claro, arevista francesa no seu primeiro momento, estreitamente ligada aonouveau roman e declaradamente apolítica – o que queria dizer,engajada até o último fio de cabelo contra o engajamento sartriano.Nem aquela da queda para o alto, quando o grupo de maoístasfrustrados se americaniza de forma espe(ta)cular.

*

Mas, o que foi feito do telquelismo meia-oito? E da Teoria deConjunto do mesmo ano, vale dizer, de Drame, H, Nombres eLogiques? E da vanguarda “textual” do encontro de Kristeva, autorade Sémiotiké, com um onipresente Barthes? E o que dizer do seumomento de maior influência, o momento do “terrorismo teórico”,altamente eficiente aliás? Como referido antes, saem edições emitaliano da revista, e ninguém menos que o contista de La invasiónesboça seu projeto de tradução na Argentina, que nunca se con-cretizou, mas chegou a ser iniciado, e até anunciado nas páginasde Los Libros em 1969.

No entanto, e apesar desse fato, assim como “distância” é oprimeiro termo do primeiro ensaio – ensaio de Foucault – da anto-logia de Sollers, parece mais correto falar de distância no sentidolato de tomada de distância, a fim de verificar como se distanciam,tanto quanto se aproximam, os “bárbaros” da “civilização”, nomarco ambivalente de um certo entrelugar.

*

As chamadas patrulhas ideológicas andavam à solta tambémna Argentina dos anos 70, conforme é fácil verificar nas páginas deLos Libros: o diretor da revista gasta boa parte de seus editoriaispara se justificar e explicitar seu modo de adesão a determinadastendências intelectuais européias, sua compreensão dos “mode-los” importados, em outra variante da velha tensão entre bárbarose franceses, civilização e barbárie, que na segunda metade do sé-culo XX passa a confrontar “populistas” (identificados com operonismo) e “cientificistas”, em um espaço político de umesquerdismo generalizado e diluído, indo do liberalismo de BioyCasares ao comunismo oligárquico de Maria Rosa Oliver, segundoJorge Panesi, que sublinha o caráter de “inquisidores” dos críticosde Los Libros, bem à maneira de Tel Quel.64 Vale notar ainda queJosé Sázbon aborda a “moda estruturalista” de forma bastante críti-ca nas edições de nº 2 e nº 6 da revista argentina, e Eliseo Veróndiscute o mesmo problema no nº 9, todos de um modo ou de outroem busca de saídas à institucionalização do estruturalismo. AThéorie d’ensemble, por exemplo, quer se colocar mais além nãosó de “estruturas” quanto de “formas”, vale dizer, do “formalismo”,em uma crítica do sistema burguês baseada simultaneamente em

63 Gilman, C., Entre el fusil y lapalabra, op. cit.

64 Cf. Panesi, J., “La crítica argentinay el discurso de la dependencia”,Críticas, Buenos Aires: Norma, 2000,p. 41.

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Freud, Marx, Derrida, Lautréamont e Mallarmé (segundo a lista deForest), girando em torno de três eixos, propulsores da revolução: aescritura textual, a gramatologia e o materialismo.

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Observe-se que um artigo derridiano aparece em Los Libros –“Gramatología: ciencia de la escritura”, de Ricardo Pochtar (jan.1972) – no momento de transição em que se estabelecem commaior clareza as dissidências no interior do grupo, estimulado peloclima de guerrilha generalizada.

*

Afinal, foi Derrida um telqueliano? Antes parece que o filósofose utilizou (como sugerido antes) da refinadíssima frente populartextual, autodenominada revolucionária, a fim de inocular vene-no, de parasitar seus trabalhos-objeto, para deles tomar distânciaem seguida.

*

“Em cada fragmento, o que interessa são as fricções,as intersecções, os encontros, os trânsitos entre espaçosdiferentes, entre linguagens distintas. Fico em trânsito,no entre, na passagem, entre mídias e saberes, entrelugares e poderes. É possível nunca estar em lugaralgum, num não-lugar? Eterno adolescente? Apenas umtestemunho sobre o estado das coisas. Uma voz. Não-artista. Não-cientista. Transesteta. Cronista de culturacontemporânea. Crítico escritor. Colecionador defragmentos, citações”.Denilson Lopes65

*

De tal modo que esta leitura da teoria crítica made in France,conforme o caráter fragmentário de seu discurso, passa pelas revis-tas ou periódicos literário-culturais, para fazer uma espécie de vol-ta ao mundo, com uma longa escala na China da revolução cultu-ral, à base de dazibaos e palavras de ordem disfarçadas deideogramas: a China como “poema dialético”, conforme a mitolo-gia construída por nossos bons franceses.

*

As práticas desta vanguarda “revolucionária” redundariam emnecessária institucionalização, ao transitarem com rapidez daradicalização e da estridência em direção a algum tipo mais silen-cioso quanto inexorável de integração. Vale perguntar: como essavanguarda abandona a idéia de unir a si – o artista, o scriptor, opoeta, aquele que não é – aquele que não tem, o proletário, paralembrar os termos com que Sollers conclui “Littérature et totalité”(1966), sobre Mallarmé.66

65 Lopes, D., Nós os mortos.Melancolia e Neo-Barroco, Rio deJaneiro: Sette Letras, 1999, p. 7 (3ºfragmento).

66 Sollers, P., L’écriture et l’expériencedes limites, Paris: Seuil, 1967.

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“Une ivresse belle m’engage”

Mallarmé

“(...) de ces poètes que se rencontrèrent parfois pour dire ‘zut’ à la vie(...)”

Henri Peyre

“... aprender a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou nocorporativismo, no comércio sem comércio dos fantasmas. A viver de outro

modo, e melhor. Não melhor, mais justamente. Mas com eles. Não há estar-com o outro, não há socius sem este com que, para nós, torna o estar-comem geral mais enigmático do que nunca. E este estar-com os espectros seria

também, não somente, mas também, uma política da memória, da herança edas gerações... Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não

pertence a este tempo, ele não dá tempo, não este: ‘Enter the Ghost, exit theGhost, re-enter the Ghost (Hamlet)’.”

Jacques Derrida

Em um texto apresentado no colóquio Declínio da Arte/Ascen-são da Cultura, em 19971, Silviano Santiago volta ao final dos anos70, início dos 80, para localizar aí a emergência de uma “novageração de pesquisadores acadêmicos” que rebatem as interpreta-ções canônicas das artes e da cultura, inaugurando no país umdebate que viria a esquentar ao longo dos anos 80 com a questãoda pós-modernidade. A prática de críticos como José Miguel Wisnike de produtores como Caetano Veloso começa então a romper asamarras do paradigma marxista, hegemônico entre a esquerda, eapontar para novos caminhos que viriam a desembocar na discus-são sobre o cânone, nas relações entre indústria cultural e alta cul-tura e na posição do crítico e do produtor de cultura em uma soci-edade massificada e massmediatizada.

Alguns anos antes (1972-1977), o crítico cultural Ronaldo Brito,que escrevia na seção Tendências e Cultura do jornal Opinião, ar-ticulava sua reflexão na relação que poderiam ter os produtores ecríticos culturais com o mercado, colocando o dilema que vinhaacompanhando os intelectuais desde o final dos anos 40: estar tran-cado nos muros da universidade produzindo para poucos ou atuarno mercado limitado pelo modelo Variedades da indústria cultu-ral, ou, nas palavras do próprio Brito, estar entre os spots e as aca-demias2. Interessado primordialmente nas artes plásticas, Ronaldo

Antonio Carlos SantosUNISUL

1 Trata-se de Democratização noBrasil: Cultura versus Arte/ Umainvestigação arqueológica (1979-1981), lido na abertura do colóquio,realizado em Florianópolis, a 5 demarço de 1997.

2 Cf. “Entre os spots e as academias”,in Opinião, 14 de janeiro de 1977.

NO TEMPO DA GAZETINHA E DEPOIS

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Brito acompanha de perto a produção dos artistas conceituais esuas relações escorregadias com o mercado no Brasil e reclama dafalta de uma história da arte brasileira. Segundo ele, as idiossincrasiasdo mercado local impossibilitavam a construção desta história.Numa época em que o comum era torcer o nariz para o mercado,a alma do capitalismo, Brito reivindicava uma relação tensa comele, aceitando sua hegemonia como um dado do mundo moderno,e fazia isso desde as páginas de um veículo da indústria cultural,ou seja, nas páginas de cultura de um jornal alternativo que busca-va exatamente o espaço para a produção de um debate em um,para lembrar Silviano Santiago, entre-lugar.

Tanto Silviano quanto Brito estão preocupados com a posiçãodo crítico cultural como aquele que, de certa forma, constrói comsua prática uma história, a história de seu próprio lugar e a de seusleitores. A reflexão de ambos busca caminhos que esclareçam asnovas relações entre produtores de cultura e uma sociedademassmediatizada no âmbito do esgotamento da modernidade, dofim das utopias e dos grandes relatos. Com Borges, poderíamostraçar uma linhagem destes intelectuais não-hegemônicos, os pre-cursores de Brito3, criando uma série com escritores que, ao mes-mo tempo, fossem críticos de arte, ou críticos culturais, que nãoocupassem o centro do debate, mas que com sua prática apontas-sem novos caminhos à interpretação do país, como quer SilvianoSantiago. Assim, por exemplo, ligaríamos Ronaldo Brito a LuizGonzaga Duque Estrada (1863-1911), uma primeira linha da série— que cobre, exatamente, “o tempo da Gazetinha” e depois —,para ver como este representa o crítico de artes e o pintor no ro-mance Mocidade Morta (1899) e como atua no incipiente campodas artes de um país novo, que havia proclamado a República em1889, e que, portanto, dava seus primeiros passos como estado-nação moderno.

Gonzaga Duque é um moderno avant la lettre, leitor deBaudelaire, Huysmans, Zola, dos irmãos Goncourt, de Eça, RamalhoOrtigão e Antero de Quental, cronista da cidade, crítico de arte,historiador, ficcionista, militante das revistas da época. Nascido noRio de Janeiro, em 21 de junho de 1863, na Rua do Sabão, CidadeNova (hoje incorporada à Avenida Presidente Vargas), foi adotadopor José Joaquim da Rosa, ganhando o sobrenome da mãe, LuizaDuque Estrada, depois de ter sido abandonado pelo pai de nacio-nalidade sueca. Sua prática de crítico cultural começa nos anos 80com a revista Guanabara; em pouco tempo, 1882,1883, está naGazetinha4 com Arthur Azevedo e o grupo de novos talentos (LopesTrovão, José do Patrocínio, Dermeval da Fonseca, Carvalho Júnior,Arthur de Oliveira, Lucio de Mendonça, etc). De janeiro de 1904 aabril de 1909, colaborou com a revista Kosmos, publicando aí contose críticas de arte. Antes, porém, no último mês do século XIX, pu-blicou um romance: Mocidade Morta.5 Mal recebido pela críticada época – José Veríssimo dizia não ter passado das primeiras pági-nas6 –, o romance era a versão sombria de A Conquista, de CoelhoNeto, dialogando ainda com L’Oeuvre, de Zola, todas narrativasque encenam a vida de artista no final do século.7 Gonzaga Duquevivia na roda dos simbolistas, preferindo, entre tantos, a compa-nhia de Mário Pederneiras e Lima Campos, com quem se encontra-va freqüentemente no Café Papagaio8, e dos poucos amigos maisíntimos, como Luiz Murat e Roberto Mendes. Vale a penas nosdetermos na análise do romance porque, a partir dela, podemosdetectar como Gonzaga concebe a posição do crítico cultural nes-te momento.

3 Refiro-me a “Kafka y sus precurso-res”, in Obras completas (1952-1972), Barcelona: Emecê Editores,1989.

4 Fundada por Arthur Azevedo em1880, a Gazetinha era umjornalzinho, de quatro colunasapenas em cada página, que custavaum vintém e publicava fofocas deteatro, notícias da vida mundana, dacidade, folhetins, etc; cf. MagalhãesJr, Raimundo, Arthur Azevedo e suaépoca. São Paulo, Livraria MartinsEditora, 1955, 2a edição, páginas 65a 78, e Gonzaga Duque, Luiz, “Nostempos da Gazetinha”, in Dimas,Antonio, Tempos Eufóricos, SãoPaulo, Editora Ática, 1983, pg 291.

5Gonzaga Duque, Luiz, MocidadeMorta, Rio de Janeiro, FundaçãoCasa de Rui Barbosa, 1995.

6 Gonzaga Duque chama Veríssimode Barbicas: “fauno senil e cor debanana, gafento e empapuçado, debeque aquilino e barbicas aoqueixo”; cf. a várias referências aJosé Veríssimo no diário de GonzagaDuque, Meu Jornal, que estápublicado como anexo in Lins, Vera,Gonzaga Duque/ a estratégia dofranco atirador, Rio de Janeiro,Tempo Brasileiro, 1991. Parte dodiário havia sido publicada antes,em 15/11/1942, no SuplementoLiterário de A Manhã, por MúcioLeão.

7 Cf. Eulálio, Alexandre. “SobreMocidade Morta”, in Sobre o pré-modernismo, Rio de Janeiro,Fundação Casa de Rui Barbosa,1988.

8Luiz Edmundo lembra do crítico eseus amigos em seu livro: “GonzagaDuque, que escreve, então, aMocidade Morta, é a figura centraldessa trempe simpática que só amorte pode um dia desfazer. Umafigura heráldica. É alto, fino,elegante, usa uma barba à Cristo,negra e bem tratada, emoldurando orosto pálido, onde dois olhos meigose profundos brilham através de duaslentes de cristal”. Cf. Luiz Edmundo,O Rio de Janeiro do meu tempo, Riode Janeiro, Conquista, 1957, 3o vol.,p. 551. É interessante contrastar essaimpressão com a do próprioGonzaga Duque, em seu diário,sobre Luiz Edmundo: “FigueiredoPimentel faz-me conhecer LuizEdmundo, uma criança de vinte eum anos, pálido como uma moçaromântica, alto como um fidalgo ede um nobre perfil de príncipe, aque os negros cabelos compridos,rebeldes no penteado, dão, apesardo pince-nez, o quer que seja dumHamlet adolescente. (segue)

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Vida de artista

Crítico do progresso que então entusiasmava o Rio e que nosprimeiros anos do novo século promoveria um bota-abaixo paratransformar a tímida cidade portuguesa numa Paris da Belle Époque9,Gonzaga Duque traça em 20 capítulos duas trajetórias de vida numbreve espaço de tempo: Camilo Prado, crítico de artes nos jornaiscariocas, e Agrário de Miranda, um pintor, dois personagens cujastrajetórias são opostas, a do primeiro descendente e a do segundoascendente. Figuras especulares típicas da modernidade, o críticoe o pintor envolvem-se na criação de um grupo antiacadêmico, osInsubmissos, conhecidos também pelo nome misterioso de Zut,interjeição francesa onomatopáica que expressa desagrado, raiva,um eufemismo para merda, usada pelos grupos decadentistas fran-ceses no final do século.10

Espécie híbrida e ímpar, Mocidade Morta mistura elementosdíspares, naturalismo com simbolismo, um romance com princí-pio, meio e fim, mas também fragmentos de prosa poética aparen-temente independentes (como a cena da morte de Alves Pena, nocapítulo 15) que parecem sempre ser um excesso em relação àação romanesca. O cenário é realista, o Rio de Janeiro dos anos de1886 a 1888, portanto em plena época da campanha abolicionista,e nele deslocam-se Agrário de Miranda, Camilo Prado e seus com-panheiros boêmios, tomando a cerveja que começa então a ga-nhar a preferência dos cariocas11, fazendo ponto na rua do Ouvidor,discutindo os impressionistas, Huysmans, Wagner, etc.

Mas como são apresentados os dois personagens no romance?

Ambos vêm descritos logo no início do capítulo 2, quando onarrador recua no tempo após a cena de abertura que enfoca aexposição de Telésforo de Andrade. O pintor aparece em um mo-mento de crise, em aporia, quando perde o protetor e é preteridono prêmio da academia de viagem a Paris. Boêmio e vaidoso, jun-ta-se ao crítico – alguém que “distendia ócios nauseantes de repul-sivo à freqüência dos primeiros cursos médicos” – cujo objetivoera uma boa posição nos jornais, ou seja, um lugar na esfera públi-ca que então se formava. Gonzaga Duque constrói seus dois per-sonagens como um dramaturgo trágico grego: ambos aparecem inmedia res, atravessados por seus desejos e ambições, no momentodo ataque, da pulsação, da transgressão que levará um a Paris e ooutro à queda (dissolução do grupo, perda de Henriette, solidão ea doença que o matará). E como um trágico grego, leva Camilo atéseu momento de verdade, no último capítulo, quando, sozinho, narua, sob o luar, resolve reagir e descobre que é tarde.

Se nos detemos um pouco nos nomes dos personagens, desco-brimos, desde logo, alguns traços fundamentais em suas composi-ções e destinos. Primeiro, o crítico: Camilo lembra o seis vezesditador romano Marcus Furius Camillus (século IV a.C.) que expul-sou da capital do império os bárbaros gauleses.12 A força do gene-ral romano aparece no ímpeto, na fúria de ideólogo de CamiloPrado, líder dos Insubmissos e instigador do ataque aos acadêmi-cos. Um estrategista ousado, e mesmo abusado, que dirige a orga-nização do grupo, articulando um inimigo, simbolizado na figurade Telésforo, uma mistura de Pedro Américo e Vitor Meirelles, e umtrabalho a fazer.13 O nome Prado suaviza a impulsão de Camilo,colocando-os sob o signo do locus amoenus, um não-lugar de umanatureza ideal, fora da corrente devastadora do tempo, onde podedar vazão a seus líricos delírios greco-romanos.

Não tem barba, apenas um buçomuito leve sombrea-lhe a bocasensual, bem adornada de lindosdentes. (...) Sinto por este belo rapazuma simpatia irresistível, há nele nãosei o quê da minha mocidade, umavaga pretensão de experiência eostentação de vida sobre umatimidez dolorosa e absorvente. Assimme parece.” Cf. Meu Jornal, op. cit.

9 “É necessário atenuar os violentosefeitos de nossa civilização,adelgaçar a rudeza do utilitarismocom a mão macia e branda da graça.É necessário trazer ao delírioindustrial d’estes tempos, que foi oespectro de Ruskin, as miragens doengano e da compensação,domando a ferocidade humana como deslumbramento da forma e daCor, para que não se perca de todo oresto de generosos sentimentos aindaexistentes na espécie soberana sobrea Terra...”. Cf. Gonzaga Duque, Luiz.Os contemporâneos. Rio de Janeiro,Typ Benedicto de Souza, 1929, p.26. Este livro reúne os estudospublicados em Kosmos, Renascença,Diário de Notícias e O Paiz, estudosque fariam parte de duas obras: Osde Hoje e A Caricatura no Brasil.

10 Sobre a formação de grupos nosmeios simbolistas-decadistas, cf.Moretto, Fulvia M.L. (organização,tradução e notas), Caminhos doDecadentismo Francês, São Paulo,Edusp e Perspectiva, 1989, pp. 24,25, 26.

11 Luiz Edmundo conta em seu livroa história da cerveja no Rio e adisputa com os comerciantesportugueses de vinho que tudofaziam para impedir o sucesso danova bebida. Cf. Luiz Edmundo, ORio de Janeiro do meu tempo, Rio,Conquista, 1957, 2o vol., pp. 408 e409; e 5o vol., pp. 978 e 979.

12 Cf. a história de Furius Camillusem Plutarco, Vidas Paralelas, SãoPaulo, Paumapé, 1991, vol. 1; p.268.

13 No segundo capítulo, p. 37, onarrador cita a frase de PierreSandoz, personagem de L’Oeuvre, deZola: “Allons nous en travailler!”.Zola é citado ainda no mesmocapítulo, p. 33, durante as discussõesde Camilo e seus amigos, juntamen-te com Huysmans e os pintoresimpressionistas: “... apoiando-se noapostolado reformador de Zola, naanálise vesicante de Huysmans...”.

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Camilo Prado, aquele que decai, tem como contraface Agráriode Miranda. Do grego agrioV, aquele que vive nos campos, rústico,selvagem (do verbo agrew, tomar, apoderar-se), assim como agreuV,caçador, pescador, Agrário traz no nome a força que parece lhefaltar nos primeiros capítulos quando, em estado de aporia, nãoconsegue se decidir entre liderar o Zut e roubar Henriette para si,satisfazendo o desejo intenso de possuir a francesinha (metáfora daviagem a Paris). Se é rústico, selvagem, o que se depreende doímpeto que o leva, bêbado, ao apartamento de Henriette, é tam-bém de Miranda, ou seja, mirandus, a, um (miror), admirável, ma-ravilhoso, prodigioso. Enquanto o nome de Camilo parece escon-der timidamente a alma do crítico de artes da Folha, o de Agráriorepete o acorde de sucesso que ressoa desde o primeiro capítulono vencedor Telésforo de Andrade (teloV + jerw = aquele que levaalgo a um fim, que realiza algo).

Este último é o espectro que ronda o romance desde a magistralabertura com a exposição do vasto painel histórico de 14m por12m; é o pintor acadêmico vencedor que recebe a visita da prince-sa, a admiração da imprensa e do público, e, por isso mesmo, oalvo dos Insubmissos. A força criativa de Gonzaga Duque com alíngua aparece ainda em Telesforomidal, espécie de coquetelMolotov jogado pelos Insubmissos no salão de exposições onde opintor oficial colhe o elogio público. O petardo que desmoralizaTelésforo e lhe estraga a festa de glória é uma jóia de ironia quemescla o nome do pintor a formidável (medonhamente grande,descomunal, colossal, segundo o Aurélio) com o resultado de pôrem ridículo a megalomania e o servilismo do tipo de arte oficialistaque ali se apresentava. Telesforomidal: aquilo que leva tudo a umfim medonhamente grande, ou seja, fora de proporções, grotesco,ridículo como o painel de 14m por 12m representando uma cenade batalha, ou seja, o heroísmo fundador da nacionalidade.

Heráclito das Neves, apresentado pelo narrador como“pardavasco espadaúdo e gigantesco”, também traz no nome suasqualidades: a frieza no cálculo da sedução e do melhor momentopara arrebatar a presa e o nome de filósofo grego, em geral prece-dido por senhor doutor, o que lhe reveste da tradicional dignidadedos burgueses bem-educados.

A energia que falta a Camilo e a força momentaneamente para-lisada de Agrário ressoam na ária Sento una forza indomita, doprimeiro ato do Guarani, de Carlos Gomes, que um dos boêmios,Samuel Braga, o Braguinha, “laureado do concurso de piano doConservatório de Música”, usa como espécie de adágio. A forçaindomável que invade o corpo de Peri é a mesma que leva Agrárioaos braços de Henriette, a mesma que empurra Camilo e que estecontém a todo custo, a mesma, enfim, que o doutor Heráclito ma-neja com destreza de artesão profissional. Aliás, Mocidade Mortalembra às vezes um libreto de ópera; não é difícil visualizar nopalco a última cena do livro com Camilo Prado sozinho na rua, demadrugada sob o luar, cantando a ária da vida atravessada porestranhos acordes dissonantes que anunciam a morte; ou mesmo odueto agonístico de Camilo e Heráclito, ao qual se junta a vozfonte do Zut, num trio.14

A impotência sexual de Camilo fica patente desde o segundocapítulo quando é exposta a teoria da cama: “Era o traste maistraste que o comodismo humano inventara: possuía todos os defei-tos – como móvel não passava de uma pretensão aparatosa de bur-guês, acarretando gastos supérfluos em linhos, painas e sedas...Paraque? Para tornar-se um imóvel! Como utensílio, não se podia negar,eram prejudicialíssimas – relaxavam os músculos, prostituíam as

14 Para uma noção da popularidadeda ópera na virada do século cfMeyer, Marlise, “Vicente Celestinoou a Força do Destino”, in Caminhosdo imaginário no Brasil, São Paulo,Edusp, 1993, p. 139, e também textode Lima Barreto agregado à ediçãode seu diário: “... a ópera lírica é amais alta expressão da estesia dosnossos estudantes...”; cf. LimaBarreto, Um longo sonho do futuro(Diários, cartas, entrevistas econfissões dispersas), Rio de Janeiro,Graphia, 1993, p. 8.

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energias”.15 Uma entre as várias teorias que o crítico tece durantea história, a teoria da cama aponta desde logo para este drama queo próprio Camilo define mais à frente (capítulo 10) como um“insucesso para o reqüestro”, uma “falta de masculinidade para ogozo comum da mulher” (p. 130).

Enquanto Agrário, depois de alimentar-se da energia deHenriette, dá o tão sonhado salto para Paris, Camilo ronda obceca-do a francesinha que lhe fica como herança, como resto, sobra,sem conseguir consumar a paixão, alimentando-se da doença daamiga durante o inverno. O momento do choque acontece quan-do ele enfrenta Heráclito, no capítulo 17. Amargurado por sentirque o doutor cerca a francesinha que ele cuidava com tanto esme-ro desde a viagem de Agrário, Camilo tenta de todas as formasevitar o confronto. Este só vai acontecer quando o doutor forçauma visita à já quase restabelecida doente e os dois travam umdiálogo-duelo, cujo veredito será dado por uma risada de Henriette.Durante o diálogo, vão ficando claras as diferenças entre os doishomens: Heráclito gosta de Alencar, Francisco Lisboa, GonçalvesDias, Castro Alves; Camilo é fiel a Eça de Queiroz e Baudelaire; odoutor bebe vinho, Camilo prefere a cerveja. Mas é na deixa deHeráclito – a preferência pela Mulher – que Camilo vai construirmais uma teoria, a da onosarquia, assumindo a iniciativa no diálo-go agônico depois de alguns momentos de defensiva indecisão. É aonosarquia, o poder dos burros, que garante o cimento da socieda-de; é ela a “força equilibradora”, o “elemento de prosperidade”, “oprincípio inestimável de ordem social” que “representa o respeitoàs fórmulas herdadas”, o bom-senso literário que resiste às inova-ções. O entusiasmo irônico de Camilo, no entanto, é quebradoquando Heráclito responde à exposição – “E ninguém salva-se dainfluência desta força niveladora... senão o meu jovem e distintoamigo” – e Henriette explode numa risada atroz. Camilo desaba,sabe que perdeu.

Esta impotência sexual esconde um segredo, uma marca nopassado. E o segredo se revela exatamente no meio da narrativa,quando Camilo volta para casa de bonde, uma casa simples desubúrbio que guarda uma história de exclusão, resultado do amorproibido de sua mãe, do suicídio do pai, enredo típico da mitolo-gia grega. É aí que o narrador coloca o drama de Camilo: espéciede gauche da vida, um homem marcado, que recua horrorizadovendo seu próprio destino na loucura de Sebastião Pita e na mortesolitária e degenerada de Alves Pena. Camilo é um homem quedecai, que não encontra espaço em um mundo que se modernizaa toque de caixa, um mundo que só oferece a seus nacionais duasprofissões: “...a lavoura e o bacharelado. Ou manda e açoita escra-vos, ou conquista pergaminho para entrar na política”.16 A falta deum lugar para o artista que busca novos horizontes é a sinuca debico do próprio Gonzaga Duque que se desdobra entre a família(mulher e quatro filhos, sendo que dois morreram cedo), o empre-go público e as inúmeras revistas e jornais em que colaborou. Tudoisto, agravado pela saúde precária, pelo problema nos olhos17 epelo pouco caso com que a crítica recebeu Mocidade Morta e seusoutros livros. Em uma carta de 15 de novembro de 1902 ao poetaEmiliano Perneta, Gonzaga desabafa, conta suas dificuldades e ador da perda do filho Haroldo, 11 anos. Havia ainda a neurastenia,o esquecimento a que estava relegado, e um ceticismo que o im-pedia de ter consolo “na doutrina dos Espíritos”.

O personagem que decai é um tema recorrente em GonzagaDuque e reaparece, pelo menos, em dois textos curtos publicadosna revista Kosmos: Benditos Olhos (2/12/1905) e Morte do Palhaço

15 Gonzaga Duque, op cit, pp. 35 e36. A partir daqui, as páginasreferentes à Mocidade Morta virãoentre parênteses, no próprio corpodo texto.

16 Gonzaga Duque, Luís. A ArteBrasileira, Campinas, Mercado deLetras, 1995, p. 68.

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(1/01/1907).18 Nos três textos, temos a representação da arte se-gundo diferentes perspectivas: em Mocidade Morta, trata-se de ins-taurar uma alternativa às artes acadêmicas através de um grito sui-cida, Zut!, uma ação rápida, fulminante, um ato de transgressão;em Benditos Olhos, a representação do irrepresentável, em Mortedo Palhaço, o êxtase artístico e a morte, ou seja, a arte como ummomento mágico que rompe o contínuo da história.

O crítico de artes Camilo Prado, que decai após o golpe ousadoe suicida, coloca-se contra o status quo e, portanto, neste momen-to de hegemonia do parnasianismo e do naturalismo no Brasil, nãotem espaço, vive correndo pelas margens. Certamente, há o pesodo determinismo como paradigma científico e suas explicaçõesracistas para o progresso e para a decadência, mas esta mania daépoca não esgota as múltiplas possibilidades abertas pelo texto deGonzaga Duque. Em Uma palheta que vive (Baptista da Costa),que aparece em Os contemporâneos, Gonzaga registra dúvida quan-to à determinação dos artistas por seus caracteres físicos, mas nãodeixa de ceder à tentação de estabelecer uma ponte entre os paisa-gistas e seus “traços exteriores” ou “feições particulares”. A argu-mentação que se segue, no entanto, guarda as devidas distânciascom o discurso científico dos deterministas positivistas eevolucionistas, e se embala no prazer da escritura: “Tomemo-lonesse mesmo Baptista da Costa. Ele tem o queixo anguloso dosobstinados. No seu tipo há alguma cousa de rústico, de nãoartificializado. A indicativa de sua corporatura é a de um campô-nio que estudou latim no Seminário e a sua dextra, que lhe é mãodos pincéis, possui a dureza óssea das mãos ativas e as nodosidadesassinaladoras do pensamento”.19 Mesmo em Arte Brasileira, a fúriadeterminista-evolucionista da abertura e do último capítulo, quecondenaria de saída a cultura brasileira, acaba vencida pelas pági-nas que analisam as produções dos artistas.20

Camilo sabe que no mundo há vencedores e perdedores e, selembrarmos a classificação de Nicolau Sevcenko21, ele ficaria en-tre o grupo 1 dos derrotados, os simbolistas e decadentes, “boêmi-os e passivos”, sendo Euclides da Cunha e Lima Barreto do grupo2, dos reformistas inconformados. Mas o crítico de artes, que étambém escritor inédito, distingue o sucesso na vida, do sucessona arte. Telésforo pode ser vencedor na vida, mas nunca um artistavitorioso. A condição de artista é alguma coisa que não cabe nomundo comportado da onosarquia, na poética bem comportada epatriótica dos acadêmicos; ela está simbolizada na ascese do clown,de Morte do Palhaço, que se transforma num pária para atingir omomento mágico do êxtase artístico; no brilho dos olhos da moçatísica por quem se apaixona o narrador de Benditos Olhos; no tem-po que desaparece durante a leitura de Eça em O Primo Basílio.22

O campo das artes

Tanto Gonzaga Duque na virada do século quanto Ronaldo Britonos anos 70 consideram precárias as condições de mercado desuas épocas, o que dificulta ainda mais o trabalho do artista. Em setratando do final do século XIX e início do XX, quando o Rio deJaneiro tinha apenas 500 mil habitantes e a crise do Segundo Impé-rio desembocava na República, provocando um rearranjo no cam-po da arte, a posição do produtor cultural não era certamente dasmais fáceis, principalmente se não se aliava aos hegemônicos. Poishavia um campo da arte constituído, com seus grupos hegemônicos,

17 Gonzaga Duque refere-se, nodiário, a uma operação no olhoesquerdo, ao avanço da catarata nodireito e às dificuldades que tinhapara ler e enxergar à noite. Cf. op.cit., p. 136. A metáfora da visão éexplorada em Benditos Olhos.

18 Cf. Dimas, Antonio, op. cit., pp.243 e 246, respectivamente.

19 Op. cit., p. 27.

20 Tadeu Chiarelli fala em uma “cisãoestrutural” ao referir-se a esteaspecto dúplice. Cf. a introdução deChiarelli a A Arte Brasileira.

21 “Ambos constituem elementosrepresentativos de uma longa série, ados autores que introduziram afissura mais profunda e irremediáveldentre o grupo intelectual. Com elessurge a camada dos “vencedores”, ofilão letrado que se solda aos gruposarrivistas da sociedade e da política,desfrutando a partir de então deenorme sucesso e prestígio pessoal.(...) Essa nova camada seria à dosplenamente assimilados à novasociedade (...) O segundo grupo, odos “derrotados” ou ratés, poroposição aos primeiros... Marginali-zados, esses escritores optariam porduas formas incompatíveis dereação. De um lado se postaram osque acatavam o seu opróbrio comresignação... De outro, estavam osinconformados... O primeiro dessessubgrupos era genericamentereferido como meio dos “boêmios...Envolvia principalmente ossimbolistas, nefelibatas,decadentistas e remanescentes doúltimo romantismo.” Cf. Sevcenko,Nicolau, Literatura como missão,São Paulo, Brasiliense, 1995, 4a ed.,pp. 103 e 104.

22 Cf. Dimas, Antonio, op. cit., p.317.

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os “vencedores” (parnasianos e naturalistas e, nas artes plásticas,professores e alunos da Academia) e periféricos, os ratés (simbolis-tas, decadistas e reformadores); havia ainda os jornais e revistasque começam a se reproduzir rapidamente, mas é forçoso lembrarque o número de leitores é muito baixo, as edições de pequenatiragem e vida curta, que a universidade apenas começa a dar seusprimeiros passos23, e que o público de artes é ínfimo. Camilo Pradoexplica assim, em Mocidade Morta, as condições do mercado deartes brasileiro para justificar o sucesso de um artista como Telésforo:

Há certas épocas que produzem caricaturas de gênios;então na história das artes os casos não são raros. Eis oseu mérito. Por si, o esforço foi pequeno, tudo maisresultou de circunstâncias favoráveis – a falta deconcorrência séria, a apatia do meio... até a necessidadede vibrar na esmorecida fibra patriótica, concorrendopara o prestígio da monarquia, quando as aspiraçõesrepublicanas entram no domínio das realidades... (p. 92)

Desta forma, o sucesso de Telésforo explica-se pelas peculiari-dades, fragilidades, do campo das artes local, pelas relações cordi-ais com o poder, e não pelo valor de sua produção. O que contaaqui é o curso na Academia, a carreira de funcionário público, adisputa por cargos, os interesses dos poderosos, sejam eles a mo-narquia ou a república. É uma arte de “circunstâncias favoráveis”.24

Neste contexto, destaca-se a discussão sobre o nacional, leva-da a cabo tanto por Camilo Prado em Mocidade Morta, quanto porGonzaga Duque em A Arte Brasileira. Camilo expõe assim seu pontode vista sobre a identidade e arte nacional. O fato de constituirmosum país independente não pressupõe a existência de um naciona-lismo; somos “a fusão dos mais dessemelhantes elementos” com“predominância latina” e nossa “preceptora espiritual” é a Europa:

(...) a Arte, para todas as nações que nasceram dacivilização d’Ocidente, é uma e a mesma, e apenasvariando em particularidades d’expressão que vêm doacordo com o traço psíquico da raça dominante emcada meio de produção. Daí concluiremos que, n’América de hoje, talvez de amanhã, sobretudo na suaparte meridional, não existe essa característica queacentua... a origem nacional da obra artística. (p. 39)

Comparemos este trecho com o de A Arte Brasileira que escla-rece bem o ponto de vista de Gonzaga Duque. Ali, seu alvo é aAcademia Imperial de Belas Artes que tinha resolvido catalogarum grupo de obras de seus professores e alunos como Escola Bra-sileira. Analisando as exposições de 1871, 1879, 1882 e 1884,realizadas na Academia e no Liceu de Artes e Ofícios, GonzagaDuque mostra a predominância de temas bíblicos e clássicos paraprovar que o romance, a poesia e mesmo a história do país ne-nhum papel desempenha nesta produção. Haveria, portanto, umdescompasso entre as artes brasileiras, daí: “(...) a feição que ca-racteriza nossa arte é o cosmopolitismo, e um país para ter umaescola precisa, antes de tudo, de uma arte nacional” (p. 259).

Se o alvo de Gonzaga Duque é a Academia, não podemos es-quecer que o debate sobre a identidade nacional mobiliza todosos intelectuais brasileiros na metade final do século XIX. Basta lem-brar Machado de Assis e seu Instinto de Nacionalidade (1873). Nasartes plásticas, esse debate foi colocado primeiro por Manuel Ara-újo Porto Alegre durante sua gestão como diretor da Academia, de

23 As faculdades de Direito de Recifee São Paulo, fundadas por decretoem 1827, agrupavam já determina-dos setores da intelectualidade,produzindo conhecimento nosmoldes do determinismo então emvoga. Cf. Schwarcz, Lilia Moritz. Oespetáculo das raças, São Paulo,Companhia das Letras, 1995. Ogrande impulso na universidade virianos anos 30, com a missão francesana USP.

24 Para conhecer melhor o modelode formação acadêmico de artesplásticas, cf. Bourdieu, Pierre, “Ainstitucionalização da anomia”, in OPoder Simbólico, Lisboa/Rio, Difel/Bertrand Brasil, 1989.

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1854 a 1857: que princípios deve adotar a Academia para ter onome de escola? E, mais, a feição das escolas deve-se mais à natu-reza do país onde estão estabelecidas ou às doutrinas de seus mes-tres? Em 1885, Felix Ferreira oferece, em seu Belas Artes: Estudos eApreciações, a pintura da paisagem como opção à arte idealizadaacadêmica. Gonzaga, o próximo a se somar ao debate, nega àsartes do país características nacionais que as pudessem marcar ereconstrói a história das artes plásticas hierarquizando as produ-ções com o filtro de sua parcialidade moderna. Assim como a pro-dução de seus companheiros escritores (Mário Pederneiras, Cruz eSouza, Lima Campos, Rocha Pombo, Nestor Vitor, et alli) desmenteo vazio literário opondo-se à corrente naturalista e parnasiana, tam-bém as obras de Belmiro de Almeida, Roberto Mendes, EliseuVisconti refazem a história das artes plásticas deixando na sombrada vitória circunstancial os grandes painéis nacionalistas de PedroAmérico e Victor Meirelles.

Há de se ressaltar um ingrediente básico nesta interpretação doBrasil. Gonzaga Duque, que era também historiador25, não pintacom tintas ufanistas a história do país, muito pelo contrário. Daleitura dos primeiros capítulos de A Arte Brasileira surgem não ape-nas os contornos da prisão metodológica do determinismo quemuitas vezes lhe fundamenta o discurso, mas, sobretudo, a visãode um país construído pela violência: os índios foram dizimados –“O extermínio teve princípio em 1531...” – a economia era basea-da na escravidão – “A sede de cobiça produziu a necessidade doescravo negro...”; “Os próprios jesuítas, missionários na África, tor-naram-se mercadores de carne humana”.26 Violência e falta decoesão social compõem o caos que impera no país, situação, aliás,conforme ao pessimismo determinista de então e à formação deum país que apenas começava a dar seus primeiros passos comoestado-nação moderno.

Desta forma, a vinda da missão francesa é vista por GonzagaDuque como um obstáculo à formação de uma arte autóctone,como a imposição do modelo neoclássico francês em detrimentode uma experiência construída aqui. No discurso pronunciado naExposição Nacional de 1908, Gonzaga Duque lembra que, na ori-gem, as artes plásticas no Brasil eram um ofício de escravos e liber-tos.27 Foram eles que encheram as igrejas com sua arte na Bahia,em Minas Gerais, no Rio, pois não havia outro lugar em que elapudesse residir num país que era apenas lugar de passagem. A che-gada de Dom João VI, no entanto, iria mudar o rumo das artesplásticas na colônia. De uma atividade de escravos e libertos pas-saria ao domínio da colônia Le Breton28, um grupo de artistas fran-ceses reunidos em Paris pelo marquês de Marialva, que chegou aoRio em 1816 e era composto por Auguste Henri Victor Grandjeande Montigny (1776-1850), Joachim Le Breton (1760-1819), JeanBaptiste Debret (1768-1848), Nicolas Antoine Taunay (1755-1830)– avô do escritor de A retirada de Laguna e Inocência, Alfredod’Escragnolle Taunay –, Marc Ferrez (1788-1850) e Zepherin Ferrez(1797-1851) – que chegaram depois e logo se juntaram ao grupo esão tio e pai, respectivamente, do também Marc Ferrez que, nasci-do no Rio em dezembro de 1843, seria um dos primeiros fotógra-fos da cidade.29

Se a vinda dos franceses deu um novo status à profissão deartista plástico, trouxe também o vício do oficialismo e do funcio-nalismo público que levaria Gonzaga Duque e um grupo de jovensa tentar criar o ensino livre de artes no Rio. Essa história é contadaem O aranheiro da Escola.30 Com a proclamação da República e acrise pronunciada na Academia Imperial de Belas Artes, o campo

25 Escreveu Revoluções Brasileiras,1898, e Marechal ConradoNiemeyer, apontamentos biográficos,1900.

26 Op. cit., pp. 56 e 57.

27 Em seu Diário íntimo, Lima Barretocita Gonzaga Duque: “Os negros,quando ninguém se preocupava emarte no Brasil, eram os únicos (G.Duque, Arte Brasileira).” Cf. LimaBarreto, op. cit., p. 34.

28 Manuel Bandeira também conta ahistória da missão francesa quefundou a Academia de Belas Artes.Cf. “A missão francesa”, in Poesiacompleta e prosa, Rio de Janeiro,Nova Aguilar, 1977, p. 652.

29 Cf. Ferrez, Gilberto, O Rio Antigodo fotógrafo Marc Ferrez/ Paisagense tipos humanos do Rio de Janeiro,1865-1918, São Paulo, João FortesEngenharia e Editora Ex Libris, 1984.

30 Cf . Os contemporâneos, op. cit.

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das artes divide-se em dois grupos, um pedindo a extinção da aca-demia e a introdução do ensino de artes nas escolas públicas –projeto de Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurelio deFigueiredo, apoiado pelos jovens artistas –, e outro – Rodolfo Amo-edo (1857-1941) e Rodolfo Bernardelli (1852-1931), este padrinhodo filho de Arthur Azevedo – reivindicando apenas a reforma dainstituição. Para tristeza de Gonzaga Duque, o Governo optou peloprojeto de reforma; como se não bastasse, a tentativa de organizaro ensino livre esbarrou nas diferenças com o positivista DécioVillares que, no final das contas, acabou juntando-se ao grupo ven-cedor. O imbroglio serve não apenas para costurar a posturaantiacadêmica de Gonzaga Duque com a de Camilo Prado, mas,principalmente, para apontar a posição do crítico no campo dasartes de seu tempo.

Gonzaga Duque refere-se assim ao ensino da academia: “Eraum meio oficial, com cargos decorativos e sedutores contatos coma alta administração nacional. E, sejamos francos, não há naturezamais feminilmente sensível à exibição que a dos artistas... se até oshomens de ciência têm a sua queda pela joalheria das comendas.”Contrário ao oficialismo e ao jogo de favores, para ele o artista sefaz na contramão, pois “aquele que entra na sociedade e ouve aboca de uma mulher bonita elogiá-lo e recebe o aperto de mãoafável de um alto personagem, está perdido”. Daí, a necessidadede ir a contrapelo e reescrever a história do país, sob a ótica dasrevoluções (Revoluções Brasileiras), e a das artes plásticas (A ArteBrasileira) por alguém engajado no meio. Seu olhar de crítico cul-tural é excêntrico, como observa Vera Lins.31 Assim como Camilo,discrimina o vencer na vida do vencer nas artes e amarra sua práti-ca na lição de Baudelaire: “(...) la critique doit être partiale,passionnée, politique, c’est-à-dire faite à un point de vue exclusif,mais au point de vue qui ouvre le plus d’horizons.” A posição docrítico e do produtor de arte está marcada pela paixão, pela parci-alidade, pela obra que abre horizontes e se ilumina enquanto enig-ma, o enigma da modernidade.

Uma arte do excesso

O que chama logo a atenção do leitor em Gonzaga Duque éum certo excesso. Nestor Vitor fala em “excessivo prurido por sin-gularidade estilística”32, e o leitor sente o cerco da proliferação.Zola refere-se aos Goncourt como artistas que “possuem nervos deuma delicadeza excessiva, que decuplam as mínimas impressões”.33

Poderíamos dizer o mesmo de Gonzaga Duque. Em suas mãos, alíngua dilata-se, deforma-se, chega aos limites da sintaxe34 e dasemântica, esgarçada por uma prosa selvagem que, em MocidadeMorta, invade intempestivamente a narrativa realista da vida artís-tica nos anos 1880. Como o Wagner de Tristão e Isolda, GonzagaDuque leva seus temas à beira do abismo, infestando o relato decromatismos e ameaçando a regularidade do sistema que o man-tém vivo. Para Julio Castañon Guimarães, o texto de GonzagaDuque não apenas adere ao simbolismo decadista finissecular, mastambém reflete sobre ele.35 É o que se pode perceber, em Mocida-de Morta, durante o relato eufórico de Camilo a Agrário e Henriette,interrompido em momento de grande êxtase porque o narradornão encontra a página certa, a ironia explodindo noVerfremdungseffekt que talha, corta, o contínuo do texto. A mesmaironia que explode na exposição de Telésforo – “Sublime! Único!

31 Cf. Lins, Vera, Gonzaga Duque,crítica e utopia na virada do século,Rio, Fundação Casa de Rui Barbosa,1996, p. 26.

32 Cf. Nestor Vitor, “A crítica de artena obra de Gonzaga Duque”, inObra Crítica de Nestor Vítor, Rio deJaneiro, MEC, Fundação Casa de RuiBarbosa e Secretaria Estadual deCultura do Paraná, 1979, Vol. III, p.240.

33 Cf. Zola, Emile, “Edmond e Julesde Goncourt”, in Do Romance, SãoPaulo, Edusp/ Imaginário, 1995.

34 Valéry, em seu interessante textode 1938, fala assim dos simbolistas:“D’autres, critiques d’art subtils,veulent introduire dans leur style,quelques imitations de contrastes etde correspondance du système descouleurs. D’autres ne craignent pasde créer de mots, de pervertir unpeu la syntaxe...”. O poeta diz aindaque não há uma estética simbolista,mas que esses artistas, unidosapenas pela negação, traziam umestado de espírito novo e singular.Cf. Valéry, Paul, “Existence dusymbolisme”, in Oeuvres, Paris,Bibliothèque de La Pléiade, 1957,Vol. I, p. 686.

35 Cf. Guimarães, Julio Castañon,“Gonzaga Duque: Ficção e críticade artes plásticas”, in Sobre o pré-modernismo, Rio de Janeiro,Fundação Casa de Rui Barbosa,1988.

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Telesforomidal!” – e na risada atroz de Henriette, estratégia que,nas palavras do próprio Gonzaga Duque, vinha do sangue quentedaqueles jovens de Sebastianópolis:

Até então as gerações tinham-se sucedido sem lutas,fazia-se um passo de quadrilha e os que vinham atrásdavam braço aos que iam adiante... Tínhamos o sanguequente, amávamos a ginástica e os exercícios da força;os sports começavam a completar a educação dosrapazes e, lidos nas bazófias físicas do sr. RamalhoOrtigão, parecia-nos imprescindível ao triunfo dasidéias o murro esborcinante do rixento.36

Mocidade Morta compõe-se assim de partes que apresentamuma certa autonomia devido ao excesso, às sobras de uma lingua-gem que se debate entre Zola e Huysmans, eclética, mestiça, mes-clada como a roupa do Arlequim, uma linguagem que ri de si mes-ma. E é exatamente o palhaço que resume, de maneira muito feliz,a visão de arte de Gonzaga Duque. A ascese que culmina na mor-te, mas antes se ilumina em um momento mágico, simboliza oesforço criativo do artista, a produção da obra que explode o coti-diano, que transforma a estranha e decadente figura em um fulgor.

Talvez pudéssemos pensar a questão do excesso com Bataille ea noção de despesa.37 Segundo o pensador francês, a atividadehumana é regida por uma despesa produtiva, cujo sentido é a con-servação da vida e sua reprodução, e outra improdutiva. Entre este“gasto” social, este excesso, Bataille enumera o luxo, os enterros,as guerras, os sacrifícios, os jogos, os espetáculos, as artes, a ativi-dade sexual desviada de fins reprodutivos. O princípio da perda,que rege a economia social, pode ser percebido no exemplo dosacrifício que os antigos faziam aos deuses, cujas descrições emHomero impressionam tanto os leitores. O que era este ritual se-não um enorme desperdício sanguinolento, um dispêndio de ener-gia, de vidas, para a produção de coisas sagradas? Assim as artes,outro excesso, que Bataille divide em dois grupos: 1) arquitetura edança, atividades que comportam despesas reais; 2) música, pintu-ra, literatura, teatro, poesia, que se realizam pelo princípio da des-pesa simbólica, sendo a poesia, para Bataille, sinônimo de perda,com sentido próximo ao de sacrifício.

Com esta noção em mente, não seria difícil ler com outros olhosnão só a alegoria do desperdício no livro de Camilo (histórias desacrifício carregadas de sensualidade), mas o próprio excesso comoprodução de uma escritura poética que vaza para o exterior de simesma, rompendo os limites do romance naturalista. O jogo datransgressão, praticado de maneira suicida por Camilo, émimetizado na própria escritura que empurra para fora as frontei-ras do romance, esvaindo-o em prosa poética, excessiva,proliferante, enlouquecida, irônica, compondo, assim, a facedúplice do centauro, face imobilizada no próprio título do roman-ce, pois, à mocidade, símbolo da vida num momento em que asforças se encaminham para a plenitude, Gonzaga Duque associa oadjetivo morta, resultando numa expressão explosiva, um oxímoro,a própria modernidade.

Desta forma, creio poder discordar de Julio Castañon Gui-marães e de Massaud Moisés que apontam uma queda de rendi-mento em Mocidade Morta. O “descaminho” do romance estariano enfraquecimento de seu aspecto de maior valor, a ação roma-nesca, colocada em segundo plano na metade final do livro. Ele éo foco que se fecha em Camilo e sua queda, parte que para Massaud

36 Gonzaga Duque, Luiz, “No tempoda Gazetinha”, in Dimas, Antonio,op. cit., p. 291.

37 Bataille, George, A noção dedespesa/ A parte maldita, Rio deJaneiro, Imago, 1975.

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Moisés, citado por Castañon, não passa de um dramalhão, ummelodrama piegas e inverossímil. No entanto, concentrar a aten-ção na ação romanesca em um texto como Mocidade Morta pare-ce uma atitude equivocada, tanto quanto ficar preso apenas aosfragmentos de prosa poética. Mais interessante é acompanhar oembate dos dois, o jogo da transgressão que se realiza na escriturada mesma forma que na ação romanesca e pensar o excesso comoconstituinte da literatura e da própria linguagem. Desta forma, po-deríamos compreender em sua radicalidade a afirmação do pró-prio Castañon Guimarães de que o texto de Gonzaga não apenasadere ao simbolismo decadista, mas reflete sobre ele.

A tensão que perpassa o texto aparece também no contrastedos cenários. O mundo cotidiano do Rio finissecular opõe-se aoscenários greco-romanos pintados nos trechos da obra in progressque Camilo lê para o grupo de boêmios no bar e para Agrário eHenriette na pensão da rua do Livramento, um eco dos cenáriosbizantinos dos decadentes, grandes planos vazados de detalhespormenorizadamente descritos.38 É nessas oportunidades, no livrodentro do livro, que a escrita de Gonzaga Duque entusiasma-se,acompanhando o êxtase do narrador-Camilo, multiplicando-se empreciosidades, adjetivos raros, ressonâncias, expondo uma contra-escritura, alguma coisa que parece querer minar o relato, zombardele.

Esta tensão se estabelece logo na primeira frase do romance:

Por este sábado de oitubro, flava manhã de sol e altaalegria azul de céu aberto, Telésforo de Andrade,dignitário da Rosa, palma d’Academia de França,resplandecente de várias nobilitações estrangeiras,expunha à admiração patrícia o seu novo quadro, umvasto painel estendido por quatorze metros, contandodoze de altura, ‘pincelado a gênio, com maravilhosasnuanças de tons e admirável composição de linhas, àclássica’.

A longa frase que se espalha por todo o parágrafo é seguida deoutra tão longa e intrincada quanto a primeira, numa ameaça cons-tante à estabilidade da sintaxe:

Esta rara obra, estardalhaçante de reclamos, tantaneadano jornalismo indígena, anunciada por epígrafes a gordonormando em louvores escorrendo, colunas abaixo, comtrestalos regozijantes d’adjetivação pirotécnica, aprimeira da decantada série que o seu famoso talentoeducado na Europa se propunha a produzir para oglorioso renome das armas imperiais nas façanhas bélicasde 1865 a 70, teve a consagração de um pantheon depinho, ao molde do agripino, enorme como uma rotundae vistoso de frescas brochadas de gesso e oca.

São períodos longos como as frases de Mahler, de tirar a respi-ração do leitor-ouvinte, jogá-lo no abismo, fazer cessar o tempodos relógios. Mas são intrincados e ornamentados como as peçaspara teclado de Bach ou a Recherche de Proust, que também na-moram o abismo. Ainda para frisar os contrastes e as tensões queformam e conformam o romance, vale ressaltar a abertura marcadapelo Sol (“Por este sábado de oitubro, flava manhã de sol e altaalegria azul de céu aberto...”) e o final pela Lua (“O plenilúnio... osque a seguem, pela Terra, fascinados... Para onde?”), o sol dos ven-cedores como Telésforo e Agrário, e a lua dos lobos solitários comoCamilo.

38 Como nos quadros de GustaveMoreau ou no mundo de DesEsseintes, personagem de Às avessas.Cf. Huysmans, J.-K., Às avessas,tradução de José Paulo Paes, SãoPaulo, Companhia das Letras, 1987.

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Incidit in Scylam cupiens vitare Charybdim

Se em Mocidade Morta temos um crítico às turras com seu tem-po, um gauche da vida, a prática de Gonzaga Duque não nos reve-la, por seu lado, uma posição menos cheia de arestas. Baudelairiano,não suporta os quadros históricos, das grandes batalhas, preferindoas cenas roubadas do dia-a-dia, como a que Belmiro de Almeida(1858-1935) pintou em Arrufos, tendo Gonzaga pousado de mo-delo. O crítico vê nesta tela de 1887 uma “verdadeira transforma-ção estética”. E é nesta transformação que investe sua literaturapercorrendo não apenas os salões e exposições de arte, mas tam-bém o mobiliário, a música de Wagner, as praias cariocas39, aindadistantes e não aproveitadas, os pequenos assuntos urbanos quecontrastam com os grandes acontecimentos históricos exigidos poruma elite que então buscava inventar o país em modo sério, sole-ne. Foge, ainda com Baudelaire, desse solene oficialismo cedendode boa vontade à sedução da beleza satânica, meduséia que mes-cla prazer e dor, um tema caro ao século XIX.

Destacamos aqui duas críticas a pintores ligados ao decadismo,ambas reunidas em Graves e Frívolos, de 1910, e que representamduas facetas da modernidade baudelairiana de Gonzaga Duque.Na primeira, intitulada Rops e publicada originalmente em agostode 1906 na revista Kosmos, Gonzaga ressalta a criação pelo artistabelga “desse tipo da mulher impassível e livre, da modernidade – acarne venenosa de ‘la demone’...”, mulher que povoa suas própri-as criações, basta lembrar de Henriette, de Mocidade Morta, ou daprotagonista de Aquela Mulher. Gonzaga cita ainda a crítica deHuysmans a Rops, na qual o criador de A Rebours fala de um “realdesperdício de fósforo” no cérebro dos artistas que tratam “violen-tamente os assuntos carnais”. O acúmulo de tensão, via cenas car-regadas de sensualidade, é um dos expedientes utilizados porCamilo em sua obra in progress e, claro, pelo próprio GonzagaDuque. Voltamos à idéia de despesa, de excesso, já tratada acima.

Vale, no entanto, chamar a atenção para este jogo entre o de-moníaco sexual, representado pela mulher, e o espiritual, o jogode Camilo e da arte de Rops que “morde como uma ‘tarântula’,injeta a peçonha num trincar doloroso e inflama todo o organismonum desespero de ‘incuba’ epileptizado”. Gonzaga atribui à mu-lher prostituída a encarnação do Mal e, na herança de todo o sécu-lo XIX, tem sua escritura obcecada pela mulher fatal, loba, vampira,aranha.40

Vejamos, por exemplo, no ensaio sobre Rops, como o críticodescreve o trabalho do nu feminino do artista belga e como trata asuper bestiam femina. Ela é a “mulher desviada da seriedade dasua missão e transformada em coisa”, “o gênio do Mal”, “uma lobado amor dinheiro”, mas, assim como Rops e muitos artistas do sé-culo XIX, basta citar Henrique Alvim Correa (1876-1910), GonzagaDuque volta insistentemente a ela. A beleza meduséia, aquela queune prazer e dor, beleza e abjeção, a mulher e o monstro, não estápresente em Aquela Mulher, quando recitando versos de Wilde,Mallarmé, a personagem arde “como uma criação infernal, nervo-sa Vênus dos histerismos”? Essa criatura, cujas pupilas são um “mistode ematites e pó de ouro, densos de noite descida nos desertos eareia faiscante de plagas sonhadas, palhetas de esmeraldas etopázios laminados por clarões fugitivos ao esfuziar da calmariaequatorial”, parece sair de um quadro de Gustave Moreau ou daimaginação de Huysmans. Não está presente também a mulher-monstro em Henriette, que seduz Agrário com sua voz “que trinava,pizzicateava num doudejamento de regozijos” qual uma sereia e,

39 “A remodelação do mobiliário”,Kosmos, 2/02/1907; “Três imagensde Wagne”, Kosmos 8/07/1905; e “Aestética das praias”, in Graves eFrívolos.

40 Sobre o tema da mulher fatal e dabeleza meduséia, cf. Praz, Mario, Acarne, a morte e o diabo noliteratura romântica, Campinas,Editora da Unicamp, 1996.

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por vezes, qual autômato da sinistra história de Hoffmann? Vista dajanela, como no conto de Hoffmann41, por Agrário, a criatura tem“a cabeça loira de uma rapariga, traços delgados de adolescêncianum rosto fresco e sadio de brejeiro, rosiclareado da graça petu-lantemente moderna das galantes decorações de boudoir, ondeluziam célicas lentilhas de olhos tentadores”. Mas deste rosto “sa-dio e brejeiro” saiu a gargalhada sarcástica que acabou de derrotarCamilo e que se anunciava desde o início nas “lentilhas celestes”,um quitute dos deuses, alimento sagrado e perigoso como o regardde soie no polvo de Lautréamont42, a arma paralisante da medusa,o olhar fixo do autômato de Hoffmann, e, mesmo, os olhos quemudam a vida do “escrevente desprezível” de Benditos Olhos, trans-formando-o em mendigo cego.

Prazer e dor. Por isso a nudez das mulheres de Rops deveria“desprender uma perturbação estranha”. A justificativa de GonzagaDuque, de que “há uma revolta contra a luxúria, a estupidez e oouro” na obra de Félicien Rops, não impede o crítico de se alongarsensualmente na descrição dos detalhes do vestuário interno dasmulheres e partes do corpo feminino, num longo parágrafo, paraconcluir que as figuras de Rops são “diabólicas tentações que seagarram à vitalidade como o sinistro polvo, em que os japonesessimbolizam a Luxúria”. O mesmo polvo que Roger Caillois perse-guiu no imaginário do Ocidente, dos árabes e japoneses em suametamorfose de animal comestível a monstro.43 Polvo que, comomostra Raúl Antelo44, é também Carmen, Lulu e Salomé, todasmulheres-monstros, seres centáuricos, tentaculares, meduseus,porque representavam uma ameaça, um desafio e um enigma aopoder masculino.

O apego a estas estranhas criaturas “da fantasia mórbidade homens ‘do seu tempo’” cintila ainda em Helios Seelinger, defevereiro de 1908, posteriormente reunida em Os Contemporâne-os. Aqui, Gonzaga Duque fala expressamente em beleza modernapara classificar dois quadros do discípulo de Franz Stuck: Salambôe a lua e Salambô e a cobra. A mulher de Helios não é a procriadora,a mãe moderna que divide com o marido o lar urbano do mundoburguês, mas “a terrível loupeuse, envenenada pelo satanismo daluxúria, que arrancou ao lápis de Félicien Rops a série magistral desua obra erótica”. Temos nos dois quadros símbolos caros a nossoautor: a mulher fatal, representada pela personagem de Flaubert, alua e a cobra. Mas não é exatamente a mesma figura de Flaubert.“É uma Salambô que criamos por associações anacrônicas”, afir-ma, para ressaltar a beleza moderna: “...este tipo se confunde en-tre uma vaga imagem lendária de um perdido passado e a figurainquietante, sinistramente suspeita, observada dia a dia no cenáriocostumeiro da irrequieta, aguda, absorvente e destruidora existên-cia contemporânea”.

Em As mulheres de Puvis, vemos a outra ponta da moderni-dade baudelairiana, se entendemos a anterior enquanto a eterna, amitológica. O ensaio sobre Pierre Puvis de Chavanne enaltece amulher urbana, do cotidiano, vigorosa, que trocou a condição de“coisa” pela “posição de igualdade à do seu semelhante”, que nãotem nenhum caráter alegórico por ser avessa ao convencional, aosolene. Aqui não há espaço para o “tipo deliqüescente” tão caroaos decadentes finisseculares, mas reina “a mulher bela do seutempo” pintada “na sua sanidade de corpo, desde o estado púbereaté à suprema idade”. O clima é o mesmo de Arrufos, de Belmirode Almeida, tela que provoca, em A Arte Brasileira, a descriçãodeliciosa da cena entre marido e mulher:

41 Em Der Sandmann, Nathanaelapaixona-se por uma mulher que vêsentada na janela cujos olhos têmalgo de fixo (“...und überhaupthatten ihre Augen etwas Starres...”,cf. Hoffmann, E.T.A, Erzälungen/Contes. Paris, Aubier Flammarion,1968.

42 “O poulpe, au regard de soie! toi,dont l’âme est inséparable de lamienne”, in Lautréamont, Les chantsde Maldoror. Paris, ClassiquesFrançais, 1995, p. 23. Mais polvo, dap. 109 à 115.

43 Cf. Caillois, Roger, La mitologia delpulpo, Caracas, Monte AvilaEditores, s/d.

44Antelo, Raúl, “Elementos de unaficción pós-significante: tiempovacío y violencia pulsional”, textonão publicado.

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É um episódio doméstico, uma rusga entre cônjuges.O marido, um rapaz de fortuna, chega em companhiada esposa à bonita habitação em que viviam até aquelesdias como dois anjos. Tudo em redor demonstra queaquele interior é presidido por um fino espíritofeminino, educado e honesto. Ela, o encanto desseinterior à bric-à-brac, depõe o toucado de palha sobreum mocho coberto por um belo pano de seda e entraem explicações com o esposo. E ele, muito a seucômodo em um fauteuil de estofo sulferino, soprandoo fumo do seu colorado havana, responde-lhe palavrapor palavra às explicações pedidas. Há um momentoem que ela excede-se, diz uma frase leviana; elereprova, ela retruca, ele repele; então ela não se podeconter, é subjugada por um acesso de ira, atira-se aochão, debruça-se ao divã para abafar entre os braços oímpeto do soluço. É este o momento que o artistaescolheu.45

A cena urbana e doméstica, um instantâneo da vida de um ca-sal, tem todos os ingredientes da face circunstancial do belobaudelairiano e, por isso mesmo, a ameaça sombria do monstro,como o polvo escondido na caverna. Gonzaga Duque leitor deBaudelaire sabe mesclar os dois lados do belo moderno, fazer oelogio da toilette de Belmiro de Almeida e buscar o eterno na ascesedo clown ou no irrepresentável de Benditos Olhos. O cronista, oficcionista, o historiador, o crítico, assim como a mulher modernae a mitológica, convivem na subjetividade cindida do escritor, umasempre na iminência de sair da outra, como a cobra e o polvo querenovam a pele.

Na intimidade de seu diário feito à moda dos Goncourt, o autorde Mocidade Morta nos revela, em página proustiana, uma cenaíntima cujo tom é, mais uma vez, dado pelo desejo que justapõe asduas faces da modernidade, fazendo uma sair da outra como apele da cobra.

O crítico reclama que há muito não tem uma idéia sentida des-te “amor que se tem ao despertar da mocidade” todo movido pelocalor da paixão:

Ontem, à noite, tive-o. Estava em casa de meu amigoxxx, numa intimidade que só as longas, velhasamizades consentem. Sua filha X, de 16 anos,desnastrou a abundante cabeleira negra, que possui epôs-se a penteá-la para desemaranhar os fios. O rostodela, muito branco, seus olhos verdes cismadores, asua boca muito rubra, tinham sob essa cabeleiradistendida e à luz viva do gás, um quê misterioso denoiva...

E, apesar dos meus quarenta anos, apesar do respeito filial queessa criança me tem, senti, num minuto, toda a castidade dos amo-res despertos nas almas virgens: amei-a no deflagrar de um instan-te, com a mesma emoção virginal da primeira vez que amei emminha vida.

A imagem da menina-mulher penteando-se produz no escritorum instantâneo daquele desejo adolescente iluminado por suamemória involuntária. Nem toda a força do ambiente familiar bur-guês que ronda a cena e lhe dá uma dignidade controlada e con-fortável, nem todos os apesares que o autor utiliza conseguem re-

45 Op. cit., p. 211.

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ter o fluxo de desejo que se impõe com violência. Querendo evitarCaríbdis, Gonzaga Duque cai em Cila.

O journal de um insubmisso

Esta cena é a que fecha Meu Jornal 1900-1904, uma daspeças fundamentais para se compreender o quebra-cabeça queconforma a personalidade complexa e rica de Gonzaga Duque esua posição no campo das artes dos anos 1880, quando começasua vida profissional, a 1911, quando morre. Ele abre seu diário,em 1900, narrando os problemas que enfrentou para editar Moci-dade Morta e conta os insucessos do livro com a crítica hegemônica(José Veríssimo) e o elogio dos amigos (Mário Pederneiras, LimaCampos, Nestor Victor, Luiz Murat, Roberto Mendes). Em suas pá-ginas, movimenta-se um homem de extrema sensibilidade, saúdeprecária, vida intelectual restrita, que trabalha para diversos perió-dicos e ainda bate ponto na repartição pública.46 Nelas aparecemas histórias tristes de intelectuais “perdedores”, como a de B. Lopese a de Inácio Porto Alegre, e surgem, nomeados, os autores estima-dos – os Goncourt, Flaubert, Huysmans, Mallarmé, Albert Samain,Moréas, Gautier, Zola, Eça, Fialho d’Almeida, Camilo Castelo Bran-co, Antonio Nobre, Eugenio de Castro e Antero de Quental, queganha uma especial declaração de amor.

O diário revela ainda os dramas pessoais do escritor, adolorosa perda do filho Haroldo, o problema nos olhos, a correriapara cumprir os prazos dos artigos encomendados e a vida artísticado início do século, aquele ambiente que Brito Broca pinta de ma-neira magistral em seu A vida literária no Brasil-1900. GonzagaDuque acompanha o trabalho dos amigos pintores, lê versos deMário Pederneiras, de braço dado com a mulher Júlia cruza a cida-de, de Botafogo a Glória, para assistir a inauguração do monumen-to a Pedro Álvares Cabral e, com Lima Campos em O Paiz, divideuma coluna de combate assinada Máscara Negra. É aí que espinafraJosé Veríssimo, o Barbicas, como conta no diário: “Resolvi dizermeia dúzia de verdades, que equivalem a desaforos, aos nossoscríticos oficiais, verdadeiras toupeiras literárias”. É interessante notarque o crítico literário Gonzaga Duque não faz nenhuma referênciaa Machado de Assis que desde a década de 80 desfruta de grandepopularidade e escreve para os principais jornais. Em A Arte Brasi-leira, cita Sílvio Romero para dizer que a literatura brasileira nãoexiste e aponta Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar comoos dois maiores romancistas brasileiros para logo criticá-los; aoprimeiro pela “falta de sentimento estético da forma” e, ao segun-do, por um “excesso de imaginação decaindo para a puerilidade”.

Além de José Veríssimo, o crítico ironiza também OlavoBilac e Medeiros e Albuquerque, este último o introdutor dos livros“decadentes” franceses no Brasil, como contam Araripe Júnior eAndrade Muricy. 47 Medeiros e Albuquerque havia tratado o temada decadência logo nos primeiros momentos48, mas depois passa-ria a criticar ferozmente o grupo simbolista. Em Meu Jornal, GonzagaDuque não economiza adjetivos para pintar o poeta: “É umdeclamador pantafaçudo. (...) um palavroso maníaco, tipo físicoacentuado, alto, esquálido, enorme nariz curto e grosso, míope,esquisitão no trajo e cheio de cacoetes”.

Sempre em oposição aos intelectuais “vencedores”, se-jam escritores ou artistas plásticos, Gonzaga Duque constrói suaprática como a de um crítico da razão instrumental moderna, zom-bando das certezas científicas dos positivistas e dos evolucionistas

46 Em 1893, é nomeado 2o oficial daDiretoria do Patrimônio Municipal e,em 1910, diretor da BibliotecaMunicipal.

47 Cf. Araripe Jr, “O movimentoliterário de 1893”, in Obra Crítica deAraripe Jr (1895-1900), Rio deJaneiro, MEC e Fundação Casa deRui Barbosa, 1963, vol. III, p. 135;Andrade Muricy, Panorama doMovimento Simbolista Brasileiro, Riode Janeiro, Departamento deImprensa Nacional, 1952, Vol. I, pp.56, 57, 58. Sobre os primórdios dosimbolismo no Brasil cf. tambémNestor Vitor, “Como nasceu osimbolismo no Brasil”, in op. cit.,Vol. III, p. 76.

48 É sua a Proclamação Decadente(1889): “Poetas,/ são temposmalditos/ os tempos em quevivemos.../ Em vez de estrofes, hágritos/ de desalentos supremos.” E oSoneto Decadente (1889): “Morriarubro o sol e mansa mansamente...”.Cf. in Carollo, Cassiana Lacerda(Seleção e apresentação). Decadismoe Simbolismo no Brasil/ crítica epoética. Brasília, Livros Técnicos eCientíficos/ INL/MEC, 1981. Vol. II,pp. 103 e 104. Para Nestor Vitor,eram apenas “as malsinadasCanções da Decadência, completa-mente alheias ao verdadeiro espíritodaquele grupo francês”.

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deterministas que se formavam na Escola do Recife, embora odeterminismo representasse um papel em sua personalidade múlti-pla. É um intelectual excêntrico que trabalha para a grande im-prensa, mas também funda suas próprias revistas, abrindo espaçopara vozes dissonantes no campo da arte de seu tempo.

Sua estréia na esfera pública dá-se com a revista Guanabara,fundada por ele e Olympio Niemeyer em 1880. Daí em diante,aparecem Rio Revista (1895), Galáxia (1897), Kosmos (1904), Fon-Fon (1908), para citar apenas algumas das que contavam com acolaboração de pintores, caricaturistas, poetas e cronistas. O críti-co, portanto, não fica encastelado escrevendo para o futuro e la-mentando-se da sorte presente. Incide sobre o campo da arte, mar-cando-o com sua leitura original, relacionando-se com a indústriacultural que então começa a deslanchar. Se seu texto acentua asubjetividade deixando em segundo plano as fotografias (a técni-ca), como no caso de Agonia por semelhança, publicado em Hortodas Mágoas e analisado por Flora Sussekind49, não se pode esque-cer sua intervenção na imprensa, nem o fato de ele mesmo sercronista da vida mundana do Rio de Janeiro da virada do século.Como Ronaldo Brito nos anos 1970, Gonzaga Duque relaciona-sede maneira tensa com o mercado: nem fica ofuscado pela técnicae pela idéia de progresso, muito menos abandona a esfera públicapara construir uma arte supostamente pura, até porque isto iriacontra sua noção de modernidade baudelairiana. Não compõe coma situação (José Veríssimo, Olavo Bilac, Coelho Neto, et alli), nemse fecha no simbolismo-decadista finissecular. Transita com ele-gância tensa entre Zola e Huysmans, como um híbrido e ecléticodandy da periferia, obnubilado apenas pela idéia equivocada depré-modernismo.

49 Cf. Sussekind, Flora, “O figurino ea forja”, in Sobre o pré-modernismo,op. cit., pp. 41 e

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