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1 OS MEGAEVENTOS E O MITO DA REDENÇÃO URBANA: LEGADO URBANO PARA AS GERAÇÕES FUTURAS OU MAIS UMA FORMA DE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA? ANDRADE, Vitória Régia de Lima (1); LAPA, Tomás de Albuquerque (2); BRANDÃO NETO, José de Souza (3). (1)Arquiteta e Urbanista, Diretora da Cardus Estratégias Urbanas e Arquitetura e Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Pernambuco. [email protected] (2) Arquiteto e Urbanista, Doutor pela Universidade de Paris I, Professor Titular no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. [email protected] (3) Arquiteto e Urbanista, PhD pela Architectural Association School of London, Professor Adjunto II no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. [email protected] Resumo Nos Jogos Olímpicos de 1992 e 2008, metrópoles como Barcelona e Pequim demonstraram que, através do planejamento integrado, é possível promover tanto a renovação quanto o desenvolvimento urbano em áreas degradadas. Nesse artigo, busca-se analisar o caso do Recife, no Estado de Pernambuco, como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. Porque uma cidade com problemas sociais tão agudos deve preocupar- se em sediar megaeventos internacionais? De fato, se a Copa do Mundo for reduzida a um mero acontecimento esportivo, não faz sentido. Entretanto, se o foco estiver no legado urbano deixado pelo evento, sediar a Copa pode representar uma oportunidade para promover a reestruturação da Região Metropolitana do Recife. Equipamentos esportivos, espaços públicos, hotéis, estradas, saneamento básico, transporte urbano, segurança pública, aeroportos, energia e telecomunicação, são alguns dos investimentos essenciais ao êxito do evento. Porém, o simples cumprimento dessas demandas não é o suficiente para assegurar o efeito desejado. É necessário que a estratégia, em escala metropolitana, seja capaz de articular as demandas, criar sinergia de esforços e potencializar os efeitos benéficos. As parcerias entre setor público e privado seria uma forma de concretizar o “pacto urbano” permitindo associar a visão dos planejadores públicos com a agilidade e senso de mercado das instituições privadas? O artigo tem como objetivo trazer à luz elementos que permitam a compreensão da lógica de organização do espaço metropolitano do Recife, de modo a subsidiar a avaliação do legado que poderá permanecer após a realização dos jogos internacionais. Palavras-chave: Megaeventos, Legado Urbano, Parceria Público-Privado.

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Page 1: OS MEGAEVENTOS E O MITO DA REDENÇÃO URBANA: LEGADO … · pelo marketing urbano, em torno de megaeventos como a Copa do Mundo, que alimentam o mito de uma verdadeira redenção

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OS MEGAEVENTOS E O MITO DA REDENÇÃO URBANA:

LEGADO URBANO PARA AS GERAÇÕES FUTURAS OU MAIS

UMA FORMA DE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA?

ANDRADE, Vitória Régia de Lima (1); LAPA, Tomás de Albuquerque (2);

BRANDÃO NETO, José de Souza (3).

(1)Arquiteta e Urbanista, Diretora da Cardus Estratégias Urbanas e Arquitetura e Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Pernambuco. [email protected] (2) Arquiteto e Urbanista, Doutor pela Universidade de Paris I, Professor Titular no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. [email protected] (3) Arquiteto e Urbanista, PhD pela Architectural Association School of London, Professor Adjunto II no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. [email protected] Resumo

Nos Jogos Olímpicos de 1992 e 2008, metrópoles como Barcelona e Pequim demonstraram que, através do planejamento integrado, é possível promover tanto a renovação quanto o desenvolvimento urbano em áreas degradadas. Nesse artigo, busca-se analisar o caso do Recife, no Estado de Pernambuco, como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014.

Porque uma cidade com problemas sociais tão agudos deve preocupar-se em sediar megaeventos internacionais? De fato, se a Copa do Mundo for reduzida a um mero acontecimento esportivo, não faz sentido. Entretanto, se o foco estiver no legado urbano deixado pelo evento, sediar a Copa pode representar uma oportunidade para promover a reestruturação da Região Metropolitana do Recife. Equipamentos esportivos, espaços públicos, hotéis, estradas, saneamento básico, transporte urbano, segurança pública, aeroportos, energia e telecomunicação, são alguns dos investimentos essenciais ao êxito do evento. Porém, o simples cumprimento dessas demandas não é o suficiente para assegurar o efeito desejado. É necessário que a estratégia, em escala metropolitana, seja capaz de articular as demandas, criar sinergia de esforços e potencializar os efeitos benéficos.

As parcerias entre setor público e privado seria uma forma de concretizar o “pacto urbano” permitindo associar a visão dos planejadores públicos com a agilidade e senso de mercado das instituições privadas? O artigo tem como objetivo trazer à luz elementos que permitam a compreensão da lógica de organização do espaço metropolitano do Recife, de modo a subsidiar a avaliação do legado que poderá permanecer após a realização dos jogos internacionais.

Palavras-chave: Megaeventos, Legado Urbano, Parceria Público-Privado.

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Abstract

During the preparation of the 1992 and 2008 Olympic Games, Barcelona and Peking demonstrated that, through integrated urban planning, it is possible to promote both renovation and urban development in degraded areas. This paper searches to analyze the case of Recife, the capital of the State of Pernambuco, as one of the 2014 World Cup host cities.

Why a town characterized by such acute social problems should worry about hosting international mega-events? Indeed, if the World Cup is reduced to an international sport event, it doesn’t make any sense. Nevertheless, if the main issue is about the remaining legacy after the games, to host the World Cup could represent an interesting opportunity to promote the reorganization of the Recife metropolitan area. Sport equipment, public spaces, hotels, roads, basic sanitation, urban mobility, public security, airports, energy and telecommunications are some among many others essential investments which must be made in order to have a successful event. Nevertheless, only accomplishing those aspects will not ensure the expected effectiveness. It is necessary to conceive a strategy plan at regional scale which could articulate the demands, creating synergy of efforts and multiplying the benefits. The partnership between public and private sectors are the way to realize the ”urban deal” which will allow bring together the public management vision with the capacity of investment and sense of opportunity of the private institutions. This paper aims to enlighten the comprehension of the organizational logic of the Recife Metropolitan Region (RMR) in order to evaluate the importance of the legacy which can remain after the realization of the 2014 World Cup. Keywords: Mega events, Urban Legacy, Public and Private Partnership.

Introdução

O presente artigo lança uma visão crítica sobre a expectativa veiculada

pelo marketing urbano, em torno de megaeventos como a Copa do Mundo, que

alimentam o mito de uma verdadeira redenção urbana. Este tipo de expectativa

é tanto mais forte na medida em que as cidades que servem de suporte às

atividades esportivas situam-se em contextos sociais, políticos e econômicos

problemáticos, nos quais a capacidade de decisão do poder público, em suas

distintas esferas, cede terreno, ou mesmo subordina-se à força e ao poder do

capital imobiliário. Não há dúvida de que a realização de megaeventos pode

funcionar como forma de atrair parcelas significativas do capital financeiro e

imobiliário com vistas à realização de investimentos que podem contribuir para

o desenvolvimento local e regional. No entanto, para isso é necessário que os

novos equipamentos e setores urbanos planejados estejam consoantes com o

papel estratégico que a cidade desempenha, do ponto de vista físico-territorial,

social, político e econômico na região na qual está inserida.

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De fato, experiências anteriores têm demonstrado que ações

concertadas nos diferentes níveis de poder, local, regional e nacional podem vir

a surtir efeitos positivos no sentido de inserir na dinâmica da cidade e da região

os novos equipamentos e setores, como legado após a realização do

megaevento. Um dos casos mais conhecidos e paradigmáticos é o da cidade

de Barcelona que, através de uma série de intervenções urbanas, motivadas

pelos Jogos Olímpicos de 1992, resgatou em grande medida sua importância

no cenário turístico internacional. Além dos equipamentos esportivos para o

evento, o governo local implantou um amplo plano de renovação urbana

integrada que foi capaz de transformar a antiga área portuária e as zonas

industriais desativadas em bairros residenciais providos de equipamentos

turísticos.

Outro exemplo mais recente foi o da cidade de Pequim que, também

através de novos equipamentos arquitetônicos e urbanos, construídos para

abrigar os Jogos Olímpicos de 2008, impressionou a todos, destacando o papel

da China nessa nova ordem mundial. O governo chinês pôs em prática um

grande plano de adequação urbanística que, além de preparar a cidade para

abrigar os Jogos, serviu para renovar a infraestrutura urbana da região. Não

seria exagero, portanto, afirmar que essa temática ocupa em nossos dias um

lugar relevante no contexto do planejamento urbano.

A fundamentação teórica desses trabalhos está relacionada com

conceitos diversos e multidisciplinares como globalização, planejamento

estratégico e operações urbanas consorciadas, oriundos, respectivamente, das

áreas de economia, gestão e do próprio urbanismo. A discussão detalhada

desses conceitos implica, portanto, uma visão multidisciplinar que levaria a

reflexão por campos que extrapolam o propósito do artigo. Neste caso, o artigo

lança o foco sobre o fato de a cidade do Recife, capital do Estado de

Pernambuco, ter sido contemplada como uma das sedes da Copa do Mundo

de 2014. Dessa forma, busca discutir até que ponto a realização do

megaevento pode contribuir com um legado importante para o processo de

organização do espaço metropolitano, após sua realização, ou se trata de uma

nova forma de estabelecer o acordo tácito entre poder público e capital

imobiliário.

1. O Recife no contexto da sua Região Metropolitana

O Recife é uma das três capitais, juntamente com Salvador e Fortaleza,

que desempenham função de polo para todo o Nordeste do Brasil. No contexto

brasileiro, a região Nordeste apresenta índices sociais e econômicos que ainda

estão distantes de um verdadeiro estágio de desenvolvimento.

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FIGURA 01 – REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE E GOIANA – PE.

FONTE: CARDUS ESTRATÉGIAS URBANAS E ARQUITETURA, 2014

A Região Metropolitana do Recife - RMR é composta de catorze

municípios que, juntos, formam uma grande mancha urbana. Ocupa 2,82% do

território pernambucano, com uma população de aproximadamente 3.700.000

habitantes e representa cerca de 70% do PIB do Estado de Pernambuco. Sua

economia é diversificada, contando com um parque industrial que vem

tomando vulto nos últimos anos, em consequência da consolidação do

complexo industrial-portuário de Suape, além de um setor terciário importante.

A RMR exerce um papel de destaque na economia do Nordeste, sendo

responsável por 35% do PIB nordestino, num arco de 300 quilômetros.

Concentra a maior densidade de recursos humanos qualificados da região e

ocupa uma posição geográfica estratégica com relação às rotas direcionadas

para a Europa e os Estados Unidos.

Alguns investimentos públicos, realizados nas últimas décadas,

contribuíram para maior inserção da economia da Região Metropolitana do

Recife no contexto nacional e internacional, além de favorecer a integração dos

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municípios que a compõem. Dentre eles, deve-se destacar a implantação de

determinados empreendimentos no complexo industrial-portuário de Suape,

como o Estaleiro Atlântico Sul. Mais de cem empresas já estão em

funcionamento, dentre as quais a Refinaria de Petróleo Abreu e Lima, enquanto

outras cinquenta empresas estão em via de implantação. Atualmente

respondem pela criação de mais de 25 mil empregos diretos. Tais

empreendimentos vieram mudar o perfil da economia do Estado, produzindo

efeitos diretos, sobretudo na Região Metropolitana do Recife, contribuindo para

reforçar a imagem do Estado no cenário nacional e internacional.

Outro empreendimento digno de destaque foi a ampliação do Aeroporto

dos Guararapes cuja pista foi adaptada para receber grandes aeronaves

provenientes de rotas internacionais que, por sua vez, conectam o Recife e sua

região com importantes destinos comerciais. Além disso, a duplicação de um

trecho da rodovia BR 232, no sentido leste-oeste e a duplicação da BR-101,

que atravessa o Estado de norte a sul, contribuíram para maior fluidez nestes

importantes eixos rodoviários que cortam o estado de Pernambuco.

Mais recentemente a consolidação do polo de desenvolvimento do litoral

norte do Estado com a implantação da cadeia automotiva capitaneada pela

FIAT robusteceu as iniciativas já em curso das atividades farmacoquímicas em

implantação, repercutindo positivamente para além das fronteiras de

Pernambuco.

Não obstante a relevância dos empreendimentos citados acima e de

toda uma tradição de planejamento urbano e regional que data da década de

1950, quando dos prognósticos traçados pelo Padre Louis-Joseph Lebret

(2001) para a Região Metropolitana do Recife, falta integração e coerência no

processo de planejamento e gestão do espaço metropolitano. Seria possível

estampar, de forma esquemática, a problemática socioeconômica e espacial do

Recife e de sua Região Metropolitana, vista a partir dos elementos basilares

que a constituem?

2. Configuração espacial e lógica de organização do espaço

Desde os primórdios de sua ocupação, o Recife consolidou-se segundo

uma malha rádio concêntrica, com origem na zona portuária, onde se encontra

o marco zero. Aliás, no dizer de Josué de Castro (1948), a cidade foi criada

para servir ao porto. Apesar da importância do porto para a cidade e para a

região, desde a criação do complexo industrial portuário de Suape, na década

de 1970, que o Porto do Recife perdeu parte de suas funções, falando-se

desde então em adequá-lo às funções de terminal de passageiros, tendo em

vista a importância do turismo para a região.

A partir deste ponto, destaca-se uma zona central, onde se concentra

um importante conjunto arquitetônico e urbanístico, de valor histórico e cultural,

que corresponde ao bairro do Recife, aos bairros de Santo Antônio e de São

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José, além da Boa Vista. A despeito de sua importância histórica e cultural e da

existência do porto, a zona central do Recife tem sofrido nas últimas décadas

um processo de abandono e degradação que expõe um enorme estoque de

espaços construídos, subutilizados, ou simplesmente abandonados (ALVES,

1999). Na década de 1990, a zona central foi objeto de iniciativas de

revitalização, sobretudo no bairro do Recife. Atualmente, a sustentabilidade

dessas iniciativas, a saber a atribuição do uso adequado ao porto e, por outro

lado, a reutilização do estoque de espaços subutilizados e vazios, constitui um

enorme desafio, tendo em vista que o projeto de reocupação sofre com a

lentidão e com lapsos de continuidade.

Partindo da zona central, observa-se um vetor de penetração da

ocupação do território urbano, em direção oeste. Em termos locais, esse vetor

corresponde à sequência formada pelos eixos das avenidas Conde da Boa

Vista e Caxangá, dentro do perímetro urbano, e pela sequência formada pela

Av. Abdias de Carvalho e pela rodovia BR-232, principal via de acesso ao

interior do Estado de Pernambuco. Com base em estudos de aplicação da

técnica de análise da lógica espacial (HILLIER, 1984) ao território do Recife,

demonstrou-se que esse vetor leste-oeste constitui um dos dois eixos que mais

promovem integração no seu espaço urbano.

As características edáficas e hidrográficas do solo onde está assentada

a cidade do Recife fizeram com que os primeiros caminhos utilizados para

escoamento da produção do açúcar correspondessem ao leito dos rios que

cortam o território. Em seguida, os caminhos de terra foram o resultado da

consolidação do material de aluvião, carreado pelos rios que formam o estuário

da planície do Recife (VASCONCELOS SOBRINHO, 1971) Tendo em vista a

importância do porto, a configuração do sistema viário, que se mantém, grosso

modo, com as mesmas características até os dias presentes, é a dos dedos de

uma mão aberta.

Não obstante a evidência do modelo rádio concêntrico, o processo de

ocupação e valorização do solo urbano, intensificado a partir da década de

1970, reforçou o vetor de crescimento no sentido norte-sul, ao longo do litoral.

Localmente, esse vetor corresponde às vias perimetrais que interligam as

nucleações situadas ao sul e ao norte do Recife. A aplicação da técnica de

análise da lógica espacial (HILLIER, 1984) demonstrou que essas linhas

perimetrais constituem o outro grande eixo integrador do espaço urbano e

metropolitano do Recife. É dessa forma que se justifica o desenho esquemático

de um arco e de uma flecha cruzados para ilustrar as linhas mestras das forças

que estruturam o espaço urbano e metropolitano do Recife.

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FIGURA 02 – REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE–LINHAS ESTRUTURADORAS DO ESPAÇO URBANO

FONTE: CARDUS ESTRATÉGIAS URBANAS E ARQUITETURA, 2014

3. Elementos de Estruturação do Espaço

No início da década de 1950, Baltar (1999) idealizou um modelo de

organização do espaço que preconizava a descompressão da área central do

Recife em direção à periferia. Fundamentava-se no reforço da base econômica,

da prestação de serviços e comercial dos municípios satélites, de modo a

reduzir ao mínimo os deslocamentos pendulares, dentro do espaço

metropolitano. A partir da década de 1970, a Fundação de Desenvolvimento da

Região Metropolitana do Recife – FIDEM tomou o modelo de Baltar como

referência, ajustando-o à metodologia recomendada pelo modelo matemático

de Lowry.

O modelo daí resultante também se fundamentava no reforço da base

econômica, da prestação de serviços e comércio dos municípios satélites e, de

maneira específica, calcou fortemente sua lógica na criação de um segundo

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polo metropolitano de atividades administrativas, de serviços e de habitação,

situado na zona oeste e articulado ao núcleo central do Recife através do trem

metropolitano. Pouco foi implementado do megaprojeto do 2º Polo

Metropolitano, à exceção do Terminal Integrado de Passageiros (TIP) e do

trecho do trem metropolitano, entre este terminal e a Estação Central do

Recife.

Entre outros fatores, o fracasso do projeto, originalmente concebido

como uma experiência de planejamento integrado (LAPA, 1992), deu-se pela

falta de articulação entre os principais atores envolvidos: uns estavam movidos

pela lógica e pelos interesses que caracterizam o processo de financiamento

dos sistemas de transporte de massa, e outros pela lógica própria e pelos

tempos necessários à realização do capital imobiliário.

O modelo de organização espacial preconizado pela FIDEM serviu de

guia para os planejadores da Região Metropolitana do Recife até a década de

1990, quando o mundo todo assistiu à crise generalizada do planejamento,

fortemente explicada, entre outros motivos, pela queda do Muro de Berlim e

pelo esfacelamento do bloco soviético. O último documento de planejamento

que contemplou globalmente todo o espaço da Região Metropolitana do Recife

foi o “Metrópole Estratégica” (2005), elaborado no início da década de 2000.

Desde então, de que forma se poderia resumir o conjunto dos principais

elementos em função dos quais se estrutura o espaço urbano e metropolitano

do Recife?

No território metropolitano central, destaca-se o patrimônio cultural,

situado, sobretudo no núcleo histórico do Recife. Este mesmo núcleo abriga o

projeto do Porto Digital, caracterizado como um polo de inovação tecnológica.

Alem disso, nos limites do centro expandido localiza-se o polo médico do

Recife, tido como o segundo em importância no país.

Na porção sul do território metropolitano, a uma dezena de quilômetros

do núcleo central, está situado o aeroporto internacional. Mais ao sul, a uma

distância de cinquenta quilômetros, situa-se o complexo industrial portuário de

Suape e um polo turístico.

Ao norte do núcleo central, dentro do perímetro urbano, situa-se uma

zona de ocupação em terrenos com declividade acentuada que constituem

grandes bolsões de pobreza. Essas zonas representam um grande desafio

para os gestores públicos, no que diz respeito a dotá-las de infraestrutura e

serviços e garantir sua manutenção.

Mais ao norte, a distâncias aproximadas de trinta e quarenta

quilômetros, situam-se alguns centros urbanos, a exemplo da cidade de

Igarassu e da Ilha de Itamaracá, que conservam valores históricos, artísticos e

naturais, valendo-lhes o interesse do setor turístico. Ainda mais ao norte do

Estado, está em construção um polo farmacoquímico, além de uma montadora

de automóveis do grupo FIAT. Para viabilizar este novo polo industrial ao norte

do Estado, o governo planeja a implantação do arco metropolitano que deverá

ligar esta região ao Porto de Suape, ao sul.

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Ao longo dos eixos perimetrais, concêntricos com relação ao núcleo

central, situa-se a maior parte das unidades industriais que se encontram no

território urbano do Recife e de sua Região Metropolitana. O fato se explica

pelo direcionamento dos fluxos que provêm do sul do país, onde se origina o

grosso da produção industrial brasileira. Dentro dos limites do perímetro

urbano, concentraram-se inicialmente algumas indústrias, tendo dado lugar, em

seguida, a prestadoras de serviços, transportadoras e concessionárias de

automóveis. Localmente esse trecho corresponde à Av. Mascarenhas de

Morais. Ao longo do arco que corresponde aos limites do território do município

do Recife estão situados os chamados distritos industriais da Região

Metropolitana do Recife.

FIGURA 03 - PRINCIPAIS VIAS DE PENETRAÇÃO NO ESPAÇO METROPOLITANO DO RECIFE

FONTE: CARDUS ESTRATÉGIAS URBANAS E ARQUITETURA, 2014

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Nos últimos anos, esta região vem assistindo a dois fenômenos

aparentemente antagônicos. Por um lado, anuncia-se a implantação de seis

novas cidades planejadas, localizadas nos interstícios entre Suape, ao sul, e o

município de Goiana, ao norte. Dessa forma, busca-se consolidar a malha

urbana ao longo da costa pernambucana, num continuum de aproximadamente

100 quilômetros. Por outro lado, o município do Recife, já completamente

urbanizado, sofre um processo de verticalização, que tem alterado

radicalmente a sua paisagem, com consequências sobre a capacidade de

carga das infraestruturas urbanas instaladas.

Com pouca transparência, no que diz respeito à gestão pública dos

instrumentos de uso e ocupação do solo, o capital imobiliário, aplicado para

fazer frente à demanda de moradia, tem levado a constantes embates na luta

pelos espaços livres de grandes dimensões na cidade do Recife. Dessa forma,

grandes projetos têm sido anunciados para ocupação das glebas

remanescentes, caracterizando operações de renovação urbana de grande

porte que envolve a construção de torres monofuncionais, sejam habitacionais

ou empresariais, com altas densidades e acentuada verticalização.

No que diz respeito aos sistemas de transporte de massa por via fixa, o

Recife dispõe de duas linhas de trem metropolitano de superfície, o chamado

Metrorec. Uma das linhas dirige-se para oeste e, através de uma bifurcação,

atinge duas localidades, uma situada mais a oeste e outra a nordeste. Desde o

momento da implantação da linha em direção oeste, alguns técnicos e

planejadores do Metrorec consideraram que o trem metropolitano poderia ser o

elemento estruturador a induzir a descompressão do núcleo central do Recife.

Porém, nenhum esforço foi feito no sentido de dar um tratamento preferencial

de modo a otimizar a ocupação do solo, com usos diversificados ao longo das

faixas lindeiras.

Além do sistema de transporte por via fixa, tanto o município do Recife

quanto os municípios satélites são interligados por uma extensa rede de linhas

de ônibus cujo processo de gestão deixa a desejar sob vários aspectos.

Para completar a síntese dos elementos de estruturação do espaço do

Recife e de sua Região Metropolitana, cabe situar o projeto denominado

Cidade da Copa.

4. A Cidade da Copa no contexto do espaço metropolitano

Desde que o Recife foi incluído como alternativa para sediar os jogos da

Copa do Mundo, o debate sobre a escolha da área para a Arena da Copa

mobilizou vários segmentos da sociedade. Apesar de o Recife contar com três

tradicionais clubes de futebol – Náutico, Santa Cruz e Sport, cujas sedes estão

instaladas na malha urbana da cidade, uma área distinta foi escolhida para

construção da Arena de Pernambuco. Inicialmente, a proposta do Governo do

Estado contemplava uma área no Bairro de Salgadinho, na divisa entre o

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Recife e Olinda. Porém, essa área foi descartada, dados os altos custos de

desapropriações1. Na realidade, um plano muito mais ambicioso estava em

gestação dentro do Governo de Pernambuco.

Em definitivo, a área escolhida para construção da arena localiza-se em

São Lourenço da Mata, município integrante da Região Metropolitana do

Recife. Situa-se praticamente no centro geográfico da Região Metropolitana,

entre as margens do rio Capibaribe e da BR-408, na confluência dos

municípios do Recife, de Jaboatão dos Guararapes, de Camaragibe e de São

Lourenço da Mata.

FIGURA 04 TERRENO DESTINADO Á CIDADE DA COPA - A PARTIR DA BR 408, CENTRO DO RECIFE AO

FUNDO.

FONTE: CT PIRES ADVOGADOS – EIA RIMA CIDADE DA COPA, 2012, p.54 e 55.

O Governo do Estado justificou a sua opção por esta área em função de

dois argumentos: por um lado, tratava-se de uma área de sua propriedade e,

por outro lado, o empreendimento poderia extrapolar em muito o conceito de

arena multiuso, lançando a ideia de agregar a arena, uma Cidade da Copa.

Dessa forma, reforçava-se o antigo desejo de criar uma nova centralidade

metropolitana na nucleação oeste2, a exemplo dos outros grandes

investimentos já em curso, nas nucleações sul e norte da RMR.

1 Estimados na época em cem milhões de reais.

2 Sobre esta temática, ver a tese de Antônio Bezerra Baltar, intitulada Diretrizes de um plano Regional

para o Recife in: LEME, Maria Cristina da Silva (coord.). Urbanismo no Brasil, 1895-1965. FUPAM,

Studio Nobel, CNPq São Paulo, 1999; ver também MELO, Norma Lacerda de e ZANCHETI, Sílvio

Mendes, in: Planejamento Territorial e Governabilidade na Região Metropolitana do Recife, XXI

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A cidade da copa surgiu primeiramente como oportunidade para

implantação de novos equipamentos urbanos públicos (arena multiuso, centro

administrativo, hospital, escola técnica, entre outros). Dentre estas demandas,

acrescentou-se a necessidade de atender ao déficit habitacional dos servidores

estaduais, como público potencial à apropriação da oferta de moradia. A arena

funcionaria como equipamento-âncora do novo empreendimento urbanístico,

estimado preliminarmente em R$ 1,6 bilhão, e seriam viabilizados através de

uma operação urbana com a iniciativa privada.

Situada a 19 km do porto do Recife e a igual distância do aeroporto

internacional, o projeto da Cidade da Copa previa a ocupação total de uma

área de 239 Ha. Para tanto, as principais vias de acesso à Região

Metropolitana do Recife - as rodovias sob jurisdição federal BR-232, BR-101 e

BR-408, representaram um grande atrativo, facilitando o acesso direto à área.

Tendo em vista que a BR-232 já se encontrava duplicada e que a BR-101

estava em processo de duplicação, foi reforçada a necessidade de duplicação

da BR-408.

No plano apresentado pelo Governo do Estado, também foi prevista a

ampliação da rodovia UR-7, além da implantação de um sistema de transporte

operado por Veículo Leve sobre Pneus – VLP. Para garantir a ligação com a

Cidade da Copa, foi criada a Estação Cosme e Damião do trem metropolitano,

juntamente com um novo ramal. Essa nova estação foi planejada para

possibilitar o acesso ao Terminal Integrado de Passageiros (TIP)3, de onde

partem e aonde chegam as linhas de ônibus intermunicipais e interestaduais. O

Plano de mobilidade lançado pelo Governo do Estado previu que o VLP

substituiria o trem a diesel que atualmente faz o percurso desde a Estação

Curado, localizada no TIP até o centro da cidade do Cabo de Santo Agostinho.

Encontro Anual da ANPOCS. Ver ainda FIDEM, Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região

Metropolitana do Recife - PDI, 1976. 3 Construído em 1976 e colocado em operação somente dez anos após, quando da implantação do trem

metropolitano – METROREC.

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FIGURA 05 O TERRENO DESTINADO Á CIDADE DA COPA NO CONTEXTO DA NUCLEAÇÃO OESTE DA RMR

FONTE:CARDUS ESTRATÉGIAS URBANAS E ARQUITETURA, 2014

Os argumentos em favor da escolha de São Lourenço da Mata como

sede da Cidade da Copa foram sua localização estratégica no contexto

metropolitano, a plena acessibilidade e mobilidade, a possibilidade de

adensamento e expansão urbana da área, a possibilidade de valorização

ambiental, a inclusão social e a reabilitação urbana do território com a

implantação do projeto.

O discurso baseou-se no fato de que a nucleação oeste da Região

Metropolitana do Recife estava recebendo diversos investimentos,

principalmente privados, o que legitimaria a ocupação da área. Além disso,

considerou-se como predominantes o uso residencial de baixa densidade e a

tipologia de condomínios horizontais para uma população de média/alta renda,

pois na mesma época, foi lançado o Alphaville Francisco Brennand, situado na

margem oposta à área destinada à Cidade da Copa.

O fato de que o terreno pertencia ao Estado, foi colocado como um

facilitador para viabilizar o formato jurídico de uma Parceria Público-Privada.

Logo em seguida, um grupo econômico nacional demonstrou interesse em

realizar os estudos de viabilidade para o lançamento de um edital para este fim.

Em 29 de outubro de 2008, o comitê gestor do Programa de Parcerias Público-

Privadas de Pernambuco autorizou a Norberto Odebrecht S/A e ISG Brasil

Empreendimentos a realizarem o projeto básico e os demais estudos

necessários, tomando como referência, o Master Plan da Cidade da Copa já

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desenvolvido pelo Núcleo de Operações Urbanas da Secretaria de

Planejamento do Governo do Estado.

FIGURA 06 O MASTER PLAN CIDADE DA COPA – PLANO GERAL - NUCLEO DE OPERACOES URBANAS DA

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

FONTE: BRANDÃO, ZECA, ORG. NÚCLEO TÉCNICO DE OPERAÇÕES URBANAS – ESTUDOS 2007-2010.RECIFE,CEPE, 2012 P.161

Além do Estádio, o Master Plan desenvolvido pelo governo previa a

construção de nove mil unidades habitacionais para atender demanda dos

funcionários públicos estaduais, a implantação do Hospital Metropolitano

Oeste, a implantação de uma escola técnica, de um campus da Universidade

de Pernambuco, de um centro comercial e áreas para hotelaria, residências

unifamiliares e flats. Para preservação dos remanescentes de Mata Atlântica, o

projeto reservava seiscentos mil metros quadrados.

Ao colocar em prática o conceito de um novo bairro planejado onde a

diversidade de usos e de classes sociais promove o modelo urbanístico

preconizado pela Academia, esperar-se-ia criar um ambiente verdadeiro de

cidade, de modo a fazer frente ao atual modelo de uso e ocupação do espaço,

que visa tão somente à especulação exacerbada do capital imobiliário4.Além do

mais, o Estado de Pernambuco optou estrategicamente por posicionar estes

investimentos fora dos limites municipais do Recife, ao mesmo tempo em que

promovia a possibilidade de uma maior integração metropolitana.

4 Brandão, Zeca, Org. Núcleo Técnico de Operações Urbanas – Estudos 2007-2010.Recife, CEPE, 2012

p.172

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15

Os estudos gerais elaborados para o projeto Cidade da Copa previam

investimentos na ordem dos 500 milhões de reais para a Arena, um bilhão para

os empreendimentos imobiliários do seu entorno e 300 milhões para as obras

de infraestrutura pública5. O edital de licitação internacional foi lançado em 04

de fevereiro de 2010 tendo como objeto a concessão administrativa para a

exploração da Arena Multiuso da Copa.

FIGURA 07 O MASTER PLAN CIDADE DA COPA – MAQUETE DIGITAL - NUCLEO DE OPERACOES URBANAS DA

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

FONTE: BRANDÃO, ZECA, ORG. NÚCLEO TÉCNICO DE OPERAÇÕES URBANAS – ESTUDOS 2007-2010.RECIFE,CEPE, 2012 P.163

Diferentemente da realidade das outras onze Arenas, Pernambuco

inovou oferecendo um conceito criativo em diferentes escalas, atendendo aos

objetivos de naturezas diversas: do ponto de vista do negócio, um produto

diferenciado – a exploração comercial de uma arena multiuso, acrescida da

exploração imobiliária de uma área de aproximadamente 100 hectares,

gerando uma estimativa de receita acessória para o negócio; do ponto de vista

territorial, a viabilidade de induzir o crescimento da metrópole recifense em

direção ao oeste, consolidando uma nova centralidade urbana; do ponto de

vista da gestão pública, consolidava-se o modelo de parceria público- privada

como um instrumento de gestão pública e de captação de recursos e de

empreendimentos privados.

Livre da incumbência da construção da Arena caberia ao Estado

aproveitar todo o significado do megaevento da Copa 2014 para catalisar

recursos e realizar as obras de infraestrutura urbanas, algumas delas já

previstas desde longa data, e necessárias para resolver gargalos de mobilidade

5 Idem p.171

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no ambiente da metrópole recifense. Assim, o Estado de Pernambuco levou a

cabo uma estratégia de desenvolvimento atrelada ao megaevento da Copa, e,

segundo o mesmo autor citado acima, mirando-se nas experiências exitosas de

Barcelona e Tóquio.

Muitas empresas retiraram o Edital, mas só duas entregaram as

propostas - os grupos liderados pela Andrade Gutierez e Odebrech

Investimentos. Constava do Edital que a concessionária faria jus às fontes de

receitas alternativas, complementares acessórias ou de projetos associados.6.

Nos documentos anexos ao Edital de Licitação, o Master Plan da Cidade da

Copa, estabelecia as áreas destinadas a Arena, ao projeto imobiliário, ao

Governo, as verdes e as de proteção ambiental. Sagrou-se vencedor do

certame o grupo liderado pela Odebrecht Investimentos, o mesmo que

elaborou os estudos prévios de viabilidade. O contrato da concessão

administrativa foi assinado em 15 de junho de 2010.

Constituíam-se em obrigações principais da concessionária: a execução,

gestão e fiscalização dos serviços delegados da Arena Multiuso; o apoio na

execução dos serviços não delegados da Arena Multiuso; e a gestão e

fiscalização dos serviços complementares da Arena Multiuso. Constituíam-se

em obrigações acessórias: a implantação do projeto imobiliário; e a guarda e

proteção das áreas remanescentes onde deveriam ser implantadas instalações

do Governo e áreas de preservação ambiental. Pelos prazos estabelecidos no

contrato, a Arena Multiuso deveria ser entregue três anos depois, portanto em

junho de 2013.

O pagamento da contraprestação mensal por parte do Governo do

Estado à concessionária se iniciaria a partir do momento em que as obras de

implantação da Arena da Copa estivessem realizadas, mediante a avaliação

definida por cinco indicadores de desempenho – operacional, ambiental,

financeiro, social, e imobiliário - a serem cumpridos pela concessionária

vencedora, e auditados por verificador independente.

No caso especifico e que nos interessa neste texto, os indicadores de

desempenho relacionados ao projeto imobiliário estavam assim definidos: 1)

seguir as recomendações do Plano Municipal para a ocupação urbana; 2)

entregar as unidades vendidas em no máximo oito meses para edificações de

até cinco pavimentos; 3) entregar as unidades vendidas em no máximo 18

meses para as edificações de até 14 pavimentos; 4) assegurar o desempenho

térmico e acústico das unidades vendidas; 5) atender aos padrões de

qualidade estabelecidos.

O contrato previa também que o empreendedor poderia realizar os

estudos que julgasse necessários para o empreendimento, além do que o

Governo cedia os direitos autorais de todos os estudos realizados até então. O

contrato firmado previa ainda que os estudos do produto imobiliário deveriam

6 Edital de Licitação – Concorrência Internacional N° 001/2009 – CGPE- Edital de Concessão

Administrativa para a Exploração da Arena Multiuso da Copa 2014, 2010.

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ser submetidos ao Governo. Se por ventura, houvesse exigências por parte do

Governo, o mesmo deveria remunerar o empreendedor por tais estudos.

As obras da Arena foram iniciadas em janeiro de 2011 e em fevereiro de

2011 foi criada a Secretaria Extraordinária da Copa em Pernambuco -

SECOPA com a seguinte missão: “Coordenar, acompanhar e monitorar os

projetos e as ações do Governo de Pernambuco nas áreas de mobilidade

urbana, infraestrutura, turismo e hotelaria, segurança, bem como a construção

da Arena Pernambuco, visando a garantir que o Estado esteja preparado para

sediar a Copa das Confederações da FIFA Brasil 2013 e a Copa do Mundo da

FIFA Brasil 2014™.” 7.

Dessa forma, o projeto Cidade da Copa saiu das instâncias de

planejamento do Governo do Estado de Pernambuco e começou a ser

coordenado com autonomia, por uma secretaria criada para especificamente

para este fim.

Os fatos sucedâneos demonstram que o protagonismo do planejamento

da cidade da copa vai sendo assumido pela iniciativa privada e o Estado vai se

retirando do processo do planejamento territorial e focando sua atuação nos

processos de gestão dos contratos e das obras de infraestrutura.

Enquanto avançavam as obras da Arena, o Consórcio desenvolve um

novo Master Plan para a totalidade dos 249 hectares, e não apenas para a

área definida originalmente para a implantação do empreendimento imobiliário,

assumindo a função do poder público em elaborar planos urbanísticos para o

território reconhecidamente estratégico, e assumindo funções de estado. Em

26 de outubro de 2011, é apresentado o novo Master Plan, desenvolvido sob o

conceito de Smart City, estabelecendo novo programa e novo desenho, com

conceitos, e programas diferentes daqueles estabelecidos pelo Governo de

Pernambuco.

Segundo o documento elaborado pela concessionária8, “Pretende-se

que a Cidade da Copa seja um empreendimento inteiramente planejado, de

forma a ser concebida como a primeira “cidade inteligente” (Smart City) da

América Latina. Esse conceito implica, no mínimo, priorizar-se a tecnologia e a

inovação em três pilares principais: monitoramento da segurança,

gerenciamento de energia e adoção de sistemas integrados, tornando todos os

serviços mais eficientes”.

O programa da nova Cidade da Copa é detalhado, apresentando-se as

fases para a sua implantação, definindo-se os papéis dos agentes públicos e

privados, estimando-se mais detalhadamente os recursos a serem investidos

por cada parceiro, assim como apresentando os diagnósticos e demais

prognósticos dos impactos gerados e das ações mitigatórias necessárias para

o sucesso do empreendimento como um todo, denotando que o protagonismo

7 http://www.secopa.pe.gov.br/pt/secopa/apresentacao.

8 CT Pires Advogados – EIA RIMA Cidade da Copa, 2012.

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do planejamento e do próprio projeto urbanístico cidade da copa e assumido

pelo ente privado.

FIGURA 08- SMART CITY - NOVO MASTER PLAN CIDADE DA COPA. SPE ARENA PERNAMBUCO NEGÓCIOS E

INVESTIMENTOS S/A.

FONTE:www.portal2014.org.br

Abordando os aspectos do Plano Urbanístico para toda a área dos 249

hectares, apesar de a área destinada ao empreendimento imobiliário cidade da

copa continuar constando que iria ocupar os 105,18 hectares dentro da área

total, o novo Master Plan define oito distritos com os seguintes usos e

estimativas de área de construção:

O Distrito I - Esportes e Eventos, contempla além da Arena Cidade da

Copa já implantada, outra Arena indoor com 10.000 assentos, dois

hotéis com 550 leitos e dois pavilhões de centro de convenções,

totalizando 30.000 m2 de área construída;

O Distrito II – Comércio/Entretenimento e Uso Misto – Servirá como o

coração da Cidade da Copa, de apoio ao Distrito I durante os eventos,

contemplando edificações de uso misto – comércio e serviços no térreo

e uso habitacional nos demais pavimentos. Neste distrito ainda estão

previstos dois grandes lagos rodeados com espaços de convivência

social, áreas para shoppings centers, bares, restaurantes,

supermercados, cinemas multiplex e teatros, totalizando 160.000 m2 de

área construída;

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Distrito III – Campus Universitário, destinado à instalação de um centro

educacional de excelência no ensino universitário e de escolas de

ensino fundamental e médio, a ser desenvolvido pelo Governo do

Estado de Pernambuco, com uma área total de construção de 180.000

m2.

Distrito IV – Escritórios – Além do Distrito lV, o mesmo programa

também acontece nos interstícios dos Distritos I e II, onde serão

instaladas torres comerciais, escritórios corporativos, áreas de

convivência, áreas verdes e duas modalidades de edificações para

escritórios: as Office Towers – torres de 15 pavimentos totalizando

94.000 m2 de área de construção e as Office Campus, edifícios de

escritórios de 4 a 6 pavimentos totalizando 154.900 m2;

Distrito V e Distrito VI – Habitacional Sul e Norte, concebidos como

blocos urbanos, com fácil acesso aos parques e espaços abertos, com

uma “mescla de classes A, B, e C, sendo ofertadas três tipologias: 225

unidades do tipo A com 140 m2 cada, 2.930 unidades do tipo B , com 90

m2 cada e 1350 unidades do tipo C com 60 m2 cada uma. Serão

oferecidas no total 4.504 unidades unifamiliares com um total de área

construída de 576.180 m2.;

• Distrito VII – Usos Governamentais – destinado a uso governamental

não especificado no Master Plan;

• Distrito VIII – Hipermercado e área para infraestruturas.

FIGURA 09- SMART CITY - NOVO MASTER PLAN CIDADE DA COPA. MAQUETE DIGITAL SPE ARENA

PERNAMBUCO NEGÓCIOS E INVESTIMENTOS S/A.

FONTE: www.aecom.com

Além da infraestrutura de acesso externa à Cidade da Copa, já implantada

para atender ao evento da Copa do Mundo da FIFA 2014, o ramal da Copa que

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liga a Estação Cosme e Damião à Arena Multiuso já se constituía na principal

via do empreendimento e foi implantada pelo poder público. Constata-se que

até a presente data, nenhuma etapa do empreendimento imobiliário é lançada,

nem o terreno ainda foi entregue para a iniciativa privada, livre e

desembaraçado de ônus, como previsto no contrato de exploração da Arena da

Copa. Constatamos por outro lado, a minimização dos riscos do investimento,

assim como da valorização do solo urbano em curso, decorrentes de todos os

investimentos já realizados.

FIGURA 10- LEGADO DA COPA 2014 – INFRAESTRUTURAS VIÁRIAS INSTALADAS EM 2014 E A SMART CITY

PLANEJADA.

FONTE: CARDUS ESTRATÉGIAS URBANAS E ARQUITETURA LTDA

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De concreto, podemos constatar que há uma clara assunção por parte

do consórcio, em ditar as regras dos investimentos a serem realizados pelo

poder público, no território. No documento do projeto está definido que caberá

ao poder público arcar com todos os investimentos em infraestrutura urbana

previstos para a área – abastecimento de água, esgotamento sanitário, sistema

de coleta e disposição final de resíduos, esgotamento sanitário, energia

elétrica, telecomunicações e gás, definidos e projetados pelo consórcio,

cabendo à iniciativa privada e seus possíveis parceiros, a implantação dos

empreendimentos de uso habitacional, misto, comercial e de serviços.

Neste mesmo documento, o consórcio apresenta também o modelo de

gestão a ser implantado no território9. Propõe a criação de uma associação civil

sem fins lucrativos, responsável por gerir eficientemente a área e por

estabelecer parcerias com os diversos atores envolvidos – entes públicos,

desenvolvedores imobiliários, moradores, entre outros.

A proposta estabelece os principais agentes e respectivos papéis a

serem desempenhados por cada um deles no processo de gestão: Cabe ao

poder público estadual as atribuições de comando e controle e poder de

polícia; ao poder municipal, disciplinar a natureza do uso e padrões ocupação

do solo; o desenvolvedor imobiliário- SPE Arena Pernambuco Negócios e

Investimentos S/A – responsabilizar-se pela arena e pelo desenvolvimento do

projeto Cidade da Copa; os incorporadores que em parceria com a SPE, são os

responsáveis pela construção e operação dos equipamentos; e o Conselho

Gestor da Cidade da Copa, entidade sem fins lucrativos que será criada para

atuar sobre toda a área do empreendimento e terá como associados o

empreendedor – a SPE Arena Pernambuco Negócios e Investimentos S/A, os

incorporadores/operadores dos empreendimentos e, futuramente, os residentes

dos equipamentos imobiliários e outros empreendimentos da Cidade da Copa.

Os estudos chegam a estabelecer que caso a “Concedente defina que o

Governo do Estado não irá realizar a ocupação das áreas destinadas aos

aparelhos públicos, estas áreas poderão ser constituídas em novas áreas para

expansão do Projeto Imobiliário original obedecendo os critérios de

estabelecimento da receita acessória adotados na Proposta Econômica, Anexo

IV, do Contrato e, neste caso, a nova receita acessória deverá ser

contabilizada para a redução da Contraprestação da Concedente para

Operação da Arena”.

5. Redenção Urbana ou mais uma forma de Especulação Imobiliária?

Porque uma cidade com problemas sociais tão agudos deve preocupar-

se em sediar megaeventos internacionais? De fato, se a Copa do Mundo for

9 CT Pires Advogados – EIA RIMA Cidade da Copa, 2012.

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reduzida a um acontecimento esportivo, não faz sentido. Entretanto, se o foco

estiver no legado urbano deixado pelo evento, sediar a Copa poderia

representar uma oportunidade para promover a reestruturação da região

metropolitana do Recife. Equipamentos esportivos, espaços públicos, hotéis,

estradas, saneamento básico, transporte urbano, segurança pública,

aeroportos, energia e telecomunicação, são alguns dos investimentos

essenciais ao êxito do evento. Porém, o simples cumprimento dessas

demandas não surtirá o efeito desejado.

Qualquer estratégia voltada para a organização do espaço e o

desenvolvimento em escala metropolitana, cujo objetivo seja o de articular as

demandas, criar sinergia de esforços e potencializar os efeitos benéficos deve,

em princípio, levar em conta os elementos de estruturação do espaço

metropolitano do Recife, descritos mais acima. Entre as vantagens e os

benefícios apontados pelos planejadores locais para localização da Cidade da

Copa, está a criação de uma nova centralidade para a região metropolitana, em

São Lourenço da Mata.

A questão que se coloca é sobre a capacidade de integração dos

elementos propostos ao processo de estruturação do espaço metropolitano.

Por um lado, o Município do Recife defronta-se com entraves à mobilidade

urbana cujas causas e efeitos extrapolam seus limites territoriais. Por outro

lado, os sistemas de transporte de massa em escala metropolitana, projetados

desde a década de 1970, ainda não foram completamente implementados, o

que coloca uma interrogação sobre a capacidade do empreendimento da

Cidade da Copa de assegurar a desejada integração. Em outras palavras, a

despeito da forte argumentação na escala local, os elementos implantados não

dão mostras que equacionarão os problemas observados na escala

metropolitana.

As parcerias entre setor público e privado são uma forma de concretizar

o “pacto urbano” que poderia permitir associar a visão dos planejadores

públicos com a capacidade de investimento, a agilidade e senso de mercado

das instituições privadas. Após a confirmação do Brasil como país–sede da

Copa 2014, o Estado de Pernambuco assumiu o compromisso de criar uma

estrutura governamental ágil para trabalhar com o setor privado e tratar das

questões do evento. Segundo essa estrutura, cabe ao Governo garantir o

interesse geral coletivo.

Se, por um lado, o sistema de parceria público-privado permite viabilizar

um grande empreendimento do porte da Cidade da Copa, corre-se o risco de

que o poder público se torne refém da força e do poder do capital imobiliário.

Como o que aqui se discute é a importância do legado que ficará para a região,

após a realização dos jogos internacionais, é possível que o empreendimento

tenha êxito sob vários aspectos que interessam aos investidores privados, mas

que não garanta sua integração na dinâmica de desenvolvimento da região.

Portanto, não é sem importância o papel que o parceiro privado pode assumir

na tomada de decisão e no rumo das ações.

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Considerações Finais

Dentre os tantos desafios que são necessários para redirecionar o

crescimento urbano nas grandes cidades, alguns são primordiais, como é o

caso da articulação entre os elementos que compõem o contexto

socioeconômico e espacial metropolitano. Dentre esses elementos, a

revalorização das áreas centrais coloca-se como uma estratégia tão importante

quanto a da criação de novas centralidades. Tendo em vista que as áreas

centrais, na maioria das vezes são dotadas de infraestrutura e serviços

urbanos, a recuperação e reocupação dos espaços construídos que caíram em

desuso é uma forma de diminuir o déficit habitacional e de potencializar os

efeitos benéficos para todo o território urbano e metropolitano.

O ciclo de vida normal das cidades, em geral mostra que, a partir de

certo estágio, as áreas urbanas centrais entram em decadência, por uma série

de fatores, de modo que o solo urbano perde valor, levando as camadas de

maior poder aquisitivo a buscar áreas menos densas, próximas de elementos

naturais aprazíveis.

A busca por amenidades e locais aprazíveis para moradia das camadas

de maior poder aquisitivo faz com que a cidade se espraie por zonas

tradicionalmente tidas como rurais, introduzindo nessas zonas determinadas

práticas sociais características do modo de vida urbano. A cidade então não

mais se restringe à área matriz (CARRIÓN, 2008), onde se deram os principais

acontecimentos e fatos que marcaram sua fundação, e passa a englobar faixas

do território que não constituem propriamente a cidade, no sentido colocado

por Henri Lefebvre (1968), mas que se caracterizam como urbanas.

No caso das cidades que figuram como polos, situadas em regiões

pobres, e que desempenham funções políticas e econômicas estratégicas no

âmbito regional, como é o caso do Recife, outro fato contribui para intensificar o

processo de ocupação nas zonas periféricas urbanas. Trata-se das migrações

de contingentes importantes de pessoas que deixam suas zonas de origem,

caracterizando um processo de êxodo rural em direção aos centros urbanos,

de tal modo que o crescimento populacional nessas zonas periféricas passa a

ser mais significativo do que o que ocorre nas zonas urbanas centrais.

Por algum tempo, a área matriz da cidade, ou o que se convencionou

denominar núcleo histórico, continua a desempenhar funções importantes, uma

vez que ainda concentra tanto serviços e oportunidades de comércio

especializado quanto determinado significado simbólico e identitário,

confirmando sua centralidade. Porém, justamente em consequência dessa

centralidade, a área matriz da cidade progressivamente atinge níveis de

congestionamento que os setores de comércio e serviços passam a buscar

novas instalações em locais de fácil acesso, com possibilidades de

estacionamento e permanência por longos períodos.

A criação da Cidade da Copa, na Região Metropolitana do Recife, vem

corroborar as tentativas anteriores de criar novas centralidades, sobretudo na

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direção oeste, com o intuito de interiorizar o processo de ocupação urbana. No

entanto, a criação de novas centralidades, num contexto amplo e complexo

como é o da criação da Cidade da Copa, não pode estar desvinculado dos

problemas que já existem, sobretudo os que ocorrem na cidade que é a cabeça

do sistema, sob pena de fracassarem.

Não há dúvida de que o sistema da parceria público-privado é uma

forma ágil que pode assegurar a concretização de muitos investimentos de

infraestruturas viárias e edifícios públicos a exemplo de hospitais, presídios e

das arenas multiusos, apesar dos compromissos do setor privado não se situar

no mesmo plano que o compromisso do poder público. Os interesses e os

objetivos perseguidos são distintos. É dessa forma que o planejamento de um

megaevento tem que ser firme e preciso no sentido de atrelar os objetivos e

metas ao interesse mais amplo e mais legítimo, contribuindo para equacionar a

problemática já existente.

No caso de Pernambuco, é preciso atentar para o fato que a

transposição deste modelo para a escala de uma intervenção no espaço

urbano assume uma complexidade ainda maior, de maneira que podemos

afirmar que não é o mesmo modelo de concessão administrativa que vai dar

conta deste processo. O planejamento urbano é tarefa do poder público, pois

sua função é fazer valer o interesse coletivo, ainda mais na escala

metropolitana, garantindo o legado para o desenvolvimento local. Quer seja no

caso da Arena da Copa, quer seja nas áreas centrais degradadas ou nas

grandes glebas urbanas situadas nos interstícios metropolitanos, todos estes

casos passam pela mesma questão central.

Implantar o projeto da Cidade da Copa, a partir da decisão estratégica

de desenvolvimento da Nucleação Oeste da Região Metropolitana do Recife,

em parte efetivada com a assinatura do contrato de concessão administrativa

da Arena Multiuso da Copa, tendo como receita acessória a implantação de um

projeto imobiliário no seu entorno, leva-nos a refletir sobre questões de

diversas naturezas, mas todas relacionadas ao uso e ocupação do solo urbano.

Numa análise prematura do ponto de vista do tempo histórico, já se

antevê fragilidades decorrentes da ausência de uma estrutura robusta de

gestão pública que dê conta do novo momento do planejamento territorial. Os

atuais instrumentos em vigor no Brasil, utilizados para viabilizar as parcerias

entre entes públicos e privados, já testados para concessões de infraestrutura

viária, de energia, água, lixo, esgoto e de edifícios isolados, quando

transpostas para a escala do espaço urbano, colocam em xeque os papéis a

serem desempenhados pelo governo e pela iniciativa privada na gestão

territorial. A partir destas experiências, algumas perguntas podem ser feitas,

ainda que incipientes.

Para viabilizar a ideia da Cidade da Copa em Pernambuco, o Poder

Público estadual precisou se defrontar com situações novas na gestão pública,

tendo que lidar com a utilização de instrumentos jurídicos e de viabilidade

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financeira sofisticados, de domínio corrente no universo da iniciativa privada

para a formatação desta parceria inédita e só implementada embrionariamente.

As equipes de planejamento urbano dos órgãos públicos estariam

capacitadas para estes novos saberes especializados a fim de estabelecer as

premissas em defesa da função social da cidade e do uso e ocupação do solo

urbano? Ou Poder Público estaria delegando a tarefa do planejamento urbano

e de regulação para a iniciativa privada?

Estaríamos caminhando para a privatização de parcelas do território

urbano, extrapolando o domínio privado? Seria esta a última fronteira para a

privatização da cidade?

Em Pernambuco, a Copa do Mundo 2014 acontece no mesmo momento

em que grandes investimentos transformam o Estado em um verdadeiro

canteiro de obras. Estamos vivendo um novo ciclo de crescimento econômico,

depois de trinta anos de retração. Além da Cidade da Copa, seis projetos para

novas cidades foram lançados pela iniciativa privada no entorno da Região

Metropolitana do Recife. Megaprojetos imobiliários a serem implantados na

malha urbana tradicional dominam as páginas dos jornais. Foram lançados

também, projetos de desenvolvimento imobiliários para as arenas dos três

principais clubes de futebol do Recife, assim como para outras importantes

glebas urbanas.

O legado da Copa 2014 apresenta-nos as mesmas questões centrais,

seja para as próximas fases de implantação da Cidade da Copa, seja para as

implantações dos planos para os grandes vazios urbanos, ociosos ou não: qual

será o tamanho e qual será o papel do Poder Público como protagonista da

gestão, da regulação e do planejamento urbano? Até onde deve ir a função da

iniciativa privada? Qual a capacidade e perícia das equipes de planejamento

em monitorar e garantir as estratégias do desenvolvimento no longo prazo?

Esta etapa da experiência da Cidade da Copa será o novo modelo a

prosperar? Como será a capacidade do Estado para definir as prioridades no

uso e ocupação do solo?

Sejam quais forem os resultados esperados, não há dúvida sobre a

ousada experiência em curso em Pernambuco e sobre as grandes lições que

daí decorre para o processo de planejamento urbano no país. Dessa forma,

fica evidente a necessidade de avaliar o legado da Copa 2014, tanto para o

Recife quanto para as outras cidades sedes brasileiras.

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FIGURA 11- SMART CITY - NOVO MASTER PLAN CIDADE DA COPA. SPE ARENA PERNAMBUCO NEGÓCIOS E

INVESTIMENTOS S/A. PERSPECTIVA ARTISTICA. CENTRO DO RECIFE AO FUNDO FONTE: www.redeinteligente.com

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REFERÊNCIAS

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http://www2.uol.com.br/JC/_1999/1104/cd1104f.htm. Acessado em 1 ago. 2011.

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BRANDÃO, Zeca, Org. Núcleo Técnico de Operações Urbanas – Estudos 2007-

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