otto maria [karpfen] carpeaux1 · karl kraus faria também comentários ácidos às ideias de outro...
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OTTO MARIA [KARPFEN] CARPEAUX1
(Viena, Áustria, 1900; Rio de Janeiro, Brasil, 1978)
Otto Maria Karpfen, s. l., 1939.
Acervo: Arquivo Nacional/RJ; Arqshoah-Leer/USP.
1 Pesquisa e texto de Carol Colffield, pesquisadora Arqshoah e bolsista do Projeto Vozes do Holocausto
coordenado pela Profa. Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Judaicos e Árabes, FFLCH-Universidade de S. Paulo/Arqshoah-Leer-USP, 2017. Tradutora dos
textos em alemão, inglês, francês e espanhol aqui citados.
Os primeiros anos de Otto Karpfen em Viena
No dia 9 de março de 1900, o advogado vienense Max Karpfen e a esposa Gisela
davam as boas-vindas ao filho Otto. No mesmo ano desse nascimento, na mesma Viena,
Sigmund Freud (1853-1939) publicava pela primeira vez seu livro A interpretação dos
sonhos ao tempo que a cidade abraçava um grupo de 19 artistas liderados por Gustav
Klimt que, apenas três anos antes (1897), havia sido responsável por uma profunda
ruptura nas artes plásticas: o grupo Secessão. Nas letras, os cafés abrigavam os debates
de poetas, escritores e autores teatrais, dentre os quais podemos citar Hugo von
Hofmannsthal (1874-1929), Peter Altenberg (1858-1919) e Arthur Schnitzler (1862-
1931) cujo trabalho foi altamente apreciado pelo próprio Freud. Esse círculo, do qual
participaram vários outros nomes das letras vienenses – como Stefan Zweig, que
futuramente buscaria refúgio no Brasil –, era conhecido coletivamente como Jung-Vien
(Jovem Viena).
Viena, cidade natal de Otto Maria Karpfen.
Google Maps.
Dentre os opositores a esses grupos, havia também diversos nomes de destaque
como o escritor Karl Kraus (1874-1936) que, em 1899, fundou um periódico Die
Fackel, no qual denunciava a decadência da sociedade vienense, o freudianismo, os
artistas do Secessão e os intelectuais do Jung-Vien. Suas ideias atraíram homens como o
artista plástico Oskar Kokoschka (1886-1980), o revolucionário compositor Arnold
Schönberg (1874-1951) e o arquiteto Adolf Loos (1870-1933). Um dos principais alvos
das críticas de Kraus eram os judeus vienenses. Embora ele mesmo fosse de origem
judaica, opunha-se ao que denominava “gosto judeu” nas artes – representado
principalmente, segundo ele, pelos artistas do Secessão –, assim como aos patronos das
artes, dos quais a maioria, naquela Viena da virada do século, era de origem judaica,
oriunda de famílias que haviam construído suas fortunas com a industrialização do país.
Karl Kraus faria também comentários ácidos às ideias de outro personagem da Viena de
1900, vinculado não às artes, mas à política: Theodor Herzl (1860-1904), fundador do
Sionismo. Nascido em Budapeste, Herzl mudara-se anos antes para Viena onde estudou
direito na mesma universidade em que Otto Karpfen iria formar-se 25 anos mais tarde.
A Universidade de Viena em 1900.
Fotógrafo não identificado.
Acervo: European Center of Austrian Economic Foundation.
Pouco se sabe a respeito das primeiras duas décadas e meia da vida de Otto
Karpfen, ou seja, como foi sua infância, que escolas frequentou, sua vida familiar, sua
relação com o judaísmo. Ao longo da vida, ele modificaria algumas vezes o próprio
nome: após sua conversão ao catolicismo, acrescentou um segundo nome passando a
chamar-se Otto Maria Karpfen; nas letras usaria Otto Maria Fidelis ou o pseudônimo
Leopold Wiessinger. Otto Maria Carpeaux foi o nome que adotou ao radicar-se no
Brasil e com o qual foi conhecido até o fim da vida.
Os primeiros registros encontrados remetem ao momento em que obteve seu
título de doutor em Química pela Universidade de Viena, em 9 de junho de 19252,
também são relacionados a essa época os poucos comentários em primeira pessoa sobre
sua vida acadêmica que evocam o fato de que, embora nunca tenha exercido uma
profissão nessas áreas, seus estudos ensinaram-lhe “algo de método e precisão de
pensar, o que é vantajoso no mundo um pouco vago das letras”3. Posteriormente, o
jovem Karpfen iria dedicar-se aos estudos de filosofia, história e sociologia ao tempo
que, entre 1927 e 1929, trabalhou em Berlim redigindo roteiros para o cinema mudo.
Porém, sempre considerou que seu trabalho era a literatura: “o jornalismo que vivi
naqueles anos, só foi meio de vida, embora às vezes sobrepondo-se às outras
atividades”.
2 Título da tese de Otto Karpfen: Über die Hypohirnsäure, ein neues Triaminomonophos- phorsulfadit aus
Menschenhirn, in: Gedenkbu- ch für die Opfer des Nationalsozialismus and der Universität Wien 1938
(Livro Memorial para as Vítimas do Nacional-socialismo da Universidade de Viena, 1938). Disponível
em:
<http://gedenkbuch.univie.ac.at/index.php?id=435&no_cache=1&no_cache=1&person_single_id=40309
&person_name=&person_geburtstag_tag=not_selected&perso%E2%80%A6=>. Acesso em: 29 jul. 2017.
Também de sua autoria: A cinza do purgatório. Ensaios. Camboriú: Livraria Danúbio Editora, 2015; E
quindi uscimmo a riveder le stelle [Saímos por ali para rever as estrelas] é o último verso do último canto
do “Inferno” em La commedia [A divina comédia] de Dante Alighieri (Canto XXXIV, 134); Caminhos
para Roma: aventura, queda e vitória do espírito. Tradução Bruno Mori. Campinas: Vide Editorial, 2014;
A religião da raça. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 abr. 1942, disponível em: <www.
memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_05&pasta=ano%20 194&pesq=Carpeaux>.
Sobre outras obras de autoria de Otto, com sobrenomes diferentes, ver: FIDELIS, Otto Maria. Österreichs
europäische Sendung. Ein aussenpolitischer Überblick. Viena: Reinhold Verlag, 1935. Sobre Carpeaux:
KOIFMAN, Fábio. Cidadão carioca: a naturalização de Otto Maria Carpeaux. Intellèctus, Rio de Janeiro,
ano XIV, n. 2, p. 169-188, 2015. Disponível em: <www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/ view/20986>. Acesso em: 20 abr. 2017.
3 Essa entrevista, segundo consta no texto, foi a primeira concedida por Carpeaux no Brasil ao jornalista
Homero Senna e publicada na Revista do Globo, n. 483, de 28.5.1949. A entrevista foi respondida em
formato de questionário escrito, organizado por Senna, que, em sua apresentação ao diálogo, afirma
“Carpeaux não sabe improvisar”. Embora o jornalista lamente a perda de espontaneidade da entrevista,
reconhece que ela também “ganha muito em precisão e autenticidade”. Disponível em: <www.
tirodeletra.com.br/entrevistas/OttoMaria-Carpeaux.htm>. Acesso em: 15 abr. 2017. Ver entrevista
publicada na revista José, n. 1, jun. 1976, conduzida pelos jornalistas Sebastião Uchoa Leite e Luiz Costa
Lima. Disponível em: <http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/OtoMariaCarpeaux.htm>. Acesso em:
15 abr. 2017.
Otto Maria [Karpfen] Carpeaux.
Viena, s. d.Fotógrafo desconhecido. Reprodução fotográfica: Mauro
Souza Ventura.
Acervo: Universidade de Viena. Disponível em:
<www.agencia.fapesp.br/carpeaux_antes_de_carpeaux/24223/>. Acesso em: 31 jul. 2017.
Foi ainda no final dos anos 1920 que Karpfen conheceu Helene Silberherz,
nascida na cidade de Ottynia, região de Galícia – então pertencente à Áustria – com
quem se casou em Viena em 1930. Foi logo após o casamento que Otto e Helene
abandonaram o judaísmo de suas famílias de origem para converterem-se ao
catolicismo. Nessa época, houve a primeira mudança de nome: Otto Karpfen passou a
chamar-se Otto Maria Karpfen.
Helene [Silberherz] Karpfen, s. l., 1939.
Acervo: Arquivo Nacional/RJ; Arqshoah-Leer/USP.
Karpfen e a resistência austríaca
Os primeiros anos da década de 1930 foram de extrema complexidade na
história da Áustria. A chegada do nazismo ao poder na Alemanha em 1933 pôs à prova
a vulnerabilidade do pequeno país, o que ficaria confirmado em 1938 com a anexação
íntegra de seu território à Alemanha, evento conhecido como Anschluss. Durante todo
esse período de convulsão, por meio de seus artigos em diversos jornais e de sua
participação em grupos de resistência intelectual, Karpfen tornou-se um influente
pensador católico. Em 1934, publicou seu livro Wege nach Rom: Abenteuer, Sturz und
Sieg des Geistes (Caminhos para Roma: aventura, queda e vitória do espírito) em que
afirmava seu compromisso com o catolicismo que utilizoucomo prisma para sua análise
das artes, da política, da economia:
Tempos tão maus como os que estamos tendo de perfazer, parece não terem sido
conhecidos outrora. A miséria geral deixa a impressão tanto mais irritante quanto
parece não estar fundada em insuficiências da natureza, mas apenas na organização
deficiente das forças humanas. (CARPEAUX, 2014)4
Em 1935, publicou mais um livro, dessa vez voltado a questões políticas:
Österreichs europäische Sendung. Ein aussenpolitischer Überblick (A missão europeia
da Áustria. Uma visão geral de política externa), sob o pseudônimo Otto Maria Fidelis.
Nesse livro, Karpfen estabelece as bases do que teria sido historicamente o papel da
Áustria como protetora das pequenas nações da Europa Central e da Oriental, assim
como do cristianismo e da cultura barroca católica:
A nova missão da Áustria é a de ser uma ponte entre o mundo latino representado
pela Itália, que tem direito ao império do Mar Mediterrâneo, e o mundo eslavo, que
guarda o legado de uma cultura nacional rural-patriótica no solo continental do
Sudeste, como sempre tem sido na região europeia do Danúbio (FIDELIS, 1935, p.
67).
Como o próprio Carpeaux expressaria posteriormente, em sua entrevista de
1949, a tese do livro baseava-se na “necessidade europeia de independência austríaca,
força de equilíbrio da Europa”, defendida
[...] não como slogan, mas com argumentos históricos, sociológicos, culturais. A
necessidade da independência austríaca, então desprezada pelos “realistas” que não
deram importância a país tão pequeno, revelou-se logo depois: a anexação da
Áustria pela Alemanha, em março de 1938, fechou o círculo em torno da
4 Com o intuito de aproximá-la do público brasileiro, essa versão do livro de Karpfen foi publicada sob o
sobrenome Carpeaux. Devemos lembrar, porém, que a versão original em alemão foi publicada em 1934
sob o nome Otto Maria Karpfen. O fragmento citado pode ser localizado na Edição Kindle, capítulo 7 (A
cidade nas nuvens / 1. Tempos maus).
Tchecoslováquia, o que produziu [o acordo de] Munique, o que separou o Ocidente
da Polônia, o que isolou no continente a França etc., etc. A luta pela independência
austríaca, de 1934 a 1938, retardou durante quatro anos a agressão geral à Europa.
Durante esses anos, com Hitler às portas de seu país, Karpfen exercia não
somente suas atividades de escritor e jornalista, principalmente para o periódico católico
vienense Der Christliche Ständestaat, como também esteve intensamente envolvido nas
lutas políticas de seu tempo e lugar. Nesse sentido, vale destacar em particular sua
participação nos círculos de pensadores que, dado o crescente avanço do racismo no
ideário da Igreja Católica nos anos 1930, reuniram-se fundamentalmente para formular
respostas ao antissemitismo racista que rapidamente se instalava na instituição religiosa.
A linha de pensamento que se buscava combater tinha como cerne o questionamento da
possibilidade de que o poder do batismo fosse capaz de “desfazer” os supostos “males”
que seriam “intrínsecos” ao caráter judaico, tese que aproximava os protagonistas dessa
ala particular da Igreja dos detentores das teorias racistas propagadas pelo nazismo. Os
círculos de intelectuais frequentados por Otto Maria Karpfen estavam reunidos
fundamentalmente em torno do padre Johannes Oesterreicher (1904-1993) e do filósofo
e teólogo Dietrich von Hildebrand (1889-1977) – o primeiro de origem judaica, o
segundo protestante, ambos convertidos ao catolicismo – os quais, décadas mais tarde,
sentariam as bases para o que em 1965, portanto três décadas mais tarde, inauguraria
uma nova era nas relações judaico-cristãs, traduzida no seminal documento Nostra
Aetate5.
5 Creditamos essas informações ao importante estudo do Prof. John Connelly da Universidade da
Califórnia, em Berkeley, principalmente por meio de dois de seus textos: Catholic Racism and Its
Opponents. The Journal of Modern History, v. 70, p. 813-847, Dec. 2007; From Enemy to Brother. The
Revolution in Catholic Teaching on the Jews. Cambridge: Harvard University Press, 2012. As ideias
discutidas nos círculos liderados por Oesterreicher e Hildebrand eram publicadas pelos intelectuais que
deles faziam parte, principalmente em dois periódicos: Die Erfüllung – de Oesterreicher – e Der
Christliche Ständestaat – fundado pelo próprio Hildebrand – para o qual Otto Karpfen escrevia
regularmente. Os artigos não eram escritos somente por intelectuais católicos ou conversos, mas também
por judeus, como o jornalista Joseph Roth ou o psiquiatra Viktor Frankl. Isso fez do jornal um dinâmico
foro de discussão. Com a anexação da Áustria, a maior parte de seus colaboradores buscou refúgio em
diversos países – inclusive Oesterreicher e Hildebrand. Outros foram vítimas das perseguições nazistas
dos anos seguintes, como o próprio Viktor Frankl, que foi capturado e deportado para Auschwitz, tendo,
no entanto, sobrevivido. O monsenhor John Oesterreicher seria um dos relatores do terceiro manuscrito
elaborado em 1964 sobre a questão judaica no âmbito do Concílio Vaticano II e que resultou, em 1965,
no documento Nostra Aetate.
Exemplares do periódico Der Christliche Ständestaat. Em destaque (elipse), artigo de Otto Maria
Karpfen, “Italien und das neue Österreich” [“Itália e a Nova Áustria”].
Disponível em: <www.erlesenes.org>. Acesso em: 20 abr. 2017.
Em 12 de março de 1938, porém, a resistência austríaca representada por
diversos grupos não mais pôde fazer frente ao projeto expansionista de Hitler. Nesse
dia, as tropas alemãs invadiram a Áustria, e, no dia 13, o território do país foi
incorporado à Alemanha, evento conhecido historicamente como Anschluss. Como
resultado, 190 mil judeus austríacos passaram ao jugo nazista. As perseguições foram
imediatas, flagrantes e brutais.
De Viena para a Antuérpia
Nos dias prévios à anexação da Áustria pela Alemanha, Karpfen estava em
negociações para engajar-se como jornalista no Neue Freie Press – o mais importante
jornal vienense. Essas negociações, porém, não se concretizariam. Otto Karpfen, o
intelectual resistente de origem judaica – conforme definido pelas leis raciais de
Nuremberg, que desconsideravam afiliações religiosas –, passou a ser imediatamente
perseguido. No dia 17 de março, após permanecer escondido por quatro dias enquanto
era procurado pela Gestapo, Otto Karpfen deixou a Áustria pela fronteira com a Itália
rumo à Bélgica, passando pela Suíça: “Fugi de Viena com uma pequena mala de mão e
sem um tostão. Perdi pátria, casa, móveis e vários milhares de livros”6.
Seu prestígio como intelectual na Áustria lhe valeu rapidamente uma posição
como colaborador do periódico católico Gazet van Antwerpen. Em julho do mesmo ano,
publicou em holandês, sob o pseudônimo Leopold Wiesinger, uma história da primeira
república austríaca, intitulado Van Habsburg tot Hitler (De Habsbourg a Hitler, 1938).
À medida que os meses passavam, porém, a situação na Europa tornava-se insustentável
para todos os cidadãos de origem judaica. A invasão da Tchecoslováquia em março de
1939 era mais uma prova de que Hitler de fato pretendia levar acabo seus planos de uma
Grande Alemanha. Otto Karpfen e a esposa decidiram, então, deixar o continente.
Van Habsburg tot Hitler, de Leopold Wiesinger (pseudônimo de Otto Karpfen). Antuérpia, Orbis, 1938,
182 p., 22 cm.
Disponível em: <www.catawiki.nl>. Acesso em: 21 abr. 2017.
6 Entrevista a Homero Dantas, 1949, citada anteriormente. Sobre sua biblioteca, nessa mesma entrevista,
Carpeaux relata como alguns desses livros acabaram chegando até ele: “Esteve em Viena, esse tempo, um
professor universitário americano, amigo meu; este foi à Gestapo declarando que me havia emprestado
vários livros; e tão grande era ainda o prestígio de ‘cidadão americano’ que lhe permitiram, sem provas,
escolher uns duzentos volumes que ele me mandou para a Bélgica, e que eu vendi depois em S. Paulo, por
necessidade”.
Ruptura: o Brasil como opção
Devido à sua condição de católico – embora classificado como não ariano –,
Karpfen, por intermediação de instituições pertencentes à Igreja, conseguiu ser incluído
em uma quota negociada entre o Vaticano e o governo brasileiro que permitia a
concessão de três mil vistos aos chamados “católicos israelitas” ou “católicos de origem
semita”7.
Anotação no passaporte de Otto Karpfen informa que o portador “faz parte do contingente de 3.000
israelitas católicos autorizados a emigrar para o Brasil. O Cônsul Geral: (assinatura de Octaviano
Machado)”. O visto foi concedido em Antuérpia, em 25.7.1939. Processo de naturalização de Otto Maria
Karpfen, 1942.
Acervo: Arquivo Nacional/RJ; Arsqhoah/Leer-USP.
Segundo a ficha de imigração que se encontra no acervo do Arquivo Nacional,
Otto e Helene Karpfen desembarcaram no Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1939
trazidos da Europa no navio Copacabana. Dez dias antes, no dia 1º – portanto quando os
Karpfen ainda estavam em meio ao Oceano Atlântico –, Hitler invadia a Polônia
7 Esse fenômeno foi analisado pela primeira vez na historiografia brasileira por Maria Luiza Tucci
Carneiro em seus livros O anti-semitismo na Era Vargas. Fantasmas de uma geração, 1930-1945. 3. ed.
S. Paulo: Perspectiva, 2001, p. 172-185; e Cidadão do mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus
refugiados do nazifascismo. S. Paulo: Perspectiva, 2010, p. 179-165. Sobre esse tema, ver também:
MILGRAM, Avraham. Os judeus do Vaticano: a tentativa de salvação de católicos não arianos da
Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). Rio de Janeiro: Imago, 1994. Esse livro traz a lista
completa dos católicos não arianos salvos pela missão diplomática sediada no Vaticano.
desencadeando, com toda força, um dos períodos mais trágicos da história da
humanidade.
Navio MS Copacabana da Companhia Marítima Belga.
Disponível em: <www.simplonpc.co.uk/2CoBelge.html>.
Acesso em: 19 abr. 2017.
Nova pátria, novo nome, nova carreira
Depois de sua chegada ao Rio de Janeiro, o casal Karpfen passou um tempo em
S. Paulo, até retornar à capital fluminense em 1941. Otto Maria Karpfen passava então a
chamar-se Otto Maria Carpeaux. Foi quando, segundo ele mesmo, começou sua
verdadeira vida. Alguns autores consideram que essa nova mudança de nome tinha
como finalidade sintonizar-se com o ambiente “afrancesado” da intelectualidade
brasileira. O próprio Carpeaux, no entanto, afirmava que era somente uma forma mais
simples de pronunciar seu sobrenome original. Cabe destacar que, nesse reinício de vida
no Brasil, Otto Carpeaux contou com o apoio fundamental de alguns amigos que
conheciam sua reputação como intelectual, entre eles Álvaro Lins que, no Correio da
Manhã de 19 de abril de 1941, anunciava a chegada ao jornal de “Um Novo
Companheiro”, antecipando o primeiro artigo de Carpeaux a ser publicado naquele
veículo de comunicação; para Lins, a contribuição deste ao jornal constituía “um
acontecimento de excepcional significação”. Carpeaux abraçou, a partir de então e
definitivamente, a carreira de crítico literário; a complexidade e abrangência de sua
formação e de seu intelecto, porém, não permitem reduzi-lo a uma única categoria.
O tema do primeiro artigo de Carpeaux para o Correio da Manhã, publicado em
20 de abril de 1941, não seria, porém, baseado em um autor literário e sim em um
historiador: Jacob Burckhardt (1818-1897), intelectual que apresentou o Renascimento
ao público do século XIX, um apaixonado pela Itália que, no entanto, detectou, nesse
período da história, as sombras da modernidade; daí o perfil profético que Carpeaux lhe
atribuíra.
O primeiro artigo de Otto Marie [Maria] Carpeaux publicado no Correio da Manhã.
Rio de Janeiro, 20.4.1941.
Acervo: Biblioteca Nacional Digital.
Disponível em: <www.bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
Acesso em: 24 abr. 2017.
Os primeiros artigos de Carpeaux para o Correio da Manhã foram escritos em
francês, mas logo a língua portuguesa passaria a fazer parte – com maestria – do
repertório desse homem que dominava por volta de uma dezena de línguas, incluindo
algumas mortas. Segundo ele mesmo contou em entrevista concedida a Homero Dantas,
em 1949, anteriormente o primeiro livro que leu em português foi Páginas recolhidas,
de Machado de Assis, cujo capítulo “O velho Senado” era para Carpeaux – ao menos
até 1949 – “a maior página que li em língua portuguesa”. O domínio do português
adquiriu-o por meio de muita leitura, somado à sua forte base de latim e, como ele
mesmo admitia, “aos conselhos de Aurélio Buarque de Holanda”.
Ode a uma nova vida
Em 1942, apenas três anos depois de sua partida da Europa, Carpeaux brindava o
público brasileiro com seu livro A cinza do purgatório, coletânea de ensaios publicados
no Correio da Manhã entre 1941 e 1942, exceto “Literatura belga”, publicado na
Revista do Brasil em dezembro de 1941, segundo consta em nota à primeira edição.
Dedicado aos seus amigos brasileiros, o primeiro parágrafo do prefácio que Carpeaux
escreveu para esse livro é uma espécie de ode à sua nova vida:
As vozes proféticas do passado ensinam-nos a interpretar a nossa situação;
interpretação que equivale a um julgamento do mundo e de nós mesmos, a um
exame de consciência. É só a luz interior que pode iluminar o caminho pelas trevas,
para conferir um sentido moral ao purgatório dos nossos dias, para acender, na cinza
do que foi, a vacilante luz duma nova esperança. Era o meu caminho também: ainda
sinto na boca o travo amargo da cinza do purgatório; já devo agradecer a aurora
duma vida nova. E quindi uscimmo a riveder le stelle (CARPEAUX, 2015).
Já os agradecimentos incluídos no prefácio desse seu primeiro livro no Brasil
mostram a riqueza do círculo de amizades que, em pouquíssimo tempo no país,
Carpeaux havia conseguido reunir. Entre eles, grandes nomes das letras brasileiras
como José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Vinicius
de Moraes. Foi esse extenso grupo de amigos que, por volta da mesma época em que
Carpeaux publicava A cinza do purgatório, formou um importante núcleo que
pressionou o próprio presidente Getúlio Vargas para que intercedesse na concessão da
cidadania brasileira ao intelectual austríaco, uma vez que Carpeaux ainda não cumpria o
requisito de permanência mínima de dez anos como residente no país para dar início ao
processo de naturalização8. No entanto, uma cláusula na legislação brasileira permitia
seu enquadramento por “capacidade científica, artística ou profissional”. Como bem
demonstra Fábio Koifman (2015) em seu ensaio sobre a análise da história do processo
de naturalização de Carpeaux, o abaixo-assinado enviado em 7 de outubro de 1942 ao
ministro da Justiça Marcondes Filho é “o registro que melhor documentou o alcance
8 Koifman lista, em seu ensaio, os 38 nomes incluídos no referido abaixo-assinado que consta dos autos
do processo de naturalização de Carpeaux (Processo nº 10.345/42), e que incluímos aqui: Octavio
Tarquínio de Souza, Heloisa Alberto Torres, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Edmundo da Luz
Pinto, José Lins do Rego, Orris Soares, Graciliano Ramos, Roberto Alvim Corrêa, Rodrigo Melo Franco
de Andrade, Odorico Tavares, Francisco de Assis Barbosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Levi Carneiro, Afonso Arinos de Melo Franco, Cleuza [ilegível]
Carvalho, Lúcia Miguel Pereira, Miguel Osório de Almeida, Cecília Meireles, Nelson Romeiro, Dinah
Silveira de Queiroz, Américo Facó, Adalgisa Nery, Vinicius de Moraes, Luís Jardim, Jayme Ovalle,
Annibal Monteiro Machado, Astrogildo Pereira, José Honório Rodrigues, Peregrino Júnior, Lourival
Fontes, Antenor Nascentes, Gastão Cruls, Austregésilo de Athayde, Sérgio Buarque de Hollanda,
[ilegível] Rodrigues e Álvaro Lins. Ver KOIFMAN, Fábio, op. cit., 2015.
dessa recepção [de Carpeaux] pela intelectualidade carioca”. A naturalização foi
finalmente oficializada e assinada pelo próprio Vargas em 18 de dezembro de 1944 e
publicada no Diário Oficial dois dias depois.
Círculos de amizades e polêmicas
No Brasil, o espírito de Otto Carpeaux resultaria, no entanto, não somente em
amizades, mas também em polêmicas e disputas que tiveram como um de seus pontos
altos o ano de 1943, em torno de um obituário escrito por ele sobre o escritor francês
Romain Rolland – venerado pela intelligentsia brasileira – que foi considerado pouco
respeitoso até mesmo pelos amigos do jornalista. O caso suscitou duras críticas
publicadas por renomados intelectuais em jornais e revistas, muitas das quais revelaram
velhos ressentimentos contra as posições políticas e religiosas de Carpeaux e que iriam
estender-se por várias décadas9. Contudo, malgrado as desavenças, a importância de
Carpeaux no meio cultural brasileiro continuou sendo crescente por meio não somente
de seus artigos, mas também de seus livros. Em 1945 produziu uma obra monumental,
referência até hoje, e que seria não somente a obra preferida de Carpeaux, mas também
a de várias gerações de seus admiradores: História da literatura ocidental, “quatro mil
páginas datilografadas” que somente seriam publicadas entre 1959 e 1966 (O Cruzeiro)
e dedicadas a Aurélio Buarque de Holanda; além desse livro, viriam outros: Origens e
fins (Casa do Estudante do Brasil, 1943), Pequena bibliografia crítica da literatura
brasileira (Ministério da Educação e Saúde, 1951) e A literatura alemã (Cultrix, 1964).
Mas a força intelectual de Carpeaux que, além da literatura, abrangia a política e
a filosofia estendia-se também ao âmbito da música. Profundo conhecedor das vertentes
clássicas do tema, publicou, em 1958, Uma nova história da música (Zahar). De
qualquer maneira, foi por meio da literatura, que considerava “a expressão máxima da
9 Uma das mais notáveis inimizades de Carpeaux no meio brasileiro, resultantes do “caso Rolland”, foi a
do escritor Jorge Amado. Conforme noticiou o jornal O Globo do Rio de Janeiro em 10 de outubro de
1959, portanto, 15 anos depois do episódio, Amado e Carpeaux um dia antes, após almoço na sede do
Correio da Manhã em homenagem ao escritor português Ferreira de Castro, foram “às vias de fato”.
Carpeaux, que já era diretor do jornal à época, sentiu-se indignado pelo fato de Jorge Amado não o ter
cumprimentado ao chegar ao local. Outras críticas, essas ainda mais recentes e inclusive posteriores à
morte de Carpeaux, mostravam um forte viés antissemita, conforme está registrado no prefácio ao livro
Cobras e lagartos, de Guilherme Figueiredo, publicado em 1984: “Em meus ataques a certos escritores há
a propositada indignação […] ao encantamento da vigarice intelectual de Otto Maria Carpeaux, judeu
tornado católico, católico tornado fascista impossibilitado de ser ariano” (apud PFERSMANN, Andreas.
Otto Maria Carpeaux, Romain Rolland et le modèle français. Une controverse politico-littéraire dans le
Brésil des années 1940. Remate de Males, Campinas, v. 34, n. 1, p. 221-234, jan./jun. 2014).
vida espiritual de uma nação”, o lieu géométrique, a via regia, que Carpeaux moldou o
meio em que viveu na segunda metade de sua vida. Sobre isso expressava:
Acho que um intelectual recebido num país estrangeiro não tem o direito de
aproveitar-se desta hospitalidade sem o dever, dever muito rigoroso, de interessar-se
profundamente pela literatura desse país, até as últimas possibilidades de
compreensão (CARPEAUX, 1943, p. 458).
Em 1949, ao ser perguntado, em entrevista a Homero Dantas, se esperava voltar
à Europa, Carpeaux respondeu:
Voltar para passear, sim, para rever... Mas só para isso. Não considero o ato de
minha naturalização simples formalidade jurídica. Conheço e respeito os limites do
enraizamento. No resto, considero-me brasileiro. J’y suis, j’y reste [aqui estou, aqui
vou ficar].
E aqui ficou. O tenebroso passado histórico da Europa, porém, retornaria até ele
para, novamente, assombrá-lo.
O reencontro com as cinzas da Europa
Enquanto os amigos brasileiros de Carpeaux lutavam para que ele conseguisse a
cidadania brasileira, as garras do nazismo continuavam a passos largos destruindo todo
e qualquer resquício das vidas daqueles que, perseguidos, já haviam abandonado o
continente. No dia 28 de fevereiro de 1942, na Áustria dominada pelo Terceiro Reich,
Otto Karpfen era destituído de seu título de doutor na Universidade de Viena. Como
judeu, era considerado “indigno de um grau acadêmico de uma universidade alemã”10
.
Mas não seria só isso. Na busca por iluminar ao menos alguns dos espaços debaixo do
manto de silêncio lançado por Carpeaux sobre seu passado na Europa, a pesquisa
conduziu-nos por caminhos que em parte contradiziam um ponto fundamental no que
diz respeito às raízes do jornalista e que era reiterado em vários escritos sobre sua vida:
a de que era filho de pai judeu e mãe católica. Os documentos que iam surgindo,
oriundos de vários arquivos na Áustria e em Israel, não somente refutam essa afirmação
10
“[...] eines akademischen Grades einer deuts- chen Hochschule unwürdig”, in: Gedenbuch für die
Opfer des Nationalsozialismus and der Universität Wien 1938 [Livro Memorial para as Vítimas do
Nacional-socialismo na Universidade de Viena, 1938]. Disponível em:
<http://gedenkbuch.univie.ac.at/index.php?id=435&no_cache=1&L=2&person_single_id=40309&person
_name=&person_geburtstag_tag=not_selected&person_geburtstag_monat=not_selected&person_geburtst
ag_jahr=not_selected&person_fakultaet>. Acesso em: 20 abr. 2017.
– ambos os pais eram, na verdade, judeus –, como também revelam um desfecho
trágico.
O ano desse desfecho foi o mesmo ano de 1942 ao qual nos referimos no
parágrafo anterior; historicamente associado à notória reunião mantida por oficiais
nazistas em uma residência à beira do Lago Wannsee, em Berlim, cujo propósito era
discutir e coordenar a “Solução Final do Problema Judaico”. Tal como foi gestada nas
mentes da cúpula nazista, essa “solução” traduzia-se na decisão de aniquilar a totalidade
do povo judeu. Muito embora o extermínio já viesse ocorrendo, a cargo de esquadrões
móveis de fuzilamento, fundamentalmente após a invasão da União Soviética em junho
de 1941. Tal como revelado nas minutas dessa reunião em Wannsee, além das
discussões que giraram em torno de métodos mais “eficazes” de extermínio, os
representantes das várias agências do Reich ali reunidas deliberaram de maneira quase
interminável sobre definições a respeito de quem deveria ser ou não considerado judeu
– embora tudo em conformidade com os termos raciais decretados por eles mesmos, já
em 1935, por meio das leis de Nuremberg.
Ainda em 1942, aqui no Brasil, no dia 12 abril, Carpeaux – obviamente sem
saber nada a respeito de nenhuma reunião de cúpula nazista e muito menos sobre o
conteúdo de suas discussões – apresentava, em artigo publicado no Correio da Manhã
do Rio de Janeiro, uma profunda análise sobre o racismo alemão que intitulou “A
religião da raça”, em que afirmava: “A erudição máxima e a ‘literatura’ habilíssima
mostram-se incapazes de explicar o segredo da teoria racista: durante séculos, era um
capricho de esquisitões e de repente adquiriu a força duma nova religião, insensível aos
argumentos dos sábios e aos risos dos folhetinistas”. Usando a inesgotável força
intelectual que lhe era característica, Carpeaux conduzia o leitor pelos caminhos de
diversos pensadores buscando demonstrar a evolução de ideias afins. Assim, iniciou
descrevendo o pensamento de Tácito na Antiguidade, passou por Gobineau, na França,
visitou o círculo de Bayreuth na Alemanha e ainda nesse país chegou a Alfred
Rosenberg. Após essa jornada, no entanto, Carpeaux perguntava a si mesmo: “qu’est-ce
que cela prouve?” [o que isso prova?]. Sua resposta: “Nada, nessa explicação histórica,
explica o acento religioso do neo-racismo alemão, o fanatismo, a intolerância
inquisitorial, o entusiasmo de cruzada”.
No entanto, embora possamos concordar que os elementos que relacionou em
seu artigo sejam intrinsecamente inexplicáveis, foram exatamente esse fanatismo, essa
intolerância, esse entusiasmo de cruzada que obrigaram Carpeaux – assim como tantos
outros – a fugir de sua Viena natal em março de 1938, três dias depois do Anschluss. E
foi essa mesma cruzada empreendida por um séquito de burocratas, soldados e
brutamontes que, no momento em que Carpeaux escrevia o artigo, chegava ao
apartamento da Aloisgasse, em Viena, onde residia Gisela Karpfen, mãe de Otto Maria
Carpeaux. Por meio de documentos obtidos no Dokumentationsarchiv des österreischen
Widerstandes [Arquivo de Documentação da Resistência Austríaca], no
Österreichisches Staatsarchiv [Arquivo Estatal Austríaco], ambos em Viena, e no
Memorial Yad Vashem em Jerusalém, Israel, chegamos ao que provavelmente
constituiu o cerne – ou intuímos, ao menos, um dos pontos fundamentais – do silêncio
do autor austríaco.
Filha do casal Hermann e Natalie Schmelz, Gisela nasceu em Cracóvia, na
Polônia, no dia 24 de abril de 1880. Em 21 de maio de 1899, aos 19 anos, casou-se em
Viena com o advogado Max Karpfen, dez anos mais velho e, no ano seguinte, em 29 de
março, dava à luz seu filho único, Otto. O Dr. Max Karpfen, que viu de perto os
horrores da Primeira Guerra Mundial, não chegou a presenciar a barbárie dos
praticantes daquilo que seu filho, décadas mais tarde, chamaria “a religião da raça”, uma
vez que falecera em novembro de 1931. Mas para Gisela Karpfen foi diferente. Poucos
meses após a anexação da Áustria pela Alemanha – tal como ocorreu com a totalidade
dos judeus austríacos naquele momento –, vários documentos atestam o início de um
minucioso levantamento e registro, por parte das autoridades nazistas, de todos seus
bens, incluindo a pensão que recebia de seu esposo, suas contas em bancos,
propriedades e objetos pessoais11
. Como era também norma do novo governo, seu nome
passou a ser Gisela Sara Karpfen12
. Um processo que se estendeu por anos.
11
O primeiro formulário oficial intitulado “Verzeichnis über das Vermögen von Juden” [Lista
Patrimonial dos Judeus] assinado por Gisela Karpfen ao qual tivemos acesso data de 27 de junho de 1938.
Em outro documento de 14 de junho de 1939, a lista inclui, entre os objetos, joias, facas de prata e
xícaras. Fonte: Österreichisches Staatsarchiv.
12 Por meio de uma lei que já havia sido aplicada aos judeus alemães, todas as mulheres tiveram “Sara”
acrescentado a seu nome; no caso dos homens, “Israel”. Essa alteração foi acrescentada a todas as
certidões de nascimento de judeus do Reich e revogada somente após o fim da guerra. Em alguns
documentos de Gisela em que consta o nome de seu filho, também aparece Otto Israel Karpfen.
Em abril de 1942, porém, aos 62 anos de idade, Gisela foi convocada pelas
autoridades nazistas a apresentar-se no prédio de uma escola judaica localizada na
Kleine Sperlgasse, a alguns minutos de seu endereço, local que servia como “ponto de
coleta”, ou Sammellager. Ali, judeus de toda a cidade de Viena chegavam a esperar dias
por um procedimento de registro obrigatório; foi ali também que Gisela – tal como era
disposto – foi obrigada a entregar todos seus valores e transferir todo o seu patrimônio
para o Reich. A espera de Gisela Karpfen nesse local durou até o dia 27 do mesmo mês,
quando ela e mais 997 judeus vienenses foram conduzidos à praça localizada em frente
à Aspangbahnhof – estação de trem da cidade – onde deveriam aguardar a partida “para
o Leste” – um dos eufemismos usados pelo Terceiro Reich – para onde todos seriam
“deportados” – outro eufemismo. O destino desse transporte, ao qual os burocratas de
Adolf Eichmann atribuíram o número 18, era a princípio a cidade de Izbica, na Polônia,
como mostra o carimbo na lista de deportação. No entanto, o trem acabou sendo
conduzido para a cidade – também polonesa – de Wlodawa, distrito de Lublin, distante
a apenas sete quilômetros do campo de extermínio de Sobibor. Os trâmites para o
“carregamento” do Transporte 18 estenderam-se o dia inteiro. Somente às 19h11
daquele dia 27 de abril, o trem que levava Gisela partiu da estação Aspang. Após 52
horas de viagem – portanto já na noite do dia 29 –, o grupo chegou à estação de
Wlodawa de onde foram conduzidos a pé em direção ao gueto da cidade, a seis
quilômetros de distância, escoltados por 15 homens armados da Schutzpolizei [Polícia
de Proteção] que estiveram a cargo do transporte por todo o trajeto. O grupo de
deportados, que em mais de um terço era composto por pessoas que, como Gisela,
tinham mais de 60 anos de idade, chegou ao local determinado às 6 horas do dia 30 de
abril. A partir desse ponto, a documentação disponível não permite determinar ao certo
o destino final de Gisela: se foi no campo de extermínio de Sobibor ou no de Belzec –
onde parte dos milhares de judeus do gueto de Wlodawa foi assassinada – ou ainda se
foi durante alguma das Aktions levadas a cabo pelos nazistas e colaboradores na própria
cidade. Sabemos, no entanto, que dentre os 998 judeus do Transporte 18, somente três
homens que haviam sido selecionados para trabalhos forçados sobreviveram13
.
13
“Abgangsliste des 18. Transportes.” Fontes: DÖW. Dokumentationsarchiv des österreischen
Widerstandes [Centro de Documentação da Resistência Austríaca] disponível em: <www.doew.at>,
acesso em: 10 maio 2017. Arquivos do Memorial Yad Vashem, Jerusalém, Israel, disponível em:
<www.yadvashem.org>, acesso em: 31 jul. 2017 A descrição sobre a jornada do Transporte 18 está
detalhada no documento “Erfahrungsbericht über durchgeführten Judentransport” [“Relatório sobre a
condução de transporte de judeus”], referente ao território da Polônia, produzido pelo chefe de polícia de
Viena no dia 4 de maio de 1942. Fontes: DÖW. Dokumentationsarchiv des österreischen Widerstandes e
Arquivos do Memorial Yad Vashem. Israel.
Após a guerra, uma instituição austríaca pertencente à comunidade judaica em
Viena encarregada de localizar sobreviventes do Holocausto e familiares das vítimas, a
Israelitische Kultusgemeinde, encaminhou uma carta a Otto Maria Karpfen no Rio de
Janeiro informando: “A Sra. Gisela Karpfen foi deportada no dia 27 de abril de 1942
para Izbica e de lá não retornou”14
. Embora a documentação disponível não permita
determinar o momento exato em que Otto Maria Carpeaux recebeu essa carta, é possível
vislumbrar o porquê do profundo silêncio que, durante sua vida no Brasil, ele guardou
sobre o passado daquele Otto Karpfen cujas raízes estavam em Viena, mas que foram
definitivamente cortadas em terras polonesas. Quanto ao resto, tal como ele expressou
em seu artigo de abril de 1942, certamente, nada explica.
Em 3 de fevereiro de 1978, Otto Maria Carpeaux faleceu no Rio de Janeiro, terra
que o adotou e que ele mesmo adotou como sua.
Otto Maria Carpeaux representado pelo artista gráfico Álvaro Cotrim, s. l, s. d.
Disponível em: <www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=977>.
Acesso em: 24 abr. 2017.
14
Informação extraída de carta escrita e enviada pelo próprio Otto Maria [Karpfen] no dia 2 de abril de
1964 ao Sr. Günther Menacher, encarregado do fundo para a compensação das perdas patrimoniais de
perseguidos políticos [Fonds zur Abgeltung von Vermögensverlusten politisch Verfolgter],
Österreichische Länderbank. Fonte: Österreichisches Staatsarchiv [Arquivo Estatal Austríaco].