otÁvio augusto de oliveira moraes

74
OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES A épica por mares nunca de antes navegados Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2019

Upload: others

Post on 16-Jul-2022

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

A épica por mares nunca de antes navegados

Belo Horizonte

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

2019

Page 2: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

A épica por mares nunca de antes navegados

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em

Literaturas de Língua Portuguesa. Elaborado sob orientação do

Professor Doutor Audemaro Taranto Goulart.

Belo Horizonte

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

2019

Page 3: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Moraes, Otávio Augusto de Oliveira

M828e A épica por mares nunca de antes navegados / Otávio Augusto de Oliveira

Moraes. Belo Horizonte, 2019.

74f.

Orientador: Audemaro Taranto Goulart

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras

1. Poesia épica - História e crítica. 2. Civilização moderna. 3. Literatura

portuguesa. 4. Dialética. I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

III. Título.

CDU: 869.0-1.09

Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini - CRB 6/2563

Page 4: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

A épica por mares nunca de antes navegados

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em

Literaturas de Língua Portuguesa. Elaborado sob orientação do

Professor Doutor Audemaro Taranto Goulart.

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas (Orientador)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques- UFMG – Titular

______________________________________________________________________

Prof.ª Dra. Luciana Pereira Queiroz Pimenta Ferreira- PUC Minas – Titular

Belo Horizonte, 19 de fevereiro de 2019

Page 5: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

AGRADECIMENTOS

Ao povo brasileiro que por meio do CNPQ tornou possível que eu prosseguisse em

meus estudos universitários.

À Nayara, minha tágide.

Aos meus familiares, em espacial à minha mãe, Márcia, e meus irmãos, Ana e Lorenzo,

e também aos meus tios, Memeia e Antônio Ângelo. Por sempre me apoiarem em

minhas aventuras e desventuras de jovem pesquisador.

Ao professor Audemaro por me apresentar a potência presente no estudo e análise dos

clássicos da literatura.

Á professora Luciana e os colegas do grupo “Direito e Literatura: um olhar para as

questões humanas e sociais a partir da Literatura”, verdadeiros responsáveis pelo meu

giro linguístico.

Á professora Ivete e os colegas do grupo “Da Rua: sujeitos e objetos”, em especial aos

meus amigos Vinícius e Vivi, companheiros no desvelamento das intricadas relações

entre literatura e sociedade.

Aos meus amigos, em especial para: Érico, Arthur, Cindy, Paulo, Matheus, Rafael,

João, Paola, Maurício, Lomax, Vanessa e Vitor, por tudo e por tanto.

Page 6: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

O rei de Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que

Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco

E gabava-se também de saber conduzir

Num campo a direito o sulco do arado

Sophia de Mello Breyner

Page 7: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

RESUMO

A presente dissertação objetiva pôr em questão a problemática da reprodução do gênero

épico na temporalidade moderna. Os Lusíadas de Luís de Camões é tomado como texto

literário a partir do qual foi investigada a manutenção e a subversão de elementos

marcantes da grande épica. O estudo tem como principal norte teórico os

questionamentos presentes na obra Teoria do Romance, escrito de juventude de Lukács,

e nos Cursos de Estética de Hegel. A pesquisa ambiciona tomar da estética hegeliana a

questão “como pode a vida tornar-se essencial?” e leva essa pergunta para a forma

artística d’ Os Lusíadas. A essencialidade que frisaremos no estudo afina-se com a

problematização da figura heroica, elemento pelo qual buscaremos correlacionar a

relação entre forma e experiência histórica. Nossa conclusão concebe no caráter

heterodoxo da forma artística em questão os traços que a configuram como obra que

performa a própria transição para a Modernidade. Portanto, finda aproximando-se mais

da forma romanesca do que da grande épica helênica.

Palavras-chave: Epopeia, Modernidade, Literatura Portuguesa, Crítica dialética.

Page 8: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

ABSTRACT

The present dissertation aims to question the problematic of the reproduction of the epic

genre in modern temporality. The Lusíadas de Luís de Camões is taken as literary text

from which the maintenance and subversion of outstanding elements of the great epic

was investigated. The text has as main theoretical north the questions present in the

book Theory of Romance, writing of youth of Lukács, and in the Courses of Aesthetics

of Hegel. The research has as a reading proposal to take from the Hegelian aesthetics

the question "how can life become essential?" And take this question to the artistic form

of Os Lusíadas. The essentiality that we will emphasize in the study is refined by the

problematization of the heroic figure, element by which we will try to correlate the

relation between form and historical experience. Our conclusion conceives the

heterodox character of the artistic form in question element that configures it as a work

that performs the very transition to modernity. Therefore, it ends up approaching more

of the romanesque form than of the great Hellenic epic.

Key words: Epic, Modernity, Portuguese Literature, Dialectical critique.

Page 9: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................................10

1. Os Mares

I. A forma, o conteúdo e o tempo ...................................................................................14

II. A épica........................................................................................................................26

III. A arte e os modernos.................................................................................................32

2 – A Ocidental praia Lusitana

I. As Tágides .............................................................................................................39

II. O canto do velho ....................................................................................................47

III. Trovadores em caravelas.........................................................................................54

Capítulo 3 – A voz enrouquecida e a lira destemperada

I. Outro valor mais alto se levanta?................................................................................59

II. Camões e o espírito do tempo.....................................................................................66

Referências Bibliográficas..........................................................................................73

Page 10: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

10

Introdução

A epopeia camoniana é de fato uma épica? O caráter paradoxal da pergunta tem

como cerne refletir sobre o que emerge da miscelânea da forma clássica com uma

temática intrinsecamente vinculada ao próprio nascimento do que compreendemos

como Modernidade.

Para colocar em questão o gênero literário da obra Os Lusíadas de Luís de

Camões centraremos a análise do texto na problemática do herói: o que é o herói

camoniano? Em que mundo ficcional se passam suas ações? Em que ele se diferencia e

se assemelha aos personagens da Ilíada e da Odisseia? O elemento comparativo

privilegia o ciclo épico homérico em razão de ser a base comparativa que Hegel e

Lukács, nossos marcos teóricos, utilizam para compreender a singularidade da arte

moderna.

Tomamos os dois pensadores como suportes teóricos para a presente pesquisa

em razão de suas reflexões calcarem-se na compreensão da arte moderna a partir do

diálogo e da comparação com as expressões pretéritas. Sob a égide da crítica dialética

Hegel e Lukács, este último em sua fase hegeliana, tomam o incessante movimento das

formas artísticas em seu contexto histórico-filosófico como meio de compreender as

marcas do espírito humano em cada tempo.

O interesse em dialogar com as obras do pensador teutônico com seu, à época,

seguidor advém da possibilidade de ler nas entrelinhas das respectivas reflexões

posicionamentos dos intelectuais frente a Modernidade. Se Hegel é o pensador da

Revolução Francesa e das múltiplas promessas do progresso, o jovem húngaro se

deparava com a pulverização da retorica burguesa tendo como pano de fundo os

canhões da primeira guerra mundial.

A ambivalência contextual sob a qual a filosofia do espírito é laborada em sua

origem hegeliana e na reflexão heterodoxa de Lukács parece-nos um bom caminho para

entender os próprios paradoxos da forma camoniana. O autor, que sob nossa hipótese

encarna na língua portuguesa o espírito do tempo das bases coloniais da Modernidade,

Page 11: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

11

já apresenta em sua formulação ficcional o binômio indissociável entre barbárie e

progresso.

Camões, como poeta que mescla a forma antiga a temáticas novas, acaba como

elo de uma temporalidade na qual os castelos do feudalismo desmoronavam e as

feitorias coloniais do mundo moderno emergiam. O entre-lugar da poética em questão

traz para a crítica hegeliana, em suas reflexões sobre a relação triangular entre forma,

conteúdo e história, a possibilidade de servir como instrumental para compreendermos a

questão épica em Camões.

No plano da crítica literária, dialogaremos com alguns autores especializados

nos estudos camonianos, tendo como referencial primeiro os escritos de Hernani

Cidade. O professor português, além de ter extensa bibliografia sobre o tema, tem como

recorrente em seus estudos a problematização do gênero da obra em análise. É

importante também ressaltar que o autor em questão tem grande afinidade com a

estética hegeliana no que se refere ao embasamento de suas críticas literárias.

O texto desenvolve-se da seguinte maneira: o primeiro capítulo, Os mares, versa

sobre o conceito de épica, conectando-o com a problemática do desenvolvimento dos

gêneros literários em sua relação histórica; o segundo capítulo, A ocidental praia

lusitana, busca apresentar a relação entre texto e contexto para melhor compreender as

particularidades da forma camoniana; por fim, no último capítulo é desenvolvida a

resposta à nossa questão primeira - é possível produzir um texto épico na Modernidade?

O tempo de Camões foi a época em que o medievo se tornava moribundo e em

seu seio começava a gestação do mundo moderno. Não é por acaso que a crítica

especializada tão repetidamente adjetiva sua épica pelas expressões “heterodoxa”

(CIDADE, 1950), “moderníssima” (MOISES, 1968) e “ambígua” (MACEDO, 2018).

Em um momento no qual o renascimento trazia novas formas para o repertório

artístico português, o horizonte de criação poética alargava-se igualmente em conteúdo.

A valoração do racional e a consequente possibilidade de tomar como cerne do literário

a representação da realidade refundou a própria acepção de arte.

No que tange ao tema, a poética camoniana bebe com avidez das possibilidades

de seu tempo, muito bem descritas por Hernani Cidade (1979, p. 14) nos seguintes

termos: “(...) a realidade objetiva mantinha a frescura e o interesse de indefinida

paisagem mal conhecida ou de toda ignorada, que a luz da manhã vai arrancando à

treva.”. O autor narra as grandes descobertas marítimas, no caso o alcance da Índia por

Page 12: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

12

via naval, e, por consequência, impregna sua narrativa de “(...) mares nunca de antes

navegados” (CAMÕES, I, 1).

A predominância do evento frente ao mito (MACEDO, 2018) é um dos grandes

abismos que afastam a grande épica dos escritos de Camões. O autor, na farta

metapoética presente em sua epopeia, destaca a superioridade do caráter factual de seus

escritos quando postos em paralelo com a poesia pretérita: “A verdade que eu conto,

nua e pura,\Vence toda grandíloca escritura!” (Camões, V, 88). Cabe a nós buscar na

forma artística em questão as consequências que o distanciamento do discurso mítico

implica a identificação do gênero literário da obra.

Nesse jogo de diferenças entre a epopeia clássica e a épica camoniana, o

distanciamento da base mítica dá à obra a forma conflitiva de uma narrativa mergulhada

nas contradições da emergência da Modernidade. O épico acaba fraturando-se em seu

elemento central: a experiência heroica.

Enquanto no ciclo homérico tem-se a representação de uma relação harmônica

entre sujeitos e objetos (HEGEL, 2001), ambos intimamente interligados pelo gênio

humano, nos escritos camonianos o desencontro entre personagens e mundo é o próprio

cerne da narrativa: o universo ficcional deixa de ser um espaço da familiaridade para

transmutar-se em desconhecido.

Os Lusíadas narram a chegada de Vasco da Gama à Índia, evento que no plano

da materialidade trouxe aos cofres de seus investidores um lucro no mínimo

assombroso. Leandro Konder (1981, p. 145) apresenta quantitativamente os ganhos em

questão: “A primeira viagem de Vasco da Gama à Índia deu um lucro de 6.000%”. A

épica em questão acaba encarnando a narração estetizada de um processo no qual, pela

busca do lucro, o indivíduo é colocado em uma posição de desencontro frente ao

universo que o rodeia.

Luís de Camões representa em sua epopeia a própria transição para a

Modernidade, apresentando em seus personagens a maravilha das superações dos

limites aos quais a natureza submete a humanidade. O autor, ao mesmo tempo, mostra a

tragédia do domínio do homem sobre o homem em um grau que a Modernidade levou

ao ápice.

Sob o signo de uma época de contraditória miscelânea entre progresso e

barbárie, emerge uma obra de arte que conflitivamente congrega a forma clássica dos

versos heroicos de base virgiliana a uma temática que reflete a fundação da experiência

Page 13: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

13

colonial. Beira o impossível dissociar a poesia dessas caravelas camonianas das

torrentes do contemporâneo. Ler camões constitui um acesso, a partir do plano do

sensível, à condição humana em seu potencial mais exuberante e, igualmente, no

exercício do seu pior.

Page 14: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

14

1. Os mares

I- A forma, o conteúdo e o tempo.

A Modernidade ofertou à experiência humana a possibilidade de se

autoconceber a partir de sua experiência temporal. Em outras palavras, o homem

descobriu-se parte de um mundo em constante alteração. As mudanças alcançam os

ínfimos elementos que compõem o universo social, sendo o plano artístico um dos mais

sensíveis à transformação. Sob a égide dessa condição recém-descoberta, a estética e a

história se amalgamaram no exercício analítico.

O desvelar desse novo mundo, parturejado do fim do Ancien Regime, teve como

efeito o desmoronamento de uma concepção estática de condição humana. A ideia de

um universo estável e permanentemente circular perdia lugar para um exórdio de

possibilidades, aberto a tiros de canhão e golpes de baioneta. O objeto de estudo que

apresentamos é fruto direto dessa nova figuração do humano, ou melhor, da própria

concepção de experiência humana e, por consequência, de arte.

Para iniciarmos nossa empreitada é imperioso que a relação entre obra de arte e

história seja desenvolvida. Os referenciais teóricos em questão, Georg Hegel e György

Lukács, partem da noção de que “(...) toda obra de arte pertence à sua época, ao seu

povo, ao seu ambiente, e depende de concepções e fins particulares, históricos e de

outra ordem.” (HEGEL, 2015, p.38). Através dessa premissa, os autores desenvolvem

uma espécie de viagem ao contrário: retornam as obras de arte para desvelar o espírito

que animou sua criação. Sob a égide da forma, expõem como era tecida a relação entre

sujeito e mundo em determinada temporalidade.

O liame entre obra de arte e experiência histórica não se constitui de maneira

mecânica, mas sim através de uma dinâmica inter-relação de fatores, públicos, privados,

religiosos, etc. O exercício de vincular o texto literário à época em que foi produzida

demanda, consequentemente, um grande rigor metodológico.

Page 15: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

15

A dialética hegeliana, base conceitual para a criação da Teoria do Romance,

emerge como episteme interessada em decifrar a vida em sua dinâmica intrínseca. O

filósofo objetivou construir um sistema que tivesse como pressuposto o movimento em

oposição à inércia. Não é à toa que é visto como um dos pais do que entendemos como

Modernidade.

O também filósofo e grande leitor de Hegel, Roger Garaudy (1983, p. 28),

concebe a filosofia hegeliana como exato oposto a uma planificação da progressão

histórica. A base metodológica que possibilitou a Hegel a construção da relação

estético-histórica em seus estudos sobre arte é sintetizada nos seguintes termos:

Dizer que o método do conhecimento é dialético é dizer que não poderia existir

conhecimento imediato. É negar não somente a possibilidade de possuir a verdade

por uma intuição sensível direta, mas também de alcançar a verdade por um conceito

isolado. O próprio do método dialético é exprimir a impossibilidade tanto da

intuição sensível direta quando do isolamento absoluto de um conceito.

A perspectiva em questão expõe que, sob um viés dialético, o caminhar da

humanidade se constitui de movimentos nos quais o aberto prepondera frente ao

predeterminado. Temos como exemplo dessa perspectiva a noção de tradição no

pensamento de Hegel (2014): um avançar histórico no qual a obra de arte traduz-se

como um mosaico de formas pretéritas rearranjadas em nova experimentação1.

São exemplificativas dessa relação entre passado e presente as figurações do

medievo na poética camoniana. O episódio de Inês de Castro apresenta em sua primeira

estrofe uma formulação estética de imensa semelhança com a vertente poética

denominada “Cantiga de Amigo”. A expressão lírica em questão é apresentada por

Moisés (1968, p.25) nos seguintes termos:

No geral, quem fala é a própria mulher, dirigindo-se em confissão à mãe, às

amigas, aos pássaros, aos arvoredos, às fontes, aos riachos. O conteúdo de

sua confissão é sempre formado duma paixão incorrespondida ou

incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e alma.

1 Para saber mais sobre a relação entre tradição e obra de arte recomendamos a leitura do capítulo

referente a arte simbólica (Hegel, 2014, p. 105). O autor desenvolve a relação entre figurar artísticas

típicas da arte primitiva e sua presença nos trabalhos modernos.

Page 16: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

16

Legítimo produto da poética trovadoresca, a Cantiga de Amigo marca a ficção

de base lírica do medievo lusitano. Temos um admirável exemplo dessa figuração de

poesia na seguinte obra de Nuno Fernandes Torneol2 (APUD, MOÍSES, 1968, p. 22):

Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias;

Tõdalas aves do mundo d’amor dizian:

lêda m’and’eu!

Levad’, amigo que dormide’ las frias manhanas;

tôdalas aves do mundo d’amor cantavan:

lêda, m’anda’eu!

Tôdalas aves do mundo d’amor dizian;

Do meu amor e do voss’em ment’avian:

lêda, m’anda’eu!

Do meu amor e do voss’em ment’avian;

vós lhis tolhestes os ramos em que pousavam:

lêda m’anda’eu!

Vós lhis tolhestes os ramos em que siian

E lhis secastes as font4s em que bevian:

lêda, m’anda’eu!

Vós lhs tolhestes os ramos em que pousavam

E lhis secastes as fontes u se banhavan:

lêda, m’anda’eu!

Os versos em questão apresentam uma interessante relação entre forma e

conteúdo. Temos, no plano temático, a ficcionalização de um eu-lírico feminino que

direciona seu discurso tanto para o amado quanto para o mundo natural, no caso

representado pelos pássaros. O uso da repetição, como marca estilística, soma-se à

recorrência da sílaba “am” e “an” nas palavras que compõem o fim dos versos. O poema

é um marco do cancioneiro medieval com seu forte caráter oral.

2 O poeta em questão foi trovador na primeira metade do século XIII. Estão disponíveis, na biblioteca do

Vaticano, cerca de treze cantigas de amor de sua autoria, oito de amigo e uma de escarnio. (MOÍSES

1968, p. 21)

Page 17: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

17

Outro ponto interessante no poema em questão é a aptidão do poeta em sustentar

a ambiguidade do início ao fim da obra. Sobrepõe-se continuamente a ideia de

rompimento à de reconciliação, sendo a natureza o elemento mediador desses opostos.

No episódio de Inês de Castro, podemos vislumbrar grandes semelhanças com a

Cantiga de Amigo. A natureza aparece igualmente como elemento mediador da

expressão amorosa. Também encontramos no texto uma construção formal que frisa

uma relação conflituosa entre a expressão amorosa e o universo ficcionalizado:

Estavas, linda Inês, posta em sossego,

De teus anos colhendo doce fruto,

Naquele engano da alma, ledo e cego,

Que a fortuna não deixa durar muito,

Nos saudosos campos do Mondego,

De teus formosos olhos nunca enxutos,

Aos montes ensinando e ás ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas (CAMÕES, 2015, p. 110)

O trecho analisado ajuda-nos a compreender o porquê de o autor ser

fundamentalmente um “(...) poeta de um mundo em transição” (MACEDO, 2018, p. 2).

O novo camoniano origina-se de um trato inventivo frente à linguagem no qual

rearticula as formas pretéritas para nova composição estética. A chave para a poética

camoniana está no encontro entre o clássico, o medievo e as caravelas.

A progressão histórica da obra de arte é concebida por Hegel e Lukács a partir

da relação entre forma e conteúdo presente em cada temporalidade. Cabe, portanto, que

primeiro elucidemos como a estética hegeliana concebe os respectivos conceitos. Após

essa exposição, poderemos localizar a temporalidade histórico-filosófica d’ Os Lusíadas

e então nos debruçar sobre o problema épico.

A grande estética hegeliana toma como objeto de reflexão o belo artístico.

Podemos sintetizar o conceito de beleza a partir do seguinte trecho: “O belo é a ideia

enquanto unidade imediata do conceito e de sua realidade, isto é, ele é a ideia na medida

Page 18: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

18

em que esta sua unidade está presente de modo imediato no aparecer sensível e real”

(HEGEL, 2015, p. 131).

A forma emerge como elemento mediador do conceito, ou seja, plano de

concretização artística do ideal. É a partir da transmutação do universal (ideia) em

particular (forma) que a arte alcança sua inesgotável substância humana. Em outras

palavras, a ideia dialeticamente se aliena em contornos para, a partir das próprias

limitações da forma, retomar a universalidade primeva, só que em uma potência

infinitamente maior que a do primeiro momento. Nas palavras do próprio Hegel (2015,

p. 124).

O conceito é (...) o universal que, por um lado, se nega a si por meio de si

mesmo para a determinidade e particularização, mas que, por outro lado,

igualmente supera esta particularidade enquanto negação do universal. Pois o

universal não chega no particular – que constitui apenas os lados particulares

do próprio universal a nenhum absolutamente outro e, por isso, restabelece

no particular sua unidade consigo enquanto universal.

O conteúdo da obra de arte, tal qual a forma, não pode ser concebido

autonomamente. Ele se configura como parte do processo sob o qual o espírito

transmuta o conceito em uma expressão que se universaliza a partir de sua

concretização artística. A narrativa finda atrelada às fontes de seu próprio tempo, ou

seja, tal qual é impensável forma dissociada de conteúdo, não é cabível divorciar a

expressão artística de seu próprio tempo.

É dessa relação triangular que emerge o problema da presente dissertação: a

rearticulação entre forma, conteúdo e tempo. O épico como gênero helênico

(BRANDÃO, 1992) eleva-se historicamente a referencial de narrativa de figuração

coletiva e heroica, ou seja, em um artefato cultural ambicionado por qualquer povo.

Para uma coletividade, contar com o discurso épico implica a possibilidade de se

conceberem na idealidade da experiência heroica. A questão torna-se problemática pelo

fato de que a substância ficcional que deu vazão ao universo homérico inexiste nos

oceanos camonianos: é tempo para outro arranjo entre forma e conteúdo.

O jogo entre esses três conceitos encena-se na própria estrutura do texto literário

transmutando os elementos externos em componentes estruturais da obra artística. Uma

passagem interessantíssima de Os Lusíadas ilustra o atual momento de nossa reflexão:

Page 19: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

19

Antonio Candido (1985) vislumbra um certo tom paródico da narrativa camoniana,

tomando como objeto a discrepância entre a encenação guerreira nas novelas de

cavalaria em comparação com a épica lusa. O exemplo é retirado do seguinte

fragmento.

Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

E desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo, com fábulas sonhadas.

Basta, por fim do caso, que entendemos

Que, com finezas altas e afamadas,

Cos nossos fica a palma da vitória

E as damas vencedoras e com glória (CAMÕES, VI, 66)

A estrofe, acima apresentada, compõe um episódio denominado “Os doze da

Inglaterra”, talvez um dos momentos mais alegóricos do universo cavalheiresco das

novelas medievais. O trecho em questão emerge de um momento de calmaria oceânica,

no qual a tranquilidade marítima torna possível que os tripulantes troquem estórias. O

narrador é o tripulante Veloso.

Tal qual Antonio Candido, vislumbramos certa jocosidade no trato frente à

tradição cavalheiresca. A relação temporal adentra a forma artística como elemento

paródico frente ao passado. O intento camoniano de dizer “(...) a verdade nua e pura”

(CAMÕES, V, 89) é dirigido contra a tradição, então recente, de produções narrativas.

A criação artística emerge como um processo no qual se interpenetram

elementos históricos, produzindo uma relação que não se resume a um símile da

realidade, mas que não implica em sua negação. Nas palavras de Antonio Candido

(1985, p. 22), é preciso “(...) ter consciência da relação arbitrária e deformante que o

trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e

transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiesi”.

Pelas reflexões feitas até este momento, podemos antever que a obra de arte é

fruto de um processo complexo. Ela sorve suas possibilidades expressivas de uma

Page 20: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

20

intrincada relação entre experiência histórico-filosófica e práxis criativa. Cabe agora

descrevermos brevemente a relação entre experiência histórica e forma artística

desenvolvida por Hegel.

O autor figura três grandes momentos do desenvolvimento do espírito no que

tange ao exercício artístico: a arte simbólica, representada fundamentalmente pelas

produções do Antigo Oriente; a arte clássica, calcada nas experiências artísticas do

período helênico; e, por fim, a arte romântica, ou seja, a arte moderna. O autor descreve

a dialética que permeia as respectivas temporalidades nos seguintes termos:

(...) a arte simbólica procura aquela unidade consumada entre significado

interior e a forma exterior, que a arte clássica encontra na exposição da

individualidade substancial para a intuição sensível e que a arte romântica

ultrapassa em sua espiritualidade proeminente. (HEGEL, 2014, p. 22)

A relação entre arte e experiência histórica tem como base o processo contínuo

de rearticulação entre forma e conteúdo. Não temos como objetivo descrever

minuciosamente cada temporalidade, porém, é interessante elaborarmos breve reflexão

sobre algumas características de cada época. Nosso foco é demonstrar que o problema

da épica na Modernidade tem como central o vínculo entre essa época e o universo

clássico.

A arte simbólica é conceituada pelo sistema hegeliano como expressão na qual o

espírito busca imprimir suas primeiras marcas no universo natural que o rodeia. O autor

toma a arte produzida nos antigos impérios orientais: Índia, Egito e Pérsia, como

paradigma para sua definição.

De acordo com Hegel (2014, p. 40), as expressões vinculadas a esse tempo e

espaço carregam em comum configurarem-se pela “(...) disputa constante entre a

adequação do significado e da forma”. A relação com a natureza é apresentada sob uma

ótica de um não apartamento abstrato entre natureza e cultura.

Obras como o Ramayana e o Mahbarata são exemplificativas dessa relação

entre forma e conteúdo. A primeira obra é descrita por Cidade (1979, p. 83) como uma

estrutura na qual “Importa-lhe a unidade, não as formas, que em seus rígidos contornos

e fixidez a poderiam negar.”. Sob uma forte influência da estética hegeliana, o crítico

Page 21: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

21

luso reafirma a leitura pela qual a arte oriental, dessa época, emerge como primeiro

movimento do espírito em direção à arte. São abundantes os exemplos de zoomorfismo,

e os elementos naturais figuram um papel predominante.

A estética simbólica marca os primeiros passos da humanidade em direção à

forma artística. Hegel (2014, p. 55) não concebe essa expressão como propriamente

artística, mas sim poética. A colocação do filosófico, como típico do pensar dialético,

mescla os méritos e a fragilidade da antiga arte oriental para alcançar o seu conceito. A

poeticidade em questão pode ser compreendida como característica de uma produção

artística em que:

(...) os objetos naturais singulares, assim como os modos singulares de pensar

dos homens, os estado, os atos e as atividades, são tomados em sua ausência

imediata de significado e, desse modo, casual e prosaica, mas intuídos

segundo sua natureza essencial à luz do absoluto enquanto a luz; e,

inversamente, a essencialidade universal da efetividade concreta natural e

humana também não é apreendida em sua universalidade destituída de

existência e forma, mas esta universalidade e aquele singular são

representados e expressos como o uno imediato.

A expressão simbólica, em sua busca pela forma, finda alcançando uma

figuração íntima com a imediatidade do mundo natural. É um tempo no qual os objetos

ainda estão a ser nomeados e o universo é uma imensidão a ser explorada pelo espírito

humano.

Como havíamos exposto anteriormente, as experiências artísticas passadas

perdem no movimento temporal sua essencialidade, tornando-se na fase posterior

elemento de composição da nova fase artística. Em outras palavras, se o exercício

poético do simbolismo perde seu liame histórico-filosófico, a arte posterior não implica

uma total negação de seu exercício figurativo, mas sim uma incorporação de seus

elementos a novo paradigma.

É ilustrativo dessa dialética histórico-estética a relação entre a arte clássica e a

simbólica. A última tem como traços marcantes a resolução da busca formal da primeira

e, a partir disso, a produção de uma experiência verdadeiramente artística, ou seja, na

qual a relação entre forma e conteúdo é equilibrada.

O grande mérito da arte clássica está exatamente na harmonia de seu universo

ficcional. Os gregos, de acordo com a crítica dialética, foram capazes de produzir uma

Page 22: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

22

arte na qual não há desencontro entre sujeito e mundo. A épica é um dos maiores

exemplos dessa relação, na medida em que mesmo o antagonismo entre gregos e

troianos não implica uma cisão do universo figurado: os oponentes são igualmente

heroicos e compõem uma comunidade ética una.

Os exemplos da grandiosidade da arte clássica são inúmeros, porém, cabe nesse

trabalho frisarmos a épica, dada a problemática formal que ela finda legando à

Modernidade. A narrativa homérica encarna a ideia de uma unidade ficcional

harmônica, já que personagens, cenário e trama se irradiam na construção de uma

relação ímpar entre forma e conteúdo. A concepção de belo artístico é calcada nesse

paradigma.

A Odisseia traz grandes exemplos da relação acima exposta. O retorno de

Ulisses a Ítaca é marcado por um permanente processo de encontro entre o protagonista

e o mundo que o rodeia. Não há espaço para a solidão moderna: mesmo nos momentos

mais aflitivos o herói helênico está acompanhado dos deuses. É marcante o encontro do

guerreiro com sua própria epopeia quando escuta o rapsodo Demódoco no palácio de

Alcino, rei dos feácios:

O cantor, por um deus inspirado, dá logo começo, tendo tomado do ponto em

que, entrados nas naus bem cobertas,

velas desfraldam, depois de nas tendas o fogo lançarem, no tempo em que

muitos se achavam na praça de troia

junto do mais famoso Ulisses, e escondidos no bojo

desse cavalo que os próprios á acrópole tiram. (HOMERO, 2011, p. 169)

Talvez a metapoética homérica seja um dos traços mais marcantes da relação

harmônica entre forma e conteúdo. Tanto no que se refere aos mitos que dão substância

à narrativa de Homero, quanto nas inter-relações construídas no seio do próprio texto,

podemos perceber a costura de uma narrativa que ambiciona construir uma totalidade

ficcional.

Na escrita homérica não há sujeito ou objeto que atravesse a ficção sem que seu

vínculo com o universo seja minuciosamente descrito. Desde a armadura de Aquiles até

o leito de Odisseu, a narrativa desdobra-se em uma relação de complementaridade entre

o personagem, o enredo e o espaço. Os três elementos são articulados em uma clareza

Page 23: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

23

plena. Em outras palavras, não há espaço para uma consciência interior, ou mesmo para

uma quebra frente à calmaria do destino.

A harmonia singular da poética de Homero (2011, p. 74) é muito bem

exemplificada pelo diálogo entre Telêmaco e Nestor. O primeiro estava visitando os

companheiros de seu pai na busca de informações sobre seu paradeiro. O jovem narra o

sofrimento que sente frente à ausência paterna e o receio de que ele estivesse morto ou

condenado a uma vida de andarilho. Com sua serenidade arquetípica, o ancião Nestor

traduz harmonicamente a pacífica relação homérica frente ao destino: “(...) para todos a

Morte é uma só, nem conseguem os deuses, indo ao mais caro dos homens, sequer

defendê-lo, aí ser ele pelo destino exicial alcançado, da Moira funesta.”.

O que produz essa relação entre forma e conteúdo é uma experiência histórico-

filosófica na qual não há separação entre alma e mundo. Como afirma Lukács (2000, p.

29), “(...) a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus contornos

não difere, em essência, dos contornos das coisas”.

A relação harmoniosa entre as fronteiras provém do próprio processo de

superação da arte simbólica. A busca pela forma é conquistada a partir da superação da

imediatidade do medo da natureza e com isso a transmutação do mistério em

consciência humana.

A crítica dialética vislumbra a encenação mítica da derrubada dos velhos deuses3

como plano formal de expressão da decadência do simbólico (HEGEL, 2014),

movimento que prossegue no plano plástico até alcançar a ficção homérica e a produção

trágica. O mistério é transmutado em uma poiesis já de concretude artística, ou seja, na

qual a relação entre forma e conteúdo é de fato alcançada.

É nesse ponto que emergem os elementos que deram cabo à essência clássica. O

processo estável de mediação entre forma e conteúdo perdeu sua sustentação quando

seu processo figurativo se tornou incapaz de representar a vida. O espírito não se

3 A referência em questão é ao mito da ascensão de Zeus. Hegel (2014) elabora profunda reflexão sobre

essa narrativa. O autor a compreende como próprio movimento de superação da experiência simbólica.

As questões levantadas são demasiadamente abrangentes, de maneira que não cabe nesse trabalho

minuciarmos esse ponto da dialética idealista. Para quem se interessar pelo tema sugerimos a leitura do

Capítulo II do segundo volume da Estética.

Page 24: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

24

reconhece mais no mundo posto e, desse melancólico divórcio, é parturejada a arte

moderna.

O mundo helênico tornou-se pequeno para o espírito, o que não implicou em

uma retomada do exercício de nomear inaugurado pelo simbolismo. O que o espírito do

tempo oferece é o próprio desafio do exercício expressivo. Resta à dinâmica forma-

conteúdo uma belicosidade criativa, uma desarmonia que deixa a obra de arte aberta a

um porvir sempre heterodoxo, uma constante de subversão do já posto, algo que emerge

em uma escala até então jamais vista.

Os motivos do definhamento do clássico como paradigma vivo de arte são

multifacetários. A ascensão do cristianismo e o fim das pequenas comunidades que

caracterizavam a produção artística homérica são, nesse sentido, elementos-chave

(LUKÁCS, 2000).

Com o cristianismo, temos a chegada da interioridade como elemento a compor

inescapavelmente a experiência humana. Os efeitos estéticos dessa nova fé

transmutariam a arte ocidental irremediavelmente.

Podemos encontrar no brilhante ensaio A cicatriz de Ulisses, de Erich Auerbach

(1971), uma análise que demonstra a radical divergência entre a figuração judaica e a

helênica. A partir de um exercício comparativo, o autor demonstra que, no Velho

Testamento, a composição privilegia a representação da interioridade, transmutando boa

parte dos conflitos para a própria consciência dos personagens.

A passagem apresentada por Auerbach é a que narra a requisição divina, feita a

Abraão, para que imolasse seu filho, Isaac. A intensidade da cena não provém de uma

descrição minuciosa, mas sim da própria economia de recursos narrativos. O texto

bíblico encena o brutal silêncio do pai que é requisitado a ofertar seu próprio filho.

É uma estrutura textual radicalmente diversa da homérica, na medida em que

não há uma preocupação em esmiuçar os vínculos entre sujeito e objeto. Na verdade, o

próprio divino é desprovido de contornos certos. A ação bíblica é fundamentalmente

espiritual, ou seja, proveniente da própria consciência interior. Segue o trecho em

questão: “(...) Deus pôs Abraão a prova. Chamando-o, disse: ‘Abraão!’ E ele respondeu

‘Aqui estou’. E Deus disse: Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à

Page 25: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

25

terra de Moría e oferece-o ali em holocausto sobre o monte que eu te indicar” (BIBLIA,

Gênesis, 22).

A cena carrega uma grande diferença quando posta frente à apresentação do

divino por parte de Homero. Na Odisseia, a chegada de Hermes na ilha de Calypso é

descrita nos mais mínimos detalhes, figuração que demonstra um cuidado formal no que

se refere à figuração da perfeição antropomórfica dos deuses:

(...) Voa o forte e brilhante correio.

Paira por cima da Piéria, e desde o éter no oceano se atira,

a deslizar pelo dorso das ondas, tal como gaivota

quando nos seios terríveis do mar infecundo mergulha

para pescar e umedece nas ondas as asas robustas.

Hermes, por essa maneira, desliza por cima das ondas. (HOMERO, 2011, p.

115).

O deus judaico é uma voz que acessa Abraão dissociada de qualquer concretude

física. Não é apresentado através de recursos descritivos: ele é a totalidade de uma voz

dissociada de tempo e espaço.

O contato que o Ocidente teve com o universo poético semítico, através do

Cristianismo, trouxe ao repertório histórico-filosófico do mundo clássico questões que

retiravam a imanência de suas formas artísticas. Mais do que a figuração do divino, o

que foi posto em questão era a postura do próprio homem frente ao transcendente.

Se a arte clássica é o encontro das formas buscadas pelo simbolismo, o caminho

para o moderno é a insatisfação frente à relação entre sujeito e mundo. Dessa cisão

nasce uma progressiva noção de individualidade, algo que explodiria séculos depois

com a concretização do individualismo moderno e seu símile econômico: o capitalismo.

A segunda questão que corrobora com o desmonte da vivacidade clássica

provém do fim da pequena comunidade helênica, lar material do espírito homérico. O

exponencial aumento das trocas econômicas no Mediterrâneo propiciou a emergência de

impérios mercantis, tanto no próprio solo grego quanto nos arredores: fenícios, egípcios

romanos e etc., estruturas que, em sua complexidade, agregam relações não-imediatas

Page 26: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

26

entre seus habitantes. Em outras palavras, o liame espiritual que unia a aristocracia

guerreira representada por Homero perde seu solo:

Assim como era essencial à forma artística espiritual grega também aparecer

como exterior e efetiva, também a determinação espiritual absoluta do

homem se elaborou em uma efetividade real fenomênica, com cuja

substancia e universalidade o indivíduo fez a exigência de estar em

consonância. Esta finalidade suprema era na Grécia a vida do Estado, a

cidadania e a sua eticidade e patriotismo vivo. Além deste interesse não

havia nenhum mais elevado, mais verdadeiro. Mas a vida do estado, enquanto

fenômeno mundano e exterior, assim como os estados da efetividade

mundana em geral, tornam-se caducos. Não é difícil de mostrar que um

Estado em tal espécie de liberdade, tão imediatamente idêntico com todos os

cidadãos, que enquanto tais já têm em suas mãos a atividade suprema, só

pode ser pequeno e fraco e em parte tem de destruir-se por meio de si mesmo,

em parte é arruinado exteriormente no decurso da história mundial. (HEGEL,

2014, p. 41).

Como posto por Hegel, o universo heroico carrega em sua estrutura os próprios

elementos que corroborariam com sua ruína. É interessante para nosso estudo pensar os

problemas que o fim do mundo clássico traz para a teorização dos gêneros literários.

Não podemos nos esquecer de que a poética aristotélica é construída a partir de uma

vinculação entre a posição social do representado artisticamente e o gênero que

configura a obra. No caso da epopeia, o que a configura é sua vinculação à coletividade

heroica, ou seja, à aristocracia guerreira.

O caminho tomado nesse primeiro ponto de exposição foi o de apresentarmos,

no plano teórico, as questões sobre as quais nossa análise da obra Os Lusíadas se baseia.

Abordaremos, no próximo tópico, os problemas específicos do gênero épico e a maneira

pela qual Hegel e Lukács tentaram abordar conceitualmente o tema. Já no último tópico

será retomada a relação entre tempo e forma: sintetizaremos as questões referentes ao

gênero literário frente às particularidades do mundo moderno, frisando o lugar do

heroico nessa nova configuração.

II- A épica

O presente tópico tem como proposta um breve resgate do processo de

emergência do gênero como operador conceitual do exercício crítico. Cabe, portanto,

discorrer sobre o grande marco da teoria do gênero, Aristóteles e sua poética, e, a partir

disso, apresentar a perspectiva hegeliana frente ao assunto. Posteriormente a essa breve

Page 27: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

27

apresentação, os problemas peculiares à épica serão detalhados. Frisaremos, neste

momento, o texto clássico, já que as questões referentes ao moderno serão objeto do

tópico seguinte.

A conceituação do objeto literário a partir do seu entrelaçamento com a

categoria gênero é recorrente na longa caminhada dos estudos estéticos. No plano das

fontes escritas temos a filosofia helênica como lar dos primeiros estudos dedicados a

refletir sobre as peculiaridades composicionais das obras poéticas.

O estudo desenvolvido por Aristóteles acabou galgando o lugar de marco para a

compreensão da obra literária. A proposta de sistematização por ele desenvolvida funda-

se em dois grandes elementos estruturantes: ação e métrica. A soma dos recursos em

questão tem como resultado o exercício mimético (ARISTÓTELES, 2017, p. 59)4.

A ação, termo que também pode ser compreendido como enredo, refere-se ao

plano social com o qual o narrado se identifica. É exemplificativo dessa categorização

o vínculo tecido pelo autor entre os gêneros tragédia e epopeia e a figuração heroica.

Nas palavras do grego: “A epopeia acompanha a tragédia até o ponto de ser a mimese

de homens de caráter elevado por meio de linguagem metrificada” (ARISTÓTELES,

2017, p.69).

A conexão entre a persona representada e uma linguagem capaz de a dizer, como

exposta no trecho acima citado, nos traz para o plano da métrica. Podemos encontrar na

reflexão aristotélica uma leitura dinâmica da relação entre forma e conteúdo.

É exemplificativo de nossa colocação o movimento que o autor denota na

métrica denominada iâmbica. A estrutura em questão tem em sua origem uma

vinculação com as propostas artísticas de intenção satírica, mas findou como estrutura

intrínseca à obra trágica. O autor justifica esse deslocamento a partir da noção de

verossimilhança. A forma iâmbica é apontada por Aristóteles como a mais afim com o

tom prosaico do diálogo. Por consequência, o conteúdo trágico, intrinsecamente

dialógico, encontrou no iambo sua forma (ARISTÓTELES, 2017, p. 59).

4A sistematização que apresentamos é uma síntese dos elementos fundamentais da arte poética. Como

explicado no início do presente tópico, não pretendemos esmiuçar o pensamento aristotélico, mas sim

apresentar o seu essencial e, a partir disso, pensar o problema do gênero no enfoque da estética hegeliana.

Page 28: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

28

A verossimilhança pode ser compreendida como processo de atualização do jogo

mimético, ou seja, é o próprio bailar das formas. É a maneira pela qual o conteúdo

busca formas de dizer o mundo, e, ao dizê-lo, inexoravelmente passa por sua própria

concepção frente à realidade. O movimento histórico finda como personagem

inexcusável do exercício poético. Como afirma Costa Lima (1980, p. 62), “(...) é

próprio do ficcional permitir a descoberta, na alteridade da cena do texto, de uma

semelhança com a cena dos valores de quem o recebe”. O iambo adentra a

possibilidade de compor uma expressão nobre ao galgar a posição de forma capaz de

dizer uma experiência sensível enraizada em seu tempo.

Se a mimese implica uma dinâmica entre forma e conteúdo que pressupõe uma

identificação, verossimilhança, entre representação e representado, o exercício poético

aponta para uma tradição subversiva. Em outros termos, a poesia é um ente autofágico:

a cada novo conteúdo, a forma devora o pretérito para com seus ossos rearranjar suas

próprias possibilidades expressivas.

Quando defrontada a perspectiva aristotélica com a noção histórica, alcançamos

uma concepção teórica avessa a uma leitura normativa dos gêneros literários. O

pensador helênico afirma que “(...) a função do poeta não é a de dizer o que de fato

ocorreu, mas o que de fato é possível e poderia ter ocorrido segundo a verossimilhança”

(ARISTÓTELES, 2017, p. 95). Em outras palavras, o fator social emerge como um

imperativo de constante mutabilidade na forma dado o fato de que cada tempo molda

seu próprio horizonte de possibilidade.

Hegel afina-se com uma proposta de gênero como exercício particular do

universal artístico. Cada gênero, tal qual a arte em sua totalidade abstrata, vincula-se ao

movimento da própria vida. Sob essa perspectiva, temos a relação entre forma, conteúdo

e tempo reafirmada na particularidade das estruturas de gênero. Nas palavras do próprio

autor, “(...) é na forma da realidade exterior que a poesia, por um lado, apresenta a

totalidade desenvolvida do mundo espiritual diante da representação interior e, desse

modo, retoma em si mesma o princípio da arte plástica, que torna intuível o assunto

objetivo mesmo” (HEGEL, 2004, p. 84).

Na concepção hegeliana, o jogo mimético alcança um caráter visceral. A criação

poética torna-se uma concretização da experiência espiritual em um tempo e um espaço

Page 29: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

29

específicos. Ao lermos Luís de Camões, estamos atravessando um monumento poético,

uma estátua etérea que carrega em seu seio os olhos do homem português do século

XVI.

Os gêneros como especificação do liame entre conteúdo e forma findam como

conceito mediador da própria relação entre a produção artística e o mundo. O épico não

é exceção a esse processo.

Lukács (2000, p. 38), em sua fase hegeliana, concebe o movimento de

emergência e fenecimento dos gêneros como parte da marcha histórica do espírito

humano. O húngaro aponta a forma como plano mais apreensível das alterações radicais

do conteúdo.

Essa transmutação dos pontos de orientação transcendentais submete as

formas artísticas a uma dialética histórico-filosófica, que terá, porém,

resultados diversos para cada forma, de acordo com a pátria apriorística dos

gêneros específicos. (...) é possível que a mudança se dê justamente no

principium stilisationis do gênero, que tudo determina, e assim torne

necessário que à mesma intenção artística – condicionada de modo histórico-

filosófico – correspondam formas de arte diversas.

Agora que passamos por uma breve reflexão frente ao conceito de gênero

literário, podemos tomar o épico como objeto de estudo. Podemos vislumbrar, na

relação triangular entre conteúdo, forma e tempo, uma vinculação entre gênero literário

e as possibilidades expressivas de cada experiência humana. No caso da épica, temos

uma estruturação do texto poético que tem como origem o universo clássico helênico.

Afirmar a relação indissociável entre o mundo grego e o próprio conceito de

epopeia implica entender que essa poesia é fruto direto da maneira como os poetas

concebiam o mundo. A própria ideia do épico como “bíblia da raça” (CIDADE, 1950)

provém de um arranjo social no qual a comunidade vive sob um ideal orgânico de

autorreconhecimento. A sociedade da qual emergiu o conteúdo que parturejou a forma

homérica vivia em uma experiência de unidade imediata5.

5 Para melhor compreender a interrelação entre estrutura social e exercício poético no mundo clássico,

recomendamos Lima (1980). O autor dedica a primeira parte do seu livro para versar sobre as origens da

teoria mimética. O livro alcança tal intento a partir de uma preciosa apresentação do lugar da arte literária

no mundo helênico.

Page 30: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

30

O fruto dessa composição social é a poesia heroica representada pela epopeia. O

herói irradia sobre seu entorno uma harmonia fechada. O universo ficcional no qual

exerce seus gestos superiores, os muitos trabalhos e batalhas, não é dissociado de sua

própria figura.

O herói em questão finda alcançando uma posição totêmica frente à comunidade

que o inventou. Sua individualidade é uma macroprojeção da relação entre o povo e o

mundo. A diferença frente ao totem original é que o herói é um homem superior, mas

ainda assim um homem. Ele representa um passo em direção à autorreflexão humana e

o épico é a forma dessa nova consciência.

O conteúdo comunal do qual emerge a epopeia demanda da estruturação

poética uma constância composicional. A estabilidade da forma é alcançada através de

uma métrica que, a partir de repetições, tece um mundo harmônico. Como descreve

Hegel (2004, p. 85), “(...) o rapsodo canta mecanicamente, de cor em uma única medida

de verso, que igualmente é uniforme e se aproxima mais do mecânico, decorre e desliza

calmamente por si mesma.”.

Os epítetos heroicos são um grande exemplo dessa estabilidade no plano

semântico. Aquiles nunca está dissociado de seus pés velozes, “Aquiles, de rápidos pés”

(HOMERO, 94, p. 47), e Odisseu sempre será o mais astucioso dos homens, “Ulisses, o

guerreiro da mente fecunda” (HOMERO, 2011, p. 58). As características se repetem na

narração alterando às vezes o adjetivo, mas jamais o campo de sentido.

Outro elemento marcante na épica é sua usual abrangência descritiva. O texto

prolonga-se tecendo relações entre o mundo narrado de maneira diversa da composição

trágica que alcança seu efeito através da concisão. São exemplificativos dessa

divergência os muitos anos que tomam o retorno de Ulisses para Penélope frente à

brevidade do golpe que abate a fortuna de Édipo.

O caráter panorâmico da epopeia é muito bem encenado no catalogo das naus. O

trecho a seguir apresenta uma minuciosa descrição dos helenos que compõem a grande

armada destinada a destruir Troia. O que nos interessa é o momento que precede a

descrição, ou seja, o pedido do poeta para que as musas tornem possível a transmutação

de tal matéria em objeto artístico:

Page 31: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

31

Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas, contar-me

pois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;

nós, nada vimos; somente da fama tivemos notícia –

os nomes, sim, revelai-me, dos chefes supremos dos Dânaos.

Da multidão não direi coisa alguma, nem mesmo os seus nomes,

em que tivesse dez bocas e dez, também, línguas tivesse,

voz incansável e forte, e de bronze infrangível o peito,

se vós, ó Musas, nascidas de Zeus portador da grande égide,

não me quisésseis nomear os que os campos de Troia pisaram.

(HOMERO, II, p. 480)

O consórcio entre as musas e o poeta torna possível que o infindável real ganhe

os firmes contornos de objeto estético. A consequência da relação entre o divino e o

próprio poeta é de caráter duplo, como bem explicado por Brandão (2005, p. 45): “(...)

ver é apanágio das deusas, tanto quanto o não ver (ou não ter nenhuma coisa vista, logo

sabida) o é de nós: o poeta e seu público.”.

A epopeia é um gênero que carrega em seu âmago o espírito clássico. A arte

pretérita buscava formas para dizer o mundo; já o clássico domestica os elementos

naturais ao submetê-los ao poder ordenador da palavra. Não é por acaso que, na relação

entre as musas e os poetas, quem se eternizou foram os últimos - o cosmos ficcional de

Homero alcançou uma vitalidade maior que a dos deuses que o inspiraram. Os olhos

atentos das musas não foram páreos frente à potência figurativa do poema.

O herói é um elemento fundamental do épico. Ele representa o elo que sustenta a

amplitude da narrativa. A infinitude dos barcos ganha os contornos de cada herói

individual e sua linhagem. Não há qualquer ponto do imenso mar que fique dissociado

do espírito coletivo dos helenos. É dessa estruturação artística que surge o notório

comentário feito pelo jovem Lukács (2000, p. 27):

O grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente

soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas,

mas nenhum caos. Ele ainda traça o círculo configurador das formas aquém

do paradoxo, e tudo o que, a partir da atualização do paradoxo, teria de

conduzir a superficialidade, leva-o à perfeição.

Page 32: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

32

O gênero épico é uma formulação artística que não pode ser dissociada do

heroísmo. Na ausência de personagens que encarnem individualmente os laços

comunitários, tem-se uma obra que trilha os caminhos turbulentos do romance.

A insustentabilidade do heroico é um elemento crucial do perecimento da arte

clássica. As obras vinculadas a esse tempo perdem o vínculo com o espírito do tempo e,

com isso, tem sua beleza transmutada em nostalgia. Como exposto ao fim do último

tópico, a emergência da interioridade, muito em razão da ascensão do cristianismo,

torna a individualidade uma experiência verdadeiramente singular. O pareamento entre

representação e objeto perde-se, tornando inverossímil uma representação

inquestionável do coletivo.

Temos como consequência fundamental dessa ruptura a imperatividade de uma

nova rota para o texto narrativo. Não é mais possível engendrar sujeitos e objetos em

uma miscelânea que mal discerne os contornos entre um e outro. É tempo para uma

forma artística que tenha a contradição como próprio cerne de seu exercício mimético.

III- A arte e os modernos

O crítico literário Helder Macedo (2018, p. 02), em um magistral ensaio sobre

Luís de Camões, inicia sua reflexão com uma afirmação: “(...) toda linguagem é feita de

passados e não de futuros”. O intelectual prossegue seu comentário expondo a

característica que, a seu ver, é o elemento singularizador do trabalho do poeta

português: “A profunda originalidade de Camões manifesta-se nos sutis deslocamentos

semânticos que impôs a essa tradição, modulando a linguagem do passado para

significar uma nova visão de mundo para a qual ainda não havia linguagem feita.”

(MACEDO, 2018, p. 02).

O que há de singular em Camões é o seu próprio pioneirismo em explorar as

searas modernas que se abriam em seu século. O poeta português compõe o panteão dos

primeiros homens a lidar com uma cisão radical entre forma e conteúdo. O evento de

inexistir linguagem pronta para expressar o espírito.

A arte moderna, que no vocabulário hegeliano tem sua longa trajetória

denominada de romântica, caracteriza-se por direcionar o processo composicional para

Page 33: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

33

a interioridade humana. Ela é fruto direto do contato do mundo clássico com a forma

semítica.

Tal qual o clássico e o simbólico, esse momento da caminhada estética goza de

muitas particularidades, porém não são objeto desta dissertação as minúcias de cada

momento. No presente tópico, nos atentaremos às principais características do

movimento geral do moderno, frisando a relação entre esse tempo e o heroísmo.

A relação entre a Modernidade e o heroísmo é bem descrita por Hernani Cidade

(1979, p. 82) como um processo no qual se tem uma “(...) humanização cada vez maior

do herói e do mundo que o rodeia”. É interessante pensar que a humanização pressupõe

uma perda de potência por parte da figura heroica. É exemplificativa dessa relação o já

referido caráter antibélico da poética camoniana6.

O herói humanizado adentra em um campo no qual o mundo exterior perde sua

referência fixa, o que finda fazendo de todo gesto um passo em direção ao labiríntico

plano da consciência. A maneira inglória como o poeta português descreve a violência

da guerra é um meio de vislumbrar, na forma artística, a permanente ambiguidade do

moderno.

Cabeças pelo campo vão saltando,

Braços, pernas, sem dono e sem sentido

E de outros as entranhas palpitando,

Pálida a cor, o gesto amortecido.

Já perde o campo o exército nefando,

Correm rios do sangue desparzido,

Com que também do campo a cor se perde

Tornando carmesi de branco e verde.

(CAMÕES, III, 52)

A contradição a que nos referimos está na própria perda de uma relação

referencial frente ao mundo. Os objetivos perdem sua clareza, a vida comunitária se

6 Estamos fazendo referência à passagem em que é comentado o episódio Os doze de Inglaterra. No texto

de Antonio Candido (1985) o leitor pode encontrar um breve, mas interessantíssimo, comentário sobre o

tom desse episódio.

Page 34: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

34

pulveriza em sua organicidade e a dúvida transforma-se em único liame humano. É algo

demasiadamente diverso dos conflitos entre os heróis helênicos. Tomemos como

exemplo as cisões no acampamento dos gregos. As disputas eram encontros entre

potências, elaborações da vivacidade do homem representado. Hegel (2015, p. 196)

descreve a peculiaridade dessa característica ficcional nos seguintes termos:

(...)os heróis gregos surgem numa idade anterior á legalidade ou são eles

mesmos fundadores de Estados, de tal modo que o direito e a ordem, a lei e

os costumes partem deles e se efetivam como sua obra individual, que a eles

permanece associada. (...) sua aliança não constitui igualmente nenhuma

relação já previamente estabelecida de modo legal, que os forçasse á

submissão; pelo contrário, eles seguem Agamenon voluntariamente, que por

sua vez, não é um monarca no sentido atual da palavra; e assim cada herói

também dá o seu conselho, o encolerizado Aquiles se separa autonomamente

e, em geral, cada um vai e vem, luta e repousa a seu bel-prazer.

A narrativa camoniana versa um mundo no qual as relações com o passado são

constantemente retomadas. Árvores genealógicas e estórias que traçam as origens da

ocidental praia lusitana são encontradas em grande quantidade. O autor apresenta os

feitos do presente mesclando a nobreza miticamente fundamentada com o reino

prosaico do evento.

A miscelânea finda fortalecendo o caráter moribundo da experiência heroica ao

dar forma a uma poesia que “(...) adere à realidade, como a nau adere, com suas velas, à

onda que sulca.” (CIDADE, 1979, p. 95). O passado transmuta-se em paradigma

inalcançável e o presente agrega ao evento as ambiguidades intrínsecas ao real.

É exemplo dos elementos levantados no último parágrafo a representação

poética do assassinato de Inês de Castro. O episódio em questão provém do diálogo

entre Vasco da Gama e o rei de Melinde. O monarca africano pediu que seus

convidados narrassem suas origens. A resposta é o conteúdo do terceiro canto que toma

como assunto os eventos entre a origem mítica de Portugal e o reinado de Dom Pedro, o

cruel.

Entre os muitos pontos de interesse do episódio, cabe pensarmos na figura do rei

Dom Afonso IV. No poema, a figura histórica é colocada em duas posições antagônicas,

primeiro como feroz guerreiro que na batalha do Salado sobrepujou um número superior

de inimigos mouros, e, logo depois, como soberano que selou o destino de Inês. A

Page 35: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

35

crítica frente ao deslocamento do monarca da grandiosidade para a pequenez é posta na

boca da condenada em seu último gesto de autodefesa:

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(Se de humano é matar uma donzela

Fraca e sem força, só por ter sujeito

O coração a quem soube vencê-la)

A estas criancinhas tem respeito,

Pois o não tens à morte escura dela;

Mova-te a piedade sua e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha.

E se, vencendo a Maura resistência,

A morte sabes dar com fogo e ferro,

Sabe também dar vicia com clemência

A quem para perdê-la não fez erro.

Mas se to assim merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente. (CAMÕES, III, 127-128)

O poeta, a partir da forma, inverte o significado do monarca. Em um primeiro

momento, ele representa a impetuosidade do singular contra o coletivo, no caso a

pequena armada cristã contra a imensidão moura. Já contra Inês, ele se transmuta no

oponente descomunal. O deslocamento em questão nos dá elementos para melhor

compreender a relação entre a literatura moderna e o heroísmo.

Se tomarmos como categoria do épico a ação heroica dos personagens, pensando

no método proposto por Aristóteles, adentraremos um grande problema. O universo em

modernização do qual surge o conteúdo para a poesia camoniana não é mais um espaço

de consenso ético. O agir agora passa por um filtro subjetivo moldado pela angústia da

dúvida. O próprio conflito religioso, cristãos e mouros, que marca o texto de Camões, é

exemplificativo das curvas para as quais a monofonia caminha.

Page 36: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

36

O antagonismo ente gregos e troianos está desvinculado de qualquer

radicalidade. Ambos os lados ostentam heróis em suas fileiras e o que os une em

beligerância é o próprio fato de compartilharem do mesmo destino. O liame entre os

personagens da epopeia é descrito por Lukács (2000, p. 42) da seguinte maneira:

(...) cada personagem que aparece está à mesma distância da essência, do

suporte universal, portanto, em suas raízes mais profundas, todos são

aparentados uns aos outros; todos compreendem-se mutuamente, pois todos

falam a mesma língua. Todos guardam uma confiança mútua, ainda que

como inimigos mortais, pois todos convergem do mesmo modo ao mesmo

centro e se movem no mesmo plano de uma existência que é essencialmente

a mesma.

O herói clássico carrega o heroísmo como elemento ontológico à sua própria

existência. Não há imperativo probatório de sua superioridade: ela está impregnada no

âmago do personagem. Essa relação é diversa quando pensada no plano da arte

romântica, primeiramente na cavalaria e depois no personagem propriamente moderno.

O cavaleiro que protagoniza a novela tem a honra como constante a ser protegida ou

alcançada. Isso implica no personagem não ter o heroísmo como elemento constituinte.

A narrativa torna-se o espaço da busca do próprio heroico. Os conflitos que norteiam a

trama cavalheiresca, violação e/ou conquista da honra, descrevem bem a caminhada

para o moderno:

(...) a ofensa não concerne ao valor real objetivo, à propriedade, ao

estamento, ao dever etc., mas à personalidade enquanto tal e à representação

que ela faz de si mesma, ao valor que o sujeito atribui a si mesmo para si

mesmo. Este valor no estágio atual é do mesmo modo infinito quanto o

sujeito é infinito para si. Na honra, por conseguinte, o sujeito tem a

consciência mais próxima afirmativa de sua subjetividade infinita,

independente do conteúdo dela. (HEGEL, 2014, p. 292)

Por mais que o texto camoniano tome o romance de cavalaria como matéria

ultrapassada, aquém das concretudes experimentadas pelo povo português em seu ápice

imperial, há uma grande influência do medievo no conteúdo da épica portuguesa. A

justificação metafísica para a expansão em direção ao ultramar bebe da retórica cruzada.

Camões produz uma poética na qual continua sendo um imperativo abater a ameaça

moura e expandir as fronteiras da fé cristã.

A atualização da configuração medieval perpassa pelo próprio processo de

secularização do conteúdo artístico. Os elementos prosaicos dos quais emerge a

Page 37: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

37

narrativa judaico-cristã, muito bem exemplificados em episódios como os sofrimentos

de Jó, o calvário de Cristo e a negação de Pedro, trazem o mundano como chave para

exposição do excepcional que é o divino. O movimento do espírito pelo romantismo é

de uma sobreposição da mimese cotidiana frente a seu original lastro religioso

(AUERBACH, 1971).

É nesse contexto de ruptura que se encontra o conteúdo artístico d’Os Lusíadas.

Apesar das grandes referências à religiosidade, já podemos ver na escrita camoniana um

herói que ultrapassa a crise da novela de cavalaria radicalizando ainda mais a figuração

da interioridade. O mundo ficcional em questão é um espaço de busca de sentido no

qual a mediação entre o singular e a totalidade é impossível. Resta à forma encenar a

solidão de quem busca uma expressão capaz de dizer seu espírito.

O caminho em direção à interioridade implica na emergência de um

antropocentrismo radical. O objeto da arte não se afina a um pareamento da condição

humana com sua exterioridade, tal qual vislumbramos na poética homérica, mas sim às

entranhas da inquietude, da dúvida.

Pensar o texto camoniano sob a égide analítica dos gêneros literários implica em

reconhecer o conceito como elemento também sujeito às tormentas do tempo. A

estrutura consolidada na poética implica em uma análise vinculada a um tempo e a um

espaço, tal qual todo exercício reflexivo. A impossibilidade de um pareamento perfeito

entre o épico aristotélico e o texto renascentista implica em uma inversão da relação

entre obra literária e teoria. Cabe ao texto ficcional, com seus deslocamentos e

subversões referenciais, defrontar o universo teórico, conclamando por uma refundação

poética.

Acreditamos que Os Lusíadas são a grande Odisseia moderna. A obra que, ao

retratar um povo e um tempo, ultrapassou seu próprio conteúdo imediato, alcançando

uma expressão de universalidade humana. Nós, mulheres e homens do século XXI,

temos, como elemento intrínseco de nossa consciência, a transição que Luís de Camões

transformou em poesia, o processo pelo qual “Nosso mundo tornou-se infinitamente

grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa

riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade” (LUKÁCS,

2000, p. 31).

Page 38: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

38

Pensar o heroísmo e sua crise na concretude do texto literário é o objetivo do

próximo capitulo. Para alcançarmos tal intento centralizaremos a discussão no episódio

da Ilha dos Amores buscando compreender como o poema estrutura a figuração heroica

nesse fundamental trecho d’Os Lusíadas.

Page 39: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

39

2. A Ocidental praia lusitana

I- As Tágides

No texto em estudo, temos uma estruturação poética de forte teor universalista,

claro que se entendermos universalismo como uma concepção generalista de

europeidade cristã. As passagens nas quais elementos historiográficos são minuciados

desenham uma contextualização exuberante dos eventos, então recentes, do teatro

político europeu.

Vede'los Alemães, soberbo gado,

que por tão largos campos se apascenta;

do sucessor de Pedro rebelado,

novo pastor e nova seita inventa;

vede'lo em feias guerras ocupado,

que inda co cego error se não contenta,

não contra o soberbíssimo Otomano,

mas por sair do jugo soberano. (CAMÕES, VII, 4)

Uma bela amostra de tal exposição é o trecho acima, no qual a Reforma

Protestante e a ascensão dos otomanos contrabalançam os feitos lusos do passado

recente aos da cristandade habitante das terras germânicas. O fragmento em questão se

insere no contexto de celebração da chegada dos barões à cidade indiana de Calicute. O

alcance de tamanha proeza é contraposto às cisões que afligem o universo cristão. Os

inimigos da fé e da civilização são tão externos quanto internos.

A decadência geral que o texto camoniano descreve, tanto em plano europeu

quanto na própria Lusitânia, é sempre sustentada a partir de uma oposição dupla: a

grandeza clássica dos helenos e romanos e o recente, mas já perdido, brilho das

Page 40: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

40

conquistas portuguesas. Tal estratégia textual contraria os pressupostos heroicos da

épica homérica: nela não há decadência, mas sim pujança.

Sob tal perspectiva, talvez Os Lusíadas não sejam um texto épico, mas sim um

texto de aposta épica. Essa inversão implica uma realocação do poético e do próprio

tom metonímico que norteia a obra.

Nós propomos essa leitura tomando como principal objeto de análise o episódio

da Ilha dos amores. Tal fragmento preenche boa parte dos cantos IX e X. São duzentos e

vinte e uma estrofes, quantidade que compõe vinte por cento do livro, tendo como

consequência ser o tópico mais abrangente da obra. Nossa escolha não se dá meramente

pela abrangência quantitativa do episódio, mas fundamentalmente pelo seu caráter

conclusivo, o que, em outras palavras, significa uma retomada do que consideramos um

dos pontos fundamentais do texto camoniano: o heroísmo.

A Ilha dos amores carrega em seu seio o encontro de vários elementos textuais

presentes no decorrer da narrativa, seja o discurso amoroso, a narrativa histórica ou

mesmo a presença da religiosidade. O que buscaremos apresentar neste capítulo é uma

leitura de tal episódio na qual frisaremos o encontro entre a formulação heroica e o

discurso amoroso, caminho pelo qual alcançaremos a forma do que chamamos de crise

épica.

É imperioso, como primeiro passo para procedermos a leitura, que uma

contextualização de cena seja feita. A Ilha dos amores emerge na narrativa camoniana

como um espaço-recompensa para os navegadores lusos. Tal territorialidade poética,

como quase tudo no texto camoniano, bebe de referências intertextuais clássicas e

também de certa projeção do imaginário europeu em relação às ilhas dos novos mundos.

Mil árvores estão ao céu subindo,

Com pomos odoríferos e belos;

A laranjeira tem no fruto lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos .

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira cos pesos amarelos;

Page 41: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

41

Os formosos limões ali, cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando. (IX- 56)

A arquiteta de tal ilha é a deusa Vênus, fiel protetora dos lusos. Após a

superação dos muitos trabalhos que levaram à chegada à Índia, e com a consequente

obtenção da “(...) pimenta ardente”, “da noz e do negro cravo” (CAMÕES, IX – 14), a

narrativa se encaminha para as recompensas de tal empreitada:

“(...) a Deusa Cípria, que ordenada

Era, para favor dos Lusitanos,

Do Padre Eterno, e por bom gênio dada,

Que sempre os guia já de longos anos,

A glória por trabalhos alcançada,

Satisfação de bem sofridos danos,

Lhe andava já ordenando, e pretendia

Dar-lhe, nos mares tristes, alegria. (XI-18)

A “alegria” que a deusa planeja ofertar aos lusos tem como base a conjugação de

uma ilha paradisíaca com a presença das sensuais ninfas marítimas. Para alcançar tal

intento, Vênus consorcia seus poderes com o Cupido e a Fama.

Coube à Vênus criar a ilha, e ao Cúpido e à Fama submeterem as ninfas aos

lusos, mesclando os afiados dardos amorosos com a ágil propagação dos feitos

portugueses. O encontro dessas três potências divinas torna possível o embate entre o

mitológico e o histórico.

É em meio ao clímax da Ilha dos amores e suas descrições orgásticas que o texto

camoniano desnuda seus próprios elementos constituintes. O mito é o primeiro a ser

golpeado pelo amor camoniano; as divindades clássicas expressam a própria

ficcionalidade de sua existência:

Page 42: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

42

Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu , Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só para fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar. É só o que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.(X- 82)

Quem enuncia o discurso acima é a ninfa Tétis, poderosa profetiza do futuro

lusitano. A ficcionalidade do universo clássico pode ser lida de várias maneiras. Uma

aposta mais óbvia está no contexto inquisitorial no qual a obra foi escrita (MASSAUD,

1968), sendo, portanto, proveitoso para o grande poeta português desdizer o paganismo.

Não nos parece que a autodenúncia da deusa em relação à sua submissão ao

universo do poético se restringe a prováveis razões contextuais. O movimento de

colocar a própria divindade a expressar sua submissão ao humano é demasiadamente

profundo, principalmente pelo fato de tal cena se encontrar dentro do tópico da Ilha dos

Amores e com os muitos trabalhos da gente lusitana já concluídos.

Se as intervenções míticas são arranjos poéticos, frutos da perícia do autor em

redizer o real, o processo de denunciar a própria ficcionalidade de sua narrativa conclui-

se em um realismo brutal. Os barões lusitanos sofreram e perseveraram solitariamente,

tanto Baco quanto Vênus não são nada mais nada menos do que as múltiplas facetas do

próprio humano.

A confissão de Tétis é fundamental na crise épica d’Os Lusíadas. Ela implica em

uma releitura dos cantos precedentes, mergulhando-os em realismo; cada intervenção do

divino é desnudada como refração do próprio humano. O crítico Hernani Cidade (1950,

p.96) compreende o mitológico camoniano em termos semelhantes: “A mitologia, aqui,

é, como tantas vezes, apenas a transposição para o fantástico plano divino, de aspectos

do plano da vida humana, observada com o olhar mais realista.”.

Page 43: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

43

Nossa divergência em relação à leitura do professor Hernani Cidade está em

reconhecermos um fundamento histórico na constituição do “anti-mito” camoniano. O

poeta lusitano trabalha com tais referenciais em uma temporalidade na qual eles são

operados como material alegórico, algo radicalmente diferente da estruturação mítica

clássica. No contexto homérico, a significação deles tem como base concepções de

mundo arraigadas no universo social clássico, ou seja, elas são concretizações estéticas

do espírito popular (HEGEL, 2014).

Prosseguindo na discussão sobre o espírito da mitologia enquanto figuração da

consciência, um outro episódio da narrativa camoniana emerge como fragmento

interessante para a presente discussão. No canto V, os navegantes estão na iminência de

cruzarem o cabo das tormentas, trecho de difícil navegação que se localiza no que hoje é

o território da África do Sul. Tal espacialidade é transmutada em um personagem mítico

que se assemelha à configuração da Ilha dos Amores, dado o fato de ambos os

episódios terem o desejo como questão.

(...) uma figura

Se nos mostrava no ar, robusta e válida

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos. ( V- 39)

Assim é descrito o cabo das tormentas, denominado na narrativa camoniana de

gigante Adamastor. Tal personagem figura como mediatriz entre o conhecido e o

desconhecido; ele é a relação limite do até então navegado e o radicalmente novo. O

gigante emerge narrando as desventuras marítimas pelas quais os barões lusitanos irão

viver durante as grandes aventuras dos descobrimentos; o naufrágio de Bartolomeu Dias

e de D. Francisco de Almeida são contados.

Page 44: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

44

Em meio a tamanho terror, seja na constituição imagética do gigante ou nos seus

dizeres minuciosamente trágicos, o colosso é desarmado por Vasco da Gama. O que

opera tal deslocamento é uma singela pergunta proferida pelo grande capitão português:

“Quem és tu?” (V- 49).

A partir de tal questionamento, a potência de Adamastor é dissolvida e ele é

transmutado em estória. O cabo das tormentas é minuciado em suas raízes ocidentais.

Tal espaço perde sua característica de estranhamento e é devidamente traduzido à

linguagem classicista. Seu papel na guerra dos titãs é apresentado e o seu destino

vinculado ao desencontro amoroso que teve com Tétis.

Como vimos nos parágrafos anteriores, essa tradução tem como significação a

própria poesia. Os mitos são substância para o poético e, por consequência, o processo

de desvelamento dos novos mundos perpassa por sua tradução artística, ou seja, pela

poesia. No contexto camoniano, a pergunta dirigida por Gama é uma pergunta para o

próprio humano. A questão supera o imediato do desconhecido, mas mergulha no

abismo do próprio ser.

O professor Helder Macedo (2018, p. 33) lê tal episódio como uma das grandes

marcas do heroísmo camoniano. Em suas palavras,

“(...) o crucial momento heroico do poema transforma o medo em vontade de

conhecimento ao fazer-lhe a pergunta “quem es tu?”, que o obriga a nomear-

se e o leva a contar sua história, desse modo transformando o que havia sido

um incompreensível “ameaço divino” ou um “segredo” numa narrativa

humanamente inteligível.”

Nas epopeia clássica, Ilíada e Odisseia, os momentos nos quais o poeta toma a

voz e conclama as musas para que o auxiliem no exercício de narrar são exceções ao

discurso indireto, onisciente e onipresente que constitui a tessitura estética do épico.

Tais trechos carregam uma forte marca metapoética, dado o fato de tomarem como mote

do discurso literário a própria relação entre o dizível e o indizível, sempre mediado pela

sapiência das musas:

Musas que o Olimpo habitais vinde agora sem falhas contar-me

Page 45: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

45

pois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;

nós nada vimos; somente da fama tivemos notícia

-os nomes sim revelais dos chefes supremos dos Dánaos.

Da multidão não direi coisa alguma nem menos os seus nomes

nem mesmo que tivesse dez bocas e dez também línguas tivesse

voz incansável e forte e de bronze infrangível o peito

se vós ó Musas nascidas de Zeus portador de grande égide

não me quisésseis nomear os que os campos de Tróia pisaram. (II – 480)

É interessante frisar que a invocação à musa implica em uma harmonização de

opostos: de um lado, é posta às claras a estreiteza da visão humana, restrita a um curto

espaço temporal e espacial; do outro, é exposta a imensidão do divino em sua memória

que engloba a totalidade. O que há de paradoxal nessa relação entre poder divino e

fraqueza humana é a imperatividade do exercício tradutorial por parte do poeta. O todo

que as musas portam só se concretiza na narrativa através das mediações linguageiras

construídas pelo artista, ou seja, pelo poema.

Brandão (1999, p. 4) concebe a dinâmica entre poeta e musa sob um plano

cooperativo no qual as partes que o compõem só existem enquanto conjugadas: “No

mínimo a relação do poeta com a musa é dialética e, mais do que inspiração, no sentido

de ser conduzido por algo fora de si, estamos diante de um processo de cooperação, em

que nenhum dos sujeitos abre mão do seu papel”.

Na obra em estudo, Os Lusíadas, as musas compõem os elementos alegóricos

provenientes do universo clássico, porém, elas são rearranjadas, ou melhor, traduzidas,

para o universo lusófono do descobrimento. O fato de elas serem nomeadas de tágides,

ninfas do rio Tejo, já é indício de um processo no qual referência e deslocamento andam

de mãos dadas.

As tágides também representam o projeto camoniano de construção do povo

lusitano como dignos continuadores da tradição epopeica. Tal arranjo nos remete ao que

denominamos anteriormente de aposta épica, ou seja, a construção de um liame entre o

ficcional e o real na qual um seja espelho do outro.

Page 46: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

46

A tradição da qual o povo português bebe é um passado que Camões (I – 3)

concebe como grandioso, mas ao mesmo tempo ultrapassado. Os lusos estão destinados

a uma experiência heroica calcada no real: “Cesse tudo que a musa antiga canta/que

outro valor mais alto se levanta”.

Camões propõe uma superação do passado através da readequação da forma

artística. No plano semântico é possível vislumbrar algumas alterações que transmutam

as musas em representações do próprio humano em seu exercício poético.

A grande ruptura está no deslocamento de uma perspectiva cooperativa,

Homero, para um plano de submissão do poético ao gênio humano, Camões. As

limitações memorialísticas do homem são superadas pelo exercício da racionalidade e

do cultivo da tradição. Sob tal perspectiva, musa e poeta são fundidos em uma práxis só.

A consequência é que quem canta o canto é alçado a uma posição de enorme poder.

O texto camoniano encena os deuses como obra do exercício ficcional. Já os

heróis são descritos a partir do atrito entre ficção e realidade. A ilha dos amores emerge

como plataforma de celebração da transmutação do homem em poesia, ou seja, do

comum ao extraordinário heroico.

Que as imortalidades que fingia

A antiguidade, que os Ilustres ama,

Lá no estelante Olimpo, a quem subia

Sobre as asas ínclitas da Fama,

Por obras valerosas que fazia,

Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude, alto e fragoso,

Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso:

Não eram senão prêmios que reparte,

Por feitos imortais e soberanos,

O mundo cos barões que esforço e arte

Divinos, os fizeram, sendo humanos;

Page 47: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

47

Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneias e Quirino e os dous Tebanos,

Ceres, Palas e Juno com Diana,

Todos foram de fraca carne humana.

Mas a Fama, trombeta de obras tais,

Lhe deu no mundo nomes tão estranhos

De deuses, Semideuses imortais,

Índigetes, Heroicos e de Magnos.

Por isso, ó vós que as famas estimais,

Se quiserdes no mundo ser tamanhos,

Despertais já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo, de livre, faz escravo. (IX, 90-92)

É sob o espírito desses versos que comentadores como Helder Macedo (2018, p.

22) concebem Os Lusíadas como uma “(...) épica ambígua que se situa no hiato da

História entre o passado que celebra e um futuro que desejaria poder celebrar”. A crise

épica em questão decorre diretamente de uma aposta epopeica, ou seja, a própria

construção narrativa, abertamente voltada para dirigir a realidade em sua ambição de

revivificar a glória lusitana, carrega em seu seio sua impossibilidade de modernizar o

clássico. A superação da antiga musa acaba operando um acirramento do antigo

heroísmo com sua modulação camoniana. No espírito da reflexão desenvolvida nesse

tópico, o processo de análise do épico enquanto gênero reproduzível na Modernidade se

encaminha para uma negativa.

II. O canto do Velho

O professor Anatol Ronsenfeld (1985, p. 17) concebe as questões referentes ao

gênero literário em uma perspectiva dupla: adjetiva e substantiva. A primeira categoria

concerne às bases estruturais do texto literário. No caso do épico, o intelectual teuto-

Page 48: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

48

brasileiro o define nos seguintes termos: “Fará par do épico toda obra – poema ou não –

de extensão maior em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações

e eventos.”.A faceta adjetiva dos gêneros literários “refere-se aos traços estilísticos de

que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu

gênero (no sentido substantivo).” (ROSENFELD, 1985, p. 18). A crítica especializada

tende a conceber a literatura portuguesa como um sistema predominantemente lírico

(MASSAUD, 1968), encontrando mesmo nas obras em prosa uma manutenção do tom

subjetivo tão arquetípico ao lirismo.

Os estudos camonianos dos professores Hernani Cidade (1950) e Helder Macedo

(2018) não são exceções a tal perspectiva. O primeiro destila diretamente tais

ponderações dedicando um de seus capítulos da obra Luís de Camões: O Épico a

explorar as feições líricas d’Os Lusíadas. Já Macedo se aproxima de uma leitura lírica

da épica camoniana ao desenvolver uma análise na qual uma subjetividade autoral, aos

moldes de um eu lírico, é colocada em primeiro plano de análise.

A lírica é uma expressão poética particularmente afim com o primado moderno

da interioridade. Podemos encontrar na reflexão hegeliana e nas ponderações

lukacsianas uma leitura dialética do processo de “lirização” da expressão poética em sua

caminhada em direção ao moderno. O conflito entre interioridade e exterioridade,

enquanto componente fundamental da arte romântica é apresentado nos seguintes

termos “(...) o exterior é a existência que não satisfaz e que deve apontar de volta para o

interior, para o ânimo e para o sentimento, enquanto elemento essencial.” (HEGEL,

2014, p. 255).

Como vimos anteriormente, o texto epopeico, em suas origens clássicas, tem

como cerne uma elaboração homogênea do exterior: personagens, tempo e espaço estão

amalgamados em uma totalidade fechada (LUKÁCS, 2000). Tal intimidade entre

sujeito e mundo é sobreposta por um progressivo distanciamento, questão

profundamente afim com um diálogo entre épica e lírica. Vejamos como Hegel (2004,

p. 157) elabora a relação entre tais gêneros:

O que conduz à poesia épica é a necessidade de ouvir a coisa [Sache], a qual

desdobra diante do sujeito a totalidade fechada por si mesmo como uma

totalidade objetiva em si mesma; na lírica ao contrário, se satisfaz a

Page 49: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

49

necessidade inversa de se expressar a si e de perceber o ânimo na

exteriorização de si mesmo.

Na perspectiva de Hegel, o que difere o lírico do épico é a maneira como cada

obra transforma em objeto estético o universo social. No texto lírico, a vivacidade

encontra-se na própria afirmação do eu enquanto ente autônomo, ou seja, é na solidão

do sujeito frente ao mundo que se encena o cerne dessa modulação poética.

Mesmo em obras que tematizam o encontro amoroso, a solidão mantém-se como

elemento inescapável. Em uma perspectiva lírica todo encontro é um preâmbulo da

separação, seja enquanto experiência trágica, ou como mera decorrência da

impossibilidade da fusão entre amante e amada.

Já na épica, inexiste solidão no universo ficcionalizado: personagens e mundo

compõem uma totalidade coesa. A “coisa”, como expresso por Hegel, é o mundo

inteiro, território literário que inexiste em fragmentos, mas somente enquanto

componente de uma integralidade épica.

As diferenças em relação a como a tensão é construída no ciclo homérico e na

narrativa camoniana são ilustrativas do desencontro entre essas diferentes

temporalidades. Aquiles e Heitor, enquanto antagonistas, representam, respectivamente,

uma ameaça concreta, física. A potência representada por ambos os heróis transmuta o

conflito em um movimento quase irresistível, como se eles estivessem prefigurados para

se desafiarem em uma lide eterna. Algo que talvez se assemelhe a um jogo em que,

mesmo sob o pairar da morte, a continuidade prescinde do risco.

Lukács (2000, p. 79) lê a serenidade do belicismo homérico sob a égide do

caráter não problemático do herói clássico, afirmando que “Quando o indivíduo não é

problemático, seus objetivos lhes são dados com evidência imediata, e o mundo, cuja

construção os mesmos objetivos realizados levaram a cabo, pode lhe reservar somente

obstáculos e dificuldades para realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente

sério.”. A legitimidade pressuposta do espírito guerreiro em Homero inexiste na

narrativa camoniana. Uma das tópicas mais recorrentes d’Os Lusíadas é a

problematização da própria aventura portuguesa.

Page 50: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

50

A incerteza sobre se navegar é ou não preciso mantém-se insolúvel no percorrer

do texto. Esse conflito aproxima-se do universo romanesco descrito por Lukács em sua

reflexão sobre o personagem problemático e a nova concepção de embate que com ele

surge: “O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando

estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideias, no homem. Ao pôr as

ideias como inalcançáveis e – em sentido empírico – como irreais, ao transformá-las em

ideias, a organicidade imediata e não problemática da individualidade é rompida”.

(LUKÁCS, 2000, p. 79).

O texto camoniano carrega uma ambiguidade intrínseca. O tema épico em

questão, chegada dos barões lusos a Índia, é constantemente colocado em dúvida. Sob

tal perspectiva, principalmente se pensarmos no caráter metonímico da literatura

epopeica, o próprio fundamento do povo português, enquanto herdeiro da tradição

clássica, é alçada aos movediços planos da arte romântica.

A própria ideia de uma aposta épica resta como uma consequência lógica do

caráter problemático do discurso épico em Luís de Camões. O verdadeiro perigo, o que

há de aterrador, não são os oponentes, sejam eles os mouros ou o poderoso Baco: o que

está em jogo é a solidão da própria consciência. As naus camonianas travam uma

viagem em direção aos confins da própria interioridade, processo no qual resta pouca ou

nenhuma possibilidade de vitória.

Vamos tomar o episódio do “Velho do Restelo” como objeto de análise, frisando

os elementos afins com uma adjetivação lírica. O primeiro elemento que cabe pôr em

relevo é o caráter performático que encerra a apresentação do personagem, que emerge

como voz crítica à empreitada dos descobrimentos:

(...) um velho, de aspecto venerado,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só de experiências feito,

Page 51: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

51

Tais palavras tirou do experto peito: (IV, 94)

Antes de adentrarmos no discurso do “velho”, cabe desvelarmos a oposição que

esse breve trecho encena. O “eu” que enuncia para o leitor o aparecimento do ancião

refere-se ao próprio Vasco da Gama, barão mais proeminente entre os personagens que

compõem a expedição para Calicute. O capitão Gama é figurado como um personagem

transparente, sem maiores complexidades ou conflitos internos. É exemplificativo de

nossa assertiva o fato de que mesmo quando o navegante se depara com a profetização

de sua própria morte, (X, 54), o personagem mantém-se em um silêncio incólume. Em

outras palavras, não há expressão nem de receio nem de bravura.

Tal constituição afina-se com certas tonalidades clássicas de composição do

discurso heroico, como se o navegante Vasco da Gama representasse uma exterioridade

imune aos problemas da consciência. Porém, o discurso atravessa o capitão em direção

a um “corpo” representativo da nação portuguesa que o tem somente como primeira

camada. Talvez não seja o melhor caminho, como já previne Macedo (2018),

compreender esse personagem, solitariamente, como foco de corporificação dos lusos.

Parece-nos que a feição complexa, típica do modelo romanesco de narrativa, esteja na

conjugação das múltiplas facetas que são apresentadas durante a narrativa.

O povo português cantado por Camões é Inês de Castro, Vasco da Gama e o

“Velho do Restelo” ao mesmo tempo. Personas historicamente antagônicas, ou

ficcionalmente construídas, que, sob tal arranjo narrativo, compõem um mosaico de

formas que em seu acabamento pinta uma concepção de nação de matiz realista.

O “Velho do Restelo” é magistralmente sintetizado por Helder Macedo (2018, p.

25) como expressão do “reverso semântico da Proposição de Os Lusíadas”, uma

espécie de voz antiépica inserida logo no início da narração da empreitada indiana:

Dura inquietação da alma e da vida,

Fonte de desamparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos e de impérios!

Page 52: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

52

Chamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo digna de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana. (IV, 96)

O discurso em questão é fulcral na consolidação de uma ambiguidade que

percorre a temática heroica do início ao fim da narrativa. O anseio de superar limites,

sejam territoriais, alcançando conquistas afins com a grandiosidade de um César ou de

um Alexandre Magno, sejam financeiros, sorver todas as riquezas do comércio asiático

apossando-se de uma pujança econômica sem igual, são esvaziados de sua glória

finalística.

A grande pergunta que permanece ecoando do discurso proferido na praia do

Restelo é em relação ao próprio valor do discurso épico. O vazio da grandiosidade e a

máquina mortífera que a tece são desnudadas com dureza pelo ancião. Camões antecipa

a pergunta pessoana: valeu a pena?

Nessa dúvida irresolúvel, podemos encontrar o cerne da feição lírica do discurso

camoniano. O falatório do “Velho do restelo” é fundamentalmente um movimento de

radical crítica à realidade lusa. A viagem e os seus fins escusos são desnudados

enquanto uma mesquinha empreitada comercial, gesto que carrega em seu âmago as

raízes de uma ruína épica, algo que se encena como uma tentativa já fadada ao fracasso.

Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe!

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a fama te exalte e te lisonje

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia! (IV, 101)

Page 53: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

53

A crítica de arte dialética - no caso deste trabalho, as reflexões estéticas

hegelianas e os escritos de juventude de Lukács - frisam o quanto a arte moderna tem

como eixo de sua expressão uma crise do próprio conceito de arte. Luís de Camões, já

no século XVI, tem tal problema como componente constituinte de sua forma artística.

A intenção textual de parear uma narrativa moderna com a tradição clássica alcança

uma tonalidade nostálgica muito bem representada pelo fragmento referente à praia do

Restelo.

Nostálgico por acabar incorrendo em uma encenação que, na tentativa de

modernizar o passado, acaba denunciando a própria inexorabilidade do tempo. A arte,

na acepção hegeliana, é fundamentalmente o universo clássico, tempo no qual era

possível um pareamento entre o espírito e a possibilidade de sua representação. Não

havia divórcio entre conceito e forma.

O romance é fundamentalmente a apresentação de um universo perdido ou, em

outas palavras, é uma totalidade irrealizável. O jovem Lukács (2000, p. 54) desnuda tal

movimento com grande clareza. Para ele, “(...) trata-se de uma tentativa desesperada,

puramente artística, de produzir pelos meios da composição, como organização e

estrutura, uma unidade que não é mais dada de maneira espontânea. Uma tentativa

desesperada e um fracasso heroico.”.

A referência a uma escrita “puramente artística” pode ser entendida como a

ausência de liame entre forma e conteúdo. Tal movimento não em uma negativa da

grandeza das formas romanescas, muito pelo contrário. A sua beleza está exatamente

em transmutar o próprio exercício de escrita em uma atividade heroica, não em um

sentido clássico, ou mesmo trágico, mas sim em um plano lírico. É uma temporalidade

propícia para que o artista transforme as particularidades de sua distância frente ao

mundo em uma expressão universal.

Page 54: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

54

III. Trovadores em caravelas

A historiografia literária portuguesa compreende o trovadorismo como uma

temporalidade estética que abarca em torno de três séculos, entre 1189 e 1434

(ABDALA JÚNIOR, 1982). Ela é marcada por uma predominância lírica e, no plano

temático, pelo discurso amoroso.

O trovadorismo galego-português divide-se em quatro modulações de expressão

lírica que se particularizam através das informações concernentes ao processo

enunciativo e à temática do discurso: cantiga de amor, cantiga de amigo, cantiga de

escárnio, cantiga de maldizer. Dentre os parcos documentos que restaram dessa época, a

“Arte de trovar”, texto introdutório ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional, traz

importantes informações sobre os gêneros literários do universo trovadoresco.

E porque algũas cantigas i há em que falam eles e elas outrossi, por en é bem

de entenderdes se som d'amor, se d'amigo: porque sabede que, se eles falam

na prim[eir]a cobra e elas na outra, [é d']amor, porque se move a razom dele,

como vos ante dissemos; e se elas falam na primeira cobra, é outrossi

d'amigo; e se ambos falam em ũa cobra, outrossi é segundo qual deles fala na

cobra primeiro (ARTE, 2018, p. 1).

O trecho acima apresenta alguns limites entre os gêneros. O gênero que enuncia

as cantigas de amor é masculino (“se eles falam na prim[eir]a cobra e elnas na outra, [é

d’] amor”), enquanto as de amigo partem de um eu lírico feminino (“se elas falam na

primeira cobra, é outrossi s’amigo”). “Cobra”, em galego-português, pode ser entendido

como estrofe, ou seja, as vozes que iniciam o discurso, logo nas primeiras estrofes,

tendem a demarcar o gênero da cantiga.

No presente tópico não nos interessa adentrar nas cantigas satíricas, mas sim no

que concerne ao discurso amoroso. Como foi exposto anteriormente a figuração

amorosa é um tema caro à épica camoniana, inclusive compondo o fechamento da

narrativa no episódio da “Ilha dos amores”.

O amor como foi apresentado pelos trovadores tinha como cerne expressar a

impossibilidade de sua própria realização. O impedimento usualmente é de raiz social,

Page 55: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

55

seja em um desencontro entre estamentos, seja em razão da amada já estar vinculada

matrimonialmente. Tal situação-limite foi figurada no léxico galego-português como

coita, expressão que se afina com a ideia moderna de sofrimento amoroso.

A coita comumente é expressa sob a forma de uma “(...) súplica

apaixonadamente triste”, proveniente de um “(...) apelo para alcançar um dom que não

chega mais” (LAPA, 1952, p. 122). O trecho que transcrevemos abaixo é um belo

exemplo da sofrida expressão da coita amorosa:

Ua dona, que eu quero gran bem,

por mal de mi, par Deus, que non por al,

pero que sempre mi fez e faz mal

e fará, direi-vo-lo que m’avén:

mar, nen terra, nen prazer, nen pesar,

nen bem, nen mal non mi-a podem quitar

do coraçoon; e que será de mi?

Morto son, se cedo mi non valer;

ela já nunca bem mi-á-de fazer,

mais sempre mal, e , pero est’ assi,

mar, nen terr, nen prazer, nen pesar

nen bem, nen mal non mi-a poden quitar

do coraçon; ora mi vai peior,

ca mi vem d’ela, po vos non mentir,

mal, se a vej’, e mal, se a non vir,

que de coitas mais cuid a maior

mar, nen terra, nen prazer, nen pesar,

nen bem, nem mal non mi-a podem quitar (CHARINHO, 1987, p. 162)

O trovador narra sua dor em uma contínua lamúria. Os refrãos reforçam a

estabilidade do mal-estar amoroso, e as diferenças de cada estrofe restam como

alternâncias linguageiras nas quais o sentido mantém-se incólume. A estabilidade da

coita é a plataforma sobre a qual o discurso amoroso emerge.

Amante e amada são mantidos em uma distância que nega e potencializa o

desejo simultaneamente. Estratagema que traz para o universo lexical do poema o signo

da morte enquanto elemento que medeia o desejo em sua negatória de realização. O

pesquisador Rougemont Dennis (1999, p. 15) concebe o sentimento representado como

um elemento de certa universalidade, no que se refere ao universo ocidental. Nas

palavras do autor, “O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a

Page 56: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

56

paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão

significa sofrimento. Eis o fato fundamental.”.

Parece-nos que o heroísmo camoniano assume uma feição lírica muito

semelhante com o paradoxo da coita trovadoresca. Na narrativa em estudo, os episódios

analisados demonstram que a cada passo que o povo português dá em direção à

experiência heroica ela se afasta. É como se Os Lusíadas, no que tange ao heroísmo,

figurassem um desejo sempre postergado, latente e que nunca alcança em sua plenitude

o clímax.

Os Lusíadas comportam uma configuração de ambição épica, ou seja, um anseio

profundo de reconhecimento lírico de um eu que se amalgama com a comunidade.

Talvez o texto camoniano possa ser lido como um protorromance, uma espécie de

encontro entre o lírico e o épico no que tange a ambicionar o alcance do último através

da constituição do primeiro.

O que sobressai dessa narrativa, em sua caminhada em direção ao moderno, é a

expressão de uma solidão inigualável. Lukács lê a faceta solitária das formas

romanescas em termos semelhantes ao que nos parece ser a tônica da narrativa de Luís

de Camões. Para o marxista húngaro, (...) “solidão não é simplesmente a embriaguez da

alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas também o tormento da

criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade.”

Sob tal perspectiva, e retomando as diferenciações tecidas por Hegel em torno

do cerne da expressão lírica e da épica, parece-nos sustentável conceber Os Lusíadas

enquanto uma ponte estético-histórica entre o universo clássico e o que viria a ser a

Modernidade. É a transição entre um canto que ambiciona mimetizar a “coisa” e um

poema que se concretiza enquanto expressão do próprio anseio de cantar.

Os diálogos que estamos operando entre o universo trovadoresco e a épica

camoniana não se dão por acaso. Apesar da pouca probabilidade de Luís de Camões ter

tido contato com os cancioneiros trovadorescos (CIDADE, 1952), na época tal

paradigma poético já havia sido sobreposto por outras concepções artísticas, como a

classicista da qual o próprio Camões bebe. Há um diálogo irredutível entre o autor em

estudo e o legado trovadoresco. Ambos compõem a marcha artística e histórica moderna

figurando-se como etapas do processo de subjetivação do discurso literário.

Page 57: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

57

Não é surpreendente que encontremos tons semelhantes de expressão literária

nos paradigmas artísticos em estudo, principalmente no que se refere ao discurso

amoroso. A própria tônica heroica, em uma perspectiva mais direta, também traz

questões do medievo, seja no episódio “Os Doze da Inglaterra”, ou na própria

arquitetura da invocação que já se inicia reivindicando para si uma veracidade que

ultrapassa o universo cavalheiresco.

Ouvi: que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

As verdadeiras vossas são tamanhas,

Que excedem as sonhadas fabulosas,

Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, ainda que fora verdadeiro (I, 11)

O “mosaico” camoniano sintoniza-se com uma concepção de arte intimamente

vinculada ao movimento histórico. Em outras palavras, a criação é concebida não como

um processo de fundação radicalmente original, mas sim enquanto tensão entre o

presente e o passado, passado que se revivifica através de deslocamentos e

rearticulações afins com o universo social que o recepciona.

Nessa perspectiva, Camões de fato leva os trovadores para as caravelas; os faz

experimentar o cravo-da-índia e as intempéries do Atlântico Sul, em um movimento que

radicaliza a solidão lírica a aproximando do corpo narrativo da épica, mesclando,

portanto, voz e objeto em um processo lindamente agônico.

Fechamos o presente capítulo afinados com uma leitura d’ Os Lusíadas no qual

o texto não é compreendido como uma epopeia, mas sim como protorromance. O

principal agente de nosso processo de categorização é a impossibilidade que as formas

mostram no que se refere à construção de um decalque do heroísmo clássico.

Page 58: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

58

O incrível novo mundo ficcionalizado por Luís de Camões carrega tônicas e

temas ainda atuais às possibilidades expressivas de nossa Modernidade. Principalmente

no que se refere aos herdeiros do império português no além-mar, fazemos parte dos

sucessos e dos fracassos históricos que Camões, ainda na emergência de tal processo,

transmutou em poesia.

No próximo capítulo, já caminhando para o epílogo do presente estudo,

refletiremos sobre as fraturas do texto camoniano no que refere à enunciação de uma

radical novidade no mundo narrado, não só no que se refere ao exotismo dos lugares

descritos, mas sim em relação à própria condição humana representada artisticamente.

Parece-nos que o autor põe em relevo uma espécie de utopismo lusitano que se propõe a

trazer a organicidade épica para o contexto de escrita da obra. Em outras palavras, mais

do que acompanhar o paradigma clássico, talvez o texto camoniano ensaie uma

superação dele.

Page 59: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

59

3 – A voz enrouquecida e a lira destemperada

I- Outro valor mais alto se levanta?

Nas últimas páginas da narrativa camoniana há uma estrofe marcante, quase

folclórica, em sua penetração no imaginário lusófono. Do primeiro verso dessa estrofe

furtamos o título do presente capítulo. Esta parte da dissertação objetiva discorrer de

maneira conclusiva sobre os estudos anteriormente desenvolvidos. Frisaremos a análise

nos trechos finais d’Os Lusíadas, fazendo um balanço sobre a relação entre melancolia,

heroísmo e Modernidade.

A exaustão do narrador frente às durezas do mundo empírico e à consequente

pequenez da antiépica quotidiana são fundamentais no processo de rediscussão do

gênero em Luís de Camões. Nos versos que transcrevemos abaixo, temos a enunciação

de uma frustrada experiência poético-política ou, em outras palavras, o desencontro

entre a mimese e o mimetizado:

No mais, Musa, no mais que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

De uma austera, apagada e vil tristeza.( X, 145)

Os versos se iniciam logo após o encerramento da narração Índica. Talvez seja

possível enquadrá-los como uma inovação na composição épica no que tange às suas

respectivas fases: proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo. Nossa

afirmação se dá pelo fato de que no décimo canto, mais especificamente entre as oitavas

Page 60: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

60

de número 146 até 156, o texto assume um tom de conselho, ou melhor, diálogo entre o

narrador e a figura de poder no arranjo português - no contexto da escrita da obra, o

monarca Dom Sebastião.

Este adendo na estruturação épica que estende a narrativa em colocações

posteriores ao epílogo remete ao que denominamos anteriormente de aposta épica. O

narrar o passado fundacional de Portugal e o narrar o passado recente das exuberantes

conquistas no além-mar são tendenciados para esse momento último da obra. Um

verdadeiro balanço poético-político que abarca o estar no mundo enquanto português,

mas não só em um plano de identidade nacional. Camões fecha sua grande não épica e

talvez um dos primeiros romances do Ocidente representando com profundidade os

encontros e desencontros entre ser e destino.

Além do longo desfile de personagens clássicos e lusitanos que compõem o

mosaico heroico d’Os Lusíadas, uma voz narrativa emerge enquanto faceta de um novo

heroísmo. O narrador, aos moldes de personagens como o Velho do Restelo e a ninfa

Tétis, figura um contraponto à expectativa de leitura no que se refere ao gênero épico:

(...) eu que falo, humilde, baixo e rudo,

De vós não conhecido nem sonhado?

Da boca dos pequenos sei, contudo,

Que o louvor sai às vezes acabado.

Nem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas juntas que se acham raramente.( X, 153)

A estrofe acima é um dos exemplos da feição interativa do narrador camoniano,

comportamento que na tipologia romanesca certamente encerraria a alcunha de

narrador-personagem. O fato de o narrador assumir a feição de personagem em

momentos diversos da obra não implica em uma direta negação de sua onisciência. Em

Camões, portanto, a objetividade épica e a subjetividade romanesca contracenam.

Page 61: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

61

No cânone narratológico, em um exercício de aproximação, colocaríamos o

texto camoniano como uma expressão do narrador enquanto testemunha. A professora

Leite (1985, p. 36) conceitua essa faceta do narrar nos seguintes termos:

Ele narra em 1ª pessoa, mas é um eu já interno à narrativa, que vive os

acontecimentos aí descritos como personagem secundário que pode observar,

desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais

direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o

testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade, ou querendo

fazer algo parecer como tal.

A miscelânea na construção do personagem narrador de Camões implica uma

potencialização do caráter problemático d’Os Lusíadas. O texto assume uma feição

perspectiva em alguns trechos dentro de um arranjo que é majoritariamente objetivo, ou

seja, a subversão da narração épica não ocorre através de uma negação direta. Camões

empreende um sútil deslocamento da tradição, movimento que, através da miscelânea

entre objetividade e subjetividade, acaba assumindo, em um plano estético, uma

perspectiva historicizante do exercício artístico.

Em outas palavras, as estratégias textuais constroem no plano da forma um

enunciador que se mostra consciente de sua contemporaneidade frente à tradição

clássica. Seja pelo jogo narrativo, pelos deslocamentos dos mitos helênicos e romanos

para as vivências lusas ou pela continuidade do texto após o epílogo.

É dessa consciência lírica, ou seja, da individualidade do narrador personagem,

que emerge a Modernidade em Luís de Camões. A insatisfação frente à realidade posta

é um movimento avesso à grande épica:

Olhai que há tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vosso Lusitanos,

A fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos mavórcios inumanos,

Qual Cânace, que à morte se condena,

Page 62: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

62

Nua mão sempre a espada noutra a pena;(VII, 79)

O herói camoniano, portanto, é de uma estirpe radicalmente diversa do

homérico. Poderíamos dizer que é um negativo dele, se pensarmos no chavão

fotográfico enquanto metáfora. A questão é que o incrível mundo novo narrado por

Camões é fundamentalmente um incrível homem novo.

Como dito anteriormente, a verdadeira viagem é em direção à própria

interioridade humana. Camões construiu uma versão laica da perda do paraíso adâmico

ao performar a subversão da épica clássica. Lukács (2000, p. 86) vislumbra a inovação

narrativa dos modernos enquanto resposta formal do imperativo reflexivo do espírito

humano na temporalidade romântica. Em suas palavras,

Esse ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo o grande autêntico

romance. A ingenuidade do escritor – uma expressão positiva somente para o

mais intrinsecamente inartístico da pura reflexão – é aqui violada, invertida

no contrário; (...).

A perda da inocência, ou melhor, da ingenuidade, se quisermos utilizar das

palavras do húngaro, tem uma faceta dupla: nostalgia e potência. Como exposto nos

capítulos anteriores, o rompimento das possibilidades histórico-filosóficas da grande

épica implicou a impossibilidade do conceito de belo enquanto pareamento entre

exterioridade e interioridade. O jogo mimético caminhou em direção ao eu, tomando o

desencontro entre subjetividade e mundo como mote da criação artística.

Os Lusíadas são uma obra que toma tal dissonância como questão. Se, por

um lado, ela implica em uma camada melancólica, por outro, ela tem a potência da

insatisfação. O narrador-herói camoniano carrega em seu seio desilusão e utopia. Ele

emula em seu discurso a solidão de uma individualidade não mais irmanada com o

mundo que o rodeia, mas, ao mesmo tempo, uma inventividade que ambiciona elidir os

limites entre ficção e realidade, ofertando aos homens uma capacidade infinita de

construir e reconstruir mundos.

Page 63: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

63

A professora Márcia Cristina Ferreira Gonçalves (2001, p. 248), em seus estudos

sobre a estética hegeliana, expõe com clareza as relações entre a marcha histórica do

espírito humano e a própria potência romanesca. A abordagem dada pela pesquisadora,

na citação abaixo, versa a dissonância enquanto traço fundamental da crise épica e da

consequente emergência do romance:

A partir da representação do destino, a poesia permite a entrada em cena de

figuras dissonantes não apenas sob a forma de divindades não-belas, como

também na descrição de situações de tensão ou conflito. A dissonância

representa nada mais do que a contradição inevitável entre o real e o ideal,

responsável pela contradição do conceito de belo. Na estética de Hegel, a

dissonância aparece não como a negação exterior do belo estático tal como

ele se apresentava na arte plástica, mas como alargamento do poder interno

da arte, que se mostra pela primeira vez capaz de representar a contradição

sem que esta representação implique a destruição de si mesma.

Camões e o heroísmo por ele cantado é fruto direto de um horizonte artístico que

toma o dissonante, o paradoxal e o contraditório enquanto próprio cerne da condição

humana. As dubiedades de uma narrativa calcada sobre esses pressupostos dão vazão

formal a um novo arranjo ético-estético.

Vimos anteriormente que o modelo ético do qual emerge a épica é o da

comunidade orgânica, do homem que vive na resposta prescindindo da questão

(LUKÁCS, 2000). Tal composição tem como pressuposto uma figura heroica enraizada

em uma imperturbável calma frente ao destino humano. Parece-nos que Aquiles

incorpora com maior proximidade essa tônica: o líder dos mirmidões é digno do

heroísmo muito mais pela aceitação de seu destino, morrer nas praias de Troia, do que

pela capacidade guerreira. Frente à certeza da morte, Aquiles seguiu em frente, de

maneira impávida, como o cordeiro que oferece o pescoço à navalha.

Quando cotejado o narrar épico com o narrar romântico, podemos perceber o

divórcio entre um destino e outro. Se no mundo de Aquiles a grandiosidade está em

representar a integridade do homem frente às forças inquebrantáveis, já na forma dos

heróis camonianos o alvo é o próprio inescapável. N’Os Lusíadas, a obra carrega como

tônica formal a crise do épico e uma abertura para o que viria a ser o paradigma

Page 64: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

64

romanesco, perspectiva na qual a relação entre destino e heroísmo é figurada aos moldes

da relação entre o prosaico e o evento.

Maurice Blanchot (2005, p. 8), em sua obra O livro por vir, faz algumas

aproximações entre o Moby Dick de Melville e a Odisseia de Homero. O crítico francês

vê semelhanças na manutenção de certa grandiosidade, ao cotejar o episódio do

encontro entre Odisseu e as sereias com o confronto final entre o capitão Ahab e o

chacalote branco. A semelhança acaba aí: no universo de Ahab existe espaço para o

narrar prosaico, em outras palavras, para algo além do evento; já Odisseu leva o

acontecimento para onde seus pés alcançarem. No seguinte trecho o autor elucida

brevemente as diferenças entre essas maneiras de narrar:

É verdade que a narrativa, em geral, relata um acontecimento excepcional

que escapa às formas do tempo cotidiano e ao mundo da verdade habitual,

talvez de toda verdade. Eis por que, com tanta insistência, ela rejeita tudo o

que poderia aproximá-la da frivolidade de uma ficção (o romance, pelo

contrário, que só diz o crível e o familiar, faz questão de passar por fictício)

De volta ao nosso Camões, podemos pensar na exaustão do narrador enquanto a

derrocada da nova musa frente à antiga, uma espécie de impossibilidade de manutenção

do evento, mas tal interpretação parece-nos incondizente com os caminhos que a forma

artística camoniana delineia. O destempero da lira e a pequenez do real são

combustíveis para as delícias do porvir, futuro que, tal qual o poema, há de ser criado,

batalhado, vencido e derrotado pelo engenho dos homens.

Camões canta um tempo no qual o primitivismo de uma potência diretamente

metonímica, asseverada pelo nome próprio de um Aquiles ou um Heitor, não é mais

possível. O corpo social que se mantinha coeso nas armaduras dos gregos e dos troianos

tornou-se multifacetado, cheio de olhos, de bocas e de membros. Podemos dizer que

quase perde sua unidade, quase morre a possibilidade da metonímia.

Só que Camões nos mostra que ela ganha nova potência em um pacto que

extrapola o imediato. A junção dos homens em uma identidade que se diz lusa, cristã e

ocidental emerge como um desafio em aberto, a ser atualizado pelas navegações do

porvir. Essa aventura não prescinde das banalidades da doença, do amor e do pranto: a

Page 65: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

65

pequenez humana é a escala de sua própria grandiosidade. Lembremos que os homens

que alcançaram a “Ilha dos Amores” são os mesmos que padeceram de escorbuto

durante a longa viagem.

O prosaico que irresistivelmente adentra a aposta épica de Camões implica uma

negação de uma irmandade primeira entre os homens, ou seja, a comunidade não opera

em uma coesão pétrea, mas sim em um arranjo movediço, pleno de questões, de dúvidas

e de incertezas. A questão é que, nessa instabilidade dos tempos, impessoal, não heroica

e que visa arregimentar os homens em uma ordem progressivamente asséptica, que

vence o medo através do tédio, a solidão emerge enquanto promessa de uma unidade

vindoura:

Ou fazendo que, mais que a de Medusa

A vista vossa tema o monte Atlante

Ou rompendo nos campos de Ampelusa

Os muros de Marrocos e Trudante

A minha já estimada e leda Musa

Fico que em todo o mundo de vós cante

De sorte que Alexandre em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter inveja.

FIM

Povos da costa africana se submeterão aos portugueses. (X, 156)

Quando o poeta canta a surdez de seus compatriotas, o desvalor que seus iguais

dão à nova musa, transmutando o que foi e o que há de aventuroso na pequena Lusitânia

em mera matéria de cobiça. Ele não se retém no pesar, mas sim adentra em um jogo

retórico na qual os exemplos do passado são marcos grandiosos a serem superados pelos

homens do presente, a crise é uma oportunidade para o reencontro da humanidade com

sua própria epopeia. O que está sendo encenado é uma musa nova que, sob os marcos da

emergente Modernidade, promete aos portugueses a construção de um novo império,

espaço no qual os homens voltam a se sentir comungados com o mundo, não sob o

plano implacável do destino, mas como senhores do universo que os rodeia.

Page 66: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

66

A promessa de uma conquista africana adentra no imaginário da época, ainda em

muito herdeiro das cruzadas e suas correlatas retóricas expansionistas de fundamentação

religiosa. No conjunto narrativo d’Os Lusíadas, podemos conceber a promessa que se

segue à conclusão do épico como uma aposta poético-política em direção a uma

potência que se justifica ideologicamente, algo que ultrapassa o vazio de significado que

a exploração da Ásia acabou implicando.

O convite a uma nova empreitada “épica” pode ser lido, através da asserção de

Hegel (2014, p. 310), como uma espécie de “inquietação” da forma, ou melhor, uma

impossibilidade da quietude plástica, tão arquetípica das esculturas clássicas e dos

próprios heróis épicos. O filósofo afirma que “(...) encontramos a arte romântica desde o

seu início presa à seguinte oposição: a subjetividade infinita em si mesma é e deve

permanecer incompatível para si mesma com a matéria exterior.”. Sob tal perspectiva, é

impensável que o texto camoniano, enquanto protorromance que é, conclua-se sem a

promessa de um próximo porto, uma viagem a seguir.

II- Camões e o espírito do tempo

A presente dissertação objetivou tomar o gênero literário d’Os Lusíadas

enquanto problema. Para alcançar esse intento, o heroísmo emergiu como componente

fundamental. Percebemos que heroísmo e literatura épica são componentes

indissociáveis; em outras palavras, a epopeia é o lar do herói.

Em um olhar mais imediato, rediscutir o gênero literário no qual a grande

narrativa portuguesa se encontra pode parecer um exercício demasiadamente formal, um

restrito jogo de caracterização. Só que, ao resgatarmos o modo como as relações entre

gênero e movimento histórico foram tecidas nos estudos estéticos, somos apresentados a

um profundo processo de rediscussão da própria experiência humana.

A arte é retirada do vazio das bibliotecas e gabinetes e reinserida no movimento

da própria vida. Camões deixa de ser um autor-fetiche, utilizado enquanto um símbolo

oco de ode ao estado-nacional, para representar a concretização artística dos primeiros

passos em direção ao moderno. Sob tal perspectiva, nosso Camões pertence a todos os

Page 67: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

67

herdeiros da grande aventura colonial, tempo que conjugou o poder de erguer e o de

destruir “coisas belas”, como diria Caetano Veloso, em uma escala até então inédita.

Que importa os gêneros literários frente a essa discussão? A literatura, tal qual a

economia e a religião, dentre tantas outras facetas da marcha histórica, compõe parte do

mosaico das inúmeras experiências humanas em seus respectivos tempos e espaços. Por

consequência, o gênero literário enquanto conceito histórico refrata as mudanças na

sensibilidade artística, expondo de maneira privilegiada os encontros e os desencontros

entre tradição e inovação.

Camões e sua “epopeia” adentram na relação movediça que o conceito gênero

literário encerra. O autor português, em seu intuito de dizer o presente reverenciando o

passado, constituiu no plano formal uma crise criativa que expôs o insustentável da

relação entre heroísmo, em sentido clássico, e epopeia. Da dissonância emergiu um

realismo que ainda goza de radical contemporaneidade.

O que durante a dissertação alcunhamos de aposta épica é o fermento de todas as

revoluções do porvir, um atestado de perecimento do que no presente se mostra

imperturbável e seguro. Não é à toa que o episódio do “Velho do Restelo” compõe

poeticamente uma crítica à voracidade humana, à impossibilidade de quietude.

A aposta em questão carrega como pressuposto o fracasso, em razão do próprio

distanciamento entre quem deseja e o objeto desejado. Os Lusíadas encenam a

impossibilidade de realização finalística do utópico: as Índias descobertas implicaram

em um vazio a ser aplacado somente pela conquista do próximo porto, em uma

infinitude de desejo a nunca ser concretizado.

O lugar da crítica, tal qual o da própria literatura, também assume uma feição

histórica. Dizer ou desdizer o caráter épico da narrativa camoniana implica uma tomada

de posição estético-política. Em nossa opinião, os estudos desenvolvidos pelo professor

Hernani Cidade são um exemplo da historicidade da crítica. O estudioso português

assume em suas obras uma leitura dialética de base hegeliana, campo teórico que

assume com firmeza a impossibilidade de verdejar uma literatura genuinamente épica

no solo da Modernidade.

Page 68: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

68

A impossibilidade épica é lida por Cidade enquanto heterodoxia criativa, uma

nova musa que encerra em si valores basilares do que viria a ser a Modernidade

ocidental com seu universalismo e inquietude arquetípicos. O arrojo racional do homem

que, através da técnica, se assume senhor da natureza, transmutando os oceanos bravios

em uma zona franca de diálogos interculturais.

O crítico, em sua brilhante biografia, acena para um resgate progressista da obra

camoniana, ao enunciar o grande poeta português enquanto criador de uma épica já em

suas raízes transnacional. O episódio a que nos referimos é o dos seminários que Cidade

ofertou enquanto cativo em um campo de prisioneiros teutônico em plena primeira

guerra mundial:

Preso pelos alemães, depois da batalha de 9 de abril de 1918, continua a sua

catequese cívica, no campo dos oficiais prisioneiros. Não só prossegue o

estudo do alemão, como organiza aos Domingos conferências sobre literatura

portuguesa, lutando contra a degradação humana provocada pelo cativeiro. A

primeira Conferência chama-se “Camões, Poeta Europeu”, visa a “ampliação

moral e intelectual” da civilização europeia e situa Camões e Portugal. «Ao

Domingo prega o Cidade…», diziam os colegas. (INSTITUTO CAMÔES,

2018)

O resgate da poesia camoniana em meio às agruras da primeira grande guerra

carrega certa semelhança com questões refletidas pelo jovem Lukács em sua Teoria do

Romance. Apesar de não termos acesso ao conteúdo dos seminários feitos pelo então

soldado Hernani Cidade, podemos especular que elas se assemelham, no que tange às

chaves de leitura, ao humanismo universalista com o qual desenvolveu suas análises

literárias. Enquanto Cidade apontava para a renascença como momento histórico-

filosófico que produziu obras artísticas capazes de oferecer vislumbres importantes para

a compreensão e superação das agruras do começo do século, temos Lukács tomando a

épica helênica enquanto base para compreender a emergência do romance.

O prefácio de 1962 da Teoria do Romance, elaborado já na velhice de Lukács

(2000, p. 8), elucida algumas relações contextuais das quais emergiu no autor a ambição

de tomar a forma romanesca enquanto problema. A grande guerra é elemento

indissociável de tal contexto, evento que pôs em questão, para uma geração de

Page 69: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

69

intelectuais, qualquer possibilidade de progresso, como se o abismo fosse a única rota

para a qual o ocidente se dirigia:

Nessa época, ao tentar alçar à consciência minha atitude emocional, cheguei

aproximadamente ao seguinte resultado: as Potências Centrais provavelmente

baterão a Rússia; isso pode levar à queda do czarismo: de acordo. Há também

certa probabilidade de que o Ocidente triunfe sobre a Alemanha; se isso tiver

como consequência a derrocada dos Hohenzollern e dos Habsburgos, estou

igualmente de acordo. Mas então surge a pergunta: quem nos salva da

civilização ocidental?

Ao desenvolver seus estudos sobre o romance, trabalho que encenou o

distanciamento do kantismo presente em seus primeiros ensaios e a adesão ao

hegelianismo, a relação entre história e forma artística emerge como elemento-base da

crítica. Ler o romance enquanto expressão de um mundo em decomposição não é uma

conclusão surpreendente. Lukács aposta na forma romanesca uma espécie de negativo

da épica, o radical oposto das comunidades orgânicas que parturejaram a épica helênica.

A “(...) historização das categorias estéticas” (LUKÁCS, 2000, p. 12) implicou

uma dinâmica leitura da relação entre passado e presente. Podemos vislumbrar na obra

uma marcante insatisfação frente ao mundo posto, o desnudamento do fracasso das

promessas da Modernidade. A resposta que o jovem Lukács teceu para o desconserto do

mundo assumiu uma feição nostálgica, um anticapitalismo em muito semelhante com o

pensamento romântico do século anterior.

Na esteira de tal pensamento, podemos compreender a aposta que o autor faz na

literatura russa, tomando Tolstoi como um possível articulador de uma nova épica. O

autor descreve as relações contextuais russas enquanto espaço fértil para a emergência

de uma literatura capaz de mimetizar uma comunidade eticamente mais afim com o

primitivismo clássico. Nas palavras do próprio húngaro,

Somente a maior proximidade aos estados orgânicos-naturais de origem,

dados na literatura russa do século XIX substrato de sua mentalidade e

organização torna possível uma tal polêmica criativa. Depois de Turguiêniev,

romântico da desilusão essencialmente “europeu”, Tolstoi criou essa forma

de romance com a mais forte transcendência rumo à epopeia. A grande

mentalidade de Tolstói, verdadeiramente épica e afastada de toda a forma

romanesca, aspira a uma vida que se funda na comunidade de homens

Page 70: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

70

simples, de mesmos sentimentos, estreitamente ligados à natureza, que se

molda ao grande ritmo da natureza, move-se segundo sua cadência de vida e

morte e exclui de si tudo o que é mesquinho e dissolutivo, desagregador e

estagnante das formas não naturais. (LUKÁCS, 200, p. 152)

É incrível pensar que tanto Cidade quanto Lukács, ao partirem de uma leitura

histórica da obra de arte, assumem uma concepção vívida de história. Em outras

palavras, a arte é alçada a componente fundamental do processo de produção do destino

humano, pensando este último em termos modernos, ou seja, enquanto mediação entre o

possível e o impossível na construção do real.

Vasculhar na forma romanesca, como fez Lukács, ou buscar na narrativa

camoniana, como fez Cidade, elementos para compreender as correlações entre forma

artística e o espírito humano traz para o contemporâneo uma importante disputa de

significado, seja no estudo de um gênero literário em sua ascensão, cotejando-o com as

formas narrativas já canônicas, ou no processo de detalhadamente compreender o texto

camoniano, em suas peculiaridades formais e reflexos contextuais.

Com isso queremos dizer que conceber a arte enquanto parte fundamental da

dinâmica histórica é alçá-la inescapavelmente ao solo do contemporâneo. O passado

enquanto tradição tende a emergir como paradigma a ser profanado e que nesse

movimento mais se reafirma enquanto parte do presente do que como matéria

verdadeiramente ultrapassada. Parece-nos que esse é o caso de Camões.

O próprio Hegel, autor que influenciou de maneira basilar os estudos de ambos

os autores, destaques no nosso presente processo de análise, tece breves ponderações

sobre a narrativa camoniana. Reflexão que, como nos críticos anteriores, também está

impregnada de um olhar e de uma aposta na Modernidade.

Diferente dos seus seguidores do século XX, Lukács e Cidade, Hegel construiu

seu arcabouço teórico simultaneamente ao processo de eclosão da Revolução Francesa e

suas inúmeras consequências político-estético-históricas, sendo, principalmente em sua

juventude, um entusiasta das ideias francesas. O professor Leandro Konder (1985, p.

55) ilustra bem a simpatia do autor frente ao horizonte aberto pela revolução burguesa

no seguinte fragmento da obra Hegel: A razão quase enlouquecida:

Page 71: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

71

Hegel estava convencido de que o período histórico que ia de 1789 a 1814 (o

quarto de século que se estendia da tomada da bastilha à queda de Napoleão)

constituía “o período mais rico que a história mundial teve, e para nós

também o mais rico de ensinamentos”. Os ímpetos transformadores haviam

aparecido de modo confuso e um tanto truculento e foram necessariamente

redimensionados, porém correspondiam a uma necessidade muito profunda e

por isso não desapareceram, nem podiam desaparecer: passaram a operar de

outra forma. As marcas das mudanças realizadas não podiam ser suprimidas.

O autor viveu tempo o bastante para ver o fenecimento de algumas ideias

libertárias intrínsecas à revolução, sendo talvez o republicanismo o primeiro a ter sido

abatido. Ainda assim sua obra manteve como tônica o elogio à Modernidade.

Sob tal perspectiva, as formas artísticas produzidas pelo mundo clássico

encerram uma grande admiração, mas não uma nostalgia. A superação da forma de arte

clássica é um pressuposto para a própria marcha do espírito humano em direção à

racionalidade, fator imprescindível para o exercício da liberdade, de acordo com Hegel.

O autor expõe, em sua estética, que é possível encontrar “(...) em cada progresso,

uma contribuição para se libertar ela mesma do conteúdo exposto.” (HEGEL, 2014, p.

339). Em outras palavras, a superação da arte em sua figuração clássica implica uma

implosão da harmonia pretérita em direção a novas possibilidades expressivas e

conceituais, isto é, um horizonte artístico capaz de dizer o moderno.

Na esteira dessa compreensão, podemos ler a crítica hegeliana e as suas

ponderações frente à derrocada do épico como um movimento natural no seio da

representação artística. Os primitivismos que mantinham vivos a constituição da figura

heroica, dentre eles fundamentalmente a inexistência de uma instância racional

comparável com o Estado moderno, devem ser desmistificados e naturalmente

sucedidos por modelos éticos mediados por uma racionalidade coletiva.

Talvez seja possível compreender Hegel como um leitor otimista da ascensão do

romance, concebendo-o como uma representação do moderno da mesma maneira que as

estruturas de poder da Grécia clássica e aristocrática são figuradas pela épica. O

romance, ao dar vazão a um processo progressivo de atomização do sujeito e, por

consequência, de complexificação das relações sociais, dá forma à solidão comum, à

Page 72: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

72

própria experiência de individualidade. A arte nesse contexto, mais do que em qualquer

outro período, é a grande mediadora entre o singular e o plural, criando formas que, em

suas diversas recepções, amalgamam uma base universal de sensibilidade humana.

Como bem colocado por Gonçalves (2001, p. 180), “(...) no momento em que a arte

suprassume a aparente harmonia do belo ideal, ela atinge a dinâmica viva de sua

verdadeira funcionalidade, qual seja, a de ser também ela reveladora da contradição da

vida humana e, consequentemente, matéria para o filosofar.”.

A impossibilidade épica em Camões emerge não como um pesar histórico, se

pensarmos como Hegel, mas sim como parte de uma caminhada para uma nova espécie

de universalidade a ser ficcionalmente constituída: a beleza ainda atual do homem

enquanto construtor de seu próprio destino, aventuroso frente ao inexplorado e frustrado

com o intangível, mas em uma constância de movimento. Camões dá forma a um desejo

enorme de viver. Sob tal perspectiva, ele está intimamente irmanado com a sociedade

orgânica ficcionalizada por Homero e seus cantores, alcançando uma universalidade

capaz de o alcunhar de clássico, mas um clássico moderno.

Essa é nossa posição ao ler Camões no ano de 2018, quase 2019. Camões é o

autor de um protorromance, ou de uma não épica a caminho das formas modernas. O

nome em si não é o mais importante, mas sim o reconhecimento do grande poeta

português enquanto estetizador do processo fundacional do nosso mundo. Dizemos isso

não somente enquanto herdeiros da diáspora lusitana, mas como filhos da Modernidade

tal qual qualquer ser humano habitante nestes loucos anos do século XXI.

Enquanto reflexão que aposta no moderno como temporalidade histórica ainda

longe de cumprir com todas as promessas da qual emergiu, mas que ao mesmo tempo é

demasiada nova para já considerarmos como um retumbante fracasso, nos aproximamos

da leitura do professor Hernani Cidade. Não só pelo seu veredito que, apesar de manter

intacto o adjetivo épico, adiciona o valor da heterodoxia, mas fundamentalmente pelo

gesto de reconhecer no texto camoniano um humanismo que nos parece ainda atual. A

nova musa do nosso Luís de Camões continua com uma juventude imperturbável e com

a potência de nos dirigir a busca pela “Ilha dos Amores”.

Page 73: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

73

Referências bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin. História social da literatura portuguesa. São Paulo:

Ática, 1982.

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Paulo Pinheiro. São Paulo: 34, 2017.

AUERBACH, Erich. Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental. São

Paulo: Perspectiva, 1971.

BLANCHOT, Maurice. O livro porvir. Trad. Leyla Perrone Moisés. São Paulo:

Martins Fontes, 2005.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. Primórdios do épico: Ilíada. IN: GOETTENS, Míriam

Barcellos; APPEL, Myrna Bier. As formas do épico. Porto Alegre: Movimento, 1992.

______. Antiga musa (arqueologia da ficção). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da

UFMG, 2005.

______. As musas e Homero. Porto Alegre: Organon, 1999.

BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Trad. CNBB. São Paulo: Canção Nova, 2004.

CAMÔES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. Porto Alegre: L & PM, 2015.

CHARINHO, Paio Gomes, Cantiga de amor I, in: TORRES, Alexandre Pinheiro.

Antologia da Poesia Trovadoresca Galego- Portuguesa. Porto: Lello e irmão editores,

1987.

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo: Ática, 1985.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões II: O Épico. Lisboa: Revista da Faculdade de

Letras, 1950.

______. Luís de Camões: A obra e o homem. Lisboa: Editora Arcádia, 1979.

______. Luís de Camões: O lírico. Lisboa: Bertrand, 1952.

GARAUDY, Roger. Para conhecer o pensamento de Hegel. Porto Alegre: LPM

editora, 1983.

GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. O belo e o destino: uma introdução à

filosofia de Hegel. São Paulo: Loyola, 2001.

HOMERO. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova fronteira,

2011.

______. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Edições melhoramentos, 1994.

Page 74: OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES

74

HEGEL, George. Cursos de estética I. São Paulo: Edusp, 2015.

______. Curso de estética II. São Paulo: Edusp, 2014.

______. Curso de estética IV. São Paulo: Edusp, 2004.

INSTITUTO CAMÕES. Disponível em:< http://cvc.instituto-camoes.pt/seculo-

xx/hernani-cidade.html#.XCgKuFxKjIU> Acesso: 29 dez 2018.

KONDER, Leandro. Marx: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais

Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais,

FCSH/NOVA. Disponível em:< http://cantigas.fcsh.unl.pt> Acesso: 27 ago 2018.

LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa: época medieval.

Coimbra: Coimbra editora, 1952.

LEITE, Lígia Chiapini Morais. O foco narrativo ( ou A polêmica em torno da ilusão).

São Paulo: Editora Ática, 1985.

LIMA, Luiz Costa. Mimesis e Modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

LUKÁCS, Gyorgi. Teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas

da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades:

Editora 34, 2000.

MACEDO, Helder. Luís de Camões então e agora. Disponível em: ™¢¬ª®. Acesso

em 11 mai. 2018.

MASSAUD, Moisés. A literatura portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1968.

______. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1968.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

ROUGEMOND, Denis. O Amor e o Ocidente. 2ª Ed. Lisboa: Vega, 1999.