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Page 1: Osvincosnacamisa eatampadasanita - katyadelimbeuf.com · “DEZ MESES E TRÊS DIAS”, QUISERAM DAR O PASSO TODO AO FIM DE DEZ ANOS DE NAMORO ... casa. Esta foi, desde logo, uma mudança

Os vincos na camisae a tampa da sanita

Ainda há quem case sem antes experimentar viver a dois.O pós-casamento é um tempo de descobertas e embates.

Falámos com quatro pares casados de frescoTEXTO DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA

FRESCORECÉM-CASADOS

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JOÃO E SARA CASQUEIRADESCOBRIRAM INÚMERASDIFERENÇAS QUANDOCOMEÇARAM A VIVERJUNTOS, DEPOIS DE CASAR.HÁBITOS DIFERENTES VÊMAO DE CIMA. PARA JOÃO,A ROUPA TEM DE ESTARSEMPRE IMPECÁVEL

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Hoje em dia, cada vez me-nos gente se casa sem sejuntar primeiro. Porém,ainda há quem suba ao al-tar sem ter partilhado omesmo espaço e o dia adia. Mas os primeiros tem-pos a dois podem ser um

desafio. Descobrem-se hábitos até então des-conhecidos, estabelecem-se regras sobre a di-visão de tarefas... E até a posição do pacotede leite pode passar a ser um problema. Mastambém há boas surpresas.

Em casa de Lélia e Carlos, os cavalos es-tão por todo o lado. São elementos da cultu-ra de campinos e ganadeiros que é a deles.Vivem numa quinta, em Benavente, desdeque casaram há um ano e dez meses. Lélia eCarlos são o típico casal rural que reproduzos padrões de antigamente. Ambos têm 30anos. Ele, de Alcochete, é ferrador de cava-los; ela, da Moita, é socióloga, embora nuncatenha exercido a profissão e tenha trabalha-do sempre em empresas como secretária.Grávida de oito meses de um rapaz que jáanda a fazer o avô sonhar com caçadas, Léliaestá agora em casa, de repouso.

“Já foi casada?”, dispara Carlos à nossachegada, em jeito de graçola. “Se não foi, nãose case”, atira. De seguida, assume o seu lu-gar, em silêncio, no sofá coberto por uma pe-le de vaca, enquanto dá a Lélia a vez. “Ela falapor mim”, dirá várias vezes. “A lua de mel éuma maravilha”, principia Lélia, que dificil-mente perde o sorriso. “Depois, quando se en-tra em casa e se veem comportamentos desco-nhecidos é que se começa a descobrir a vidade casado”, completa. “Ver os toalhões de ba-nho e os sapatos fora do sítio, insistir para elelevantar o prato da mesa...” Ainda hoje a tirado sério que ele vá tomar banho e não leveuma muda de roupa — e depois lhe peça paraa levar (como a mãe dele fazia). “De início,explodia. Agora, ouço mais, tento compreen-der. Mas também viro mais as costas.”

Uma das coisas mais difíceis foi aprendera conviver no mesmo espaço quando estão

chateados. Ela passou a falar menos. Quan-do se zangam, encarnam uma espécie de riva-lidade regional: ela fica com “feitio de moitei-ra”, ele é o “vaidoso do alcochetano”...

Estipularam uma regra na divisão das tare-fas: Lélia trata da casa, Carlos cuida da quin-ta. Ela aprendeu a cozinhar e introduziu omarido às “lasanhas, bolonhesas e ‘hambur-gas’ com natas e cogumelos”, que não faziamparte da sua dieta. Carlos engordou cinco qui-los. É um homem conservador, “com um la-do machista”, admite Lélia, “mas eu já mehabituei”. “O teu lugar é em casa”, dirá eleentredentes, a meio de uma provocação. Mes-

mo em relação ao filho que aí vem, Carlosconta delegar na mãe as mudanças de fral-das. Mas ela mantém a esperança de conse-guir educar o filho de forma “mais moderna”.

Queixas do costume. Mais acima no mapa,debaixo do calor tórrido de Portalegre, Sarae João Casqueira vivem a dois desde janeiro,apesar de terem trocado alianças em setem-bro de 2009. Ela deixou a sua vida em Lis-boa e rumou a outra, no Alto Alentejo, ondese tornou sócia-gerente da casa de repousoque é o negócio da família do marido. Elesaiu de uma multinacional para passar a divi-

GONÇALO E MARIANASERRA TÊM UMA REGRADE OURO COMO RE-CÉM-CASADOS: TODOSOS DIAS ALMOÇAMJUNTOS. CASADOS HÁ“DEZ MESES E TRÊSDIAS”, QUISERAM DAR OPASSO TODO AO FIM DEDEZ ANOS DE NAMORO

RECÉM-CASADOS

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dir os dias com a mulher no trabalho e emcasa. Esta foi, desde logo, uma mudança navida de ambos após o casamento. Amigos efamília (no caso dela) ficaram para trás, aacrescentar à adaptação da partilha de umespaço com o marido, com quem namoroucinco anos, mas com quem nunca vivera. Osprimeiros tempos não foram fáceis...

Ao longo da conversa, ao almoço, sol-tam-se as primeiras queixas: “A Sara é muitodesarrumada”, diz João. “Sempre fui”, admi-te ela. “Ele arruma as coisas, mas depoismanda-me à cara.” E João: “Se eu não arru-mar as calças da Sara, ficam em cima da me-

sa ou do sofá três dias...” Mais tarde, já emcasa deles, o tema volta a surgir. João nãopode ver uma coisa fora do sítio. Ajeita a col-cha da cama mal entra no quarto. Sara tam-bém tem por (mau) hábito, segundo João,deixar “lenços de papel espalhados pela casa— centenas deles”, que ele apanha. À contadisso, assumiu tarefas domésticas, como es-tender a roupa — dele e dela —, que conside-ra fazer “muito melhor”, porque a mãe sem-pre lhe disse que “roupa bem esticada é rou-pa meio passada”.

A casa de banho — um clássico na partilhado espaço de um casal — foi outra descoberta

“Mariana, nãovamos fazerdesta casauma igual à tua,pois não?", avisaGonçalo Serra

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pós-casamento: João detesta ter de apanharos cabelos de Sara no ralo do chuveiro. A pos-se do comando da televisão — outro clássico— também foi abordada e discutida. Resolve-ram-se pela duplicação de aparelhos: assim,ela vê a SIC Mulher sempre que quer, ele “sóvê surf”. Quando estão chateados, ela vai pa-ra o andar de cima do duplex e ele ocupa osofá da sala no piso de baixo.

Desentendimentos mais sérios, em setemeses de convivência, giraram em torno detrês assuntos: “a cadela”, “a gestão do tempolivre” e “o tempo com as respetivas famílias”.

O primeiro é relativo a “Flor”, uma ca-chorrinha Labrador que Sara quis muito ter,antes de descobrir que estava grávida. A dis-cussão surgiu quando João se quis desfazerdela, mas “Flor” ficou.

Outro dos assuntos que precisou de serreajustado foi a gestão do tempo livre. “Noinício”, conta Sara, “o João aceitava tudoquanto eram convites dos amigos. Não esta-va à espera que ele fosse tão egoísta”. Joãodá-lhe razão. E fez alterações. “Agora, já nãome roo todo se houver um jantar de amigos eeu não estiver lá”, confessa.

Outra problemática foi a repartição detempo com as famílias de ambos. Sendo quea de Sara ficou em Lisboa e a de João é pre-sença diária no trabalho e em Portalegre, adiscrepância de tempo com uma e outra é

notória. A ela, custa-lhe essa diferença: “Tra-balhamos com os pais dele, almoçamos coma mãe dele, e ainda havia dias em que elaqueria vir cá jantar a casa”, conta ela. “Alémdisso, a mãe dele chega a ligar duas vezes pordia, ao contrário da minha...” Como resulta-do, há fins de semana em que cada um vaipara a sua família, como se fossem solteiros.

Na mesma ótica, mantêm um hábito deantes de casados. Fazem sempre uma sema-na de férias com os amigos, uma vez por ano.“O casamento não pode ser uma prisão”, con-cordam ambos. Para João, de resto, “é o com-promisso que interessa — não a cerimónia,nem o padre, que é uma fantochada”. Já elaacredita no casamento “como antigamente,para sempre”.

O idílio romântico. Mas nem todas as adapta-ções à vida a dois são tão difíceis. Gonçalo eMariana Serra parecem viver um idílio ro-mântico. Casados há “dez meses e três dias”,à data da entrevista, o instrutor de ténis de27 anos e a designer de interiores de 25 trans-bordam felicidade. Após um longo namorode dez anos, o casal não sentiu que tivessecorrido mais riscos por não ter vivido juntoantes de oficializar a relação. “Casar foi resul-tado de uma sucessão de passos naturais. Pa-ra nós, não fazia sentido dar meio passo”,partilha ela. E o que descobriram um sobre o

“De início, explo-dia. Agora, ouço,tento compreen-der. Mas viromais as costas”,diz Lélia

LÉLIA E CARLOSREPRODUZEM OSPADRÕES DA CULTURADE CAMPINOS E GANADEI-ROS EM QUE CRESCE-RAM. “ELE É CONSERVA-DOR E MACHISTA”, DIZELA, QUE JÁ SE HABI-TUOU. O LUGAR DE CADAUM ESTÁ DEFINIDO

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outro com a vivência a dois? “Muito pouco”,garante Gonçalo. “Dez anos de namoro, vá-rios inter-rails e fins de semana juntos” che-garam para se conhecerem muito bem. Ain-da estão na fase apaixonada.

Uma das regras que instituíram depois decasados foi almoçarem juntos todos os dias.“Os meus amigos já me gozam porque sa-bem que tenho sempre de vir a casa à horade almoço”, diz ele. Gonçalo adora as sopasque Mariana lhe faz, e quando se ausenta,por motivos de trabalho, sente imensa falta“dos cremes de coentros, de alho francês, deagrião”... Mas, como acontece a qualquer ca-sal, partilhar um espaço trouxe novos desa-fios. Desde logo, na arrumação. “Uma dasprimeiras coisas que disse logo à Marianafoi: ‘Não vamos fazer desta casa uma igual àtua, pois não?’” Mariana admite que está mui-to mais arrumada e organizada desde que es-tá casada com Gonçalo.

Concessões, teve de haver várias, claro.No escritório, cada um negociou uma pare-de... De um lado, ficarão os livros de trabalhode Mariana, do outro as t-shirts dele, de fute-bol. Gonçalo, que é doente por bola, aindatem uma coleção enorme de t-shirts emoldu-radas, que ficaram em casa do pai. Da mes-ma forma, ele, que foi atleta de alta competi-ção, teve de arrumar dentro de um armáriocom vitrina as inúmeras taças que ganhou...

“O que me custa estas taças não estarem cáfora em estantes”, confessa.

De resto, as cedências surgiram natural-mente. Ela, que adora sair à noite, sai cadavez menos, porque ele está sempre cansado— mas não se importa, porque prefere ficarcom ele. E ele, que é “doente pelo Benfica” eadora fazer surf, cada vez mais abdica de iraos jogos para estar com a mulher — porquequer aproveitar o tempo que têm juntos.

Uma união madura. Rosarinho e Tristão sãoa prova de que o amor pode sorrir em qual-quer idade. Casados há um ano e três meses— ela com 61 anos e ele com 72 —, dizem-serendidos à vida em comum. “Para mim, amaior surpresa foi perceber quão gratifican-te pode ser viver com uma pessoa e fazer ascoisas acompanhada”, diz ela, que no seu pri-meiro casamento, de 27 anos, se cansou deouvir a frase “Não somos siameses. Vai tu,que eu vou fazer o que gosto.” “Nunca fui tãofeliz como aos 60”, garante Rosarinho. “Fuiavó e casei.”

Maria do Rosário Ferreira tem 61 anos, édivorciada há oito e tem três filhos. Tristãoda Cunha Carvalhais tem 72 anos, é viúvo hácinco anos e tem dois filhos. Casaram emmaio de 2009, depois de um namoro de trêsanos e “picos”. A forma como se conheceramtem algo de mágico. Viram-se pela primeira

vez numa Missa do Galo. Rosarinho já estavadivorciada e regressara à igreja, da qual esti-vera arredada uma temporada. “Nesse Na-tal, fiquei atrás de um homem cujo aspetome agradou. A cabeça, os caracóis... Durantenove meses, pensei como iria abordar aquelapessoa.” Continuou a ir à missa, àquela igre-ja de São Domingos de Benfica, e um dia se-guiu-o. “Ele ia numa direção diferente, en-trou num café, eu entrei também e disse-lhe:‘Venho tomar café consigo.’ Ele concordou.”

No domingo seguinte, Rosarinho voltou àmissa, perguntando-se se acabariam a tomarcafé de novo. Domingo após domingo, foramtomando café após café — e descobrindo-semutuamente. “Foi amor à primeira vista”,diz ele, embevecido, quando ela acaba a histó-ria. Tristão gosta de dizer que foi “a mãozi-nha de Deus” que os juntou. Pareciam adoles-centes no início, contam. Ambos são oriun-dos de famílias muito católicas e conservado-ras, por isso o casamento era a única coisaque fazia sentido. Até porque Rosarinho que-ria “o mesmo estatuto” que as irmãs e cunha-das do marido, conta ele.

Depois de casados, vieram viver para casadela, que já estava montada. Ela cedeu-lhe“um terço do roupeiro”, dos dois que tem. Arestante roupa dele ficou em casa da filha, dooutro lado da Estrada de Benfica. É a partemais difícil da convivência a dois, consideraRosarinho, “ter de repartir com outra pessoao mesmo espaço — uma só televisão, uma úni-ca casa de banho...”

De resto, redescobriu o prazer de cozi-nhar, porque ele lhe faz “imensos elogios”. Ha-bituaram-se a preparar o pequeno-almoço umpara o outro, como mimo. E, “ao fim de seismeses, consegui finalmente que ele baixasse atampa da sanita”, diz ela. A ele, só o encanitaa quantidade de vezes que ela o manda lavaras mãos. De outro modo, a antiga bancária e ogestor de empresas, que já conheciam os próse os contras do casamento, anunciam-se feli-zes como tudo. E continuam a ir à missa. Paraagradecer? Todos os domingos. n

ROSARINHO E TRISTÃO,61 E 72 ANOS, ESTÃOAINDA A VIVERO ESTADO DE GRAÇAPÓS-CASAMENTO. “NUNCAFUI TÃO FELIZ COMO AOS60”, DIZ ELA. “CASEI E FUIAVÓ.” ELE NUNCA PENSOUSER FELIZ OUTRA VEZ

“Mais difícilé repartir umasó casa de ba-nho... ”, confessaRosarinho

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