eles não quiseram o hospital

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Eles não quiseram o Hospital Gláucia Franchini Revisão: Regiane Mateus e Bruna Moreno Orientação: Carlos Alberto Zanotti Puc-Campinas

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Este livro-reportagem foi feito como Projeto Experimental (TCC) da faculdade de Jornalismo da Puc-Campinas. O tema abrange os cuidadores de doentes terminais, que dispensam os cuidados dentro do ambiente domicilar e para isso, contam com o opoio de serviço do SUS. Entre os assuntos debatidos estão conceitos que envolvem os cuidados paliativos e a desospitalização, bem como humanização do cuidado e a qualidade de vida versus a quantidade do viver.

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Page 1: Eles não quiseram o hospital

Eles não quiseram o Hospital

Gláucia Franchini

Revisão:

Regiane Mateus e Bruna Moreno Orientação:

Carlos Alberto Zanotti

Puc-Campinas

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Índice

Sobre este livro..................................................08

Parte I – Conceitos.............................................19

O SAID.......................................................20

Cuidado Paliativo.........................................27

A Desospitalização.......................................32

Não tem mais histórias?...............................35

Parte II – Social e Físico.....................................38

“Tem que ter alguém para cuidar”................39

“Você fica sem chão”...................................50

“Como é essa vida”......................................62

Parte III – Psicológico e Espiritual.......................72

“Eu tenho o sangue frio”..............................73

“Não tem jeito de se adaptar a isso”.............82

“Não pode desanimar”.................................90

Foi bom vê-lo sorrir............................................96

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Gláucia Franchini

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À minha avó, por ter me ensinado o que é cuidar.

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Gláucia Franchini

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Sobre este livro

“O livro-reportagem, como produto da comunicação de massa, só

consegue atrair à medida que propõe ao leitor uma viagem aos valores, às realidades de outros seres e de outras circunstâncias, de

modo que, encontre, naqueles, traços que são universais à

humanidade como espécie.”

(Edvaldo Pereira Lima – “Páginas Ampliadas”)

Elaborado enquanto trabalho de conclusão de curso para a

Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas, este livro-reportagem

não se propõe a contar histórias com finais felizes. Ao contrário,

ele narra episódios de dores, tristezas e perdas. Menos em função de

o tema agradar à autora ou aos potenciais leitores; e mais pela simples

razão de que nenhuma existência é coroada de felicidade plena. E é

para amparar nos momentos de infelicidade que este trabalho se

coloca para partilhar experiências vividas por pessoas que se

dispuseram a cuidar de avós, pais, mães, filhos, tios ou mesmo amigos

aos quais a medicina costuma se referir como “pacientes terminais”.

De um modo geral, os cuidadores destes pacientes são seus

parentes mais próximos que, de uma hora para outra, se veem na

contingência de assumir funções de auxiliares de enfermagem em

suas próprias residências. Em Campinas, eles são amparados por

visitas diárias de um órgão do sistema público de saúde. Os pa-

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cientes, por sua vez, encontram-se desospitalizados por razões que

são tão distintas quanto a falta de leitos, o receio de infecção hos-

pitalar ou mesmo o desejo de terminar os dias em casa, ao lado de

parentes, amigos ou vizinhos. Essa convivência, contudo, não

ocorre sem traumas e danos que se estendem da condição física às

dimensões psicológica e, para os mais crédulos, espiritual. Con-

viver com o lamento, a iminência da morte e a dor de um ente

querido contida somente à custa de medicamentos com tarja preta

é uma experiência que, uma vez socializada, tende a funcionar

como um instrumento a reduzir o peso de uma responsabilidade

tão profundamente humana como esta vivida pelos cuidadores.

O tema “pacientes terminais e sua decorrência” – os cuida-

dos paliativos– não chega a ser uma novidade em termos de pro-

dução editorial. Em livrarias ou sítios de internet, são facilmente

encontradas publicações de cunho científico, voltadas principal-

mente a médicos e pesquisadores, a respeito do assunto, bem co-

mo obras de autoajuda que se propõem a oferecer um ombro ami-

go aos que passam pela etapa da perda. De um modo geral, são

produções de especialistas na área médica ou de espiritualistas

dedicados aos aspectos transcendentais da vida. Até o momento, o

jornalismo – o campo que oferece o método de abordagem aqui

empregado– ainda não havia se apresentado para contribuir com

sua parcela de responsabilidade em tema de tamanha relevância.

Como bem nos lembra o pesquisador Eduardo Meditsch1, o

jornalismo é também uma forma de conhecimento, tão importante

e válido quanto aquele produzido pelas chamadas ciências naturais,

1 MEDISTSCH, Eduardo. “O Jornalismo é uma forma de conhecimento?” Santa

Catarina. Universidade Federal de Santa Catarina. Setembro de 1997.

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Gláucia Franchini

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das quais retiramos as leis que governam a física, a química, as

engenharias, a medicina...

E que papel se reservaria ao jornalismo na abordagem deste

tema? A nosso ver, aproximando-se dos cuidadores, junto aos

quais se deveria recolher toda experiência adquirida no trato de pa-

rentes em estágio terminal de vida para, de forma ética e conse-

quente, repassar à sociedade o aprendizado que se obtém de uma

experiência tão dilacerante.

Uma vez formulado o tema de pauta, a etapa seguinte foi

definir que o suporte livro seria o mais adequado para socializar o

aprendizado construído pelos cuidadores. Afinal, como bem apon-

ta o estudioso Felipe Pena2, as páginas de jornal ou revistas são

muitas vezes insuficientes para conter determinados temas e dar-

lhes amplitude contextual necessária. Por isso, o formato de um

livro-reportagem se apresentou como o suporte mais apropriado

aos objetivos aqui propostos.

Além de atender aos pressupostos de universalidade, um dos

eixos do interesse jornalístico, este trabalho ancora-se ainda nas

proposituras do pesquisador Edvaldo Pereira Lima3, estudioso que

caracteriza as produções jornalísticas como aquelas em que há a

apresentação dos assuntos a partir de visões conflitantes, como a

de cuidar em casa versus a da hospitalização do paciente. Neste

sentido, o esforço na execução do livro não se deteve apenas à

elaboração da pauta e produção, mas também à escolha de uma me-

todologia para que os casos revelados nas narrativas fossem passíveis

de produzir ressonância junto a diversas camadas de leitores.

2 PENA, Felipe. “O Jornalismo Literário como Gênero e Conceito.” Portal de Livre Acesso à Produção em Ciência de Comunicação, Intercom, 2006. 3 LIMA, Edvaldo Pereira. “Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura.” São Paulo: Editora Manole, 2009.

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Desta forma, o alicerce é a pesquisa social, através do méto-

do qualitativo que propõe o aprofundamento no assunto através

de sujeitos típicos daquele universo, optando-se por familiares que

representassem grupos da sociedade. Para tanto, foi necessário que

os casos fossem distintos entre si no que diz respeito aos aspectos

econômicos e vínculos de parentesco entre o familiar e o doente,

buscando-se uma abordagem o mais universalizante possível.

Embora a amostragem reunida nesta publicação possa ser

considerada pequena, através dela é possível retratar situações va-

riadas. O primeiro caso narrado é o de Juliana, que se despede da

mãe em uma casa de periferia onde sequer existem ruas asfaltadas.

Na sequência, é a situação de dona Aparecida que é contada nas

páginas deste livro; aqui, o diferencial fica por conta de a cui-

dadora se tratar de uma mãe que se vê compelida a não só cuidar

da filha, como também manter arrumados os oito cômodos da

casa de aparência antiga num bairro de classe média. Por fim, é

apresentada a condição da familiar Nina, que tenta convencer o pai

de que ele pode vencer a metástase, e talvez deixar o andar de bai-

xo do sobrado e subir as escadas rumo ao quarto.

A partir do método de amostragem por conveniência4 dos

casos, o trabalho de campo permitiu a vivência nas realidades que

se julgou adequadas aos objetivos do livro. Através da técnica de

imersão, proposta nas chamadas pesquisas qualitativas, se chegou

ao que se pretendia: uma abordagem mais aprofundada que a per-

mitida no jornalismo diário, possibilitando inserir a temática em

4 Este método de seleção é muito semelhante ao praticado na pesquisa jornalística, na qual o repórter escolhe quais fontes deseja entrevistar em seu trabalho de campo, admitindo que, de alguma forma, elas representem o universo pretendido. Para aprofundamentos, sugerimos GIL, Antonio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 1999.

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um amplo contexto. Esta estratégia permite o estabelecimento de

uma relação mais duradoura entre fonte e entrevistado, pois envol-

ve discussões em várias esferas, como as áreas médicas, sociais,

pessoais, éticas e jurídicas.

Em relação à sua temporalidade, o suporte livro-reportagem

se sustenta no que pondera Lima, por não tratar necessariamente

de um fato momentâneo, mas também abranger os assuntos que

permeiam como tendências na atualidade: cuidado paliativo e

“desospitalização”5. O primeiro é voltado aos pacientes que não

respondem mais às intervenções clínicas, tendo o objetivo de ame-

nizar a dor do doente e assisti-lo em suas necessidades básicas, as-

sim como à sua família.

A outra característica que justifica a existência de uma re-

portagem em livro visa remeter o leitor aos antecedentes do tema

que se pretende mostrar. No caso deste, há de se considerar os as-

pectos históricos já que, embora no mundo contemporâneo haja

uma tendência ao cuidado no domicílio, o conceito de “desos-

pitalização” está inserido no passado. Foi com a partir Reforma

Psiquiátrica que ele se popularizou. Todavia, antes mesmo desta

iniciativa que recentemente se tornou política nacional para casos

de psiquiatria, era costume o ritual de transição vida-morte ser fei-

to no ambiente domiciliar. Os hospitais, em um determinado pe-

ríodo da história, sequer serviam para um tratamento intensivo de

reversão de quadros clínicos graves, estando muito mais ligados a

questões de cunho religioso.

5 O tema também é tratado em obras como: “Por um fio” (Drauzio Varella); “A Culpa é das Estrelas” (John Green) e “O incrível dom de Oscar” (David Dosa).

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A discussão em torno da “desinstitucionalização” do aten-

dimento é complexa, não se restringindo apenas à decisão de levar

o doente para terminar seu ciclo em casa. No cenário atual, há de

se considerar os aspectos relacionados à bioética, que vêm com

novas resoluções que tendem para um viés humanizado do cuidar.

No dia 31 de agosto de 2012, por exemplo, o Conselho Federal de

Medicina estabeleceu que os pacientes com doenças em estágio

terminal podem decidir se vão querer ser submetidos ou não a tra-

tamentos que prolonguem suas vidas6. Neste cenário, o estar pró-

ximo da família surge como uma vertente positiva para uma quali-

dade de vida melhor na hora da partida.

Por sua vez, o familiar que perde o ente querido passa pelo

sofrimento, que é carregado de questões antropológicas, culturais e

espirituais. Na Antropologia, a autora Raquel Aisengart Menezes7

discute as diferentes formas com que o fim da vida foi tratado ao logo

dos séculos – ora ritualizada, ora tratado com aversão. A antropóloga

apresenta ainda o conceito da “morte moderna”, através do qual

revela o lado paliativo do cuidar, que estaria ligado à “boa morte”.

No olhar espiritual, o teólogo José Trasferetti8 estabelece em

um de seus trabalhos uma discussão que envolve não só as cren-

ças, mas também as fases pelas quais as famílias passam, quando

há uma perda, diferenciando os tipos de dores e suas intensidades.

Para fazê-lo, o estudioso leva em consideração a idade da pessoa

que morreu, o grau de parentesco com o cuidador e a forma pela

6 Estas orientações estão contidas no documento do próprio Conselho de Federal de Medicina, na resolução 1995/2012. 7 MENEZES, Raquel Aisengart. “Em busca da boa morte – Antropologia dos Cuidados

Paliativos.” Rio de Janeiro, Garamond. 8 TRASFERETTI, José. “A morte e o morrer: Desafio para a Teologia Moral no contexto atual.” Goiânia. Fragmentos de Cultura.

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qual a morte se deu: acidente, violência ou doença. No caso das

enfermidades graves, Trasferetti aponta o momento do diagnós-

tico como o mais difícil para a família, com graves conseqüências

psicológicas aos cuidadores.

O abalo emocional do pós-diagnóstico de uma doença que

avança para o estágio terminal foi também objeto de estudo da

médica sueca Elisabeth Kubler9, no livro “Sobre a Morte e Morrer”.

Através desta obra, as reações dos familiares e dos pacientes perante

as fases da doença foram monitoradas e conceituadas, a fim de se

compreender melhor o impacto de se estar frente ao irreversível.

Em relação à necessidade de se debater o tema, por mais

desconfortável que seja, cabe ponderar que a expectativa de vida

no Brasil vem aumentando nos últimos anos, o que surge como a-

lerta, à medida que, com passar dos anos, a propensão para do-

enças também aumenta. Neste cenário, os avanços da medicina

aparecem como grandes responsáveis por as pessoas estarem

vivendo mais, graças aos medicamentos e às tecnologias que pro-

longam a existência, como no caso das utilizadas em próteses, res-

piradouros e UTIs. O que se coloca em questão, no entanto, são

pontos divergentes: a quantidade do viver versus a qualidade da vi-

da que ainda se tem pela frente.

Com os casos retratados neste livro, o intuito é oferecer aos

leitores informações sobre o cuidado paliativo e domiciliar, através

dos aspectos humanos e salutares deste tipo de atendimento. No

emtanto, pensando na atividade jornalística – sempre buscar o ou-

tro lado para oferecer ao leitor o maior número possível de infor-

mações – também houve a preocupação de se apresentar os argu-

9 KLUBER, Elisabeth.

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Eles não quiseram o hospital

[ 15 ]

mentos contrários a esta opção. Desta forma, deseja-se que os in-

teressados na temática consigam desenvolver um olhar crítico em

relação aos conceitos; e que, caso se deparem, com uma situação

semelhante aos das famílias aqui apresentadas, possam optar ou

não, com mais convicção, pelo cuidado em casa.

Apesar da atenção aos argumentos favoráveis à hospita-

lização, o que se percebeu nas histórias foi que o ambiente hos-

pitalar é reprovado pelas famílias. De forma unânime, elas recla-

mam da falta de flexibilidade dos horários para visitações no ambi-

ente hospitalar, das acomodações na área de internação, dos gastos

com transporte para ir até hospital e até mesmo da falta de sen-

sibilidade de alguns profissionais da saúde. Ao buscar inces-

santemente a cura, corre-se o risco de desumanizar o cuidado, o-

lhando-se apenas para a doença e se esquecendo do doente e de

quem sofre junto com ele. Em hospitais e faculdades de medicina,

a cultura de que perder um paciente é uma derrota ainda prevalece.

Para os profissionais da área médica, o livro tem por

objetivo mostrar a importância de se considerar não só o doente,

mas também a família na hora de uma abordagem. Através dos ar-

gumentos apresentados neste trabalho, espera-se que os profissio-

nais se conscientizem de que, em alguns casos, apenas deixar paci-

ente sem dor e preparar a família para o inevitável podem ser os

melhores procedimentos a serem feitos.

Para chegar às famílias apresentadas neste livro-reportagem,

foi necessário subir na kombi do Serviço de Atendimento e Inter-

nação Domiciliar (SAID), da Prefeitura de Campinas, junto aos

profissionais da equipe multidisciplinar.

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O acompanhamento foi autorizado pela Secretaria de Saúde

do Município, tendo o consentimento da coordenação do serviço e

a posterior autorização das famílias.

Apesar do apoio destes servidores da Prefeitura de Campi-

nas, o serviço municipal de atendimento domiciliar é mostrado da

forma como ele foi visto e avaliado pelos familiares que têm este

apoio. O que é bom dentro SAID assim é narrado e, no caso de

impasses, estes também são mostrados. Embora o livro não tenha

o foco no serviço, as situações apresentadas estão inseridas neste

cuidado domiciliar, que por isso, não poderia ser ignorando. A ressalva

é válida para demarcar o compromisso jornalístico com a isenção.

Também se faz importante esclarecer a questão ética que Le-

vou a preservar os envolvidos nas situações aqui narradas. Apesar

de os familiares terem autorizado a publicação do que foi conver-

sado e visto dentro das residências, por uma escolha pessoal op-

tou-se por manter o sigilo em relação aos nomes completos dos

doentes e dos cuidadores, apresentando-se apenas o primeiro no-

me de cada um deles. A escolha se deu por se considerar o fato de

que as famílias, no momento da abordagem, estavam em um mo-

mento de vulnerabilidade, com preocupações mais prementes do

que avaliar as consequências de expor a própria privacidade em

uma obra de circulação pública. A própria atividade de fazer jorna-

lismo prescreve a possibilidade do sigilo das fontes, e no aspecto

ético da área médica a não revelação da identidade dos pacientes e

seus familiares é um dever.

Feitas as ressalvas, além de pretender mostrar as experiên-

cias dos cuidadores, a publicação tem objetivos outros no âmbito

institucional. Pretende-se com este livro levar ao debate público te-

mas como a conveniência da “desospitalização” em casos de doen-

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[ 17 ]

tes em estágio terminal, levantando, por exemplo, a relação dos

custos de uma internação e a economia ao se investir em um

serviço paliativo doméstico.

Sendo isso alcançado, pretende-se ainda que legisladores, au-

toridades públicas e representantes de ONGs da área de saúde se

sensibilizem e percebam a necessidade de se pensar em atividades

voltadas para o cuidado paliativo e o atendimento domiciliar, ser-

vindo inclusive, como incentivo para que atividades deste fim pos-

sam ser regulamentadas onde houver tal necessidade.

O livro não tem a pretensão de ser um guia, mas, aos leitores

que estejam cuidando de algum doente, espera-se que sirva para

dar um suporte para enfrentarem esta situação tão difícil, todavia

inevitável. Aos que estão deixando de viver, deseja-se que, ao le-

rem o livro, sejam gratos por terem recebido cuidado por parte de

seu parente ou perdoem os dias que não foram tão confortáveis.

Aos que o lerem apenas por curiosidade, espera-se que, mais que

saciá-la, o trabalho sirva de incentivo para buscar mais informa-

ções sobre os assuntos abordados. Aos colegas jornalistas, talvez

os casos aqui narrados sirvam para elucidar a importância de se ver

as notícias através das pessoas envolvidas nelas.

A produção jornalística aqui desenvolvida teve suas limita-

ções, como não poderia deixar de ser diante de uma realidade tão

complexa. O tempo que se passou com as famílias foi de aproxi-

madamente seis horas em cada residência, conversando-se princi-

palmente com o cuidador, mas também através de diálogos com os

profissionais da saúde, os próprios doentes e outros parentes. Sobre a

parte teórica e conceitual, as fontes ouvidas foram especialistas nos

assuntos, com o suporte de obras, artigos e trabalhos escritos.

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Gláucia Franchini

[18]

Através desta pesquisa de campo, das entrevistas e do supor-

te bibliográfico estamos convictos da contribuição deste livro para

que outras pessoas possam ter acesso a serviços como o SAID,

permitindo que os últimos dias de suas vidas sejam o menos dolo-

roso possível, com dignidade e ao lado dos quem amam. Quem tem o

poder de criar políticas públicas neste sentido, que faça a sua parte.

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Parte I

Conceitos

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O SAID

“É possível conseguir bons ou maus cuidados em qualquer lugar. O

que faz a diferença é o envolvimento da família.”

(David Dosa).

- A kombi já vem te buscar.

- Tudo bem, eu espero... – Kombi!

É assim, de Kombi, que os profissionais do Serviço de Aten-

dimento e Internação Domiciliar chegam às residências de famílias

que precisam de ajuda para cuidar de pacientes que aguardam o

fim de seus dias em residências onde também moram seus paren-

tes mais próximos. Em setembro de 2012, na unidade Sul do servi-

ço, ao menos 90 necessitavam deste auxílio.

Para chegar ao SAID, sigla pela qual o serviço é conhecido,

o ponto de referência é o Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, na

Avenida Prefeito Faria Lima, em Campinas. Seguindo duas entra-

das acima à do acesso ao Pronto-Socorro público, chega-se ao vi-

gilante que, de dentro da guarita, pede a identificação do visitante.

- Preciso ir ao SAID.

- Aqui não tem isso não... Se bem que tem o SAD. Siga por ali.

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Indicado o local e liberado o acesso, mais à frente uma placa

com a seta apontada para a direita sinaliza que naquele rumo fica o

SAD. A confusão de siglas se explica pelo fato de que, em 1993,

quando o serviço começou a funcionar, levava apenas o nome

“Atendimento Domiciliar”. Só depois se acrescentou a letra “i”, de

“Internação”, já que, passados alguns anos, os atendimentos em

casa começaram a suprir também os procedimentos que trans-

cendem à mera visita médica. A desatualização da placa é justifi-

cada pela idade que a tabuleta aparenta ter: descascada, desbotada,

mas ainda legível. O segurança também já não é tão jovem.

Passada a cancela da guarda, é só virar à direita e cruzar o

portãozinho que dá acesso à rua onde os médicos e profissionais

de saúde estacionam seus carros. É nessa rua íngreme que, lá em

cima, antes da escada de corrimão amarelo, fica a sede do serviço

de saúde domiciliar. Do lado esquerdo, um portão de ferro, pinta-

do de cinza e já com ferrugem, fica constantemente aberto. Do

lado de dentro fica o lugar das kombis: um corredor comprido o

suficiente para acomodar enfileirados os três veículos que da frota. Pela

garagem, a primeira porta à esquerda é a entrada do SAID, ex-SAD.

As salas que compõem o edifício térreo são organizadas com

divisórias, onde mesas de madeira bem tradicionais e cadeiras

pretas, simples e básicas, lembram um antigo laboratório de infor-

mática, em função da presença de computadores amarelados e

monitores produzidos antes que a tecnologia LCD dominasse o

mercado. O mais espaçoso dos ambientes tem uma mesa de reu-

nião, um televisor e uma mesa menor, redonda, na qual várias bol-

sas se acomodam. Cadeiras espalhadas, um filtro com galão de

água pequeno, poucos copos plásticos soltos sobre o galão e uma

lousa grande, com muito pó de giz, completam a decoração. Em

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Gláucia Franchini

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outra sala, que também tem lousa, o giz foi usado para escrever

“Internações, Alta, Óbito e Materiais”.

Além dos móveis típicos de escritório, duas outras salas re-

servam espaço para pastas, prontuários, medicamentos, maletas de

médico, fraldas descartáveis e alimentos – estes últimos des-

tinados às famílias para as quais o auxílio médico é insuficiente

para aplacar o volume de dificuldades que passaram a ter desde

que resolveram cuidar de seus próprios enfermos. Bem próximo a

outro filtro d’água, a cor verde da folhagem de um vaso no chão

ajuda a quebrar a monotonia do tom pastel que reveste aquele

prédio. Próxima a ela, uma paisagem pintada num quadro vertical

leva ao ambiente um pouco de azul, vermelho e amarelo. Pela

manhã, a agitação dos profissionais que chegam para trabalhar às 8

horas, também ajuda a quebrar o visual monótono. São dois ba-

nheiros bem limpos – um para os homens e outro para as mulhe-

res – e uma cozinha confortável.

A simplicidade do ambiente não compromete o serviço, que

na verdade nem é realizado naquele local. O objetivo dos profissi-

onais é cuidar de pacientes sem possibilidades de cura, que se

encontram acamados em suas residências. A eles, restam os cuida-

dos paliativos como último recurso ao alcance da medicina. A

missão da equipe é amenizar a dor do enfermo em fase terminal, dar-

lhe o mínimo de qualidade de vida e, olhar também para quem cuida

do doente – o familiar/cuidador – que se vê na contingência de

acompanhar, em casa, os últimos dias de vida de um parente próximo.

Quando o problema do doente é a dor que se intensifica, a

falta de ar que preocupa ou a dificuldade ao fazer as necessidades

básicas – ingerir, e sim, expelir – um dos dois clínicos gerais do

serviço vai até a casa avaliar o paciente e tranquilizar quem o a-

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[ 23 ]

companha. Os mais velhos contam com um geriatra e, no caso das

crianças, a assistência também é especializada, com o auxílio de um

profissional da pediatria.

Nas visitas de rotina, quando o quadro do paciente não se al-

tera, o acompanhamento é feito por um dos três enfermeiros. Se

for só para levar um remédio, fazer curativo ou aplicar soro, um

dos oito técnicos de enfermagem pode atender.

Toda assistência destes vários profissionais é feita em volta da

cama do doente. O enfermo, sempre deitado, sofre com escoriações e

os movimentos, já comprometidos, em alguns casos se agravam, com

os nervos se atrofiando. Neste estágio, dois fisioterapeutas do SAID

levam exercícios para serem feitos pelo doente acamado.

Ainda na equipe de jaleco branco, que tem bordados o

símbolo da prefeitura na manga esquerda e o nome e a função do

profissional no bolso da frente ao lado direito, uma nutricionista

orienta os familiares que cuidam, na preparação de uma alimentação

mais adequada e barata, principalmente para as famílias de baixa renda.

Quando se usa sonda para comer, o alimento pronto custa cerca de R$

15, o litro. A profissional ensina a fazer com o que se tem na geladeira.

Se o problema atinge a fala do doente, o fonoaudiólogo pas-

sa a fazer avaliações regulares. O “TO” que é desconhecido por

muitos, se apresenta como terapeuta ocupacional, propondo o re-

laxamento durante as visitas. Cuida-se também do sorriso, pois a

iminência da morte, ao contrário, não o retira da face de quem a-

doece tampouco de quem vê adoecer. A experiência e o contato

com essas pessoas provam que o dentista do serviço domiciliar

ainda tem utilidade.

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Nas casas, estes profissionais fazem avaliações médicas,

aplicação de medicamentos, realização de exames e, se precisar, até

o cuidador pode esticar o braço e pedir para que lhe meçam a

pressão ou solicitar um comprimido para alguma dorzinha chata

que vem lhe incomodando nos últimos dias. A equipe está ali para

atender, cuidar ou simplesmente conversar e encorajar a família.

No aspecto psicológico, inclusive, tanto o paciente como o fami-

liar podem contar com alunos de faculdades de psicologia que es-

tagiam no local e abrem sessões de terapia. Há ainda os médicos

residentes que buscam experiência e acabam se agregando à equipe.

Para os cuidadores, além da terapia e das visitas domiciliares,

nas últimas terças-feiras de cada mês, um encontro, com duração

de duas horas, abre espaço para conversarem com os profissionais

e trocarem experiências. A reunião é marcada sempre às 14h, na

sala maior do prédio do SAID.

Mais que um encontro de familiares de pacientes terminais,

o bate-papo é temático e o cuidador é, neste momento, o protago-

nista da história. No arquivo dos encontros, um caderno de ca-pa

dura e azul marinho guarda, em letras manuscritas, o que foi con-

versado em cada encontro, quais foram os palestrantes que parti-

ciparam e quantos cuidadores estiveram presentes. Num dia mais

cheio, a lista de chamada confirmou vinte nomes. A média, no

entanto, foi de doze familiares por encontro. Houve o dia em que

falaram da morte e do preparo psicológico; num outro, a sexua-

lidade foi o tema em questão. Os direitos jurídicos do doente e do

cuidador também já estiveram em pauta, bem como técnicas para

dar banho e trocar o doente acamado, de forma a ser mais su-til o

impacto físico sob quem cuida.

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Eles não quiseram o hospital

[ 25 ]

***

-A kombi chegou. Você pode ir com eles, orienta a coor-

denadora do serviço.

Lá de dentro do veículo, o motorista avisa:

-Cuidado pra não bater a cabeça na hora de entrar.

Tarde demais.

8h17 a Kombi sai. Sempre uns minutos de atraso.

É difícil ficar confortável em uma Kombi. Embora novas,

de cor branca e com estofados impecáveis, não são tão silenciosas

como os veículos de hoje em dia e nem a porta de trás é de fácil

manuseio, devido ao peso e ao macete que é preciso ter para abrir.

Nesta parte traseira, são três fileiras de bancos e logo atrás da

última ficam as maletas e uns pacotes de fralda. Na cabine dian-

teira, o motorista e um profissional da saúde seguem a viagem

menos desconfortáveis.

No veículo multiuso tem rádio, mas ouvir o que está tocan-

do é difícil: a kombi chacoalha e, conforme balança, alguma coisa

deve bater em outra e o que se ouve é um toc-toc constante. De

fábrica, o motor vem com um barulhinho típico e, se não bastasse, os

dias de calor ficam ainda mais quentes dentro do veículo, o que obriga

a abertura das janelas, sendo a consequência, mais barulho - o do

vento. Neste ritmo orquestrado, a Kombi segue e, quando para em

frente à residência do Jardim Nova Europa que vai receber a visita dos

profissionais do serviço, a chave é desligada e o silêncio alivia.

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Gláucia Franchini

[26]

O motorista fica na kombi, os profissionais descem, um de-

les bate palma e não demora para Dona Aparecida sair, sorrir e si-

nalizar com a mão para que esperem. Enquanto se espera, ela

mantém o sorriso sem adjetivos, que apenas revela que esta cuida-

dora tenta ser forte, ou ao menos parecer assim. Talvez ela seja.

É o filho alcoólatra quem traz a chave para ela. A mãe desce

pela garagem sem carro, da casa antiga, mas confortável e abre o

portão. Dona Aparecida é a cuidadora da filha Marisa, que teve

câncer de mama e, depois do tratamento clínico, foi encaminhada

para receber o atendimento paliativo em casa, já com metástases.

Marisa também é mãe, da Luana que tem vinte anos. São três gera-

ções de mulheres: a do sorriso sem adjetivos, da filha que sorri

cansada e da neta que resisti sorrir.

No estágio de Marisa, a presença dos profissionais é impor-

tante mesmo que só pela conversa que distrai e a segurança que

reconforta dona Aparecida:

-Eu acho bom né, bem... Pra mim é bom.

A fala simples na voz mansa da mulher que sorri e não se

adjetiva, resume o que ela sente ao receber o cuidado de profissionais

em casa. Cozinheira, empregada e babá durante um bom tempo de

sua vida, dona Aparecida mantém a esperança com a casa cheia de

imagens de santos e com um relógio parado sobre o criado mudo.

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Eles não quiseram o hospital

[ 27 ]

Cuidado Paliativo

“Busca-se, ainda, assegurar a dignidade do homem no momento de

sua morte, evitando serem-lhe ministrado tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, que possam

prolongar artificialmente a vida, sem afastar-lhe

de sofrimento intransponível e extensivo aos que, com ele, mantém vínculos afetivos.”

(Osvaldo Henrique Duek Marques,

Procurador de Justiça).

Se em Campinas o cuidar de doentes terminais dentro de

casa só chegou ao serviço público de saúde em 1993, foi apenas

três anos que antes a Organização Mundial da Saúde (OMS) com-

ceituou o tipo de atendimento médico ao qual se dedicam as

equipes do SAID: o cuidado paliativo. Quando ele é desencadeado

é porque, pelo paciente, a medicina já não tem muito o que fazer.

-Eu falo para meu marido: “Valmir, esse pessoal que apa-

receu aqui são anjos que Deus mandou pra mim”.

É Juliana quem chama os profissionais do serviço de “anjos”, já

que para ela, eles representam amparo e ainda proporcionam maior

conforto para a mãe que adoeceu, sempre levando o remédio que falta

ou a fralda descartável que a família não tem condição de comprar.

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Gláucia Franchini

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Também com essa pretensão de amparar e dar conforto, an-

tes mesmo de Cristo, na Índia, o imperador Ashoka resolveu se

dedicar ao bem-estar dos enfermos. Com ele, serviços de saúde fo-

ram instituídos e a hora da partida também foi considerada. A fim

de oferecer um lugar digno e confortável para a transcendência fí-

sica, o Império criou os “muktibhavanas”, que eram locais onde as

pessoas muito doentes poderiam aguardar o fim.

A enfermeira Fernanda é um dos anjos a quem se refere Ju-

liana. A profissional de enfermagem também optou por cuidar de

quem até então sequer conhecia, e de repete passou a ter tamanha

consideração. Na casa de Juliana, Fernanda vai há cerca de três

meses. Pouco tempo antes, a dona da residência, Oscarina,

recebeu o diagnóstico de que ela era uma paciente oncológica. De-

pois de um tratamento clínico sem sucesso, voltou pra casa.

- Do jeito que está, não dá, reclama Juliana.

A reclamação vem porque depois de ver a mãe em momen-

tos tão felizes como o da foto guardada na gaveta do quarto, a jovem

de 26 anos não se acostuma com a imagem de Oscarina na cama.

A desistência de lutar ou a aceitação do limite remete à fragi-

lidade de quem tentou trilhar o caminho de Santiago de Compos-

tela e não conseguiu completá-lo, entregando-se. Não se trata de

metáfora, mas sim da referência ao que os ocidentais fizeram. A i-

deia surgiu na Idade Média, com a criação das “casas de hóspe-

des”, já prevendo que muitos peregrinos não conseguiriam com-

pletar a trilha, com risco de adoecerem durante as viagens. Nestas

casas, eles podiam parar e morrer.

Nos anos de 1800, pelo menos três lugares para a morte sem

dor foram criados na Europa, sendo que um deles, idealizado por

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[ 29 ]

Jeanne Garnier, é ainda o maior espaço de todo continente euro-

peu criado para este fim.

-Eu não sei quem mandou ela para o serviço.

Esta dúvida vem da própria filha Juliana, para quem, in-

clusive, isso é o de menos.

***

-Você pode se assustar com o que eu vou falar.

O alerta é feito pelo estudante de medicina Rodrigo Serrano:

-Infelizmente, quando se chega ao tratamento paliativo é

porque houve falha da medicina, concorda?

A Juliana já nem se lembra por quantos médicos a mãe pas-

sou até receber o diagnóstico da doença. No estágio em que o cân-

cer foi descoberto, não dava mais tempo para a cura. Por isso, filha

concorda que os médicos erraram.

***

Como conceito, a quebra do tratamento exclusivamente para

a cura ganhou força no século XIX, com os “hóspices modernos”

que se caracterizaram por cuidar de forma humanizada. Nos anos

40, a ideia de humanização encontrada neles foi resgatada, sendo

que a disseminação do significado do cuidado de forma paliativa –

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Gláucia Franchini

[30]

humanizado e não clínico - é impulsionada a partir da fundação do

St. Chisthoper Hospice, espaço dedicado à “boa morte”.

Alguns hospitais no Brasil reservam alas para a despedida,

sendo o único cuidado dispensado, o que prevê a paliação: ame-

nizar a dor, propiciar conforto e considerar a família. O HC da

Unicamp, Hospital do Câncer de Barretos e Hospital do Servidor

Público Municipal de São Paulo têm enfermarias para o doente

ficar antes do fim.

Outros serviços fazem o cuidado no domicílio, como o

próprio SAID. Numa busca rápida pela Internet, é possível encon-

trar serviços similares, como o Home Care do Hospital Albert

Einstein e o Atendimento Domiciliar Unimed Campinas (ADUC)

que também oferecem o cuidado em casa. Nos Estados Unidos,

pelo menos cinco mil ambientes são voltados exclusivamente para

o cuidar de forma atenuante.

Além de tornar a dor física do paciente mais suportável, o

cuidado paliativo procura amenizar a dor emocional do cuidador,

que sabe que logo vai ficar sem o ente querido. A consequência de

saber que a pessoa com quem se convive – e se ama! - não tem

mais chance de vida é a premissa para várias reações nos famili-

ares, que vão desde o medo e desespero, até a sensação de impo-

tência perante a finitude da vida.

Prevendo tais ações reativas, a abrangência da família dentro

do cuidado paliativo se justifica, já que estar como “cuidador” po-

de ser uma função com consequências negativas para a qualidade

de vida deste familiar. Em um trabalho de análise qualitativa pu-

blicado na Revista de Ciência Médica de Campinas, Noeli Ferreira,

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[ 31 ]

Claudenice Souza e Zaiana Stuchi10 constataram que cuidar de alguém

muito doente no ambiente doméstico requer um equilíbrio constante

entre o peso da responsabilidade e a capacidade de superação. No

artigo intitulado “Cuidado Paliativo e Família” as autoras não

apresentam fórmulas de como lidar com a situação, mas alertam às

fragilidades dos cuidadores: “Se o cuidador terá ou não sucesso em

manter o melhor equilíbrio depende de vários fatores relacionados à

sua vulnerabilidade. A sobrecarga do cuidado restringe atividades, traz

preocupações, insegurança e isolamento, e coloca o cuidador diante da

morte e da falta de apoio emocional e prático. Esses fatores têm poten-

cial para aumentar o risco de cansaço e stress.”

-Eu falava para ela, mãe vai ao médico. Ela ia e não

descobriam nada, lembra-se Juliana.

Depois de nunca dar nada, o diagnóstico revelou que não ti-

nha mais tempo. Se no hospital não haveria meios de reverter o

quadro de Oscarina, a filha Juliana se conformou:

-Pelo menos, é bom em casa porque eu estou perto dela. E

também, talvez se ela estivesse num hospital, não estaria tão bem

cuidada. O hospital às vezes está lotado, sempre lotado.

10 FERREIRA, Noeli, et. al. “Cuidados Paliativos e Família.” Rev. Ciênc. Med., 2008.

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A Desospitalização

“Tudo mudou com os novos miraculosos avanços da

medicina. Os médicos prolongavam vidas com transplantes de coração e de rins e com poderosas drogas. Aparelhos modernos

ajudavam a diagnosticar mais cedo as doenças. Pacientes que seriam

considerados incuráveis um ano antes recebiam uma oportunidade de vida. Era emocionante. Ainda assim, existiam problemas. As pessoas

iludiam-se pensando que a medicina podia curar tudo. Surgiram questões éticas, morais, legais e financeiras que não haviam sido

previstas. Vi médicos tomando decisões em conjunto com companhias

de seguros, e não com outros médicos.”

(Elisabeth Kubler-Ross, “Roda da Vida”).

Sai de cena o hospital.

- A Maria José trabalha e foi ela foi a primeira a falar: “não vai

ter condições dele ficar aqui.” Ela foi a primeiríssima a dizer isso.

A fala é da Maria, que não é José, e gosta de ser chamada de

Nina. Quem não podia ficar lá era o senhor João, “juntado” com

Maria José. Depois da descoberta da neoplasia, a mulher do João

deixou claro que não cuidaria dele. Então, restou ao senhor, de 81

anos, a casa da filha, Nina.

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[ 33 ]

A primogênita assumiu o cuidado e abriu mão do espaço

central da sala de entrada de sua casa, na Vila Marieta. A cama hos-

pitalar do nostálgico pai fica de frente à porta principal da residên-

cia. Ele gosta de conversar e ser o centro das conversas, disputan-

do o lugar com a filha, que é tão simpática quanto o pai. João era

independente, mas depois dos problemas de saúde, apenas a filha

se dispôs ao cuidado:

-A gente fez isso por amor, única e exclusivamente. Per-

gunta se ele gostou de estar no hospital. Ele já me disse que não

volta nem morto pro hospital, justifica a Nina.

As primeiras experiências de “desospitalização” no Brasil

aconteceram dentro da Reforma Psiquiátrica, a partir da qual a rea-

bilitação do doente foi pensada através de meios que humanizem o

atendimento, começando um processo de migração, com serviços

extra-hospitalares e assistência interdisciplinar, bem como a inte-

gração com outros programas da área da saúde.

A assistência no domicílio surge então, como alternativa hu-

manizadora neste contexto, sendo que se passa a olhar não mais a

partir de princípios biomédicos, mas sob a ótica de pacientes que

merecem ser tratados como seres singulares, considerando os es-

paços que os circulam, bem como as vontades que lhe são natas.

Há quem realmente queira deixar vida, no ambiente em que viveu,

com as lembranças que lhe são boas, ao lado de quem vivenciou

com ele. Todavia, é ainda importante que o ambiente tenha condições

estruturais adequadas bem como uma assistência profissional.

Realizar a vontade de quem está enfermo, que na maioria

das vezes é a própria vontade de quem cuida, é uma decisão difícil,

já que significa também abrir mão de uma rotina, havendo a trans-

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formação do cotidiano da família, num processo que exige a adapta-

ção da casa, dos horários e mesmo das prioridades.

Além da questão humanizadora deste cuidado ao lado dos

familiares e sob o aspecto do doente e não da doença, o processo

de “desospitalização” também é pertinente pelo lado econômico,

por conta da redução de custos que isso pode ocasionar. As su-

cessivas internações hospitalares e a longa permanência nos hos-

pitais fazem com que o paciente se torne dispendioso para si, para

a unidade médica e/ou para o sistema de saúde, o que reflete nega-

tivamente na verba disponível na área. Uma diária em uma UTI

chega a custar para um plano de saúde cerca de R$ 25 mil.

A volta para a casa tem ainda como consequência, o aumento

no número de leitos disponíveis à sociedade, principalmente para os

casos em que há necessidade de cirurgias ou ainda quadros clínicos

agudos com possibilidade de reversão. Isto também impacta na

redução de custos dos hospitais, sem onerar tanto os cofres públicos,

permitindo ainda, no caso do SUS, o uso dos recursos para outras

atividades como o próprio atendimento em casa, aquisição de equi-

pamentos hospitalares e fornecimento de medicamentos.

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[ 35 ]

Não tem mais histórias?

"Enquanto o romancista tem que começar do

nada e empreender o terrível esforço de conceber um mundo, o escritor de não ficção recebe o dele já pronto."

(Janet Malcoln - “O jornalista e o assassino”).

Conhecidos os casos de Juliana e Oscariana, Aparecida e

Marida e Nina e João, o limite pessoal chegou na casa do Jardim

do Trevo, com placa de candidato a prefeito pregada no muro, sala

grande, com bonecas espalhadas sobre o sofá, e no primeiro quar-

to à direita, dona Severina. A constatação naquele lugar foi de que

o sofrimento era muito, tanto pra quem está doente, como para a-

quele que convive com a enfermidade.

Dentro da residência, houve o momento em que não deu

para ignorar o enfermo e olhar pro cuidador. O gravador não foi

ligado e nenhuma questão, levantada. Dona Severina, de 62 anos,

sentia dor e a expressava em gemidos altos. A falta de palavras da

familiar/cuidadora, a Rosa, perante a situação foi suficiente para a-

quietar qualquer pergunta sobre aquele caso.

Com os outros familiares, até então, o misto de recepti-

vidade, de choro e nostalgia permitiu um diálogo, triste e indelica-

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do, mas consciente do objetivo que aquela troca de experiência te-

ria perante os leitores e a sociedade.

-Ai, ai, ai!

-Onde dói? , pedia a fisioterapeuta.

-Ai, ai, ai, reclamava Severina.

Naquela casa, onde só se ouvia gritos e nada podia ser feito,

qualquer objeção seria um ato de insensibilidade.

***

Foram três famílias visitadas, numa amostragem científica

irrisória, todavia, exaustiva, física e emocionalmente. A pergunta

ingrata do jornalista naquela situação - “O que você está sentin-

do?” - fere o momento. A resposta seria óbvia: era a filha contra-

riando a lei natural da vida e deixando a mãe. O colo materno se

des-pedia na outra casa. Por fim, a filha que ficaria órfã de pai.

Com outras palavras, a pergunta foi feita. Com a voz mais

baixa, quase inaudível, que a mãe do sorriso sem adjetivos revelou

o resquício de esperança:

-Só Deus, né? Esperar... Esperar a vontade de Deus.

Juliana, filha de Oscarina, se mostrou cansada:

-Acho que é muito sofrimento, entende? Se não vai sarar,

melhor que Deus leve.

A primogênita do senhor João fazia a ressalva:

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-Deus sabe que o que eu não quero é ver ele sofrer.

Três casas, três doentes em estágio terminal, três cuidadoras

diferentes entre si: na faixa etária, no vínculo de parentesco, na classe

social, na religião e também nas reações. Estes casos serão narrados nas

próximas páginas, sendo as histórias contadas a partir dos aspectos que

o cuidado paliativo abrange: psicológico, social, físico e espiritual.

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Parte II

Físico e Social

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“Tem que ter alguém pra cuidar”

São Paulo, Campinas - Jardim do Lago. Acesso pela rodovia Santos Dumont.

O asfalto vai até bem próximo a rua da casa de Dona Oscarina. Na verdade, acaba três casas antes da dela. A kombi que já balança e faz barulho, ao pegar o caminho de terra exige que quem está dentro do veículo se segure com mais força, tamanho o impacto de uma rua sem pavimentação. O solo que dá acesso à-quela residência tem pedras de construção, buracos e lombadas naturais. A infra-estrutura – ou a falta dela – resume o local a uma fileira de casas a direita e na frente delas, o mato alto margeia um córrego, sobre o qual há uma pinguela.

Pouco antes da hora do almoço, nenhuma criança brincava na terra batida, todavia, a rua não desertava. Um adolescente de chinelo, camiseta preta desbotada e bermuda jeans caminhava por ali. Ele olhou para Kombi do SAID e seguiu indiferente. Também um carro Corcel estava parado. A enfermeira do serviço Fernanda logo explicou aquele ambiente:

-Aqui é bem diferente. Os moradores não têm muitas con-dições. Tem gente que mora nesse carro. Muito dos meninos que passam por aqui atrás de drogas.

A profissional tentava amenizar o impacto de estar em uma favela, antecipando o cenário que seria encontrado. A casa da Os-carina, mãe de Juliana, não tem número visível identificando-a, porém é fácil de encontrar. Na fachada tem o portão enferrujado

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do carro. Atrás dele, além do fusca azul, uma banca de alumínio permanece sem abrir. Sobre o carro dois tapetes pareciam procurar o sol para secar. No chão umas cadeiras de plásticos – uma até, virada de ponta cabeça -, latas de tinta sem o conteúdo e vasinhos de flores aparentando não serem regados há algum tempo. Apesar de toda carga visual daquela entrada, era o olfato que mais sentia: em frente ao veículo e em torno dele, muitas fezes de cachorro grande. Eram tantas, que o caminho do abrigo, para entrar na casa tinha que ser feito olhando para o chão.

Como não tinha campainha, o nome de Juliana foi chamado e a enfermeira Fernanda, na falta de resposta, bateu palmas para ser recebida. No portão ao lado do da garagem, um menino apa-receu. Este portãozinho dava acesso a um corredor, que por sua vez, era a entrada da casa de fundo. O garoto ameaçou abrir aquele pequeno portão, mas foi interrompido por Juliana, que carregando uma bebê no colo, fez a recepção no portão principal.

Passando entre o fusca e a barraca, chega-se a porta da sala da casa de tijolos semi-rebocados. Dentro, a parede é pintada na cor clara, com demão fina. O piso é escuro puxando o vermelho. Sobre ele, dois sofás: um à esquerda de quem entrava, outro já às costas de quem entra. De frente, um rack com algumas fotos, uns enfeites de flores artificiais e uma TV cinza 29 polegadas.

Juliana carregava a filha Júlia de três meses que logo quis mamar. Sentada, a filha de Oscarina amamentava. Moça bonita e jovem, de cabelo preso feito coque, camiseta rosa e calça de mo-leton vermelha, não usava maquiagem, sem brincos, de chinelos com meia, sem que estivesse frio.

Além da Júlia, a jovem de 28 anos, também é mãe de Adal-berto. O menino que veio no portão não é filho, mas ficou sob a responsabilidade de Juliana. Ezequiel é sobrinho, mas como a mãe

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dele foi embora e avó se adoentou, é a filha de Oscarina quem dá de comer e tenta educá-lo melhor do que foi.

-O Ezequiel dá um pouco de trabalho, porque ele sente sau-dade da mãe. Ela mimava demais ele e depois foi cuidado pela avó que também mimou muito, conta a jovem mulher.

Além das crianças, Juliana tem ainda que cuidar do irmão u-suário de drogas - de quem não quer falar -, do marido sensível perante as dificuldades da família e do padrasto calado e ausente durante dia.

-Tem que ter alguém forte. Tem que ter alguém para cuidar, diz a filha de Oscarina.

Esse alguém teve que ser Juliana, já que sua mãe enfraqueceu.

***

Foi Oscarina que demorou a ir ao médico. Quando foi, de-moraram para descobrir o que ela tinha. A aparente espinha próxi-ma ao maxilar era algo bem mais grave do que essas marcas da a-dolescência. Teve um médico que a encaminhou para um dentista, suspeitando ser problema daquele profissional, porém, não era. Do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, mandaram a senhora para o Complexo Hospitalar Ouro Verde, onde chegou a ser internada, mas nada foi descoberto. Então, foi encaminhada para o Hospital Celso Pierro da Puc-Campinas. Um especialista dizia que a respon-sabilidade era do outro, até que o médico “cabeça e pescoço” assu-miu o caso e resolveu investigar. Nesta altura, a “espinha” já tinha estado maior e estourado.

Juliana acompanhava a trajetória da mãe de longe, sabendo das novidades apenas por telefone. Oscarina naquela época ainda

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era forte, ativa e alegre, mas começava a se preocupar com sua própria saúde, ligando com frequência à filha para contar como estava.

-Minha mãe me falou que o caroço andava para cima e para baixo. Eu até brinquei porque ela estava fazendo outro tratamento, já que estava com sangue na urina. O médico fez um ultrassom e disse brincando que ela estava grávida. Então, eu também brinquei e disse “vai ver o bebê subiu pra cima”. Ela virou para mim e fa-lou assim “Juliana, para de besteira”.

Depois da realização de alguns exames, com os resultados veio o diagnóstico da doença: câncer. Era fevereiro de 2012.

-A gente achou que era um furúnculo. Era mais grave, já es-tava lá o tumor, lembra a filha.

Juliana após receber a notícia resolveu que o acompanha-mento do quadro clínico da mãe precisava ser mais próximo. Mo-rando em Pederneiras, cidade próxima à Bauru, ela voltou com o filho de dois anos e com o marido para Campinas.

- Sempre morei aqui no fundo, mas fui embora porque o meu marido arrumou um emprego lá. Como em Pederneiras tam-bém não estava muito bom e queria ficar com minha mãe, volta-mos, conta a cuidadora.

Juliana estava grávida de Júlia ao voltar para a casa de Osca-rina. Com a barriga já pesada, começou a acompanhar a mãe em todo o tratamento – o pouco que podia ser feito. Antes de estar no setor de oncologia, passavam juntas – e apenas elas –, boa parte dos dias no hospital, onde Oscarina recebia aplicações de morfina. Antes da radio e quimioterapia, Juliana levou a mãe para drenar o caroço, mas encontraram “só um sangramento”. Com o avanço da doença, logo os médicos desistiram de qualquer outro procedimento cirúrgico.

Os tratamentos para a senhora vítima do câncer passariam a ser apenas para atenuar a dor. A família, principalmente a filha,

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num primeiro momento se revoltou quando os médicos disseram que não tinha mais jeito. Sem conhecer o serviço voltado a palia-ção, Juliana não se conformava que “só aquilo” seria feito por sua mãe. Todavia, passada a fase de desconhecimento do tratamento, a cuidadora diz que lhe faz bem poder proporcionar aqueles “últi-mos cuidados”, amparados pela equipe especializada na paliação.

Dado o aumento da expectativa de vida nacional e, como consequência, a maior propensão a doenças como a de Oscarina, um documento elaborado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP)11 aponta algumas projeções relacionadas a este conceito. No que tange o cuidado, como o recebido na residência do Jardim do Lago, estima-se que seria necessária a instituição de um programa de saúde com capacidade de atender cerca de 180 mil pacientes por ano. O cenário atual brasileiro, ainda segundo o documento, está longe desta realidade. Isso acontece porque os sistemas de saúde para este fim não têm capacidade para suprir a demanda, além do que os serviços especializados no cuidado de alívio se restringem aos grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Fortaleza, Manaus e a própria cidade de Campi-nas. O município de Barretos também se destaca por conta do hospital especializado no tratamento do câncer.

O fato de Campinas estar entre essas regiões é algo positivo para a família de Oscarina. A opção de Juliana de deixar Pedernei-ras permitiu que a mãe recebesse o atendimento domiciliar. Em cidades menores, serviços como o SAID são mais incomuns. Para o médico urologista, Lísias Castilho12, só decisão de cuidar da mãe em casa já é algo que impacta positivamente na evolução do qua-dro clínico. Em seu livro “Doutor, é câncer?”, Castilho argumenta

11 O documento está disponível no site da Academia: www.paliativo.org.br. 12 Doutor, é câncer? Como enfrentar com conhecimento e esperança uma das doenças que mais afeta a população mundial. São Paulo: Hagnos, 2010.

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que, além da possibilidade da cura, a impossibilidade de estar sozi-nho pode confortar o doente. A publicação é distribuída gratuita-mente no consultório do médico, que também fica Campinas. Na obra há a discussão em torno da relação do profissional e das famílias, sendo que na parte dedicada ao pós-diagnóstico do câncer ele escreve: “A pessoa que está morrendo de câncer tem medo do abandono, sofre terríveis angústias e precisa de contatos fortes e próximos”.

Quando Juliana retornou à Campinas para morar na casa de fundo da de sua mãe, já nos primeiros dias, percebeu que Oscarina “não era mais a mesma”, não ficava mais “para cima e para baixo” como era de sua personalidade, abandonando o batom vermelho queimado e não abrindo mais a banca de metal lá de fora, na qual, vendia de tudo: salgadinho, coca, doce, cigarro. A mãe começava a ter preferência pela cama.

Aos poucos, a fadiga se tornou o principal sintoma de Os-carina, até que um dia ela se deitou e não mais conseguiu se Le-vantar sozinha, tornando-se uma paciente acamada. Situações se-melhantes a esta foram analisadas por pesquisadores responsáveis pelo documento da ANCP. Eles chegaram à conclusão de que esta entrega do doente é algo característico da doença terminal. A fa-diga é pontuada no estudo como um dos primeiros sintomas deste estágio, que se intensifica conforme o cansaço al-cança um nível extremo. É comum a tristeza acompanhar o ritmo da fadiga e atingir seu ápice.

Todavia, antes desta ida definitiva para cama, Oscarina, em-bora doente, ainda cozinhava e queria estar boa para ver o parto da neta Júlia, da mesma forma que assistiu o do neto Adalberto. Não conseguiu. As radioterapias começaram em maio, mas sucessivas hemorragias fizeram com que o tratamento fosse suspenso. Em menos de dois meses, a senhora de 58 anos estava com o diagnós-tico de “incurável”.

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-Ela estava aqui em casa e de repente dava a hemorragia e eu tinha que ir com ela para o hospital. Ela era internada num dia e saía no outro... Era sempre um atrás do outro e eu ia acompanhando ela.

Juliana não sabe precisar quantas vezes teve que levar a mãe ao pronto-socorro, mas se lembra que foi logo após o nascimento de Júlia, que a mãe voltou para ficar. Os médicos do hospital fize-ram uma carta encaminhando Oscarina para os cuidados do Servi-ço de Atendimento e Internação Domiciliar (SAID).

-Minha mãe estava tendo muitas hemorragias e eu estava quase para ter o bebê. Foi um momento muito difícil. Naquela ho-ra, eu acho que minha mãe deveria ter ficado no hospital, mas ago-ra, tem que cuidar aqui em casa mesmo.

A mãe deixou de ir ao hospital e Juliana tinha em casa uma recém nascida. A situação era tão atribulada, que o próprio nascimento de Júlia foi rápido – uma hora de trabalho de parto - sem comemorações e sem a presença da avó que tanto queria ver a neta nascer. Não esteve na sala de parto, porém ao menos, conse-guiu ajudar nos primeiros cuidados.

-Quando a Júlia nasceu, minha mãe ainda conseguia andar um pouco. Lembro um dia que a bebê estava com muita cólica. A minha mãe ouvia a Júlia chorar, por isso foi lá na cozinha, fez um chazinho e deu pra minha filha.

Ao lembrar a ajuda, a filha cuidadora abaixa o tom de voz, junto com a cabeça, olhando fixo para a Júlia sobre seu colo. A menina mama e depois que se sacia fica quietinha no colo da mãe, até voltar a sentir fome e procurar o outro seio. Juliana, visível-mente exausta faz o que pode. Já próximo ao horário do almoço, não há cheiro de comida naquela casa. Os meninos – filho e sobri-nho – logo vão para a escolinha, onde há a merenda. A mãe se ali-menta através da sonda.

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Embora Oscarina não tenha forças para engolir, Juliana já teve que se virar para preparar a alimentação daquela que tão bem sabia cozinhar. Porém, preparar a comida não é a especialidade da jovem. Quem a ajudou em várias ocasiões foi a vizinha da casa do lado esquerdo. Este auxílio chama atenção numa sociedade cada vez mais individualista. A jornalista da Revista Época, Eliane Brum, reuniu no livro “O Olho da Rua”13 algumas de suas grandes reportagens e em uma delas, a repórter constata uma peculiaridade do mundo real: “Numa cidade em que as pessoas temem se envol-ver com estranhos (e até com conhecidos), a periferia é um para-digma de solidariedade.”

O que a Brum pôde notar é reforçado com o exemplo de Juliana. Nas classes mais altas, os muros das casas se fecham para os assaltantes e como consequência também para os vizinhos. Nos condomínios de luxo, os moradores saem de casa montados em seus automóveis, dificultando o contato com a vizinhança. Até nos prédios, vizinhos de porta, apenas trocam “bom dia” e “boa tarde” no corredor ou dentro do elevador. A ausência de contato entre as pessoas acontece não só pela falta de disponibilidade de quem poderia ajudar, mas também por conta do orgulho de quem prefe-re “se virar sozinho”, seja contratando um enfermeiro, uma babá ou empregada doméstica. Todavia, quando essas opções são inviá-veis financeiramente, resta a ajuda recíproca: o simples clichê de que “uma mão lava a outra.”

Em relação à vizinha, Juliana fala da importância de poder “contar” com ela num momento como este:

-Uma sopa que precisava pra mãe, minha vizinha pegava e fazia. Às vezes, minha mãe não queria comer minha comida, por-

13 BRUM, E. “O olho da rua.” São Paulo: Globo, 2008.

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que eu não sou muito boa, então eu pedia ajuda e também hoje quando eu preciso, sei que posso contar com ela.

***

A mãe doente não sente mais os gostos e não consegue, de forma autônoma, realizar suas necessidades.

-De repente, a pessoa está ali numa fralda, comendo num negócio que fica pingando o tempo todo. Muito magrinha, com muito sofrimento, lamenta Juliana.

De fato, a imagem de Oscarina é de uma magreza excessiva, numa face enrugada, mas sem expressão. A boca murcha revela a ausência dos dentes. Sobre a cabeça um gorro de tricô azul escon-de a falta de cabelos. De olhos fechados e com uma respiração al-ta, a senhora espera deitada em uma cama de hospital antiga que fica encostada na parede sob a janela com cortina de renda. Do lado dela, a cama de casal que dormia com marido. Agora, ele dorme só.

No restante do cômodo há um armário grande de compen-sado escuro, uma cômoda também espaçosa, com muitas coisas sobre ela: perfume, desodorante, talco, cremes de corpo e de rosto, bijuterias, batom, um espelho e remédios - morfina 30 mg, entre eles.

Este medicamento, inclusive, causa certa repulsa. Ele signi-fica exatamente o que aquela situação é: dor. Numa visita no mês de julho de 2012 às obras do hospital Lo Tedhal – aquele que está sendo construído em Campinas para cuidar de doentes terminais -, um dos monitores que acompanhava os grupos de dez pessoas pa-ra conhecerem as instalações do prédio, comparou o câncer a uma guerra. Para ele, o que essas duas situações têm em comum é exa-tamente a morfina: tratava soldados feridos e hoje serve para amenizar

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a dor de pacientes oncológicos. Ainda em torno deste remédio, dentro dos “Critérios de Qualidade para os Cuidados Paliativos no Brasil” da ANCP, o analgésico carrega a ideia de “agonia final”.

De uma das gavetas da cômoda do quarto, a filha tira uma foto de quando Oscarina estava bem. A imagem dela no churrasco de família não condiz com a da mulher sobre a cama. O sorriso naquele retrato, com aquela roupa justa e ousada para uma mulher de mais de 50 anos, justifica a quantidade de cosméticos em cima do móvel: Oscarina era muito vaidosa. Através da morfina, toda-via, entende-se porque ela mudou tanto fisicamente.

Com a voz bem baixa, quase falhando, de dentro do quarto, a filha ameaça chorar, mas ao invés disso, desabafa:

-É muito sofrimento ver a pessoa que fazia muitas coisas pra gente estar nesta cama sem se mexer, praticamente. É outra pessoa.

Oscarina abre os olhos ao ouvir a conversa. Não consegue se virar para o lado das vozes e por isso, logo os fecha.

***

De volta para sala, ainda com Júlia no colo, o filho Adal-berto e o sobrinho Ezequiel correm por entre os móveis, parecen-do que vão derrubar tudo, mas não derrubam. Um deles cai e cho-ra. O outro também chora para não levar a culpa: Um berreiro!

Juliana precisa ver se não se machucaram e tenta acalmar as crianças. A Júlia de forma simultânea também começa a fazer ma-nha. Com as crianças mais calmas, a filha de Oscarina ainda se preocupa em mostrar que deu educação ao filho:

-Adalberto, fala “oi” pra moça.

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Adalberto não fala e Juliana não insiste.

-Desculpa, ele é tímido, justifica-se ela.

Tímido, mas o garoto começa a ter algumas responsabili-dades. Sozinha durante o dia, já que padrasto e marido trabalham, Juliana tenta dar conta de tudo, dividindo as tarefas. Ezequiel que já tem oito anos, junto com Adalberto, é o responsável por levar o “lixinho” da casa da frente e da do fundo.

Por falar na casa do fundo, Juliana prefere não mostrá-la.

-A minha casa está muito bagunçada. Eu passo o dia aqui na casa da frente então, só vou lá para dormir. Eu não vou te levar lá não.

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“Você fica sem chão”

- A gente fica o tempo todo ligada, já não dorme direito.

Cuidar de uma pessoa assim afeta sua vida de maneira geral. A inti-

midade não existe mais, muda tudo. Eu era de fazer as coisas, de

não ter nada sujo, mas agora não consigo, justifica-se Nina.

Nina é filha do senhor João. A justificativa vem quando a

dona de casa mostra a extensa cozinha, que divide espaço com um

local para as refeições, com mesa de mármore. Sobre a pia, uma

pilha de louças ilustra a situação dentro da residência.

-Eu estou com 58 anos e bem limitada. Um monte de servi-

ço pra fazer, eu não consigo fazer. A dor não me permite.

A dor emocional de ter o pai com uma doença grave se

traduz e se intensifica em dor física, nos pés inchados e nas pernas

marcadas por varizes bem arroxeadas. O estresse de lidar com

senhor João,cinco meses antes tão ativo, afeta a saúde da filha que

já precisa de cuidados, por conta da pressão alta. A hipertensão

leva Nina a ir regularmente ao pronto socorro, onde é medicada

com remédio sob a língua. Quanto à limitação física, não consegue

cuidar em plenitude do pai, principalmente nas atividades que

exigem força, como um simples banho. Com muito amor e até

aparentando devoção, a dona de casa fala do marido, o Admir, que

a ajuda. É ele quem tira sogro da cama para levá-lo até a cadeira de

banho e prosseguir para o banheiro do primeiro piso da casa.

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O bairro é a Vila Marieta. Um portão branco cobre toda a

frente da residência, inclusive a garagem. Ao lado da saída dos

carros, uma porta mais estreita é aberta para receber visitas. Para

entrar na casa é preciso subir uma escada de ardósia com doze

degraus. Em cima, uma área que poderia abrigar uma piscina ou

um jardim, restringe-se ao cimento, servindo de cobertura para o

local onde é guardado o carro da família. Lá do alto, à direita, a

porta da casa é moldada com batentes de madeira e uma pintura

impecável. No teto do hall de entrada, o gesso abriga lâmpadas

embutidas. Também a janela leva a moldura de madeira, combi-

nando com sofá de canto num amarelado sutil.

Fora da decoração, mas bem no centro desta sala de entrada,

fica a cama de hospital e o senhor João em cima dela. Ele fica de

frente pra porta e recebe o sol que vem de fora. No calor que fazia,

chegava a soar. Qualquer enfeite daquele ambiente de recepção era

ofuscado pela imagem daquele senhor de 81 anos no centro de tudo.

Quem chega à casa é acomodado em volta do pai, já que, co-

mo o sofá amarelo fica bem atrás da cama de hospital, sentar ali

pode ser apertado, sendo a solução encontrada por Nina, usar as

cadeiras da sala de jantar para que as visitas sentem-se sob o esto-

fado azul, que contrasta com o marfim da estrutura.

Os profissionais do SAID já haviam avisado sobre a perso-

nalidade daquele senhor: sistemático e agressivo com quem não

gosta. A filha cuidadora parece ter herdado este gênio forte. Tem a

fala firme, num timbre alto. Quando se sente indignada com algu-

ma situação não disfarça a aversão ao caso e aumenta ainda mais o

volume da voz. Nina falou mais alto quando comentou casos de fi-

lhos que abandonam os pais em clínicas e asilos.

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- O meu pai só tem a mim e meu marido, senão ele seria jo-

gado em qualquer canto. Nós sabemos o que são essas clinicas de

repouso particulares. Paga-se R$ 2,5 mil por mês e ainda tem que

levar fralda, fruta, leite... Sem falar a falta de cuidado!

Se a filha gosta de expressar suas indignações, o pai mantém

uma postura de quem já foi um homem galanteador, o que se ex-

plica quando filha lembra da época de “mulherengo” do pai. Ele,

aliás, pode ter conquistado as mulheres não só pela beleza que

deve ter tido, como também pelos poemas que escrevia. Apesar de

magro, ainda é um senhor afeiçoado e embora não componha co-

mo antes, lembra de cór algumas de suas poesias e as recita com

orgulho. Uma delas fala de flores, borboletas e de um grande amor.

***

Nina foi criada sem a mãe e desde pequena teve que fazer o

papel materno para o irmão dois anos mais jovem. O pai fez tudo

que pôde, sempre dando “do bom e do melhor” aos filhos.

Pai e filha são mineiros, sendo que Campinas apareceu como

opção, após o octogenário receber uma proposta de trabalho na

capital. Ele não se adaptou a São Paulo e arriscou vir para a terra

das andorinhas, recomeçando a vida com os filhos, numa casa da

Avenida Salles de Oliveira. Na época, era mestre de obras em uma

grande empreiteira da cidade, como o próprio define.

Assim como nas Gerais, João logo se tornou amigo de no-

mes influentes da cidade, principalmente advogados, médicos e

engenheiros. Todavia, suas lembranças sempre estiveram em Pas-

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sos de Minas onde, segundo ele, chegou a dividir mesa com o casal

Sara e Juscelino Kubistchek. A filha do ex-mestre de obras reforça

que a história relembrada pelo pai é real. Naquela época, Nina

conta que era natural para o senhor João, então com pouco mais

de 20 anos, sair com o casal de futuro presidente e primeira-dama

do Brasil em sessões de cinema, apresentações de circo e depois

delas, passavam na sorveteria Urca.

O pai de Maria já foi o rapaz que rodava filme no cinema

mineiro, pedreiro e influente engenheiro em obras. Só em Campi-

nas ele diz ter participado de 112 construções. O dinheiro que ga-

nhava sempre proporcionou uma vida confortável aos filhos.

- Nós tínhamos uma vida muito boa, principalmente no

tempo que eu era mestre de obra. Conhece o edifício Itatiaia que

foi tombado o ano passado? Pois é, eu fui o mestre de obra daque-

la firma, do Oscar Niemeyer. O maior arquiteto do mundo, relem-

bra o senhor sobre a cama.

Ainda com sotaque mineiro, o idoso quando conversa faz

questão de olhar nos olhos de seu interlocutor, todavia, ao falar de

seu passado, fita o teto e parece reviver tudo o que fala. A filha ou-

ve as histórias do pai quieta, fazendo interrupções apenas quando

ela também compartilha da lembrança. João se recordava e então

Nina completava a cena do passado, trazendo mais detalhes, cor-

rigindo o pai em alguns dados e ou mudando o rumo da conversa,

falando mais de si: a cuidadora.

***

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Casada, mudou da casa do pai, mas continuou tendo uma vi-

da confortável e abastada. O marido, Admir, ganhava na empresa

Singer o suficiente para que a esposa não precisasse trabalhar e

ainda tivesse algumas regalias.

- Ele deu tudo pra gente, as roupinhas da Pakalolo, tênis da

Nike, o clube, os passeios, colégio particular... O “Docinho” com-

seguiu manter as crianças num bom nível e a casa tranquilamente.

Tudo sozinho, orgulha-se a filha do ex-mestre de obras.

Nina,que apelidou o marido carinhosamente de “doce de

coco”, não tinha responsabilidades financeiras, mas era dela a

função de educar as filhas dentro de casa. Viviane, a mais nova,

ainda mora com os pais. A outra, já foi casada e teve um filho, que

mora com os avós, já que Vanessa foi para Boston aprimorar os

estudos, após se separar do pai de Rafael.

Por isso, além de cuidadora do pai, Nina cuida da filha

solteira e do neto Rafael de oito anos, para o qual precisa passar o

uniforme da escola e preparar o lanche do recreio. O pai da dona de

casa sabe que a filha tem essas responsabilidades. A forma como ele

lembra o passado e faz questão de esquecer o presente mostra que o

amigo de Juscelino jamais havia cogitado estar tão depende.

Antes da doença, ele era “amigado” com Maria José. Ela, no

entanto, após o diagnóstico da enfermidade disse que não poderia

cuidar dele, porque trabalhava e deixá-lo sozinho em casa poderia

ser perigoso. Por isso, o mineiro de Passos foi para a casa da filha.

Embora ele não reclame, demonstra lucidez:

- Acontece o seguinte, a Nina e o Admir têm muito serviço.

Eles têm que cuidar de tudo nessa casa. Tem que levar o neto pros

lugares. Então, eu fico aqui. Depois de faltar quatro, cinco meses

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pra fazer 82 anos, eu ficar imprestável? Não é fácil minha filha,

não é fácil. A cabeça não sai do cérebro, não sai...

Nina corta o assunto ao ver que o pai se entristece. Ela não

chama de doença o que o pai tem, dizendo ser apenas um “pro-

bleminha”. Não fala em gravidade perto dele, só diz que se ele

andar pode cair e agravar o quadro – que já é bem grave. O senhor

João tem neoplazia, com um tumor ósseo maligno, descoberto

após ele ter tido um mau jeito.

- Meu pai estava ótimo, mas um dia ele sentou na bacia do

banheiro e pronto, deu o problema. Ele perdeu as forças nas pernas e

sentiu dor. Foi fazer o exame e descobriu que tem os ossos frágeis.

Por achar que de fato é “só um probleminha”, o senhor de

81 anos, não se conforma em estar numa cama e por muitas vezes

faz esforço para se levantar. Diferente de Oscarina, filha de Ju-

liana, que foi tomada pela fadiga, o ex-funcionário da construção civil

apresenta reações de ansiedade e agitação. O próprio conta que até

pegar no sono ele “vira, vira e vira na cama” e para dormir mais

rápido, fica “contando até dez, até o cansaço vir”. O que ele tem é o

distúrbio do sono, sintoma também considerado pelos pesquisadores

que definiram o cansaço como algo comum em doentes graves.

***

Era primeiro de maio – Nina, João, Admir e até o neto Ra-

fael lembram-se da data. A constatação do exame exigiu que o ex-

mestre de obras ficasse internado. Mais do que frágeis, os ossos da

perna estavam trincados, sendo necessária a colocação de uma

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prótese. Os procedimentos médicos foram feitos pela equipe do

Hospital Municipal Dr. Mário Gatti a quem toda a família dispensa

elogios. Enquanto estrutura, Nina lembra a precariedade dos quar-

tos e instalações, mas não se esquece do lado humano do atendi-

mento, o qual ela adjetiva com um “excelente”.

Foram 17 dias de hospitalização na ala de ortopedia. Com a

cirurgia feita, outro exame constatou irregularidade no líquido da

medula, sendo o paciente encaminhado para outro setor. Nina não

fala qual a especialidade deste, mas se tratava da oncologia.

-Quando aparece uma situação assim de doença, você fica

sem chão, diz a filha.

***

O chão da casa em que morava João com Maria José era de

muita descida, o que também dificultaria a locomoção do então

recém operado. Não poderia ficar sozinho e a mulher não podia

deixar o emprego para cuidar dele. Assim, após a alta do hospital,

João foi direto morar com a filha, o que exigiu adaptações.

Admir conseguia prover toda a família enquanto trabalhava,

porém com a aposentadoria, para manter o padrão de vida foi o-

brigado a continuar trabalhando. Conseguiu um emprego na loja

do Guarani, mas não deu certo. Ele começou a fazer bicos como

“marido de aluguel”, também sem sucesso. Conseguiu voltar ao

emprego na loja do bugre, mas voltou a ficar desemprego cinco

dias após a internação do sogro, o que complicou a situação fi-

nanceira da família.

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Nina diz que o marido é muito quieto, não fala de ninguém

– nem bem, muito menos mal. Nunca brigou, não tem inimigos e

pensa muito na família. Na hora que seria de desespero –

desemprego e com o sogro doente em casa – foi o Admir quem

resolveu buscar ajuda na assistência social do Mário Gatti. Através

disto, conseguiu o encaminhamento para o SAID.

-A gente não sabia do serviço e de repente essa turma linda

começou a vir em casa. Eles se apresentaram e explicaram que o

meu pai está numa internação domiciliar. Então eles vêm: é o

fisioterapeuta, o enfermeiro, médico, a nutricionista, psicóloga... É

tudo, conta Nina com entusiasmo.

Recebendo a assistência profissional em casa só faltava um

lugar para o pai ficar. Espaço não seria o problema. Além do hall

que foi o lugar escolhido, no piso de baixo tem ainda a sala de

estar, sala de jantar, um banheiro, área de serviço e a cozinha, onde

fica a escada que dá acesso ao piso de cima. No andas superior

estão os quartos.

Pela dificuldade de subir com o pai, manteve-se ele no hall:

de faço acesso e bem arejado. A cama hospitalar que fica no centro

desta entrada é, inclusive, uma conquista para a família. Uma cama

convencional não daria conta das necessidades de alguém debilitado e

por isso, precisando de ajuda, Nina ligou para o sobrinho, gerente de

uma empresa de assistência técnica de materiais hospitalares.

-Eu liguei chorando pra ele e eu falei que o meu pai não es-

tava bom e se ele podia nos ajudar arrumando uma cama de hospital.

O sobrinho conseguiu sem esforços. No pátio da empresa

em que trabalha, uma cama hospitalar moderna, grande e de fácil

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manuseio estava abandonada, mas funcionando bem. Para Nina,

aquilo foi um “achado”, já que uma compatível passa dos R$ 1 mil.

***

Cuidar do senhor João exige bastante cautela dada vulne-

rabilidade da parte óssea dele. Essa atenção com pessoas mais

idosas deve ser levada em consideração afinal, a sociedade que está

envelhecendo. Uma estimativa da Organização Mundial da Saúde é

de que até 2025, o Brasil alcance a posição de sexto país com

maior número de idosos. Dados do IBGE 2010 mostram que em

duas décadas o número de pessoas com mais de 60 anos dobrou,

chegando a cerca de 20 milhões.

O pai de Nina já usa fraldas e quem as troca é o genro. A quês-

tão da privacidade e intimidade do doente e dos familiares é algo que

encabula as pessoas envolvidas nesta situação de enfermidade. Este já

foi um dos temas de um dos “Encontros de Cuidadores” do SAID.

O principal ponto abordado é o receio dos doentes de serem ex-

postos, por exemplo, em suas necessidades fisiológicas. É cons-

trangedor para muitos ter a fralda trocada por alguém da família ou o

banho dado por este cuidador. O mesmo constrangimento passa

àquele que cuida. A relação fica ainda mais difícil quando os envol-

vidos não são do mesmo sexo, envolvendo um tabu em torno desta

exposição da intimidade. No encontro, especialistas ajudam os cui-

dadores a superar esse obstáculo, sempre recomendando alguém do

mesmo sexo para os cuidados mais íntimos.

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Ainda nestes encontros, os profissionais do serviço de Assis-

tência domiciliar costumam levar temas que apresentem os direitos

dos cuidadores e dos enfermos.

Os medicamentos do pai de Nina estão na lista dos dispo-

níveis pelo Sistema Único de Saúde, assim como os remédios para

as dores e para a pressão da filha. O problema é que constan-

temente alguns deles estão em falta nos postos do município. Na

atualização feita pela prefeitura de Campinas - que pode ser aces-

sada através do portal do Executivo -, no dia 24 de setembro de

2012, aproximadamente 25% dos remédios que deveriam estar nas

unidades de saúde estavam sinalizados como “Medicamentos em

Falta”. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a disponibilidade

de remédios na rede pública é um dos três pontos essenciais para se ter

um programa eficiente de cuidados paliativos, seja nos hospitais ou nos

domicílios. Os outros dois envolvem ações e medidas governamentais,

além de uma política educativa.

A família de senhor João não consegue pagar um convênio

médico para ele. Admir e Nina têm a assistência, já que embora

aposentado, “Docinho” continuou pagando o plano feito pela fir-

ma há mais de 20 anos, e por conta disso, paga um preço bem

abaixo do que se tivesse que contratar um novo convênio. Numa

cotação feita para um casal com mais de 60 anos, um plano básico

em um convênio intermediário sai por mais de R$ 1300.

Em um dos textos da sala de imprensa do Instituto de Estu-

dos de Saúde Suplementar (IESS), números da Agência Nacional

de Saúde (ANS) mostram que no segundo semestre de 2011 cerca

de 46,6 milhões de pessoas tinham plano de saúde no Brasil, o que

representa menos de 25% de toda população, considerando o Cen-

so 2010 - mais de 190 milhões de habitantes. O impacto de uma

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política voltada ao atendimento domiciliar pode contribuir para a

redução dos preços dos planos de saúde, tendo como consequên-

cia o aumento de segurados. Tratar de um doente em casa custa de

20% a 60% menos que mantê-lo hospitalizado, desonerando o

plano de saúde dos gastos com a manutenção do paciente na uni-

dade médica. Estes números foram levantados no trabalho de Foto-

reportagem do fotógrafo André Francois, “De volta pra Casa”14, no

qual o profissional retrata situações de doentes que recebem o serviço

de atendimento em casa, em várias cidades do país.

Apesar das dificuldades financeiras, Nina conseguiu um

benefício da Previdência Social, através do qual seu pai passou a

ter o direito de receber mensalmente um salário mínimo. Este di-

nheiro ajuda, por exemplo, na compra das fraldas descartáveis.

Nina não chegou a ler, mas este benefício está previsto na

Constituição Federal, em seu artigo 201, que estabelece ser respon-

sabilidade da Previdência contribuir na cobertura financeira em ca-

sos de “doença, invalidez, morte e idade avançada”. Caso a filha

fosse dependente financeiramente do pai - que fosse um segurado

de baixa renda –, a família teria o direito de receber o “salário-

família e auxílio-reclusão”, por conta dos incisos acrescentados à

Carta através de emendas de 1998.

No que diz respeito à assistência do serviço domiciliar, este

também é previsto em lei. “A assistência social será prestada a

quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Segu-

ridade Social”, sendo o objetivo dar “proteção à família, à materni-

14 FRANÇOIS, André. “De volta pra casa”. ImageMagica, 1ª.Ed, São Paulo, 2010.

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dade, à infância, à adolescência e à velhice”. Tais direitos assisten-

ciais estão previstos no inciso primeiro do artigo 203.

No entanto, apesar da garantia constitucional, um levanta-

mento feito em 2010 pela consultoria da Economist Intelligence

Unit (Reino Unido) coloca o Brasil na posição 38, numa lista de 40

países, em relação à qualidade dos serviços de atendimento médico

domiciliar e dos voltados à paliação. O país do futebol fica à frente

apenas da Uganda e da Índia.

Na casa de Nina, a família conseguiu a garantia das assis-

tências previdenciária e social, todavia, ainda assim a família tem

algumas dificuldades financeiras.

-Somos nós dois na luta. O “Doce” é aposentado só que vi-

ver de aposentadoria nesse país não dá. É muito difícil mesmo,

porque quando a gente vai envelhecendo, precisa de remédios, às

vezes caros. No nosso caso ainda, temos que manter a família, o

neto na escola... Os gastos só aumentam.

Mesmo com a preocupação de manter sua família com uma

boa condição de vida, Nina reconheceu que naquele momento ser

papel era um só, o de cuidadora. A própria define a sua função:

- O cuidador é muito importante. Somos nós que cuidamos,

que temos a responsabilidade de cuidar, manter o doente limpo. A

gente que dá o remédio e segue as orientações que os médicos pas-

sam. Eu faço o que SAID me passa. Eles nos ensinam, explicam,

orientam tudo direitinho. Então, a gente faz.

Enquanto cuidadora, Nina não vai mais ao cabeleireiro para

esconder os fios brancos, todavia pouco se importa. Para ela, o im-

portante é fazer direito aquilo que os profissionais do serviço reco-

mendam e ajudam quando necessário.

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“Como é essa vida”

O relógio sobre o criado mudo do quarto estava parado às três horas. Junto dele, uma garrafa com água, caixas de medica-mentos e um papel escrito a caneta azul, com linhas e tabelas feitas à mão. As divisões foram organizadas por horário, começando pelas cinco horas da manhã. Na frente desta coluna com os núme-ros, estão escritos os nomes dos medicamentos que Marisa deveria tomar, sendo as doses controladas por sua mãe, dona Aparecida.

-Tem que marcar senão a gente se perde, explica a Marisa.

A filha prefere ter tudo escrito, até para ajudar a mãe que se divide entre os afazeres da casa, o marido já de idade, a neta ado-lescente, o filho alcoólatra e a própria Marisa que de tantos medi-camentos precisa. Só no horário das nove da manhã o papel indicava: clozapina e omeprazol.

- O omeprazol a Marisa não tomava, mas o Julimar falou pra ela tomar, porque senão ela podia ter uma úlcera. Ela também to-ma um que é diurético, conta a mãe.

Julimar é um dos enfermeiros do SAID que visita a casa da família. A residência fica no Jardim Nova Europa, bem próximo à avenida principal, Baden Powell. É grande, mas com uma fachada antiga. No abrigo não há carro e logo que se passa o portão, à es-querda uma horta tira o cinza do chão. Entrando na casa, dois so-fás formam a letra “l”, sendo que na frente do estofado de três lugares fica a estante com uma TV e várias imagens que remetem a

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religião. Tem duas bíblias e alguns porta-retratos. Na parede, ou-tros enfeites religiosos estão pregados, destacando-se duas cruzes.

***

Assim que Aparecida acaba de dar o remédio, compartilha a recordação de quando começou a notar a filha com sinais de aba-timento. Foi a mãe quem pediu para Marisa procurar um médico, pois desconfiava que a filha tinha algum problema neurológico. Além da fraqueza, ela começava a perder a sensibilidade nas mãos. Aos 39 anos, Marisa descobriu que aquela tontura não era uma simples anemia, causada pela automedicação de um remédio para emagrecer.

Atendida no Hospital Mário Gatti, foi internada para a realização de exames mais sofisticados. A principal suspeita era de que se tratasse de esclerose múltipla, e por isso a encaminharam para um tratamento no HC da Unicamp, onde os médicos desco-briram que a filha de Aparecida tinha “outra doença”. Mais uma vez, como aconteceu com Oscarina, o diagnóstico tardio compro-meteu um tratamento com melhores resultados.

-O tumor já estava grande, lembra-se a mãe com voz baixa e olhos claros que se avermelham.

Marisa, já com sistema tátil comprometido, não foi capaz de sentir o que a mamografia, solicitada depois de um ano de trata-mento neurológico, constatou. O diagnóstico de câncer de mama veio em 2010. A lembrança desta data faz com que os olhos de A-parecida fiquem menores, cheios de lágrimas, ainda vermelhos.

Desde a notícia, vários procedimentos médicos foram rea-lizados, conforme a doença se espalhava pelo corpo: retirou a ma-ma e o ovário. A sensibilidade nas mãos foi praticamente perdida,

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junto aos movimentos das pernas. As intervenções cirúrgicas foram descartadas e o tratamento de Marisa resumiu-se à medica-ção para aliviar a dor.

Os principais sintomas físicos da paciente coincidem com outras características citadas no documento que apontou a fadiga de Oscarina e a agitação do senhor João como consequência das doenças em estágio avançado. Marisa não tem apetite e sofre de constipação – dificuldade para evacuar. Além disso, em março de 2012, Aparecida viu a filha ter um Acidente Vascular Cerebral.

-Ela tem uns pontinhos na cabeça. Quando a minha filha te-ve o AVC, ela disse que todos eles sangraram ao mesmo tempo. Teve que nem um sangramento, eu até pensei ser uma convulsão, recorda com tristeza, Aparecida.

Os “pontinhos” são as metástases da paciente, que de forma simplista, é quando o câncer se espalha para outras partes do cor-po. A gravidade no quadro clínico deixou Marisa internada por aproximadamente dez dias após o derrame. Em quatro deles, ela ficou desacordada. Depois da estadia no hospital, voltou pra casa, passando a receber o atendimento do serviço domiciliar.

***

O cuidado de Marisa é feito no quarto do relógio sem pilha, onde dorme a paciente, a mãe e o pai. O cômodo é bem grande, comportando a cama de casal, com lençol fino simulando ser feito de retalhos e o guarda-roupa de mogno cobrindo cobre toda a parede atrás da cama. No canto direito, fica o criado-mudo dos remédios e atrás dele, a cama hospitalar com vários lençóis brancos sobre a enferma. Uma porta de metal e vidro jateado dá acesso ao fundo da casa, sendo que ao lado, a porta de madeira separa o quarto da suíte.

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- Eu durmo aqui com ela, pra cuidar dela, diz a mãe.

- De noite eu sempre sinto algumas umas coisinhas e então minha mãe está aqui pra me ajudar, completa a filha.

Antes desta adaptação no quarto, Marisa ficava no dormi-tório menor da casa, junto com a filha, todavia, a inquietude doen-te, por conta das dores e a respiração alta - o ronco – incomoda-vam Luana, que tinha que acordar cedo para ir ao trabalho.

Agora com a paciente no quarto maior, a filha Luana já não precisa acordar pelo início da manhã, pois conforme a doença foi se agravando, Marisa ficou debilitada, precisando de ajuda até para se mexer. Aparecida com 73 anos, também começa a ter dificuldades para dar este auxílio à filha, pois “a idade não ajuda”. Até então, o marido a ajudava, mas ao ver tanto sofrimento da filha, ele desistiu e se entregou, mantendo-se deitado sobre o sofá durante todo o dia.

- Meu marido se sente mal, não tem muita força, está meio surdo, não enxerga de um olho. Ele se sente meio impotente pra ajudar ela, Aparecida define o esposo.

Na falta de alguém capas de ajudar Marisa, restou a Luana compartilhar o papel de cuidadora com a avó. Saiu do emprego e aos 19 anos não se conforma com estado da mãe. A jovem ajuda, mas mantém a face do rosto bem fechada, com um olhar solto demonstrando total repúdio àquela situação. Ela não quer conver-sar e Marisa compreende a filha:

-A Luana é adolescente. Ela teve que fazer muitas coisas sozinha, porque eu fiquei muito tempo parada, andando de anda-dor, sem poder ajudar minha filha, participar da vida dela. Então, eu sei que ela se compara com as amigas que tem a mãe sempre presente. Um dia, ela me disse que a minha situação fez com que ela crescesse muito, mas eu sei que é difícil.

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O que tange o relacionamento entre paciente e família tam-bém foi abordado no trabalho da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. O “afrouxamento” dos laços de afeto entre os envolvi-dos em situações de onipresença da morte é, de acordo com o documento, uma constante, se apresentando como um “problema social” dentro das famílias. Por conta disso, deve ser uma das vertentes tratadas pelas equipes multidisciplinares de paliação e de assistência social.

Apesar de a filha não querer um diálogo com a mãe, tanto Aparecida como Luana não deixam de cuidar. A mais jovem não troca palavras, mas faz o que tem que ser feito.

***

A mãe de Marisa insiste para que a filha coma, oferecendo café, leite e já anunciando o cardápio do almoço. Na falta de ape-tite da paciente, a senhora não desiste e oferece uma vitamina com banana, maçã, mamão e suco de laranja, de um jeito quase apelati-vo, mas carinhoso que faz Marisa aceitar. A insistência da senhora de 73 anos não é o procedimento recomendado pelo documento nacional da Academia já citada, que orienta nos casos de falta de apetite a respeitar a decisão do paciente. Aparecida não se importa, até porque é do instinto materno a preocupação para que o filho sempre se alimente bem.

A mãe vai à cozinha e do quarto se ouve o barulho do liqui-dificador preparando a vitamina. Passados alguns minutos, um co-po de vidro grosso de tamanho americano é levado à boca da mu-lher de 39 anos. Logo, ela pede que seja colocado de lado. A rea-ção de Marisa após ingerir pouco menos de um dedo da bebida foi de que aquilo estava azedo, mas não estava.

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Aparecida ainda insiste para filha tomar mais um pouco da batida, no entanto, desta vez, Marisa pede um tempo. A mãe sai e serve o que restou no liquidificador ao pai deitado sobre o sofá da sala. Enquanto isso, em cima da cama, a filha doente, com voz baixa e com dificuldade para respirar, revela:

- É difícil pra comer, me dá enjoo. Eu tenho pouca vontade, nada de apetite. Mas mesmo assim, eu tenho que buscar alguma coisa pra me sustentar, ficar de pé.

Não demora e o organismo de Marisa reage expulsando o pouco que foi ingerido. A ânsia e o vômito também são conse-quências do quadro terminal, causados principalmente pela consti-pação, que é o outro sintoma apresentado pela jovem mulher de pele muita clara e com cabelo começando a crescer novamente.

Marisa é tomada por uma tosse que Aparecida já deve conhecer e por isso, não demora para a mãe voltar ao quarto com um balde tamanho médio na cor preta no qual, a filha vomita o pouco que ingeriu. Aparecida pede licença, chama a neta e sinaliza para que se espere na sala, fechando a porta do dormitório. No quarto fica Marisa, Aparecida e Luana. Nos minutos seguintes, a mais nova abre a porta apenas para pegar a cadeira de banho da mãe e ao entrar de volta ao cômodo, deixa-a semi-aberta. Através da fresta é possível ver que é Luana quem carrega Marisa da cama à cadeira e a leva para o suíte. Pelo barulho da água percebe-se que a “adolescente” está dando banho em sua mãe.

A mais idosa, neste tempo, corre pela casa buscando a toalha, a roupa e ainda arruma um jeito de esquentar a comida para o filho. Era cedo para a hora do almoço, mas a embriaguez do irmão mais velho de Marisa não considerava isso, assim como não se atentava à situação daquela casa. Ele é quieto, mas não deixou de oferecer a comida.

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Com Marisa limpa e de novo sobre a cama, a porta do quar-to é totalmente aberta. Luana sai de lá sem erguer os olhos e a avó, por fim, leva o balde preto para a área de serviço. Aparecida ainda consegue, sem força, sorrir. O processo é exaustivo até para quem apenas observa.

Marisa ainda é mantida sozinha no quarto. A filha volta para o seu e a mãe coloca no tanque as roupas de cama que cheiravam urina.

***

Apesar de a família ter uma situação de vida confortável – sem as tantas regalias da filha do senhor João, mas também sem as dificuldades da família de Juliana -, a cama hospitalar de Marisa foi comprada depois de fazerem “grande esforço” para juntar dinheiro.

-Demorou um tempo pra gente comprar. Chegamos a emprestar uma cama, mas ela estava ruim, não erguia. Então, a gente devolveu e achamos melhor fazer um pouquinho de sacri-fício e comprar uma cama boa, explica Aparecida.

Embora tenham tido que arcar com a cama, os remédios para o tratamento de Marisa saem todos de graça: uns são disponi-bilizados nos postos de saúde, outros na Unicamp e também, a Pastoral dos Enfermos ajuda a família quando necessário, inclusive com a doação de fraldas descartáveis.

Toda ajuda é bem-vinda para aquela família. Antes dos sintomas da doença, Marisa trabalhava em um escritório de com-tabilidade e o salário ajudava na renda familiar, suprindo princi-palmente, as necessidades da filha. Com o diagnóstico, ela foi afãs-tada do serviço, conseguindo um benefício no INSS. Com este di-

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nheiro, ajuda a filha nos estudos – Luana faz cursinho, pois seu so-nho é entrar numa boa faculdade de Direito.

- Pra mim e para o meu marido ficou apertado. Eu ganho um salário mínimo, ele um pouco mais que eu. E esse dinheiro não é muito, revela Aparecida.

Com esse dinheiro, têm ainda que ajudar o filho alcoolatra, pai de uma menina de 17 anos, para quem paga pensão alimentícia.

Além dos medicamentos de graça, quando precisa, Marisa e Aparecida vão juntas ao CAISM da Unicamp, onde a filha recebe um “sorinho”. Como a família não tem carro, chamam a ambulância do SAMU que “leva e busca”. Lá no Hospital da Mulher, as ficam durante todo o dia. Por algum motivo, Aparecida chora, enquanto fala:

- A gente tem que estar lá às sete e meia da manhã. A Apare-cida passa pelo médico da dor. Depois do meio-dia ela tem que es-perar para tomar o soro.

Além de Marisa, Aparecida também precisa se atentar à pró-pria saúde. A idosa tem pressão alta e o médico já falou da neces-sidade de uma cirurgia, por conta da “bexiga caída”, que é a falta de sustentação da parte pélvica feminina. Apesar da orientação médica, Aparecida não se vê como prioridade, o que vai contra as orientações dos profissionais de cuidados paliativos que falam da importância do “autocuidado” do próprio cuidador.

-Eu não posso fazer cirurgia, porque a Marisa depende de mim. Então eu estou levando. Vou levando...

***

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Sobre a ajuda que vem através dos profissionais do Serviço de Atendimento e Internação Domiciliar, Aparecida cita além de Julimar – o enfermeiro preferido –, a fisioterapeuta Fátima e os médicos, Dra. Ana e Dr. João. Além de adjetivá-los como “muito legais”, comenta a utilidade destes profissionais que conversam com a família e realizam os procedimentos para o outro sintoma de Marisa, a constipação. A cada dois dias, um profissional tem que ir até a casa para que a paciente consiga expelir o que ingere na forma de fezes. Esta situação – de não conseguir fazer força para evacuar – deixa Aparecida e a filha tristes. Marisa até se mostra inconformada com o “ponto que chegou”:

- Como muito pouco e não posso ficar sem fazer cocô. Co-mo é essa vida, reflete.

***

A vida de Marisa fez com que, além das instalações na casa, a rotina da família mudasse. Os profissionais que prestam o servi-ço na residência acabam colaborando para que a família se adapte a esta nova realidade, pois o próprio cuidado paliativo prevê o es-forço para que haja uma adaptação por parte do doente, da família e do ambiente em que vivem. Aparecida, por exemplo, por conta da idade, antes mesmo da doença da filha já dividia as responsabilidades com Marisa, mas de repente teve que voltar a ser mãe como quando os filhos eram crianças. Do que ela sente mais falta é da sua rotina de orações, afinal teve que abrir mão de um costume: ir à igreja.

- Quando minha filha estava boa, eu ia todas as terças lá na Santa Edwiges, na missa das três horas. De quarta ia na Nossa Senhora do Carmo, que tem a novena do perpétuo socorro. Agora não tem jeito, só vou aos domingos na Maria Mãe que é a nossa comunidade.

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As questões da espiritualidade e da fé das famílias num mo-mento de dificuldade são abordadas, juntamente com o viés psi-cológico, nas próximas páginas.

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PARTE III

Psicológico e Espiritual

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“Eu tenho o sangue frio”

- Não tem médico que chegue aqui pra mim e fale “sua mãe

vai voltar”. Eu não acredito, entrega-se Juliana.

A filha de Oscarina prefere ver a mãe partir a olhar para ela

naquela situação de extrema magreza sobre a cama. Além do sofri-

mento, Juliana sabe que nada mais pode ser feito para reverter o

quadro clínico da paciente. Ela aceita a finitude da vida, pelo fato

de não haver a opção de não aceitar: o fim chega para todos.

A atitude da jovem, mãe de duas crianças, vai ao encontro do

que estudos da área médica e psicológica constaram nos processos

em que a morte é iminente. Para a psicóloga Rita Khater,15 “o

paciente terminal prepara a família para a morte”. Com base em

estudos, conclui-se que após o diagnóstico de uma doença grave,

tanto o doente como seus familiares mais próximos passam por fases

que vão da negação da gravidade do quadro de saúde à aceitação do

fim.

Elisabeth Kubler é a médica polonesa que realizou uma pes-

quisa com doentes terminais na Universidade de Chicago. Através

de entrevistas públicas com estes enfermos, chegou-se a uma cons-

tatação que deu origem ao seu livro “Sobre a Morte e o Morrer”.

15 A psicóloga concedeu entrevista no dia 4 de setembro de 2012. A conversa foi pessoalmente, na Puc-Campinas, campus I.

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***

A Juliana se lembra do dia em que seu marido chegou do

hospital trazendo Oscarina:

- A médica tinha falado um negócio para meu marido.

Quando ele chegou em casa, ficou sem saber se me contava ou

não, porque eu estava grávida. Eu percebi a preocupação dele e fa-

lei “pode contar, que eu tenho o sangue frio”, conta Juliana.

O que o marido tinha guardado para si eram as palavras da

doutora de que a quimioterapia não poderia seria feita na paciente,

pois não teria nenhum resultado positivo. Naquele período, toda-

via, Juliana ainda acreditava na cura da mãe.

- Eu achei essa médica uma doida. Gritei com meu marido

para que parasse de chorar. Disse para ele que a mãe estava bem e

ela ia sim fazer o tratamento, lembra-se a jovem de 28 anos.

Na época do pós-diagnóstico, pelos estudos de Kubler,

Juliana estaria na terceira fase, quando ainda há esperança de cura,

e tanto os familiares como o doente começam a acreditar na

reversão do quadro. Para isso, apelam principalmente para a reli-

gião, rezando e fazendo promessas: é a fase da barganha.

No entanto, a filha de Oscarina, um pouco envergonhada,

diz que depois de tanto acreditar na cura da mãe, deixou de fre-

quentar os cultos religiosos que pregavam a doutrina da ressur-

reição. Juliana se define como “adventista afastada”, mas o distan-

ciamento da igreja, nos últimos meses, não fez com que perdesse o

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hábito de fazer alusão a Deus: “anjos de Deus”, “agora só Deus”,

“Deus leva”, “às vezes falta Deus”, “se Deus quiser”.

Vendo a mãe naquele estado de cama, com fadiga, sem ca-belo e

a pele grudada nos ossos do rosto, a filha não escondia a preferência

pela morte. Todavia, como era de se esperar, não se sentia pronta para

ficar sem a figura materna – ninguém está – e por isso, oscila entre a

aceitação e a fé que ainda lhe fazem acreditar em um milagre. Com a

voz mais baixa, quase em sussurro, Juliana se expressa:

- Eu sei que a quimioterapia já foi suspensa e a gente vê o

estado da minha mãe. Cada dia fica mais complicado. Só mesmo

se Deus quiser fazer alguma coisa.

A filha que sabe que a mãe não vai voltar a ser como antes.

Essa lucidez leva Juliana à fase cinco descrita pela médica sueca.

Segundo a pesquisadora, neste último estágio, o doente está bem

cansado, muito fraco e a família passa a reconhecer o sofrimento,

definindo-se esta etapa como a fase da “aceitação”. Para a psicó-

loga da Puc-Campinas e coordenadora de projetos sociais na cida-

de. Rita Khater, neste momento, o familiar que aceita o fim está

também se desprendendo de seu egoísmo, manifestado na vontade

de ter aquela pessoa ao seu lado. De acordo com ela, esta é uma si-

tuação altruísta de quem pensa no melhor para quem está doente e

ainda é capaz de reconhecer o limite do ser humano: “Aceitar a

morte do outro significa aceitar a sua própria finitude, mas o pro-

blema é que a gente quer se ver cada vez mais eterno.”

Neste processo de reconhecimento do fim, o apoio profis-

sional como o que é dado pelos profissionais do SAID é avaliado

como um serviço importante para as famílias, já que passam a ter

um melhor amparo, além de receber atendimento psicológico que

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[76]

as preparam para o inevitável. A autora de “Sobre a Morte e o

Morrer” sugere em seu livro que as pessoas deveriam “criar o há-

bito de pensar na morte e no morrer, de vez em quando, antes que

tenhamos de nos defrontar com eles na vida.”

***

Para Oscarina, a vida já havia proporcionado alguns com-

frontos, como a separação dos filhos. Quando morava no Paraná,

com as crianças pequenas, ela se casou com o pai de Juliana, sendo

que os dois filhos do casamento anterior foram levados para Ron-

dônia, onde foram criados por uma tia. Foi só com a doença que o

reencontro aconteceu, após quase três décadas.

Já sem muita força e sem grandes apoios, foi de Juliana a

ideia de chamar pelos irmãos por parte da mãe. Além de propor-

cionar o reencontro de mãe e filhos, pretendeu estreitar as relações

com os irmãos, até para ter alguém para poder compartilhar aquela

situação tão difícil.

- Eu consegui falar com eles através de uns parentes e contei

das hemorragias da mãe. Eles vieram. Pra mãe foi muito bom e agora

eu também tenho um relacionamento bom com eles, sorri Juliana.

No dia em que os irmãos vieram para Campinas, Juliana

conta que a mãe, que já estava passando a maior parte do tempo

na cama, fez questão de se levantar e preparar o almoço para os fi-

lhos. Juliana mantém o sorriso ao lembrar aquele dia e conclui:

- Minha mãe sentiu algo muito bom. Só quando a gente é

mãe para saber o quanto um filho significa.

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[ 77 ]

O sorriso na face da filha de Oscarina vem como uma

satisfação de ter podido fazer algo em benefício da mãe, quando

todos diziam que nada poderia ser feito. Rita Khater, neste senti-

do, explica que de fato é bom para o familiar ter a sensação de ter

feito o que estava ao seu alcance, já que a estratégia afasta qualquer

tipo de remorso. “Se a última coisa que posso fazer é ficar junto e

cuidar do doente, faz isso gera no cuidador um sentimento de re-

compensa por ter feito o que pode.”

A dor da perda, amenizada por este consolo, não deixa de

doer dado tudo o que se perde, principalmente quando a despedi-

da se dá em casa. A psicóloga explica que, quando o doente termi-

nal é cuidado na residência, depois de seu fim os familiares conti-

nuam naquele ambiente, que passa a ter um espaço vazio e não ser

mais o cenário da rotina de “dar um chá, dar um banho”. Por con-

ta disso, a pessoa que cuida em casa sente mais a perda, embora

tenha o consolo de que aquilo foi o melhor para o paciente, pois

teve seus últimos dias ao lado das pessoas de que gosta, em um

ambiente que lhe é mais confortável.

Na contramão da análise psicológica, um estudo norte-ame-

ricano do Instituto Dana-Faber constatou que o impacto psicoló-

gico de uma morte é maior quando a família passa pelo período de

despedida dentro do hospital, principalmente em UTIs. Segundo o

levantamento, nestas situações, os familiares e cuidadores têm cin-

co vezes mais chances de desenvolver um estresse pós-traumático,

do que aquele que dispensou os últimos cuidados dentro do am-

biente domiciliar.

A análise do estudo vai em direção à hipótese de que o pa-

ciente que morre internado tem uma pior qualidade de vida em

seus últimos dias, o que se reflete em mais tristeza para os acompa-

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nhantes. Em relação à qualidade do viver, o fotógrafo André Francois

escreve na introdução de seu ensaio fotográfico – “De Volta pra Ca-

sa” – que, os pacientes em fase terminal em suas fotografias “queriam

dizer que estar em casa, ao lado das pessoas que realmente amam, é o

verdadeiro significado do conceito qualidade de vida”.

A própria Juliana, mesmo com o quadro de sua mãe, reforça

que não pensa em levá-la para o hospital. Ela se lembra do sofri-

mento para Oscarina, entre idas e vindas do pronto-socorro. A Jô-

vem também passava por dificuldades durante essas hospitaliza-

ções, já que por muitas vezes, os acompanhantes sequer tinham

onde ficar, sentar, além dos horários restritos de visitas e os gastos

com transporte para ir ate o hospital.

- Eu levaria a minha mãe para o hospital só se ela estivesse muito

ruim, a ponto de não ter jeito de cuidar dela em casa. Só mesmo se não

tivesse outro jeito, diz Juliana de forma categórica e definitiva.

Ainda para a psicóloga Kather, o problema é que em mui-

tos casos “a área medica ainda tem falhado ao lidar com a morte.

Em nome da ciência, de não infectar o paciente, ela tem como

norma, por exemplo, se o paciente está entubado não deixar a fa-

mília visitar.” Para ela, o fato de já estar neste estágio de coma

significa que o doente está indo embora e por isso “este é o mo-

mento que a família tem pra já começar a trabalhar no luto.” O

afastamento dos familiares na hora partida é algo difícil, e neste

sentido Rita completa que “não tem só que pensar no paciente, mas

também na família. Talvez, o paciente em uma UTI esteja totalmente

inconsciente e não sinta nada, mas a família tem direito de estar lá.”

***

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Juliana não tem como escapar deste ambiente. A casa onde o

cuidado se dá é da mãe dela, tudo que está ali foi Oscarina quem

colocou e quem escolheu. Tudo é a doente. Desta forma, o que faz

a filha estar na fase de “aceitação” é o preparo que a própria

doença se encarrega de fazer. O teólogo José Trasferetti explica

em seu trabalho “A morte e o morrer: Desafios para a teologia

moral no contexto atual”, que há diferença entre a perda repentina

– acidente, por exemplo – e aquela que vem após uma doença.

Segundo ele, o luto é menos doloroso quando houve tempo para

“se preparar”. O teólogo escreve que “no caso das doenças fatais,

o maior desconforto ocorre no momento do diagnóstico. É a par-

tir daí que a pessoa começa a se preparar para viver sem a pessoa

amada, como uma espécie de luto antecipado.”

A filha de Oscarina lembra-se da dor que sentiu ao saber que

a “espinha” da mãe era algo bem mais grave.

- Nós já passamos por tanto sofrimento. Tudo começou quando

minha mãe me contou que tinha o câncer. Depois veio tudo, tantos

médicos. Por isso eu penso que, se não vai sarar, melhor Deus levar.

Apesar disso, as doutoras em enfermagem Maria Ribeiro

Lacerda e Maria de Lourdes Centa, junto com a mestre na área

Silvia Sprengel Alencar, trataram da questão da intensidade da dor

da perda no artigo “Finitude humana e enfermagem: Reflexões

sobre o (des)cuidado integral e humanizado ao paciente e seus fa-

miliares durante o processo de morrer”.16 Segundo elas, mesmo

nos casos em que a morte é algo esperado, ela surge como “um 16 CENTA, Maria de Lourdes. et.al. “Finitude humana e enfermagem: Reflexões sobre o (des)cuidado integral e humanizado ao paciente e seus familiares durante o processo de morrer”. Fam. Saúde Desenv. Curitiba. 2005.

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ins-tante de desequilíbrio e de desconstrução, no qual os familiares

perdem o ponto de referência”. Neste aspecto, a análise das profis-

sionais coincide com o que Khater reforça: perde-se toda uma roti-

na, um ponto referencial.

Além da questão do preparo que a doença possibilita – ou

não - Juliana, assim como Nina, está prestes a perder um parente

mais velho. Esta é uma perda mais natural para o ser humano: nas-

cer, crescer e só depois de grande e velho, morrer. A psicóloga co-

menta a lógica: “É mais natural perder a mãe ou o pai do que per-

der um filho. Por isso, a gente fica mais chocado quando morre

uma criança.” Deixando o lado de profissional da área da psico-

logia, Rita conclui: “Mas na verdade não é bem isso. Eu perdi mi-

nha mãe com 90 anos e ela era minha mãe com 90 anos, com 90,

91, 110... Ela era minha mãe. A dor é a mesma”

Hoje, na cultura ocidental, a morte traz como consequência um

luto doloroso. No entanto, nem sempre foi assim. A antropóloga

Raquel Aisengart Menezes escreveu um livro sobre a morte, no qual

traz um contexto histórico de como ela foi sendo encarada ao logo

do tempo. Na obra “Em busca da Boa Morte: Antropologia dos

Cuidados Paliativos”, a autora faz referência à característica do

processo de despedida definitiva no cenário atual. Segundo ela, o fim

da vida é tratado como um tabu, com aversão, devendo ser “expulso,

banido, excluído” das conversas. Em comparação, cita o período da

idade média, no qual havia a ritualização da morte, bem como o

enfrentamento dela com dignidade e de forma comunitária.

***

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Não se pode esquecer a ajuda dos profissionais do serviço

domiciliar, os quais Juliana chama de “anjos”. Ela conta que são eles

que trazem as fraldas para a mãe, a dieta que vai na sonda e,

principalmente, são os enfermeiros e médicos que a escutam e ori-

entam. Juliana até, de vez em quando, liga no SAID só para desabafar.

“Se a gente está disposta a passar o nosso sentimento, toda escuta é

bem vinda. Tem gente que gosta de falar do sofrimento, que não se

importa em falar e isso faz bem para a pessoa.”, comenta a psicóloga.

Conseguir as palavras certas para serem ditas a alguém que

esteja em uma situação como a de Juliana é um grande desafio. É

difícil abordar o tema com essas famílias. Logo elas choram e estar

ali perante aquele sofrimento dá uma sensação de invasão e ao

mesmo tempo de impotência. O médico Drauzio Varella, que tan-

tos diagnósticos de câncer teve que dar, escreve em seu livro “Por

um fio”,17 uma forma delicada de pedir para que as famílias se

aquietem – na maneira do possível. Ele aconselha os parentes a

“permitir que a vida se apague em silêncio, como uma vela.”

Eufemismos à parte, o melhor seria que Oscarina partisse da

forma que estava sobre a cama: Quieta, abrindo os olhos, apenas.

Fechando-os por falta de força.

17 VARELLA, Drauzio. “Por um fio.” São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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“Não tem jeito de se adaptar a isso”

“A morte causa tristeza, mas não precisa causar desespero. A

morte traz a consciência da limitação do tempo neste mundo.” Es-

ta frase está no livro “Ágape”, do padre Marcelo Rossi.18 Nina,

filha de João, diz que é neste obra e nas músicas cantadas pelo

religioso que encontra o conforto.

- É o dia todo o padre Marcelo me dando força. Aquele livro

“Ágape”, eu adoro. Também as músicas dele, eu acho lindas. Eu ia

muito ao santuário, mas agora, com o pai assim, não dá, diz Nina.

Assim como a mãe de Marisa, a filha do senhor João teve

que abrir mão de estar nas missas. Ela também é católica, mas tem

menos santos que dona Aparecida. Devota de Maria Desatadora

dos Nós, faz questão de falar da força que a religião traz para ela,

neste momento da doença do pai.

- É só com Deus e Maria mesmo. Rezo todos os dias pelo

meu pai, entrega-se Nina.

Este apego à fé é comentado pela psicóloga Rita Khater. Ela

ressalta a importância das religiões ou da crença em algo su-premo,

nos casos em que é preciso encarar a morte. A psicóloga reforça

que a ideia de fim da vida está dentro de um contexto que dita a

forma como a sociedade se coloca perante ela: “Se a pessoa

18 ROSSI, Marcelo. “Ágape”. São Paulo. Globo, 2010.

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acredita na vida depois da morte, ou na reencarnação, ela aceita

melhor a morte, porque há a sensação de que quem morre está

indo para um lugar melhor, não vai sofrer mais.” Khater faz alusão

às religiões que pregam a ressurreição, porém expande para os

casos da crença na reencarnação e mesmo, na simples ideia de que

quem morreu “descansou”. Para o teólogo Trasferetti a fé “torna-

se uma forma de suportar o sofrimento, tornando a perda mais

tolerável.”

O problema é que, embora Nina reze pela cura do pai, em

muitos momentos ela não acredita muito na gravidade da doença.

A filha do senhor João ainda tem esperança. A psicóloga Rita Kha-

ter tenta explicar: “É comum o doente ou família passar por o pe-

ríodo da doença sem acreditar na importância dela. Isso acontece,

porque não querem encarar a morte.” O problema nestes casos é

que a descrença da gravidade pode levar a uma maior frustração

perante o inevitável.

A cuidadora optou por não revelar ao pai que ele é um do-

ente terminal. Os profissionais que cuidam dele também não falam

disso quando estão próximos ao paciente. Naquela casa, ninguém

cita a palavra câncer. Só o peso que o nome da doença maligna

carrega, faz doer mais. O próprio médico urologista Lísias Castilho

reconhece em seu livro que o nome câncer “é uma das palavras

que mais arrepios provocam em qualquer pessoa normal”, já que o

próprio autor fala das sensações que ele causa: “de morte,

invalidez, medo, sequelas e sofrimento”.

Esta recusa em assumir o quadro real do pai é um dos

estágios reconhecidos pela autora de “Sobre a Morte e o Morrer”,

Elisabeth Kubler. Nina, diferente de Juliana, varia entre dois es-

tágios: o que compreende a “negação” e o que a médica chama da

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fase da “raiva”. O ato de negar, segundo Kubler, é geralmente a

primeira reação do doente e da família assim que recebem a notícia

de uma doença grave. Eles não aceitam de jeito nenhum, sendo

comum neste estágio a procura por outros médicos, a fim de refa-

zer os exames. A outra fase – da ira – vem na sequência, acompa-

nhada pela frase de revolta: “Por que comigo?!”

Perto do pai, só de achar que alguém vai dizer “câncer”, a

dona de casa dá um jeito de mudar de assunto, fazendo questão de

colocar na conversa um assunto mais otimista, beirando aqueles

que são de praxe nos livros de auto-ajuda. Para ele, o pai deve se

apegar ao pensamento positivo:

- Eu digo ao meu pai que ele precisa se manter com pen-

samentos positivos e bons, conta Nina em alusão ao que chamam

de “Lei da Atração” – pensamentos bons atraem coisas boas.

***

Esta forma de se esquivar da morte pode ser um jeito que a

mãe da Vanessa e da Viviane encontrou para sofrer menos. Como

senhor João ficou viúvo logo que Nina fez cinco anos, ele teve que

fazer o papel de pai e mãe, sendo lembrado pela filha pelas frutas que

ele fazia questão que as crianças comessem. Sobre o passado, a filha

do senhor que diz ter sido amigo de JK, guarda ainda as grandes

perdas de sua vida. Apesar de as faltas estarem no pretérito, Nina usa

verbos no presente para falar sobre as pessoas que já partiram:

-Eu tinha cinco anos e meu irmão dois anos e meio quan-

do minha mãe morreu. Depois o meu irmão foi assassinado na

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frente do filho dele. Meu irmão “é” evangélico, não bebe, não

fuma, não faz nada, conta Nina.

Ele não “era”, não fazia...

***

Assim como Nina, o pai dela faz questão de lembrar e

contar as cenas de seu passado. Ele é nostálgico ao falar da esposa.

Recorda cada data, cada comemoração e conta como eram os

momentos com a falecida mulher. Os olhos dele fitam o teto:

-Eu vou fazer 82 anos, sou de dois de novembro de 1930.

Não posso fazer festa porque é Finados. Minha falecida fazia em

sete de setembro, também em feriado. Por isso, nunca tínhamos

festa. Mas, nós vivíamos a vida. Os vizinhos até falavam que não

éramos casados, que parecíamos namorados. Minha sogra dizia

que minha esposa tinha arrumado um pai.

As histórias são muitas, contadas pelo ex-mestre de obras

com saudade. A lucidez que tem para narrá-las e torná-las atrativas

fazem dele uma pessoa que o mundo não poderia ficar sem.

Mesmo na cama, não deixou de criticar a política da cidade, e prin-

cipalmente de comparar o “mundo de hoje” com o de antiga-

mente, fala da “gentileza dos homens antigos” e do “recato” das

mulheres algumas décadas atrás. Todavia, dado seu estado lúcido,

o sofrimento lhe é um fardo.

-Não é difícil estar assim, é custoso. Não tem jeito de se a-

daptar a isso. Eu fico de noite pelejando para dormir e só de vez

em quando vem um soninho, entristece-se senhor João.

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Gláucia Franchini

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O que o pai de Nina mais deseja é voltar a andar. A filha ti-

nha mostrado naquele dia o exame para o pai. Sem dizer a palavra

câncer, queria que ele “sossegasse” e não mais fizesse esforços

para caminhar, pois qualquer movimento mais brusco poderia

complicar bastante o quadro clínico do paciente.

- Hoje eu mostrei para ele o exame. Os ossos dele estão muito

frágeis, tem uns furos, parece até um queijo. Com essa fragilidade os

ossos podem quebrar e por isso eu quis mostrar pra ele. Meu pai não

pode mais achar que vai andar. É perigoso, se preocupa Nina.

Só a hipótese da fratura nos ossos do pai já faz com que a

filha João volte a mostrar sua devoção:

- Deus o livre e guarde de ter uma fratura! Ele vai ficar

gritando até Deus falar, “agora você vem no meu lado”.

As dores, inclusive, são motivos para que Nina agradeça,

simplesmente porque o pai não as tem. Sem cabelo e sem barba,

aquele senhor de 1,75 m – como fez questão de contar – está mais

atrofiado pela falta de movimentos, mas tem o olho vivo, que

procura alguém para relembrar sua história. Talvez, por conta des-

ta incessante busca e essas tantas lembrança, nada doa. Ele é a pes-

soa que ainda faz questão de viver.

- Era para meu pai ter muitas dores e ele não tem. Não tem

febre nada. Nós da família sabemos a verdade dura e crua. Ele não

aceitaria isso e então a gente nem fala muito do assunto, explica Nina.

O que o pai não aceita é a dependência que ele passou a ter.

A própria filha conta que senhor João era uma pessoa muita ativa,

que gostava de cuidar da horta, plantar, além de paquerar bastante

as mulheres, inclusive amigas de Nina. Não poder fazer o aquilo

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Eles não quiseram o hospital

[ 87 ]

que fazia parte de sua rotina, deixa-o irritado, nervoso, a ponto,

inclusive, de discutir com a filha.

- Eu fico muito triste. Sofro porque é meu pai e a gente

nunca quer ver a pessoa que amamos daquele jeito. É todo um

conflito na minha cabeça e ainda tenho as responsabilidades de

casa, desabafa Nina.

***

Casada há 38 anos, Nina se preocupa com esposo, que dias

antes fez um exame de próstata, através do qual foi encontrada

uma alteração que levou o médico a pedir novas análises.

A espera pelos resultados é algo que abala Nina. A mulher

que fala forte e de forma convicta, se torna mais doce ao se referir

a Admir, fazendo questão de reforçar o quanto o admira.

-O meu pai estava internado e meu marido ajudava muito. Ele ia

de manhã para dar o café e fazer a barba, ao meio-dia para dar o

almoço e a noite pra dar a janta. Ele não deixou um dia de ir lá. Um dia!

Situação semelhante passa Juliana, a filha de Oscarina, que

também aguardava o resultado de um exame: o do pai dela. A jo-

vem de 28 anos, no entanto, não quis entrar em detalhes:

-Agora tenho que cuidar da minha mãe. Meu pai, nós vamos

esperar, cortou Juliana.

***

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Gláucia Franchini

[88]

Apesar de Nina e Juliana estarem nesta situação de an-

siedade, são diferentes as ajudas que elas recebem. A filha do se-

nhor João não tem uma vizinha “para todas as horas”, sendo sua

grande ajuda, o “Docinho”. O amparo vem igualmente com os

profissionais do SAID. Nina, assim como a filha de Oscarina, os

chama de “anjos” e isso não é simples coincidência.

- A gente nem sabia desse trabalho aqui em Campinas.

Aliás, é um trabalho de dar gosto, nos ajuda muito. É meu apoio,

meu tudo neste momento. Eles trouxeram tranquilidade para a

gente. Eu não os chamo de SAID, mas sim de “nossos anjos”. São

atenciosos, humanos, orgulha-se Nina.

As doutoras e a mestre em enfermagem trazem no trabalho

“Finitude Humana e Enfermagem”, além da análise do “preparo”

da morte, a relação entre profissional-família-doente. Logo na

introdução, as pesquisadoras apresentam a importância de se ter

um serviço com um cuidado que considere o lado “humano”,

assim como Nina fez questão de colocar. Os profissionais que

cuidam dos doentes e, como consequência das famílias deles,

devem considerá-los como “seres sociais e históricos, possuidores

de crenças, valores, experiências de vida, medos, angústias e incer-

tezas, expectativas e, por isso, dever ser respeitados, principal-

mente na vivência da situação de morte”.

Ainda sobre a aversão à perda, as autoras acrescentam ao

que a antropóloga Raquel caracterizou como morte contemporâ-

nea e trazem outras referências ao conceito de morte nos tempos

atuais: “remete à ideia de fim, de interrupção, de despedida, e de

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[ 89 ]

tantas outras questões para as quais não se encontram respostas e

isto assombra o ser humano.”

- Eu peço sempre em minhas orações, fala Nina, voltando-

se novamente para a fé.

***

Senhor João não demonstra estar incomodado com a pos-

sibilidade do fim. Não fala em Deus, não pede para melhorar. Ele

apenas vive. A crença que tem é na astrologia e com modéstia co-

menta que o melhor signo de todos é o Escorpião – o dele. Já o

meu – gêmeos – ele bem conhece e diz:

- Eu sei que quem é de gêmeos tem duas faces...

Após o comentário ele ri. E é bom vê-lo daquele jeito, ape-

sar da ofensa à geminiana. Também chamou atenção dele, o

relógio, as pulseiras e brincos dourados que eu usava:

- Quanto ouro! Você está valendo muito com essas coisas

nos braços e orelhas...

Na verdade, era tudo bijuteria. Todavia, além do riso

causado pelo comentário sobre a astrologia, os olhos de senhor

João brilharam com a possibilidade de tanta riqueza.

O mundo perde sem aquele sorriso, sem aquelas lembranças

e porque não, sem os poemas que ele tem guardado? Além das

flores, das borboletas e do um amor, os poemas tinham ritmo,

bem interpretados por seu autor.

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Gláucia Franchini

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“Não pode desanimar”

A conversa se dá no quarto dos pais de Marisa, agora tam-

bém, com a cama da própria. A paciente deitada pede à mãe girar a

manivela da cama hospitalar, a fim de ficar quase sentada. Apare-

cida atende ao pedido e se senta na cama de casal, indicando para

que eu faça ao mesmo. Sentadas, as duas choram por um tempo

consideravelmente longo. Ninguém interrompeu.

***

Foi Aparecida quem primeiro secou as lágrimas, coçou os

olhos, simulou um sorriso e enfim perguntou:

- Você quer saber o que ela tem, é isso?

Na verdade, era mais que isso. No entanto, com àquela se-

nhora era preciso falar de um jeito diferente, ir com mais calma,

com mais jeito. Por quê? A mãe perderia a filha, e isso simples-

mente não é a ordem na natural da vida.

Rita Khater, a psicóloga, já falou da aceitação de Juliana

perante a morte da mãe Oscarina, sendo que o inverso dessa expli-

cação serve para ilustrar o porquê de com Aparecida ser diferente.

“A gente tem aquele imaginário de que quem tem mais direito a vi-

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ver são os mais novos. Quando há a perda um filho, por ele ser mais

novo, choca muito mais. Pra família a dor sempre é igual, mas para as

pessoas a idade conforta, já que se segue uma lógica da própria vida.”

Aparecida está frente à situação que contraria a “lei da vida”.

Trasferetti, em seu trabalho, realizou entrevistas com mães e filhos

sendo que, quando era a parte materna que sofria a perda, ele

concluiu ser mais difícil. Segundo o teólogo, nestes casos, “se pen-

sa em toda a vida que poderia ter sido... e não foi.” Isso pode im-

pactar na perda de esperanças e sonhos futuros. Nesta fase, é

inadmissível falar da brevidade da vida.

- Eu gostaria que ela ficasse, diz com voz baixa e voltando a

chorar, a mãe Aparecida.

***

Naquele quarto, mãe e filha choram. A idosa se entristece

perante a doença da filha adulta e Marisa fica mais triste quando

fala de Luana, talvez por saber que não vai ver a filha se formando

na faculdade – na verdade, difícil será até poder estar com ela no

dia do vestibular.

- A Luana já prestou USP e ficou por um ponto na primeira

fase, diz Marisa com orgulho.

Sobre o presente, ela conta o quanto a filha estuda para pas-

sar num bom vestibular de Direito, opção profissional que preo-

cupa mãe e avó, por acharem que é área é muito difícil e vai exigir

bastante de Luana. Marisa gostaria que ela tivesse escolhido uma

profissão voltada ao cuidado:

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- Eu falei para ela fazer psicologia. Ela cuida de mim muito

bem, é uma menina centrada nas coisas. Eu acho que daria certo,

que ela seria boa nisso como psicóloga. Mas ela não quer porque

disse já ter muitos problemas aqui em casa.

Marisa considera os estudos algo muito importante e está

disposta a gastar “muitos mil reais” para ver a filha formada.

Todavia, mais uma vez surge o clichê ao tratar do fim: não há “mil

reais que paguem”.

Naquela cama, com falta de ar, Marisa é capaz de discutir

assuntos do cotidiano e se posicionar contra as bolsas de estudo

do governo, pois para ela “tira a responsabilidade dos filhos de

fazerem por si mesmo”. Seguindo a lucidez do senhor João, a

doente também critica a política de Campinas.

-Esses políticos deveriam pensar pelo menos na saúde. Isso

me entristece. Eu dependo dos hospitais públicos, sei como é.

A respiração de Marisa vai ficando mais difícil, mas mesmo

assim ela faz questão de falar. É como se precisasse contar,

compartilhar, deixar registrado aquilo que pensa. A preocupação

naquele instante era com Luana, pois a jovem pretendia fazer

faculdade em Minas Gerais.

- Quando chegar a hora de ela ir, a gente pensa. Mas tam-

bém, com a doença que estou...

Silêncio.

***

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É dona Aparecida quem retoma a conversa:

- Eu falo para a Marisa que não pode desanimar. Quando a

gente está triste, eu falo para a Marisa pegar na mão Dele.”

As imagens de Jesus, da Sagrada Família e os crucifixos se

concentram na sala da casa. Da porta do dormitório onde dorme

Marisa dá para ver bem a “Mãe Rainha” sobre a estante, que visita

a casa uma vez por mês. Aparecida reza e pede com extrema

devoção. No entanto, a filha doente, assume já não ser tão crente

em sua recuperação:

- A gente se apega, porque neste momento é só a fé mes-

mo. O problema é que estamos abaladas e isso abala também as

nossas orações. Ao mesmo tempo que eu me revolto, sei que se

com Deus já está difícil, imagine sem ele...

Para Marisa, a mãe é sua grande força, é a imagem de quem

não fica chorando por coisas pequenas e não deixa que a filha cho-

re, nem desista de lutar. Dona Aparecida pediu para as “moças da

igreja” darem comunhão à filha em casa. É também quem dá a

atenção que a paciente quer e a conversa que precisa.

- Ter minha mãe para mim é tudo.

Dizendo isto, o choro volta na face de Marisa que com

esforço conclui a fala:

- O que eu ia fazer sem minha mãe? Ela está sempre aqui,

principalmente quando eu mais preciso, quando eu desespero,

quando estou triste. Sei que ela sempre vai estar comigo, me in-

centivando a ficar bem, falando que vou sair dessa.

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Esta presença da mãe é algo muito importante para a saúde

física e emocional de Marisa. Além do cuidado de dar os remédios,

oferecer a vitamina, ir pro CAISM, ou ligar para o SAID quando

necessário, a simples presença de Aparecida conforta a filha. No

trabalho das enfermeiras doutoras e da mestre na área, é destacada

a relevância de se ter alguém do lado do paciente que se despede:

“A presença das pessoas de suas relações afetivas pode traduzir-se

na garantia de que terá companhia até o fim, pois se trata real-

mente de uma trajetória única, inadiável, um momento para buscar

a preparação da morte.”

A mãe se faz presente conciliando os afazeres domésticos e

sorri – por segundos - satisfeita por a filha estar em casa e não em

um quarto de hospital.

- No hospital a Marisa não queria ficar, porque lá não tem

ninguém que dê muita atenção, não tem ninguém para conversar

com ela. Eu tenho que fazer os serviços de casas, mas é só ela me

chamar que eu estou aqui, completa a mãe.

A filha de dona Aparecida naquelas palavras anteriores revê-

la que a cuidadora é um dos grandes motivos pelos quais ela ainda

luta – o outro se apresenta perante as preocupações em torno do

futuro de Luana. O câncer, Marisa conta, abala todo o psicológico

do doente, além das dores, da falta de ar, de não conseguir fazer

força para expelir o que ingere...

Durante a revelação da filha, Aparecida chora a ponto de ter

que enxugar com um pano, as lágrimas que escorriam. A mãe de

Marisa, apesar de toda tristeza, não desiste dos santos. Com tantas

preces pela recuperação da paciente, a idosa configura-se na fase

que a médica Kubler chama de “barganha”. Nesta, o apelo por um

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milagre predomina, é a hora que os cuidadores e os doentes fazem

as promessas. Aparecida não revela qual.

***

O quadro clínico de Marisa não é revelado a família em

plenitude. Os enfermeiros do serviço confirmam que o câncer já

tinha metástases, inclusive, no cérebro, mas isso, eles não contar a

mãe e a filha doente. Não precisa.

- Eu sei que estão tendo metástases, mas os enfermeiros não

falam com a gente direitinho o que eu tenho. Eu sei que tem

porque eu sinto os caroços. Não me falaram se teve cura ou se não

teve. Só falam que estão tratando e eu fico aqui. Isso até, às vezes,

me deixa chateada, desabafa Marisa.

Pela nova resolução do Código de Ética Médica, para que o

paciente possa optar pelo tratamento que lhe convir, ele tem que

estar ciente de seu estado clínico. Nesta mesma linha segue o

trabalho “Finitude Humana e Enfermagem”, no qual as enfer-

meiras defendem que “mesmo que a família tenha dificuldades em

aceitar ocorrências negativas em relação ao estado de seu familiar

com a possibilidade de morte, ela tem o direito de saber o que está

acontecendo, agir, reagir e tomar decisões”.

Dona Aparecida também não é comunicada dos avanços da

doença. Os profissionais do SAID assumem isso, sob a justificativa

de que é o melhor. Eles, simplesmente, também entenderam que

naquela família é diferente. As palavras devem ser ditas mais devagar,

de um jeito mais sutil. Tem coisa, aliás, que não precisa ser dita.

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Foi bom vê-lo sorrir

“Não se imortaliza a perda escrevendo sobre eles. A escrita enterra,

mas não ressuscita.”

(John Green – “A culpa é das estrelas”)

Já disseram que não é possível sair de uma história de for-

ma impune. De três também não dá.

A maior dificuldade de estar numa situação em que a morte

é iminente, não é pensar que “poderia ser com a gente”. Mas sim,

saber que tudo que for feito ali não será capaz de reverter aquilo

que já se previa, o fim. É exatamente a falta de poder fazer algo

que frustra em uma atividade como esta.

Sim, foi um trabalho um pouco frustrante. Não pelo resul-

tado – este ainda virá -, mas pelo processo.

Na segunda visita ao SAID, após a conversa com Juliana, o

nome de Oscarina já estava na lousa escrita à giz, na parte

“Internação”. Isto sinalizava que o quadro da mãe da jovem de 28 anos

tinha piorado e a filha teve que levá-la para o hospital, de onde partiria.

Que palavras poderiam amenizar a dor daquela filha? Nada

que fosse dito, tampouco tudo isso que foi escrito.

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[ 97 ]

***

Também o nome de Marisa apareceu na lousa. Este, inclusive,

causou uma sensação de não ser verdade. De não poder ser.

No caso desta família, há necessidade de se esclarecer, que

pedi licença aos leitores e fiz questão de mostrar o envolvimento

com aquela situação, simplesmente porque não consegui me

distanciar daquelas mulheres. Marisa era a mãe com as preocu-

pações que a minha tem. Aparecida muito se assemelha – até nos

olhos azuis – com a minha avó, que tinha o jeito italiano e um colo

tão materno. Luana é exatamente o que sou – jovem, com sonhos

e um longo caminho até eles.

Se o jornalismo é a imparcialidade, surpreende a frase da

jornalista Eliane Brum. A repórter da revista Época, em seu livro,

escreve que há situações em que não se consegue compreender o

caso, se assim fizer de forma racional, devendo, portanto

“entender com o coração”.

Com o nome da mulher de 39 anos na lousa, os enfermei-

ros logo explicaram:

-De hoje não passa.

E de fato, não passou.

Por telefone, arrisquei dizer à Aparecida: “Meus

sentimentos”.

Estas palavras pareceram não dizer nada, e de fato não

disseram. Que palavra traz Marisa de volta? Mas, falei porque

realmente senti. Queria ter podido voltar e ver Marisa orgulhosa da

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filha por ter passado no vestibular. Dona Aparecida, seria bom vê-

la mais tranqüila, conseguindo descansar mais. Sofri por ter que

terminar o nosso contato desta forma.

***

Com o ex-mestre de obras fica a vontade de ter sabido mais

sobre a história dele. As horas passadas na companhia de senhor

João e de sua filha foram poucas, deixando a vontade de te mais

tempo, quando este se acabava.

Paralelo a isso, queria-se deixar àquela situação, com receio

de se envolver demais e depois também chorar a perda.

Se o amigo de JK tinha lembranças, agora ele faz parte das

minhas. O poema que recitou, embora decorado e talvez já dito há

tantas mulheres, deixou-me lisonjeada, como se fosse uma verda-

deira declaração de amor. Ele me disse que tinha gostado mesmo

de minha presença ali. Ouvir isto dos lábios do pai de Nina tornou

o trabalho mais equilibrado, com resquícios de satisfação.

Foi bom vê-lo sorrir novamente e se emocionar assim que

fui embora. Só nesta hora, ele deixou escapar algumas lágrimas.