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FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Texto para Discussão Nº 07/2014 Dezembro 2014 Renato Saraiva e Ronaldo Herrlein Jr. Os mecanismos da dependência: uma análise das relações Brasil-Estados Unidos (1930-1964)

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FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICASDEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Texto para Discussão Nº 07/2014Dezembro 2014

Renato Saraiva e Ronaldo Herrlein Jr.

Os mecanismos da dependência: uma análise das relaçõesBrasil-Estados Unidos (1930-1964)

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Saraiva, RenatoS243m Os mecanismos da dependência : uma análise das relações Brasil-

Estados Unidos (1930-1964) / Renato Saraiva, Ronaldo Herrlein Jr. – PortoAlegre : UFRGS/FCE/DERI, 2014.

36 p. : il. – (Texto para Discussão / Universidade Federal do RioGrande do Sul, Faculdade de Ciências Econômicas ; n. 07/2014)

1. Relações internacionais : Brasil : Estados Unidos. 2. Desenvolvimentoeconômico. 3. Dependência econômica. I. Herrlein Júnior, Ronaldo. III.Título. IV. Série.

CDU 327(81/73)

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Os mecanismos da dependência: uma análise das relações Brasil-Estados Unidos (1930-1964)

Renato Saraiva*Ronaldo Herrlein Jr.**

Resumo: Tomando como referência os conceitos-chave de subdesenvolvimento e dependência, o presente ensaio investiga certos mecanismos econômicos e políticos da dependência nas relações internacionais entre Brasil e Estados Unidos, com base nas narrativas historiográficas de Moniz Bandeira, nossa fonte principal, e em algumas investigações importantes sobre essas relações. A análise destaca vínculos estruturais entre a economia brasileira e a economia estadunidense, configurando o que consideramos como alguns dos mecanismos econômicos da dependência. Uma consideração sobre os diferentes governos do Brasil de 1930 a 1964 permite indicar casos e situações importantes que marcaram o período e podem representar seu sentido geral, no que diz respeito às relações externas e à política externa para com os Estados Unidos. O estudo realizado sustenta a hipótese de que o desenvolvimento brasileiro foi profundamente marcado pelo vínculo (econômico e político) mantido com os Estados Unidos. O processo de consolidação de centros de decisão, que se destacou pela internalização das atividades da siderurgia e do petróleo, encontrou limitações enraizadas na dependência com os Estados Unidos.

Palavras-chave: Desenvolvimento socioeconômico do Brasil. Relações internacionais Brasil-Estados Unidos. Dependência. Subdesenvolvimento.

JEL Classification: N16; N46; O54.

Introdução

1.1 Perspectiva e objetivos

Este trabalho é resultado dos estudos realizados durante a participação no programa de pesquisa “A construção de um Estado democrático para o desenvolvimento no Brasil: funções econômicas e controle da sociedade”. Tal programa tem como objetivos principais o estudo dos casos de industrialização do Brasil e do Leste asiático, representado por Japão, Taiwan e Coreia do Sul, com vistas à formulação de uma proposição teórico-normativa que concilie a atuação do Estado enquanto ator capaz de promover o desenvolvimento socioeconômico, com um sistema político democrático, dado que as experiências históricas desenvolvimentistas estiveram, em geral,

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* Acadêmico de Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica Pibic (CNPq-UFRGS). E-mail: [email protected]** Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. E-mail: [email protected]

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associadas a regimes autoritários. Consciente de que as trajetórias de desenvolvimento e industrialização dos países são determinadas também pelo contexto das relações internacionais no qual estão inseridas, opta-se por realizar um estudo que dê conta, em alguma medida, das relações internacionais do Estado brasileiro em seu período de industrialização. Isso é desenvolvido neste trabalho a partir de um estudo das relações do Brasil com os Estados Unidos, dada a sua importância para as relações internacionais do Brasil. Ademais, opta-se por focar especificamente o período de 1930 a 1964, por este apresentar uma continuidade, tanto em termos econômicos, no que diz respeito ao processo de industrialização, quanto em termos sociológicos no que diz respeito à organização do pacto político. Além disso, estudar mais aprofundadamente esse período em particular fornece uma base sólida para que se realize, posteriormente, um estudo da industrialização em seus anos seguintes.

É dentro dessa perspectiva que se deve compreender este trabalho. Porém, mais do que uma análise de relações diplomáticas e de política externa, busca-se analisar as relações Brasil-Estados Unidos em uma perspectiva integrada, tanto em termos econômicos, quanto em termos de política externa. Partindo de um determinado conjunto de obras historiográficas acerca das relações Brasil-Estados Unidos, da política externa brasileira e da política externa estadunidense, utiliza-se os conceitos de dependência e subdesenvolvimento para formar essa perspectiva teórica integrada. Compreende-se, dessa forma, a estrutura social brasileira como a de uma sociedade subdesenvolvida, e as relações com os Estados Unidos como relações de dependência.

Mais especificamente, o problema central deste trabalho é o significado das relações com os Estados Unidos para o desenvolvimento do Brasil nesse período e, particularmente, para a formação dos centros nacionais de decisão econômica. Em segundo lugar, procura-se investigar a própria natureza das relações de dependência, seus mecanismos e formas de expressão. Para isso, são identificados mecanismos econômicos e mecanismos políticos da dependência em relação aos Estados Unidos que atuam como fatores determinantes na trajetória brasileira de desenvolvimento. Essa formulação permite fazer, a partir do conceito de dependência, o vínculo entre a estrutura econômica e os fatos políticos e entre estes e a relação com os Estados Unidos.

Trabalha-se com a hipótese de que o desenvolvimento brasileiro foi profundamente marcado pelo vínculo (econômico e político) mantido com os Estados Unidos. O processo de consolidação de centros de decisão, que se destacou pela internalização das atividades da siderurgia e do petróleo, encontrou limitações enraizadas na dependência para com os Estados Unidos.

Da historiografia utilizada, pode-se citar as obras de Moniz Bandeira (1989, 1973), fonte principal para as relações Brasil-Estados Unidos, Paulo G. F. Visentini (2004), Gerson Moura (1983) e Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2010), para a política externa brasileira, e Cristina Pecequilo (2005), para a política externa dos Estados Unidos. Como marco teórico, e notadamente para os conceitos de dependência e subdesenvolvimento, utilizou-se Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1977) e Celso Furtado (1982, 1978).

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Os mecanismos da dependência: uma análise das relações Brasil-Estados Unidos (1930-1964)

Na seção seguinte (seção 1.2), procura-se definir brevemente os conceitos-chave que referenciam a análise – quais sejam, dependência e subdesenvolvimento – para então se fazer uma síntese da natureza do desenvolvimento econômico peculiar à situação de subdesenvolvimento (seção 1.3). Na seção 2, busca-se destacar, na análise do vínculo estrutural entre a economia brasileira e a economia estadunidense, aquilo que se considera como alguns dos mecanismos econômicos da dependência. Na seção 3, trata-se de alguns casos e situações importantes que marcaram o período e podem representar seu sentido geral, no que diz respeito às relações externas e política externa para com os Estados Unidos.

1.2 Conceitos referenciais: dependência e subdesenvolvimento

Antes de se proceder à análise das relações Brasil-Estados Unidos, é interessante definir, ainda que brevemente, os conceitos que serão utilizados. Primeiramente, alguns pressupostos quanto à forma de compreensão que guiará a análise devem ser extraídos do trabalho de Cardoso e Faletto (1977).

A realidade sociológica deve ser percebida de forma integrada, ou, em termos hegelianos, como uma totalidade. Ao apontar a insuficiência de concepções teóricas que se formaram nos anos 1940 e 1950, em torno da Cepal,1 para explicar o desenvolvimento recente àquela época dos países latino-americanos, a posição dos autores é clara ao afirmar que substituir uma análise econômica por uma sociológica não seria suficiente. Para eles, faltaria “[...] uma análise integrada que forneça elementos para dar resposta de forma mais ampla e matizada às questões gerais [...]” (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 15). Analisam, então, em conjunto, as determinações econômicas e sociais (tanto nacionais quanto internacionais) e os objetivos e interesses que davam sentido às ações de grupos e classes, em suas relações e determinações recíprocas. Dessa forma, os autores superam a visão estruturalista ao perceberem que o desenvolvimento é um processo histórico que é resultado da interação e do modo próprio de relação dos grupos e classes sociais, e que é isso que anima o sistema socioeconômico. Assim, os resultados históricos – em vez de serem entendidos como “naturais” – dizem respeito a grupos determinados e à tensão entre seus interesses respectivos. Além do mais, percebe-se que as alianças dos grupos e forças sociais nacionais estão conectadas com as alianças no plano internacional. Ou seja: o jogo político-institucional interno ou nacional está relacionado ao jogo político-institucional externo ou internacional. Ambos condicionam-se mutuamente.

A situação de dependência — o modo de interação das economias subdesenvolvidas no mercado internacional — “[...] supõe formas definidas e distintas de inter-relação dos grupos sociais de cada país, entre si e com os grupos externos” (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 30). A dependência se manifesta no modo de ação e orientação dos grupos e atores sociais, dizendo respeito às condições de funcionamento do sistema econômico e político, e vinculando o plano interno ao externo. A estrutura social dependente se organiza em torno de uma dualidade: “[...] segundo as pressões e vinculações externas

1 Comissão Econômica para América Latina e Caribe, organismo da ONU criado em 1948.

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e segundo o condicionamento dos fatores internos que incidem sobre a estratificação social” (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 37), ou seja, segundo a organização da estrutura de classes sociais. É típica uma ambiguidade ou uma contradição nessas sociedades dependentes. Ao mesmo tempo em que se coloca como objetivo político a formação de uma nação, e a consequente busca por autonomia nos vínculos com o mercado externo, esses vínculos permanecem decisivos na determinação da situação econômica nacional e acabam por limitar as possibilidades de decisão e ação autônomas.

As relações de dependência configuram-se em diferentes padrões, variando conforme o país do centro ao qual se conecta determinado país periférico. A Inglaterra exigia certo dinamismo de suas colônias, tendo em vista que precisava destas para a produção de suas matérias-primas e importação de seus produtos manufaturados. Já os Estados Unidos, que contava tanto com recursos naturais quanto com seu mercado interno, pôde se desenvolver de forma mais autônoma. Dessa forma, no caso dos Estados Unidos, “[...] a relação de dependência adquire [...] uma conotação de controle do desenvolvimento de outras economias, tanto na produção de matérias primas como da possível formação de outros centros econômicos” (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 33-34).

A compreensão do conceito de subdesenvolvimento (FURTADO, 1978, p. 9-14; 133-135; CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 25-26) pode ser facilitada se se mantiver em mente a ideia de sistema centro-periferia. Enquanto o sistema centro-periferia diz respeito às funções do sistema produtivo periférico no mercado internacional, o subdesenvolvimento diz respeito ao grau de diferenciação do sistema produtivo, implicando condições históricas e sociais de desigualdade.2 Desenvolvimento e subdesenvolvimento são termos que se definem mutuamente. Ambos concebem as estruturas econômicas dos países periféricos e centrais como expressões de um mesmo processo histórico: a formação e expansão do sistema econômico internacional. O subdesenvolvimento é assim consequência do desenvolvimento, isto é, da irradiação de um conjunto de técnicas e formas de divisão do trabalho, oriundos de um pequeno número de sociedades que se inseriram dentro do processo de revolução industrial. O subdesenvolvimento não é uma fase do desenvolvimento, do mesmo modo que as sociedades subdesenvolvidas não podem reproduzir a experiência das desenvolvidas. Quando os mercados e as estruturas econômicas subdesenvolvidas se constituem, já está formado o sistema econômico internacional, sendo aqueles consequência do surgimento e expansão deste. É justamente essa a particularidade das sociedades periféricas e subdesenvolvidas.

Não obstante, há uma insuficiência em observar apenas os aspectos das estruturas econômicas subdesenvolvidas, assim como há na concepção de sistema centro-periferia, na medida em que não levam em consideração os fatores políticos e institucionais implicados na situação periférica. Para além disso, é necessário observar a forma pela qual se constituíram os grupos sociais internos responsáveis pela orientação para o exterior, indispensável à situação de subdesenvolvimento. Tal orientação dos grupos 2 Para a distinção entre os conceitos de sistema centro-periferia, subdesenvolvimento e dependência, ver Cardoso e Faletto (1977, p. 27).

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sociais ‘internos’ é a expressão das relações de dependência e da forma de dominação que correspondem ao subdesenvolvimento. É nesse sentido que o conceito de dependência ganha sua importância, ao mediar as determinações dadas pela formação da estrutura do mercado internacional e dos países subdesenvolvidos em particular, com a organização do jogo político e das instituições sociais.

1.3 Crescimento econômico e industrialização na situação de subdesenvolvimento

Em Furtado (1978, p. 133), pode-se encontrar uma esquematização do funcionamento das estruturas econômicas desenvolvidas e subdesenvolvidas:

Num esforço de simplificação, poderíamos definir o processo de desenvolvimento autônomo, como aquele no qual a ordenação dos fatores primários de impulsão seria a seguinte: progresso tecnológico – acumulação de capital – modificações estruturais decorrentes de alteração no perfil da demanda. No extremo oposto, teríamos o processo de desenvolvimento essencialmente dependente, no qual a sequência é inversa: modificações na composição da demanda – acumulação de capital – progresso tecnológico.

Em um primeiro momento, na economia subdesenvolvida, o crescimento e a elevação da produtividade decorrem do aumento da demanda externa por produtos primários (como o café, no caso brasileiro). Assim, a economia subdesenvolvida se beneficia da acumulação de capital, do aumento de produtividade e da renda que se processam nos países desenvolvidos. No entanto, dessa maneira não experimenta grandes alterações em suas formas de produção. No modelo econômico subdesenvolvido, o aproveitamento do progresso tecnológico se dá muito mais em relação à modificação dos hábitos de consumo e à diversificação e introdução de novos produtos do que em relação aos processos produtivos. Todo o crescimento econômico se baseia na utilização mais intensiva de recursos naturais e de mão de obra. Em resumo, “[...] o desenvolvimento de uma economia dependente é o reflexo do progresso tecnológico nos polos dinâmicos da economia mundial” (FURTADO, 1978, p. 134).

Será justamente quando, em um segundo momento, a economia mundial se encontrar desorganizada, em meio à crise, que surgirá a necessidade das economias subdesenvolvidas diversificarem suas estruturas econômicas, de modo a suprir aquelas demandas de bens que não podiam então ser mais satisfeitas por importações. Ao cabo, ter-se-á o processo que se convencionou chamar de industrialização por substituição de importações.

A primeira fase de industrialização no Brasil (do final do século XIX até 1929) foi a de formação de indústrias basicamente complementares às atividades de importação e, principalmente, de exportação dos produtos primários. À medida que cresciam as exportações, aumentando a renda nacional, a partir da incorporação de mais mão de obra, o mercado interno crescia por consequência, o que acabou favorecendo tais indústrias. Mesmo com a conquista de certa autonomia por parte dessas indústrias, a

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qual aumentava nos períodos de crise do comércio exterior, a expansão da economia dependia basicamente do aumento das exportações dos produtos primários e da capacidade para importar. O tipo de grupo empresarial que surge nesse processo é fundamentalmente diferente da burguesia nacional europeia. As iniciativas industriais que surgem nesse período são realizadas por aqueles que tinham experiência no comércio de importações e perceberam que seus negócios poderiam aumentar com uma combinação de indústrias internas e importações semiacabadas. Além disso, o financiamento desses empreendimentos deu-se basicamente por capitais estrangeiros. Em resumo, os interesses dessa classe industrial estão diretamente vinculados ao comércio exterior, na medida em que são as exportações que criam o mercado interno e permitem a importação de equipamentos.

A segunda fase (de 1929 até meados da década de 1960) foi a de substituição de importações propriamente dita.3 Seu marco inicial está no declínio da capacidade para importar. O processo de substituição de importações foi possível devido a certas condições que já estavam se cumprindo anteriormente, como a existência de uma base industrial significativa e a formação de um mercado interno. Conforme Furtado (1978, p. 138):

Em razão do declínio da capacidade para importar e das modificações profundas ocorridas nos preços relativos em favor de produtos anteriormente importados, o processo de industrialização adquiriu, dessa vez, maior profundidade. A intensificação das atividades manufatureiras e a manutenção de um nível relativamente alto de investimentos públicos criaram forte demanda de materiais de construção, cuja produção tendeu a crescer rapidamente. Essa diversificação das atividades industriais se traduziu em uma modificação significativa na natureza mesma do processo de industrialização.4

Desse modo, a indústria tornou-se fator de impulsão do desenvolvimento e conseguiu formar-se um sistema industrial com um grau elevado de integração. Os investimentos industriais, apoiados no mercado interno, dotaram a economia de um elemento dinâmico próprio. Integraram as diferentes regiões em torno de um mesmo centro dinâmico, criando mercados alternativos para os produtos de exportação (como a borracha da Amazônia e o açúcar do Nordeste), e transferiram, para o território nacional, o principal centro de decisões no que diz respeito ao sistema econômico. Tal mudança é fundamental na medida em que modifica a condição colonial habitual, na qual as principais decisões econômicas são condicionadas pelos centros controladores do comércio e das finanças internacionais (FURTADO, 1962, p. 109-110).

Deve-se notar, entretanto, que o processo de substituição de importações apresentou um caráter dual ou contraditório:

3 Há ainda uma terceira fase, que se inicia na segunda metade dos anos 1960. Para fins deste trabalho, dado o escopo temporal, que se limita a 1964, não trataremos dela. Para uma análise dessa terceira fase, ver Furtado (1982).4 Para uma análise mais aprofundada ver: MELLO, J. M. C. O capitalismo tardio: contribuição à revista crí-tica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. TAVARES, M. C. Acumulação de capital e industrialização no Brasil. Campinas: Unicamp, 1986.

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Ao mesmo tempo que se promovia [...] a substituição de importações, criavam-se novas exigências de importação de máquinas, implementos, acessórios, know-how e matérias-primas para instalar os novos empreendimentos ou para dar continuidade ao seu funcionamento. Isto é, diversificava-se a pauta de importações e constituíam-se novas exigências de intercâmbio com as nações dominantes (IANNI, 1977, p. 168).5

O fato de a tecnologia utilizada ser em sua quase totalidade importada faz com que a capitalização nos setores mais dinâmicos da economia não signifique necessariamente a criação de novos empregos, e que seja feita em benefício principalmente dos grupos estrangeiros que detêm o controle dessa tecnologia. Além do mais, na medida em que o fator responsável pelo dinamismo do sistema industrial, o progresso tecnológico, está sob controle de centros econômicos externos, cria-se uma nova situação de dependência tão ou mais limitadora quanto à que se tinha na tradicional divisão internacional do trabalho, em que os países subdesenvolvidos se colocavam enquanto fornecedores de matérias-primas (FURTADO, 1982, p. 12-14). Dessa forma, diferentemente de a industrialização proporcionar o rompimento completo das relações de dependência, estas são, na verdade, reformuladas a partir de novas bases. Como veremos adiante, uma característica central dessa nova dependência será a presença de grupos estrangeiros no mercado interno, ou a internacionalização do mercado interno, nos termos de Cardoso e Faletto (1977).

Mecanismos econômicos da dependência Nessa parte do texto, busca-se traçar alguns mecanismos econômicos que permitem vincular os rumos da trajetória brasileira de desenvolvimento com as relações de dependência mantidas particularmente com os Estados Unidos. Os mecanismos identificados são as exportações de café, os investimentos estrangeiros, as remessas de lucros e os financiamentos externos.6 Em todos esses, o capital sediado nos Estados Unidos ocupa uma posição hegemônica.

2.1 Os investimentos estrangeiros no Brasil

A Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), então dirigida pelo economista Otávio de Gouvea de Bulhões, ao início de 1955, foi criada durante o governo do vice-presidente João Café Filho, anulando a Instrução 70. Permitia, apenas para as empresas estrangeiras, a importação de máquinas e equipamentos, sem cobertura cambial ou restrição de qualquer espécie quanto aos similares produzidos no Brasil.

5 Ver também: TAVARES, M. C.; SERRA, J. Mais além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil. In: TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. p. 153.6 Um outro mecanismo econômico de dependência que pode ser citado, mas que não será analisado em particular neste trabalho, é aquele ligado ao domínio tecnológico. O progresso tecnológico é o principal fator responsável pela dinâmica de expansão da economia internacional, de aumento da produtividade e dos níveis de capitalização. Assim, a dependência tecnológica implica uma condição na qual a dinâmica de expansão econômica é determinada conforme centros de decisão econômica situados fora do país. Para uma análise mais aprofundada, ver Furtado (1982).

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Renato Saraiva, Ronaldo Herrlein Jr.

Instituía-se, assim, na prática, um regime privilegiado para os capitais estrangeiros (em sua maioria, estadunidenses):

Enquanto o industrial brasileiro precisava licitar câmbio, muitas vezes a taxas proibitivas, o estrangeiro podia trazer do exterior, sem qualquer cobertura, os meios de produção [...] que desejasse, embora o Brasil já fabricasse similares. O mecanismo da Instrução 113 compelia o empresariado nacional a recorrer ao capital de participação, isto é, a associar-se ao capital estrangeiro, que exigia, como primeira condição, a entrega de 51% das ações e o controle administrativo da empresa (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 366, grifo nosso).

A consequência mais visível consiste num reforçamento (sic) do setor estrangeiro da economia nacional, com os seus reflexos inevitáveis, inclusive a perda da representação dos grupos nacionais nos órgãos de classe e o crescimento da influência dos gerentes americanos no modo de conduzir a política do Estado (MAGALHÃES apud MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 366).

Não obstante, a Instrução 113 deve ser compreendida em um escopo mais amplo, dentro das possibilidades que se apresentavam à época para conduzir o processo de industrialização. A carência estrutural de divisas ameaçava a capacidade dos industriais brasileiros de importarem bens de capitais. A tecnologia, afinal, necessariamente teria de ser importada. Dessa forma, a medida econômica aplicada pela Instrução 113 visava sanar esse problema, de modo a tornar possível a condução da industrialização e a aquisição dos bens de capitais, nos moldes projetados pelo Plano de Metas. Nas palavras de Ianni (1977, p. 175), “[...] a formulação e a execução do Programa de Metas implicou uma opção política”. O que nos importa aqui é analisar as consequências dessa opção, quais sejam, o domínio do mercado interno pelas empresas estrangeiras e a consequente transferência dos centros de decisão para fora do país. Para que se veja esse efeito em números: “Em estudo publicado em 1961, constava-se que 48,5% das ‘empresas bilionárias’ existentes no País eram controladas por estrangeiros. Em outro estudo sobre o mesmo assunto, publicado em 1965, concluía-se que 52,7% dos ‘grupos multibilionários’ eram estrangeiros” (IANNI, 1977, p. 177).

Dentre os capitais estrangeiros, aquele que mais se favoreceu de tal situação foi o capital estadunidense. Conforme pode-se ver nos dados apresentados por Moniz Bandeira,

Em 1958, 552 firmas (num total de 1.353 registradas como brasileiras, mas com participação direta de capitais estrangeiros) eram americanas, sem contar aquelas (cerca de 76) onde havia triangulação. Em muitas firmas, a vinculação com o capital estrangeiro não aparece e não é registrada. A triangulação se verifica naquelas firmas onde o capital americano participa através (sic) de investidores de outra nacionalidade, o que torna a pesquisa para identificá-lo mais custosa e difícil (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 392-393).

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Pode-se conferir também uma tabela apresentada pelo autor, na qual constam os investimentos estrangeiros no Brasil, em 1958, segundo seu país de origem:

Tabela 1 - Investimentos estrangeiros no Brasil em 1958

País de origem Nº de grupos investidoresEstados Unidos 591Inglaterra 168França 152Alemanha 137Suíça 102Outros (28 países) 500

Fonte: Moniz Bandeira (1973).Nota: “São 33 países de origem. Afora os 5 principais, especificados acima, somente a Itália, entre os 28 restantes, apresentava um número (69) mais expressivo de grupos investidores” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 392).

O interesse privado estadunidense se espalhava por numerosos setores no Brasil, como bancos, companhias de investimentos, seguros, comunicações, etc.,

Mas apenas nove ramos da indústria (automobilística, distribuição de petróleo, vidros, cimento, energia elétrica, artefatos de borracha, produtos alimentícios e farmacêuticos) absorviam ¾ dos capitais americanos, que totalizavam, aproximadamente, 953 milhões de dólares (1959), aplicados no Brasil”. “Os investimentos estrangeiros, de modo geral, praticamente não existiam na agropecuária, devido a sua baixa rentabilidade. Os americanos, porém, entraram no setor e, em 1959, já possuíam fazendas [...]. O grupo Rockefeller tinha, além de fazenda (Ubatuba-SP), várias empresas de agricultura, entre as quais Sementes Agroceres S.A., que contribuiu para a distribuição de sementes selecionadas, principalmente do milho híbrido [...]. A avicultura brasileira passou virtualmente para o controle americano. Os plantéis de aves puras existentes no Brasil foram destruídos, para impedir o desenvolvimento de uma tecnologia nacional. Carlos Lacerda, quando Governador da Guanabara, acabou [com] o [plantel] da Fazenda Modelo, atendendo aos interesses da Keystone Poultry Farm. Os americanos controlam atualmente7 não só a produção de matrizes como de ração balanceada. Também começaram em 1970 a entrar nos abatedouros (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 393).

Mesmo nas agências de publicidade se via a influência estadunidense, seja nas técnicas de comunicação, ou no aumento do controle sobre a orientação da imprensa no interesse político ou econômico dos anunciantes, os quais eram também na maioria estadunidenses. “As maiores agências de publicidade existentes no Brasil eram subsidiárias da [agência estadunidense] J. Walter Thompson Co. e McCann Erickson. [...] Todas traziam as contas de suas respectivas matrizes nos Estados Unidos” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 394).

7 Em torno de 1973, época da edição do livro.

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2.2 Comércio exterior e remessas de lucros

Nesta parte do trabalho importa analisar uma relação entre a dependência das importações de café dos Estados Unidos, as remessas de lucros ao exterior, por parte de empresas estrangeiras, e a instabilidade econômica no Brasil. Essa instabilidade transborda para a arena política, sendo possível identificá-la como uma correlação importante nos períodos de crise institucional.

Em 1954, a receita do café caíra de 66 milhões, em 1953, para 14 milhões. A balança comercial, ao final do ano, chegaria a um déficit de 30 milhões de dólares, provocando, junto à liquidação dos demais compromissos externos, serviço da dívida externa e remessa de lucros, uma depreciação cambial do cruzeiro em cerca de 60% (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 361). As exportações do café não responderam à depreciação cambial, como consequência da sua característica de produto primário, o qual não sofre variação de demanda quando caem os preços.

Tem-se aqui um dos núcleos da situação de dependência estrutural da economia brasileira, frente aos Estados Unidos:

As importações americanas de produtos brasileiros caíram de US$ 84.600.000, em janeiro de 1957, para US$ 53.400.000, em janeiro de 1958. A cotação do café, em Nova York, baixou de 60 a 85 pontos. As vendas de café aos Estados Unidos caíram 19%, atingindo a menor cifra, desde 1953. A cotação do dólar, no mercado livre, aumentava, diariamente, em detrimento do cruzeiro. O Brasil atravessava uma crise de divisas, escassez de dólares, em virtude, principalmente, da queda dos preços do café. A balança comercial do Brasil, em 1957, tivera um déficit de US$ 92.200.000. E o déficit, em março de 1958, já seria de US$ 50.000.000 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 380).

Conforme Moniz Bandeira, “o Brasil dependia do café. E o café, dos Estados Unidos (idem, 1973, p. 361). Não obstante, mais do que o vínculo estrutural entre a economia brasileira e a estadunidense, na questão do café, havia também um elemento político: uma comissão parlamentar, ainda no tempo de Vargas, em 1954, fora encaminhada para investigar, nos Estados Unidos, a queda dos preços do café (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 360). Para Moniz Bandeira, o Brasil estaria sofrendo, tanto em 1954, na época de Vargas, quanto em 1958, tempo de Kubitschek, uma enorme pressão por parte dos trustes e das grandes corporações estadunidenses.

Tal conjuntura retirava os dois pressupostos básicos para a criação do mercado interno e a condução do movimento de industrialização (Cf. Cardoso e Faletto, 1977, p. 94): a manutenção dos preços do principal produto de exportação (no caso, o café) e a disponibilidade de divisas, para o financiamento da industrialização. Ambos eram pressupostos estruturalmente dependentes da economia estadunidense.

Essa situação de dependência criava ainda outro mecanismo adicional. Tornava constante a necessidade de empréstimos externos para aliviar a situação econômica do país. Tentava-se, em 1958, um empréstimo do Eximbank, a ser decidido pelo FMI, para manter o fluxo das importações brasileiras. O FMI considerou insuficiente o programa

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anti-inflacionário do Brasil e exigiu, como condição para conceder qualquer ajuda, uma estabilização mais eficaz, ou seja, “[...] redução dos tipos de câmbio, [...] levantamento das restrições à exportação e [...] outras medidas de combate à inflação, tais como a abolição do incentivo aos cafeicultores e o congelamento dos salários” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 381). Tendo o governo concordado com a adoção do plano, o FMI permitiu a retirada de US$ 37.500.000 em junho de 1958. Outra medida econômica demandada pelo FMI, nesse caso para outro empréstimo de US$ 300.000.000, era a redução do gasto e dos investimentos públicos, o que prejudicava a industrialização e o Plano de Metas. Por outro lado, os programas anti-inflacionários exigidos pelo FMI também acentuavam a instabilidade social, a insatisfação popular, na medida em que significavam arrocho salarial.

Em 9 de agosto de 1958, o Eximbank, junto a um grupo de bancos particulares estadunidenses, concedeu outro crédito ao Brasil, no valor de 158 milhões de dólares, para amortização em três e cinco anos (58.000.000 e 100.000.000, respectivamente), a partir de 1962. No entanto, o empréstimo não aliviou a situação econômica do país. A crise das divisas tornou-se mais aguda, comprometendo o avanço da industrialização. O balanço de pagamentos acabou fechando em 1958 com um saldo negativo de US$ 250.000.000, maior que o de 1957. Em 31 de fevereiro de 1959, as dívidas do Brasil já eram da ordem de US$ 1.844.000.000 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 395). Além dos citados anteriormente, houve outro empréstimo, de 47.700.000 dólares, retirado em maio de 1960, logo após a retomada de relações com o FMI, que haviam sido suspensas em junho de 1959.

Não se admitia qualquer financiamento por parte do Eximbank a negócios com a Petrobras. Os Estados Unidos e o FMI pressionavam pela participação de capitais privados na exploração do petróleo brasileiro. Internamente, a pressão para a concessão do petróleo também se fazia presente, como no caso da publicação do Correio da Manhã contra o déficit brasileiro (de finais de 1958), a qual apontava como solução justamente a entrega dos negócios aos grupos estadunidenses, dando como exemplo a política argentina de Frondizi (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 385).

O problema das remessas de lucros8 para o exterior constitui também uma das causas do déficit, além de expressar os laços de dependência na fase de internacionalização do mercado interno, em que boa parte das indústrias aqui instaladas são de origem estrangeira (CARDOSO; FALETTO, 1977).

Mais de 10 bilhões de dólares (cerca de dez vezes mais que o valor dos investimentos americanos existentes no Brasil) saíram do país, entre 1951 e 1960, enquanto o influxo de investimento direto foi de apenas US$ 6.200.000.000, no mesmo período. [...] Segundo a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, entre 1939 e 1952, o Brasil gastou uma soma equivalente a US$ 83.800.000 com a compra de bens estrangeiros [...]. O saldo dessa conta foi de US$ 13.300.000. Entretanto, no mesmo período, os rendimentos de

8 “A saída de recursos, desequilibrando ainda mais o balanço de pagamentos, tinha diversas modalidades, como, por exemplo, retorno de capital, amortização de empréstimos, remessa de lucros, royalties, juros e dividendos, donativos particulares. Outras formas fraudulentas – o sub e o sobrefaturamento – também drenavam a receita do país” (BANDEIRA, 1973, p. 395). “A luta em torno da lei de remessa de lucros daria um excelente estudo da política do nacionalismo econômico no Brasil” (SKIDMORE, 1975, p. 478).

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capitais estrangeiros, que saíram do país, totalizaram US$ 806.900.000 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 395).

Com o início da década de 1960, a saída de divisas intensificou-se ainda mais:

Não só as empresas estrangeiras intensificaram a transferência dos recursos para o Exterior, reduzindo, por conseguinte, a taxa de investimentos, como o influxo de capitais privados americanos caiu de US$ 18.815.000, em 1961, para US$ 9.634.000, em 1962, e US$ 6.746.000, em 1963 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 439).

Segundo Skidmore (1975, p. 278), “O motivo que se dá a essa fuga de capitais apresentada nesse período é uma combinação de inflação contínua, instabilidade política, e a aprovação da lei de restrição às remessas de lucros”.

Em 1962, os serviços da dívida externa e a remessa de lucros são especialmente graves para a condição econômica do país. A balança comercial apresentava saldos positivos: em 1962, o Brasil exportou para os Estados Unidos um valor total de US$ 678.478.000 e importou US$ 424.807.000, ficando com um saldo de US$ 253.671.000. Entretanto, somente os serviços da dívida externa e a remessa de lucros para o exterior nesse ano, da ordem de US$ 564.000.000, já foram suficientes para absorver praticamente o valor total das exportações. Para manter o fluxo de importações, o Brasil precisaria realizar novos empréstimos externos, aumentando ainda mais o serviço da dívida externa, realizando, assim, o “círculo vicioso da dependência”.

Além do mais, segundo Moniz Bandeira, (1973, p. 396), parte importante da transferência de lucros para o exterior constituía parcelas de lucro sobre os reinvestimentos, ou seja, renda que não resulta de nenhum desembolso de capital, mas que decorre de inversões de parte dos lucros aqui obtidos. Para o autor, “Mais da metade dos investimentos industriais feitos pelas empresas americanas depois da Segunda Guerra nos países da América Latina proveio de lucros reinvestidos nos países em que esses lucros foram percebidos” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 395).

Segundo Moura (1959, p. 42), “O volume de capital formado no Brasil e aqui acumulado pelas Companhias estrangeiras é [...] considerável. Várias dessas Companhias para se instalarem, trouxeram capitais exíguos, e, hoje, depois do autofinanciamento local, dispõem de vultosas fábricas e instalações.”

[...] os investimentos norte-americanos formaram-se quase que integralmente por meio de aplicação de parte dos lucros aqui auferidos, ou em função de empréstimos obtidos em bancos públicos e privados que funcionam no país, ou ainda como decorrência de financiamentos e empréstimos externos garantidos pelo Tesouro Nacional ou pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 395).

Os lucros sobre reinvestimentos são parte do mecanismo de autofinanciamento que configura o modo de atuação das grandes empresas e que as qualifica enquanto centro de poder (FURTADO, 1978). Como aponta Furtado (1978), tais empresas devem ser compreendidas como parte de um sistema de poder que lhes é específico, assim

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como são específicas as consequências para as sociedades em que tais empresas se encontram instaladas. Em uma sociedade como a brasileira, em que a elevação dos salários tem pouca relação com a elevação da produtividade, tais empresas se encontram em condições de se beneficiar exclusivamente do progresso tecnológico. Esse problema que se torna ainda mais complexo quando consideramos que as atividades produtivas nas quais se concentram o rápido progresso tecnológico estão controladas por empresas estrangeiras (particularmente, estadunidenses). Além do mais, tal situação cria uma desarticulação da capacidade dos centros nacionais de decisão, eliminando sua autonomia e eficácia, tendo em vista que as filiais das empresas estrangeiras são tanto parte do sistema de poder corresponde ao local onde estão instaladas, quanto parte de um conjunto de centros que tem sede no estrangeiro.

Mecanismos políticos da dependência

Na medida em que expressa uma condição que tem sua origem no posicionamento de um país em sua inserção internacional, o conceito de dependência se torna particularmente útil para compreender o campo da política externa, permitindo vincular a formulação desta às condições sociais do país. Do mesmo modo, o campo da política externa é rico para o estudo das influências das relações de dependência.

Nesta parte do trabalho, analisam-se as relações Brasil-Estados Unidos em termos de política externa, mas também se dá atenção ao jogo político interno e à sua conexão com o externo. No ponto 3.1, analisa-se a política externa do Brasil no primeiro governo Vargas (1930-45) e os efeitos da política externa dos Estados Unidos para as iniciativas de desenvolvimento nacional. No ponto 3.2, analisa-se as mudanças na política externa do Brasil e dos Estados Unidos no contexto de emergência da Guerra Fria, a reascensão do projeto de desenvolvimento nacional com o segundo governo Vargas (1951-1954) e suas implicações para o jogo político interno e externo. Finalmente, no ponto 3.3, analisa-se a tentativa de barganha e redefinição das relações da América Latina com os Estados Unidos lançadas pelo governo Juscelino Kubitschek, a formulação da política externa independente por Jânio Quadros e a continuidade desse projeto com o governo João Goulart. Conforme destacar-se-ão, os mecanismos políticos da dependência são as ações, o comportamento e as decisões tomadas pelos atores políticos internos que expressam as relações de dependência e têm como consequência a continuidade ou o aprofundamento dessas.

3.1 Governo Vargas (1930-1945)9

A década de 1930 começa, no Brasil e no mundo, com uma quebra de estruturas há muito tempo estabelecidas. Processa-se, no mundo, a desintegração de antigos sistemas de poder com a falência, na Primeira Guerra Mundial, do equilíbrio até então estabelecido e a constituição de novos sistemas de poder que procuram ampliar sua área de influência (MOURA, 1983, p. 578), marcando a concorrência entre liberalismo, fascismo e socialismo num mundo multipolar. Uma vez que a União Soviética ainda não se constituía enquanto uma potência global - ainda que fosse líder de uma das

9 A primeira parte deste trecho, que apresenta uma espécie de introdução de caráter geral sobre os rumos que tomavam o mundo e o Brasil em 1930, contou com importante contribuição de Marcelo Scalabrin Müller, graduando em Relações Internacionais pela UFRGS.

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vertentes ideológicas -, a disputa de poder no plano global na década de 1930 pode ser simplificada por uma concorrência entre Estados Unidos e Alemanha. Num mundo em severa crise econômica, a projeção de poder de ambos os países se dá na conquista de espaços econômicos no exterior, tanto como fonte de matérias-primas quanto como mercado consumidor. Os Estados Unidos, que já eram a maior economia capitalista, assumiram uma postura livre-cambista, enquanto a Alemanha advogou pelo protecionismo.

No Brasil, a Revolução de 30 marca o rompimento da hegemonia oligárquica no governo federal, dando início a um período marcado pela heterogeneidade de interesses no Estado, em que, pela primeira vez, ganha força uma elite industrializante e urbana. O período ficaria marcado por uma crescente participação estatal no projeto industrializante, com as transformações econômicas e sociais a criar uma nova percepção do interesse nacional (CERVO; BUENO, 2010, p. 234), mais abrangente, mais inclusiva, ainda que continuasse a excluir as massas do jogo político.

Assim, a existência de duas possibilidades de alinhamento externo, Estados Unidos e Alemanha, que disputavam pela adesão internacional aos seus sistemas ideológicos (liberalismo e fascismo) e às suas doutrinas econômicas (livre-comércio e protecionismo), permitiu uma margem de manobra ao Estado brasileiro, que, passando por mudanças internas de poder num país em franca transformação social e econômica, se situava num momento extremamente propício para redefinições na sua política externa. O período ficaria marcado por um comportamento do Estado brasileiro que buscava aproveitar oportunidades oferecidas pelos dois polos, sem se comprometer exclusivamente com um ou outro. Isso não foi somente uma estratégia de política exterior, como também um reflexo de uma divisão interna, em que o debate sobre qual seria a melhor aliança permanecia indefinido. A essa configuração da política externa brasileira, na década de 1930, Moura (1983, p. 580) dá o nome de equidistância pragmática.

Nesse mesmo período, se constituiria, por parte da política externa dos Estados Unidos, o que se convencionou chamar de Política da Boa Vizinhança.10 Em razão da Grande Depressão, da crise estadunidense e mundial, os Estados Unidos encontram, à época, uma redução em sua capacidade de projeção de poder e de controle hemisférico. Ademais, a América Latina se tornara um conjunto política e economicamente mais complexo e insatisfeito com o intervencionismo estadunidense. A Europa, em particular, situava-se como um cenário instável, de grandes incertezas para a política global, dada a crise mundial e a ascensão das ideologias totalitárias. Em vista desse contexto de capacidades reduzidas e de um cenário político delicado, há uma alteração tática na política externa estadunidense para a América Latina: a custosa política de intervenção daria lugar à da cooperação, contudo, mantendo em perspectiva os objetivos estratégicos dos Estados Unidos para o hemisfério.

10 A origem do termo Política da Boa Vizinhança pode ser relacionada aos termos usados por Roosevelt para descrever aquilo que seria a política externa do seu Governo. Conforme dizia: “No campo da política mundial, dedicarei esta nação à política do bom vizinho – o vizinho que decididamente respeita a si mesmo e, porque o faz, respeito o direito dos outros – o vizinho que respeita suas obrigações e respeita a santidade de seus compromissos dentro e com um mundo de vizinhos” (apud PECEQUILO, 2005, p. 115).

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Conforme destaca Pecequilo (2005, p. 115), “[...] não se deve, entretanto, minimizar os efeitos e as conquistas da Política da Boa Vizinhança, pois ela foi capaz de promover uma transformação imediata no relacionamento [interamericano]”. Nesse sentido, cabe aqui se analisar os efeitos dessa transformação e os seus possíveis ganhos advindos para as medidas econômicas e políticas brasileiras. Far-se-á isso, basicamente, por meio de uma análise de casos que se destacam nas relações Brasil-Estados Unidos nesse período: a) a redução de taxas para a empresa Lloyd Brasileiro; b) a suspensão do pagamento da dívida externa brasileira em 1937; c) o acordo de reciprocidade comercial assinado com os Estados Unidos em 1935; d) o fornecimento de empréstimos e equipamentos para a construção da siderurgia brasileira. Ao focar-se na dimensão da política externa dos Estados Unidos, não se deve perder de vista, entretanto, a importância das dimensões interna e do sistema internacional como um todo. É nesse mesmo sentido que, ao analisar-se o caso do tratado comercial assinado com os Estados Unidos, este será colocado em comparação ao tratado assinado na mesma época com a Alemanha. Pelo mesmo motivo, as relações do Brasil com os Estados Unidos serão analisadas, quando necessário, dentro do contexto de relações Brasil-Alemanha e de sua expansão como polo concorrente no sistema internacional.

Em 1931, Vargas estabelece o Decreto nº 19.682, que favorece a empresa de navegação Lloyd Brasileiro, com redução de 50% das taxas consulares (fees) para os seus usuários, o que estimulou a utilização dos navios nacionais para o transporte de mercadorias dos Estados Unidos com destino ao Brasil. O resultado foi expressivo. Em um período de um mês, a Lloyd Brasileiro passou de uma pauta de exportação de 25.919 toneladas para 33.374 toneladas, o que representou, então, um aumento de cerca de 28%, mesmo com uma diminuição do total das exportações desse período próxima de 11% (de 106.897 toneladas para 94.894 toneladas). Por outro lado, as linhas estadunidenses também apresentaram no mesmo período um leve crescimento, de aproximadamente 2,6%, de 34.928 toneladas para 35.842 toneladas, enquanto que as outras linhas (cinco britânicas e duas norueguesas) apresentaram uma queda em suas exportações de cerca de 44%, de 46.050 toneladas para 25.678 toneladas (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 230-231). Dessa forma, boa parte das exportações dos Estados Unidos para o Brasil se deslocaram para a empresa Lloyd Brasileiro, a partir do decreto de Vargas.

O presidente da empresa U.S. Shipping Board pressionou o Departamento de Estado estadunidense para que este obtivesse a modificação, ou mesmo, a revogação do decreto. Washington optou por propor ao governo brasileiro a extensão dos privilégios aos seus próprios navios, mantendo o decreto. A posição estadunidense era a de que “[...] o Brasil só não tinha o direito de beneficiar a sua própria navegação” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 230-231). Vargas não cedeu: não revogou nem modificou o decreto. Os Estados Unidos não encontraram o apoio dos outros países prejudicados, os quais temiam uma retaliação brasileira. No fim, a questão acabou sendo deixada de lado. Não houve maiores pressões por parte da U.S. Shipping Board.

Nesse caso, a interpretação de Moniz Bandeira é a de que a intenção de não provocar maiores atritos, frente a um caso que não era de grandes dimensões, parece ter prevalecido dentro do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Poder-se-ia pensar também em termos da própria empresa U.S. Shipping Board: não sendo um

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grande truste, uma grande corporação, não teria muitos meios de pressão para levar às últimas consequências. De qualquer modo, a posição do Departamento de Estado é o que parece ter prevalecido.

É difícil analisar nesse caso se houve algum favorecimento para a permanência da medida brasileira vinda da alteração da política externa estadunidense na gestão Roosevelt, ou se simplesmente a questão não era de importância suficiente para que houvesse alguma atitude mais dura por parte dos Estados Unidos. A importância da posição adotada pela gestão Roosevelt parece ter sido decisiva mesmo no caso da suspensão do pagamento das dívidas externas.

Quando o Governo Vargas em 1937 suspende o pagamento, o Foreign Bondholders Protective Council (FBPC) instou o Departamento de Estado dos Estados Unidos para que não reconhecesse o Estado Novo e adotasse medidas coercitivas contra o Brasil. No entanto, não era do interesse do governo Roosevelt criar maiores conturbações com o Brasil. Segundo Moniz Bandeira (1973, p. 258), “[...] a missão brasileira, que visitou Washington, comprovara, através (sic) de sondagens, que os Estados Unidos não enveredariam pelo caminho da retaliação, caso o Brasil desse alguns passos que prejudicassem os interesses comerciais ou financeiros estadunidenses, mas favoráveis ao desenvolvimento de sua economia”. Conteve-se, então, à pressão do FBPC. Da mesma forma, se há uma importância da gestão Roosevelt para o caso da empresa Lloyd Brasileiro, é esse sentido de contenção de pressões.

Não obstante, se o interesse nacional se manteve com o fortalecimento da empresa Lloyd, o Tratado de Reciprocidade Comercial, assinado com os Estados Unidos em 1935, teve efeito contrário e de muito mais impacto. Sua assinatura representou a redução

[das] tarifas para [...] produtos americanos, dando-lhes condições de concorrência com os europeus e desestimulando a indústria nacional, enquanto o Governo de Washington apenas se comprometia a manter livre de direitos a entrada dos principais produtos brasileiros (café e borracha) naquele país – o que já ocorria de fato (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 241).

Além do mais, as desvantagens do tratado podem ser verificadas também pelo fato de o pequeno crescimento das exportações brasileiras não ter sido causado por sua assinatura, mas sim pela recuperação da renda ocorrida nos Estados Unidos após a crise de 1929 e 1933 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 248-249).

Os produtos primários e alimentícios exportados – que compunham 99% da pauta de exportação brasileira para os Estados Unidos – não sofrem variações consideráveis de demanda sob baixa de preços. Já os produtos estadunidenses exportados para o Brasil – 80% manufaturados, bens de consumo duráveis – possuíam grandes variações sob as mesmas condições. “As exportações americanas para o Brasil aumentaram 64,80%, em 1936, e 130,8%, em 1937, tomando como base os níveis de 1933, enquanto o incremento das exportações brasileiras para os Estados Unidos não passou de 23,44% e 46%, no mesmo período” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 249).

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Vargas acabou cedendo à assinatura do tratado. Teria pesado o fato de que o Brasil, à época, estava sofrendo uma crise da dívida externa, e de o Departamento de Estado dos Estados Unidos ter condicionado a sua solução ao acordo de reciprocidade comercial. Mas também havia, dentro do governo brasileiro, um ideário que acreditava que a assinatura do tratado seria o melhor para o Brasil. Oswaldo Aranha é um grande exemplo de pensamento liberal a favor da intensificação das relações brasileiras com os Estados Unidos, mesmo adotando “atitudes de independência, que lembravam Rio Branco”, como assinala Moniz Bandeira (1973, p. 253). Nesse sentido, coincidiram a favor da assinatura do tratado dois fatores: o aprisionamento político em torno da dívida externa e a ideologia assumida por parte de forças políticas ligadas ao governo, que viam nos Estados Unidos um modelo e no estreitamento de suas relações com o Brasil – e, portanto, com a economia brasileira – o melhor para o futuro do desenvolvimento nacional.

Esse misto de pressões políticas externas e internas ao governo brasileiro também esteve presente no caso do Acordo de Compensações com a Alemanha, assinado no mesmo ano de 1935. Sua negociação passou por pressões políticas muito parecidas com aquelas enfrentadas pelo Tratado de Reciprocidade. Assim como o governo estadunidense usou a questão da dívida como barganha, o governo alemão também ameaçou cortar suas relações comercias com o Brasil, caso o acordo não fosse concluído. No interior do governo brasileiro, a situação também não era muito distinta: havia forças tanto pró-Estados Unidos quanto pró-Alemanha. O próprio Vargas considerava de suma importância a conclusão do acordo de compensações, afinal “[...] a Alemanha comprava muitos produtos brasileiros, principalmente do Rio Grande do Sul, tais como arroz, carnes, couros, havendo possibilidade para o algodão, que os Estados Unidos não importavam” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 242-243).

É nos efeitos práticos para a economia brasileira que observamos as maiores distinções entre o Acordo de Compensações com a Alemanha e o Tratado de Reciprocidade com os Estados Unidos:

O Brasil, em 1934, importava 23,67% dos Estados Unidos [...] e 14% da Alemanha. Depois do Acordo com a Alemanha, dos marcos compensados, a situação mudou. O Brasil importou, em 1938, 25% da Alemanha, 24,2% dos Estados Unidos [...]. E, enquanto as vendas de café baixaram de 73% (sobre o valor em ouro), em 1933, para 42%, em 1937, as do algodão subiram de 1% para 19%, no mesmo período (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 249).

Além do que,

[...] o comércio compensado afigurava-se uma política interessante aos industriais brasileiros, pois permitia um controle do mercado interno de modo que não fosse inundado por mercadorias concorrentes de procedência alemã. A desvantagem estava no fato de os marcos (alemães) de compensação não gerarem moeda disponível com a qual o Brasil pudesse acorrer a compromissos contraídos com nações adeptas do livre-comércio (CERVO; BUENO, 2010, p. 255).

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Afigurava-se, dessa maneira, uma rivalidade comercial entre Estados Unidos e Alemanha frente ao mercado brasileiro, e Vargas percebia isso e utilizava a seu favor. Pronunciou uma série de discursos em que se colocava claramente simpático à Alemanha, e declarando sua intenção de neutralidade diante do conflito na Europa, justamente no momento em que corriam as negociações com a Krupp alemã para o fornecimento dos materiais para a montagem da siderurgia (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 270-271). Até então o Brasil já havia procurado a United States Steel Co., que demonstrou seu desinteresse pelo empreendimento. O deslocamento do comércio brasileiro para a órbita alemã e a iminência do contrato com a empresa alemã para a construção da siderurgia deram poder de barganha para o Brasil frente os Estados Unidos, e este acabou cedendo os empréstimos e equipamentos necessários, o que até então se negava a fazer. Poder de barganha esse que é, no entanto, relativo, já que estava condicionado pela necessidade dos Estados Unidos de garantir a cooperação brasileira em seu esquema estratégico, preparatório para sua entrada no conflito europeu, dada a importância das bases no nordeste brasileiro para o conflito no Atlântico. Assim, a política de Vargas se beneficiou não somente da rivalidade comercial entre Estados Unidos e Alemanha, mas também do conflito militar entre as forças do Eixo e as Aliadas.

Agora, após termos analisados todos esses casos em conjunto, retomemos a pergunta deixada anteriormente: qual a importância da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt para a implementação das medidas políticas brasileiras?

Em certa medida, a gestão Roosevelt conciliou as contradições entre os interesses econômicos estadunidenses e a condução do processo de industrialização brasileiro, permitindo ao Brasil adotar certas medidas com mais segurança, como se vê, principalmente, no caso de suspensão do pagamento da dívida externa. O que não significa dizer que a política de Roosevelt abandonou os planos de liderança hemisférica. Quando muito, foi capaz de atenuá-los. O Tratado de Reciprocidade Comercial é justamente um sintoma disso. Conforme Moniz Bandeira (1989, p. 29), “[...] a opinião de Roosevelt, favorável ao desenvolvimento industrial do Brasil, com o argumento de que os Estados Unidos desejavam um aliado forte e não o temiam como concorrente, não refletia, na realidade, a da maioria do establishment empresarial e político de seu país”.

O que obervaremos pela parte do Brasil em seus próximos movimentos – com o derrocar do conflito europeu – será uma aproximação ainda maior com os Estados Unidos. Na interpretação de Moniz Bandeira, a “burguesia” brasileira buscará aporte no capital estadunidense para conduzir o processo de desenvolvimento brasileiro como lhe apreciava, a salvo das tendências populares de “esquerdização” e estatizantes.

3.2 Governos Dutra e Vargas (1945-1954)

A Guerra Fria marcou, na política externa dos Estados Unidos, um declínio nas relações interamericanas, sendo referido como o período do “descaso” e da “negligência” para com os países latino-americanos (PECEQUILO, 2005, p. 215-220). Ainda estavam vivos, no imediato pós-guerra, os ideais de cooperação e de “relacionamento especial” entre os Estados Unidos e a América Latina, apresentando certa continuidade com a Política de Boa Vizinhança de Roosevelt. Entretanto, tais ideais não apresentaram uma materialização consistente que desse conta dos interesses e necessidades latino-

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americanos. No imediato pós-guerra, ganhou força, dentro da política externa estadunidense, a doutrina da contenção à União Soviética e ao comunismo, em paralelo à expansão dos valores do livre-mercado e da democracia. Nesse contexto, não sendo percebida a América Latina como uma área de risco, a política externa dos Estados Unidos voltou-se, prioritariamente, para a Europa e o Pacífico, os principais teatros estratégicos do pós-guerra.

Concomitantemente, no Brasil, o governo Dutra representou a ascensão da influência estadunidense, consagrada com o fenômeno da Segunda Guerra Mundial e o consequente alinhamento das elites brasileiras. Isso se expressaria no esgotamento das reservas cambiais, na repressão do movimento operário, assim como em sua política externa. A diplomacia brasileira era alinhada automaticamente com as posições estadunidenses nas organizações internacionais, chegando mesmo a se exceder muitas vezes, como no caso do rompimento das relações com a União Soviética, antes mesmo que os Estados Unidos o fizessem (VISENTINI, 2009, p. 58).

Além do mais, o regime democrático permitia às empresas estadunidenses a institucionalização necessária para que seus recursos permeassem os processos de decisão da política brasileira, com o fim de atender aos seus interesses. Todo o processo de lobby penetrava desde a sociedade civil, com anúncios em jornais e na televisão, patrocinados por empresas como a Standard Oil e até por membros do próprio governo brasileiro. “O Governo do General Dutra tinha como assessores dois advogados americanos, Herbert Hoover Jr. e Arthur Curtice, ligados aos trustes de petróleo, sendo o primeiro o autor do anteprojeto da legislação petrolífera da Colômbia e do Peru”11 (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 317).

À época, a grande questão política girava em torno da regulamentação do petróleo brasileiro. A Standard Oil – grande truste estadunidense do petróleo – moveu toda a pressão possível sobre a Assembleia Constituinte instalada em 1946. Assim, o artigo 153 da Constituição, que regulamentava a propriedade do subsolo e o aproveitamento industrial das minas e jazidas, saiu como desejado, permitindo que sociedades organizadas no país o fizessem por meio de concessões (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 310). Ora, “[...] a Standard Oil tinha uma subsidiária no Brasil, a Companhia Geral do Petróleo Pan-Brasileira e, em outubro de 1946, incorporou a Companhia de Gás Esso, [preparando-se] para obter a concessão” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 311).

Segundo consta, o governo de Dutra elaborou um anteprojeto, a ser submetido ao Congresso, que permitiria também a incursão de investimentos estrangeiros na exploração do petróleo. Mesmo assim, sofreu novas pressões – por meio do embaixador William D. Pawley, então representante dos Estados Unidos no Brasil – no sentido de obter “[...] uma legislação ainda mais favorável às companhias estrangeiras, inclusive nas atividades de refino e transporte” (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 34).

A questão, no entanto, ficou paralisada no Congresso, devido à resistência das forças nacionalistas dentro do governo e, principalmente, das Forças Armadas. Coube a Vargas resolvê-la, ao assumir em 1951, e o fez dando a ela uma solução nacionalista.

11 É citada na literatura uma série de atores políticos brasileiros ligados a grandes empresas estaduniden-ses, não sendo o fenômeno uma exclusividade do governo Dutra. Por exemplo, o Ministro da Fazenda do governo Café Filho, Eugênio Gudin, era diretor de subsidiárias da Bond and Share. Para saber mais, ver Moura (1959, p. 201).

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Em 1953, o Congresso aprovava a Lei nº 2004, instituindo o monopólio estatal da pesquisa, exploração e lavra do petróleo, com a fundação da Petrobras. Mesmo com a orientação geral do governo Dutra favorável à posição do capital estrangeiro, as forças internas conseguiram garantir o setor de petróleo para o capital nacional. No fim, as pressões dos Estados Unidos, contrárias a essa formulação, não obtiveram resultados, e as empresas estadunidenses acabaram fornecendo os equipamentos necessários à instalação das refinarias e à exploração do petróleo, para que não fossem comprados na Europa. Mais uma vez a presença do capital europeu como competidor deu poder de barganha ao Brasil.

O governo Dutra empenhou-se em criar condições que agradassem ao capital estadunidense. No entanto, não obteve sucesso. Parece claro que suas concessões apenas davam maior margem de manobra, para um interesse que não estaria satisfeito enquanto não controlasse totalmente o petróleo brasileiro. Vargas, imbuído da noção de assegurar o desenvolvimento nacional, age contrariamente ao interesse estadunidense, apoiado na resistência nacionalista dentro do governo e na reascensão das economias europeias. Entretanto, conforme seu governo avançasse, tratando de outras questões nos mesmo termos nacionalistas, sua base de apoio ruiria. As pressões externas sobre o governo de Vargas não vinham somente das empresas ligadas à questão do petróleo, mas também dos círculos financeiros estadunidenses, e estes dois articulavam-se entre si.

A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (instalada pouco antes da posse de Vargas), que previa a formulação e execução de projetos de desenvolvimento, contava também com a possibilidade de captar financiamentos junto ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o Banco de Exportação e Importação (Eximbank). No entanto, as expectativas quanto aos financiamentos não se cumpriram como esperado. Pretendia-se

[...] conseguir US$ 500 milhões (inclusive US$ 380 milhões para os projetos recomendados pela Comissão Mista) e o BIRD e o Eximbank, até dezembro de 1953, aprovaram apenas US$ 130 milhões, que, como se destinavam a empreendimentos de longo prazo, muito pouco valeram para aliviar a crise cambial do Brasil (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 31).

Mesmo com pressões por parte do Departamento de Estado dos Estados Unidos, para que atendessem aos pedidos de financiamento da Comissão Mista, os bancos não cederam, assim como também se negavam então a disponibilizar financiamentos para a montagem da indústria petrolífera no país. Tudo isso tinha um sentido muito claro:

A comunidade de negócios dos Estados Unidos exercia efetivamente pressões no sentido de que aquelas duas agências financeiras não aprovassem financiamentos, enquanto Vargas não modificasse o Decreto-Lei de 3 de Janeiro de 1952, que limitava a remessa de lucros a 8% sobre o capital registrado, isto é, aquele que de fato ingressou no país (ao mesmo tempo em que determinava a revisão contábil do montante de investimentos estrangeiros realizados na economia nacional) (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 32).12

12 A disputa política pela regulação das remessas de lucro data desde 1946, quando, ainda no governo Dutra, lançou-se o Decreto de nº 9.025, feito nos mesmos termos que esse de 1952. No mesmo ano de 1946, um regulamento, estabelecido pela carteira de câmbio do Banco do Brasil, anulou os efeitos práticos dispostos

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Não obstante, havia também grande pressão dentro do governo, que se dividia entre aqueles que se opunham às concessões aos Estados Unidos e aqueles que as defendiam. Prova maior disso foi o

[...] projeto do Deputado Adolfo Gentil, cuja transformação na Lei 1807, de 7 de janeiro de 1953, proporcionaria aos capitais estrangeiros um regime de privilégios, ao eliminar, mediante a criação do mercado livre, paralelo ao oficial, quaisquer restrições às transferências de lucros, juros e dividendos (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 32).

Assim, todo o esforço de Vargas para conter a crise cambial por meio da restrição à remessa de capitais perdia qualquer efetividade. Tal situação criava não somente medidas políticas contraditórias, mas também reduzia significativamente as margens de decisão que possuía Vargas.

Em 1953, em compasso com a posse de Eisenhower na presidência dos Estados Unidos, as contradições de governo iriam se extremar. Entre junho e julho de 1953, o Departamento de Estado dos Estados Unidos decide, unilateralmente, encerrar as atividades da Comissão Mista Brasil Estados Unidos.13 Em 3 de outubro é sancionada a Lei nº 2004, supracitada. Seis meses depois, Oswaldo Aranha baixa a Instrução 70,14 restringindo o regime de privilégios para o capital estrangeiro criado pela Lei nº 1807, ao mesmo tempo em que “[...] encarecia as importações de bens de capital e assim estimulava a produção de similares nacionais” (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 39). Pouco tempo depois, os Estados Unidos comunicam ao governo brasileiro que “[...] o Eximbank não lhe concederia mais que US$ 100 milhões, e apenas para atender ao pagamento de atrasados comerciais dos US$ 250 milhões prometidos pela administração anterior15” (MONIZ BANDEIRA, 1989). Tal fato levou Vargas a enfrentar a crise cambial por meio de outro Decreto-Lei (de nº 34.839, datado de janeiro de 1954), que limitava a remessa de lucros e dividendos.

Nessa perspectiva, a contradição entre os interesses e os consequentes posicionamentos assumidos por Estados Unidos e Brasil condicionam-se mutuamente, até o ponto em que cada endurecimento político de um é respondido no mesmo sentido pelo outro. O problema complicava-se ainda mais, na medida em que a relação com os Estados Unidos era também motivadora de contradição interna. Para setores da sociedade brasileira identificados ideologicamente com os Estados Unidos, entrar em contradição com o país do norte implicava em reduzir as possibilidades de desenvolvimento do Brasil.

pelo decreto. Dessa forma, nas palavras de Vargas, “[...] um mero Regulamento, baixado por autoridade de menor hierarquia, sabotou totalmente não só o espírito, mas o próprio eixo do decreto-lei, e conseguiu inaugurar, em surdina e sem que ninguém se desse conta, um vazamento subterrâneo da moeda brasileira para o exterior” (IANNI, 1977, p. 88).13 Mesma época em que João Neves da Fontoura e Horácio Lafer, favoráveis a maiores concessões aos Estados Unidos, deixam seus cargos no Ministério das Relações Exteriores e da Fazenda, respectivamente. (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 39).14 Conforme já se indicou, ao início de 1955, foi estabelecida, durante o governo de João Café Filho, a Instrução 113, que tornaria nula a Instrução 70.15 Gestão Truman.

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Parte da burguesia comercial, que tinha seus negócios de importação e exportação prejudicados pelas políticas de fomento à industrialização, já fomentava, junto a outros setores do empresariado brasileiro, a campanha da União Democrática Nacional (UDN) e dos meios de comunicação contra o governo de Vargas. Conforme Cardoso e Faletto (1977), o ano de 1954 marca uma virada na organização do pacto político que sustentava o governo:

É certo que os preços internacionais favoráveis ao café até 1953 permitiram que os setores agrários suportassem, sem prejuízos aos seus níveis de renda, a política de proteção e de rápida expansão do setor interno; entretanto, até 1954, quando começa a mudar a conjuntura, a aliança varguista alcançou seus limites: parte dos setores agrários uniu-se à oposição da classe média urbana, fato que se somou à pressão não só dos grupos financeiros internos mas também internacionais. O início de uma nova conjuntura desfavorável para o café foi aproveitado pela política norte-americana para pressionar Vargas, que havia ido bastante longe com sua política nacionalista (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 117).

Nas Forças Armadas, o nacionalismo se incrustou historicamente como tendência. Os projetos de exploração e refino do petróleo, e de construção dos primeiros reatores atômicos, tinham suas raízes principalmente nos meios militares. Desde a década de 1930, com os efeitos da crise econômica internacional, as Forças Armadas perceberam que era necessário reduzir as vulnerabilidades internas e externas do Brasil, mediante o aproveitamento dos seus recursos naturais, a industrialização e o progresso tecnológico. No entanto, o alinhamento do Brasil na Guerra Fria, e particularmente na política dos Estados Unidos de contenção ao comunismo, acabou por alterar a sua composição ideológica:

[...] com o agravamento da guerra fria, o anticomunismo, como outro verso do nacionalismo, a ele se sobrepôs, inibindo-se e ofuscando os problemas essenciais do Brasil [...] [fazendo com que fosse identificada] toda oposição aos interesses dos Estados Unidos com o favorecimento ideológico da União Soviética (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 75).

Essa alteração de perspectiva dará margem para que parte das Forças Armadas, representada pela Cruzada Democrática, reagisse ao aumento das contradições entre os posicionamentos de Brasil e Estados Unidos, articulando o movimento para forçar a renúncia de Vargas, juntamente com as agitações promovidas pela UDN e pelo jornalista Carlos Lacerda.

Com o suicídio de Vargas, houve intensa reação popular, inúmeros estabelecimentos – jornais, embaixadas, etc. – que lembravam as forças internas e externas denunciadas em sua carta testamento foram depredados. Tal reação impediu o avanço do golpe de Estado. Dessa forma, Café Filho assumiu o governo, junto à UDN e aos oficiais da Cruzada Democrática, dentro dos marcos constitucionais, sem que os feitos da era Vargas fossem totalmente revertidos. Não se pôde revogar o monopólio estatal do petróleo, e nem mesmo a reforma cambial que pretendia extinguir as taxas múltiplas de cambio foi possível. Não obstante, revogou-se a restrição às remessas de

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lucros para o exterior, e abandou-se por completo a iniciativa por uma política atômica independente.

As ações políticas lideradas pela UDN e pela Cruzada Democrática contra o governo Vargas fornecem um ótimo exemplo da necessidade de se levar em consideração na análise a importância das forças internas e do jogo político interno, assim como os valores e as formas de compreensão do mundo que guiam seu posicionamento político.16 É nesse sentido, guiados pelo mesmo princípio metodológico, que analisar-se-á de forma mais detida o caso da política atômica e de exportação de monazitas. Ele fornece elementos importantes para compreender tanto as implicações da dimensão ideológica nas ações políticas, quanto a natureza das relações de dependência com os Estados Unidos, qual seja, a do controle da formação de novos centros econômicos de decisão.

Os acordos sobre exportação de monazitas deveriam ser guiados pelo princípio de recebimento de compensações específicas às exportações, ou seja, de auxílio técnico e de facilidades para a aquisição de materiais necessários à implantação, no Brasil, de reatores para o aproveitamento da energia nuclear. Tal princípio das compensações específicas foi ratificado pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)17 e pelo Conselho de Segurança Nacional e aprovado pelo então Presidente Getúlio Vargas, em 1952. Entretanto, tal princípio não foi respeitado pelo acordo feito com os Estados Unidos, em fevereiro desse mesmo ano.18 Vargas acabou autorizando suas exportações. Segundo Moniz Bandeira (1973, p. 360), “[...] o que Vargas tentou, provavelmente, foi aliviar as hostilidades entre o seu Governo e os Estados Unidos. Os amigos diziam-lhe que ele cairia, se continuasse inflexível”.

O caso chegou, por denúncia da empresa Orquima S.A., ao Almirante Álvaro Alberto, Presidente do CNPq. O Almirante também era responsável pelo estabelecimento das relações político-diplomáticas necessárias ao programa nuclear brasileiro. Assim, as duas questões, da exportação das monazitas e da política nuclear, tornaram-se uma só.19

A posição estadunidense quanto ao assunto era que os Estados Unidos estaria impossibilitado de fornecer as compensações específicas, devido à Lei MacMahon (Atomic Act), que não permitiria qualquer tipo de cooperação referente à tecnologia dos reatores nucleares. Dessa forma, não havia perspectiva de acordo. Sendo assim, paralelamente às negociações com os Estados Unidos, o Almirante Álvaro buscou estabelecer conexões com países europeus. Suas ações eram guiadas pelo princípio de que o Brasil não deveria ficar dependente de uma só nação. Assim, acertou-se com cientistas alemães a construção de três centrífugas, para instalar, no Brasil, uma usina de separação de isótopos e produção de urânio enriquecido, matéria-prima que permite a 16 Ver Cardoso e Faletto (1977).17 Criado em 1951, o CNPq era o órgão que centralizava a coordenação da política nacional de ciência e tecnologia. Com o acirramento da Guerra Fria, o interesse do CNPq se ampliou no sentido de capacitar o Brasil no domínio do ciclo atômico, questão de importância estratégica naquele momento.18 Além do mais, na transação realizada, não se retirou todo o produto previsto, mas penas a parte da mo-nazita in natura e aquela que correspondia ao óxido de tório, ou seja, 6% da monazita brasileira, o que deixou a empresa responsável por seu refinamento, a Orquima S.A., com 94% de seu produto sem saída. Isso aconteceria tanto em 1952 quanto em 1954.19 O caso da política nuclear e de exportação das monazitas se encontra relatado em Bandeira (1973, p. 354-372).

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fabricação da bomba atômica. No entanto, o Brigadeiro inglês Harvey Smith apreendeu todo o material das ultracentrífugas quando elas estavam para serem embarcadas, na Alemanha (Ocidental), para o Brasil, por ordem expressa do Alto Comissário dos Estados Unidos James Conant.

Após o suicídio de Vargas (24 de agosto de 1954), Juarez Távora, enquanto Chefe da Casa Militar da Presidência da República, iniciou a revisão da política brasileira de energia nuclear. Não se achando apto a opinar seguramente sobre o caso, Távora solicitou a opinião da Embaixada dos Estados Unidos. Confiava na “boa vontade” estadunidense e acreditava que “ela não estava sendo aproveitada corretamente”. Como resposta, a Embaixada enviou quatro documentos.

Nestes documentos, fazem-se críticas bastante acerbas à atuação do senhor Almirante Álvaro Alberto, procura-se pôr em destaque as dificuldades que o Brasil encontraria, caso desejasse empreender, por si, um programa de energia atômica, e, finalmente, afirma-se a inoperância dos órgãos brasileiros ligados ao assunto e insinuam-se possíveis sanções ao Brasil, caso o mesmo enverede em caminhos considerados injuriosos aos interesses norte-americanos (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 368).20

Sem contar a clara afronta aos princípios diplomáticos que normalmente regem as relações entre dois Estados soberanos, os documentos expressam o interesse de assegurar o monopólio das atividades estrangeiras sobre a energia atômica no Brasil, assim como a intenção de desqualificar qualquer tentativa de caráter independente e autônoma por parte do Brasil (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 369).

Como resultado, a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional aprovou as diretrizes da nova política brasileira de energia atômica, concedendo aos Estados Unidos tratamento preferencial. Proibiu-se o CNPq de realizar negociações com autoridades ou entidades estrangeiras, deixando-as a cargo do Itamarati. Exonerou-se o Almirante Álvaro Alberto, conforme já havia sido insinuado que deveria ser feito, em carta da Embaixada dos Estados Unidos. Mesmo com a proclamação da soberania da Alemanha (Ocidental), desaparecendo assim as dificuldades para a construção das ultracentrífugas, Távora não determinou o andamento dos trabalhos para trazê-las ao Brasil, cumprindo fielmente as recomendações dos documentos enviados pela Embaixada dos Estados Unidos. Sequer se levou em consideração as alterações que os Estados Unidos vinham fazendo em sua política desde 12 de junho de 1954, com o programa “Átomos para a paz”, lançado por Einsenhower, tornando mais amenas as proibições impostas pela Lei MacMahon, justamente a motivação para o impasse anterior. Além disso, Távora também modificou os textos que orientavam a política brasileira de energia nuclear, de modo a fazer desaparecer as compensações específicas até então exigidas.

Há ao menos mais dois aspectos desse caso que devem ser ressaltados. Primeiro, pela parte estadunidense, deve-se notar, além do que já foi dito, a intenção de manutenção do fornecimento das monazitas conforme seu padrão de dependência,

20 Do ofício 25.11.1954, Cel. José Luiz Bettamio Guimarães, Chefe do Gabinete, ao General Juarez Távora, secreto Doc. In: MONIZ BANDEIRA, op.cit., p. 368, nota de rodapé 93.

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ou seja, sem o estabelecimento das compensações específicas, que representariam a formação de um centro de decisão nacional no que se refere à energia atômica. Dessa forma, a política de contenção ao comunismo se dava paralelamente a uma política de contenção ao desenvolvimento nacional. Tal intenção de controle não é um caso isolado. Posteriormente, no governo Goulart, quando este articula negociações com o Leste Europeu, o governo dos Estados Unidos se colocou contra a compra de helicópteros da Polônia. Como salienta Moniz Bandeira (1973, p. 433), “[...] de certa forma, o atrito criado, na década de 1930, pelo acordo dos marcos compensados (com a Alemanha de Hitler) se reproduzia”.21 Nas palavras de Renato Archer, a questão da exportação das monazitas expressava “[...] o fatal antagonismo entre os interesses de uma nação detentora de processos tecnológicos avançados, mas carecendo de matéria-prima, e de outra, como o Brasil, que a possuía e procurava trocá-la pelo conhecimento indispensável à sua utilização” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 355, grifo do autor).

Segundo, pela parte brasileira, deve-se notar a atuação do Sr. Juarez Távora. Vale lembrar aquilo que já afirmamos antes: que a dependência se expressa na forma de atuação dos grupos e atores sociais. Juarez Távora age, ao que parece, não levando em consideração que a Embaixada dos Estados Unidos, assim com qualquer outra, atua dentro dos limites dos interesses da política de seu Estado, podendo haver, então, contradição entre os interesses brasileiros e os estadunidenses. Além disso, após as pressões expostas nos documentos enviados pela Embaixada dos Estados Unidos, só soube seguir suas instruções. Dessa forma, o Brasil não aproveitou nem o fato da Alemanha Ocidental ter adquirido sua soberania, o que fazia desaparecer os problemas para a construção das ultracentrífugas, nem o fato da política atômica dos Estados Unidos vir sofrendo uma série de alterações, no sentido de tornar menos rígido o Atomic Act, justamente o cerne do problema de negociação. Mas talvez o ponto mais significante nesse aspecto seja que não só não se estabeleceu uma nova iniciativa própria brasileira no sentido de aquisição de capacidades quanto à energia nuclear, mas também se desestruturaram as iniciativas anteriores, modificando-se, diretamente nos documentos, a política atômica brasileira, acabando com as compensações específicas e impedindo a participação do órgão competente (CNPq) nas negociações.

3.3 Governos Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart (1956-1964)

A concentração da política externa dos Estados Unidos na Europa e no Pacífico deu margem para que os países latino-americanos buscassem alternativas para satisfazer suas necessidades. O fortalecimento do campo político de esquerda em diversos países, como Brasil, Argentina e Chile, encontra-se dentro dessa perspectiva (PECEQUILO, 2005, p. 220).

O governo Kubitschek buscou contornar o afastamento dos Estados Unidos em relação à América Latina, propondo uma nova política para os países latino-americanos, baseada na superação do subdesenvolvimento. A política externa de seu período procurou valer-se do incentivo estadunidense ao desenvolvimento da América

21 Nota-se como o próprio autor, sem se valer da base teórica de Cardoso e Faletto (1977), relaciona, intuiti-vamente, a postura dos Estados Unidos nesse caso em particular com um padrão de relação já apresentado anteriormente (no caso, frente ao acordo de marcos compensados com a Alemanha).

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Latina, como forma principal de conter os conflitos no hemisfério. Kubitschek sabia que “[...] sem estabilidade social toda a política de segurança será necessariamente precária” (FURTADO, 1978, p. 35). Já a política do Departamento de Estado dos Estados Unidos ditava que a “contenção ao comunismo” e a repressão policial, em paralelo com a integração dos serviços brasileiros de inteligência com a CIA, eram a prioridade. Conforme resume Moniz Bandeira (1973, p. 375), ao comentar os resultados da visita de Juscelino à Washington, “[...] Kubitschek queria capitais, fábricas, desenvolvimento. Dulles22 reclamava coordenação no combate ao Comunismo [...]”.

É típico do “período de transição”23 na América Latina a incorporação das classes ditas médias no jogo político e o surgimento das sociedades urbanas de massa. A presença das massas é tanto necessária para a industrialização (para formar a mão de obra e o mercado interno), quanto também deve ser levada em consideração pelos grupos sociais no jogo político (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 91-93). Nesse caso em particular, a ascensão das massas alterou tanto a estrutura do poder político, quanto as relações dos países latino-americanos com os Estados Unidos. Assim, a instabilidade política vivenciada na América Latina deu margem ao antiamericanismo.

Kubitschek aproveitou a situação e mandou uma carta a Eisenhower, no sentido de alertar o governo estadunidense para a necessidade de focar na luta contra o subdesenvolvimento, no lugar das medidas de repressão. Tal concepção se tornaria depois princípio fundador da Operação Pan-Americana (OPA).24 No entanto, a postura estadunidense, representada na figura de Dulles, ainda reduzia os problemas da América Latina à luta contra o comunismo. Foi somente pela necessidade de aprovar uma resolução conjunta a partir da reunião de Kubitschek com Dulles, e porque Kubitschek rejeitou seu texto anterior, que Dulles acabou por reconhecer, formalmente, os princípios da OPA. Admitiu-se também a criação do que seria depois o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), fundado em dezembro de 1958, e de um mercado comum latino-americano, ideia que se concretizaria com a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (Alalc). Tal resolução constitui uma vitória da política externa brasileira encaminhada por JK, ainda que não tenha garantido o comprometimento efetivo dos Estados Unidos com o financiamento de programas sociais para a América Latina.

Ao mesmo tempo em que buscava o comprometimento do Estado dos Estados Unidos com o desenvolvimento da América Latina, Kubitschek também pretendia acertar com os capitais estadunidenses os investimentos necessários para a realização do plano de industrialização. No entanto, o Plano de Metas não foi recebido com entusiasmo. A Ford e a General Motors recusaram-se, em um primeiro momento, a instalar fábricas no país, alegando que o mercado era insuficiente. Será por medo de perder espaço para os capitais europeus, e sob o favorecimento para a entrada de

22 Secretário de Estado dos Estados Unidos.23 Cardoso e Faletto (1977, p. 52-53), conceituam transição como “ o processo histórico-estrutural em virtude do qual a diferenciação da própria economia exportadora criou as bases para, na dinâmica social e política, começassem a fazer-se presentes, além dos setores sociais que tornaram possível o sistema expor-tador, também os setores sociais imprecisamente chamados “médios”.24 Recebeu o nome de Operação Pan-Americana (OPA) uma iniciativa da diplomacia brasileira que tinha como objetivo unir todos os países do continente americano em torno de um projeto conjunto de desenvol-vimento social e econômico, combatendo a pobreza, o subdesenvolvimento e os demais problemas sociais comuns a todas as nações americanas.

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equipamentos e máquinas sem cobertura cambial, que as empresas estadunidenses investirão no Brasil (MONIZ BANDEIRA, 1989, p. 80).

A pressão da concorrência de capitais europeus também foi importante para que os estadunidenses liberassem empréstimos para a expansão da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Conforme Moura (1959, p. 258),

Alguns observadores atribuem a concessão do empréstimo [...] de 1956 [...] à necessidade que sentiram o Governo dos Estados Unidos e empresas americanas de impedir que Volta Redonda recebesse vultoso empréstimo de financiadores europeus. O motivo aí seria vencer a competição europeia; se o Eximbank tem como função ampliar e desenvolver o comércio exterior dos Estados Unidos, certamente faz o que pode para evitar importações maciças de equipamentos europeus. [...] Observadores da política econômica internacional admitem que o aumento recente de fluxo de empréstimos americanos, oficiais e particulares, tem como finalidade fazer frente à crescente concorrência de exportadores e investidores europeus. Grandes empresas da Alemanha Ocidental, francesas e italianas, de fato, tem aumentado [...] seus negócios no Brasil.

A ocorrência da Revolução Cubana, no dia 1º de janeiro de 1959, obrigará os Estados Unidos a formularem uma alteração de sua postura diplomática e de sua doutrina econômica referentes à América Latina. Para os Estados Unidos, a busca dos países latino-americanos por outra via de desenvolvimento implicava uma perda de apoio e um possível favorecimento a seu rival estratégico na Guerra Fria, a União Soviética (PECEQUILO, 2005, p. 220-221). Assim, a imposição da rigorosa doutrina monetarista, como condição para a concessão de empréstimos, daria lugar a uma maior compreensão da realidade brasileira. Tal mudança na postura estadunidense ganha expressão no programa Aliança para o Progresso, formulado pelo Presidente John Kennedy, que assumiu mandato em 20 de janeiro de 1961. O programa tinha um caráter assistencialista (com fornecimento de materiais de habitação, abastecimento d’água, higiene, etc.), mas também fornecia estímulo ao investimento privado e a programas de reforma agrária e tinha como princípios o apoio às democracias no hemisfério e à estabilização dos preços de mercadorias de exportação (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 404). Seu objetivo era tanto aliviar de alguma maneira a instabilidade política vivida na América Latina, diante dos problemas políticos criados pela situação de subdesenvolvimento, quanto isolar o governo cubano, sendo usado muitas vezes em conferências diplomáticas como uma forma de aliciamento para que os demais Estados latino-americanos concordassem com as medidas estadunidenses contra Cuba.

A gestão Kennedy coincidiu com o governo Jânio Quadros, que assumiu mandato em 31 de janeiro de 1961. Quanto à política econômica, seu governo seguiu a fórmula oficial dos círculos financeiros, adotando rapidamente as medidas de estabilização monetária e reforma cambial a partir da Instrução 204 da Sumoc. Tal orientação rendeu-lhe, por exemplo, em maio e junho, a consolidação da dívida externa brasileira e novos financiamentos. No entanto, quanto à política externa, Quadros seguiu por caminho não convencional, formulando aquilo que chamou de “política externa independente”. Determinou que o Itamarati promovesse estudos de modo a reatar as

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relações diplomáticas com a União Soviética. Anunciou que votaria, na Assembleia Geral da ONU, pela discussão da entrada da China (comunista), contrariando a orientação de Washington até então seguida. A interpretação convencional dada para tal comportamento de Quadros indica que ele pretendia jogar com o apoio da direita, a partir de sua política econômica, e com a esquerda, a partir de sua política externa, além de tentar estabelecer um elemento de barganha com os Estados Unidos. O próprio Francisco de San Tiago Dantas, posteriormente Ministro das Relações Exteriores do governo de João Goulart, afirma não ter encontrado nada de concreto para o reatamento das relações diplomáticas com a União Soviética.

A demonstração da intenção de restabelecer relações com a União Soviética e com países do Leste Europeu pertencentes ao campo comunista já fora articulada por JK, utilizando-a também como elemento de barganha para garantir o apoio dos Estados Unidos à OPA. No entanto, o caráter independente da política externa brasileira no governo Quadros não diz respeito somente a uma jogada política particular. Tal tendência já se manifestava com Vargas e se desenvolveu também no governo Kubitschek. O posicionamento da diplomacia brasileira como um reflexo das posições estadunidenses data de um momento em que havia uma situação de mera complementaridade da economia brasileira, a qual começava a desaparecer com a industrialização. O desenvolvimento do país criou novas necessidades que impunham a reformulação dos termos de parceria com os Estados Unidos (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 405).

Às vésperas da crise que levaria à renúncia de Quadros, alguns círculos do Pentágono passaram a ter uma desconfiança maior quanto a sua postura, considerando que poderia prejudicar o esquema de segurança estadunidense para o hemisfério ocidental. Oficiais brasileiros, ligados à Comissão Militar Brasil-Estados Unidos, também passariam a compartilhar das inquietações estadunidenses. Tanto é assim que o Marechal Odilo Denis, Ministro da Guerra, por pelo menos quatro vezes, advertiu o presidente Jânio Quadros quanto à repercussão de sua política externa dentro das Forças Armadas (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 412). Ao perceber que a base de seu governo estava ruindo, Quadros anuncia sua renúncia na esperança de que o episódio levantasse o apoio das massas, conforme ocorreu com Getúlio Vargas, e que assim ele pudesse voltar ao governo com pleno apoio popular, e com poder para realizar seus planos de reformas. O que efetivamente não ocorreu (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 414, 416).

Desse modo, João Goulart assumiu o governo sem que houvesse alguma alteração significativa na linha da política externa brasileira. Segundo o próprio San Tiago Dantas, então Ministro das Relações Exteriores, “Goulart e Quadros tinham pontos de vista idênticos quanto à política externa do Brasil” (MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 420). Além do mais, a postura brasileira independente na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas (de 22 a 31 de janeiro de 1962), que discutia sobre possíveis sanções a Cuba, rendeu apoio popular nacional. Com o decreto do bloqueio naval a Cuba e a ameaça de invasão dos Estados Unidos à ilha, na tentativa de pressionar pelo desmonte das bases de mísseis soviéticos que estavam lá instalados, cresceram o sentimento antiestadunidense e as mobilizações populares contra suas ações. A reação popular, somada à postura da política externa brasileira, que era

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contra as ações dos Estados Unidos, afirmando os princípios da não intervenção e da autodeterminação dos povos, angariou críticas nos círculos de opinião estadunidenses, e a elas se seguiram pressões políticas.

Kennedy fez uma série de pronunciamentos, denunciando os problemas da inflação brasileira e da instabilidade política que a ela se seguiria. Assim, o governo dos Estados Unidos se somava ao FMI na exigência de programas anti-inflacionários específicos para a obtenção de financiamentos (SKIDMORE, 1975, p. 294; MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 432-433). Jornais estadunidenses colocavam-se claramente contra o governo de Goulart. Também, logo após a realização da VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas, Brizola desapropria os bens, mas não as ações, da Companhia Telefônica Nacional, subsidiária da International Telephone & Telegraph (SKIDMORE, 1975, p. 279; MONIZ BANDEIRA, 1973, p. 423). O ato, considerado como confisco pela ITT e pelo governo de Washington, gerou novos problemas políticos entre os dois países. Brizola já havia encampado a Companhia Elétrica Rio-grandense, subsidiária da American & Foreign Power (Bond and Share) em 1959.25

Outro ponto de estremecimento nas relações com os Estados Unidos foi a aprovação da lei de restrição às remessas de lucros ao exterior, que excluiu os lucros reinvestidos do item “capital-base”, sobre o qual as remessas podiam ser calculadas e (SKIDMORE, 1975, p. 277). Tendo em vista que a maior parte dos investimentos estadunidenses realizados no Brasil, assim como boa parte das remessas de lucros ao exterior, constituem lucros passados que foram reinvestidos, fica clara a dimensão dos interesses econômicos envolvidos e, consequentemente, sua importância política.

Em meio a dificuldades econômicas e com a ocorrência de grandes greves gerais e mobilizações populares, a instabilidade política ia se instalando no país.

Considerações finais

Nesta última parte do trabalho, cabe retomar os principais pontos desenvolvidos, de modo a formar uma visão do conjunto deste trabalho e encaminhar as principais questões que moveram a sua realização. Far-se-á um resgate da trajetória de desenvolvimento do Brasil aqui analisada. Destacar-se-á aquilo considerado os principais mecanismos econômicos e políticos da dependência em relação aos Estados Unidos que puderam ser observados, assim como suas implicações para o desenvolvimento do Brasil. A partir disso, pode-se reavaliar a hipótese deste trabalho, qual seja, de que o processo de formação dos centros de decisão nacionais encontrou limitações enraizadas na dependência com os Estados Unidos – para o que o trabalho pode fornecer amplas evidências.

Durante o primeiro governo Vargas, a recomposição que se segue à derrocada do café, em 1929, toma a forma de uma aliança do poder central com a classe política (uma parte das elites políticas de base regional) e as Forças Armadas. A classe industrial não se mostrava como uma força política capaz de oferecer ao país uma opção de rumos bem definida, dado que era dependente de seus vínculos com o comércio exterior. Assim, será a aliança da classe política com as Forças Armadas que permitirá o fortalecimento 25 Ver Moniz Bandeira (1973, p. 397).

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do poder central, em um momento em que a crise do café significava também a crise do Estado. Entre 1930 e 1937, consolida-se o Estado enquanto um centro de decisões consideravelmente autônomo em relação aos grupos econômicos tradicionais, ao mesmo tempo em que o Estado se transforma em um fator importante para o sistema econômico brasileiro, com suas políticas de defesa dos recursos naturais e de criação de complexos industriais (FURTADO, 1982, p. 20-23, 34).

Em meio a crise do domínio oligárquico, a ascensão da classe industrial e a quebra do equilíbrio de poder na Europa, forma-se uma conjuntura interna e mundialmente favorável à constituição de uma política externa voltada para o desenvolvimento nacional. Nesse contexto, Vargas constituirá uma política de equidistância pragmática entre os principais polos competidores no sistema internacional, a Alemanha e os Estados Unidos (MOURA, 1983). A possibilidade de barganha rende frutos para a internalização dos centros de decisão, notadamente com o fornecimento de empréstimos e equipamentos, por parte dos Estados Unidos, para a montagem da siderurgia e, posteriormente, para a instalação das refinarias e a exploração do petróleo. Além disso, a Política da Boa Vizinhança, com o governo Roosevelt, também foi importante para conciliar as medidas de desenvolvimento nacional do Brasil com os interesses dos capitais estadunidenses – a exemplo do caso da suspensão do pagamento da dívida externa.

Com a Guerra Fria, a América Latina acabou perdendo, na prática, o seu status de relacionamento especial previsto pela Política de Boa Vizinhança. Nesse contexto, a política externa dos Estados Unidos voltou-se para os principais palcos estratégicos do pós-guerra, a Europa e o Pacífico. Dentro desse quadro, a política externa brasileira, com o governo Dutra, optou pelo alinhamento automático aos Estados Unidos e pelo abandono de qualquer cálculo de interesse nacional em seus posicionamentos (VISENTINI, 2004; MONIZ BANDEIRA, 1973). É com o segundo governo de Vargas que o desenvolvimento nacional e o pragmatismo voltam a ser a base da política externa brasileira. No entanto, a imposição de soluções nacionalistas, de modo a preservar e desenvolver a autonomia do Estado brasileiro, como no caso da criação da Petrobras e do decreto que limitava a remessa de lucros, criou contradições irreparáveis com os Estados Unidos e com forças políticas internas. Desse modo, à medida que se buscou apoio nas massas populares para ganhar maior autonomia de decisão, como fizeram Vargas e Goulart ainda mais, o equilíbrio da aliança entre as elites políticas e as Forças Armadas se fez cada vez mais frágil (FURTADO, 1982). Nesse contexto, as Forças Armadas, sob hegemonia da Cruzada Democrática, aderiram à campanha pela renúncia de Vargas, liderada pela UDN e por Carlos Lacerda, e apoiada pela burguesia comercial. O engajamento na Guerra Fria e na política de contenção ao comunismo acabou se sobrepondo ao cálculo pragmático das necessidades e do interesse nacionais. Assim, o anticomunismo fez crer que a oposição aos interesses dos Estados Unidos, resultada das políticas de desenvolvimento nacional, significava um alinhamento ideológico com a União Soviética (MONIZ BANDEIRA, 1989).

O golpe de Estado apenas foi impedido a partir do suicídio de Vargas e da intensa reação popular, que se levantava, de certa maneira, contra as forças denunciadas em sua carta testamento. A continuação do governo dentro dos marcos constitucionais democráticos não permitiu a revogação da Lei nº 2004, que criara a Petrobras e

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instituíra o monopólio estatal sobre o petróleo, e nem mesmo a instituição da reforma cambial que previa a extinção das taxas múltiplas de câmbio, devido às resistências que surgiram dentro do próprio governo. No entanto, revogaram-se as restrições às remessas de lucros, o que agravava ainda mais a escassez de divisas. Além do mais, é nesse mesmo momento que se estabelecesse a Instrução 113 da Sumoc, que criou um padrão de industrialização baseado na presença das empresas estrangeiras, que podiam importar máquinas e equipamentos sem cobertura cambial. A Instrução 113 da Sumoc representa uma opção política que visava possibilitar a aquisição dos bens de capitais para o aprofundamento da industrialização, em um contexto em que a carência estrutural de divisas ameaçava a capacidade de importação dos industriais brasileiros. Não é objeto deste trabalho julgar se essa foi ou não uma decisão acertada, mas destacar as consequências do domínio do mercado interno pelas empresas estrangeiras e da transferência das decisões de investimento para o âmbito da economia internacional e dos grandes conglomerados.

As indústrias de bens duráveis de consumo, químico-farmacêutica e de equipamentos, que em conjunto formam o bloco de mais rápida expansão, e no qual o progresso tecnológico é mais significativo, foram controladas, em quase sua totalidade, pelos grupos internacionais (FURTADO, 1982, p. 35). Em 1961, 48,5% das empresas milionárias no país eram controladas do estrangeiro, e 52,7% dos grupos multibilionários eram estrangeiros (MONIZ BANDEIRA, 1973), com uma bem definida hegemonia dos Estados Unidos, sendo este o maior investidor, e tendo grande participação empresarial no mercado interno, espalhada por diversos setores, mas principalmente nos ramos industriais. Alguns poucos setores controlados pelo Estado, como no caso do petróleo, com a Petrobras, são aqueles em que se pôde sustentar a atividade econômica em bases propriamente nacionais.

A revisão da política brasileira de energia nuclear iniciada por Juarez Távora, após o suicídio de Vargas, teve como resultado a eliminação das compensações específicas, exigidas até então pelos acordos de exportação de monazita, sem que se aproveitasse a possibilidade de construção das ultracentrífugas com a Alemanha Ocidental e as alterações na política atômica dos Estados Unidos promovidas pelo programa “Átomos para paz”, lançado por Eisenhower. Desse modo, assegurou-se o monopólio das atividades estrangeiras sobre energia atômica no Brasil para os Estados Unidos e desqualificou-se qualquer tentativa de iniciativa autônoma por parte do Brasil. Consolidou-se, assim, o caráter da dependência em relação aos Estados Unidos: o controle do desenvolvimento da economia brasileira, tanto na produção de matérias-primas, quanto na possível formação de outros centros econômicos (FURTADO, 1978). Em resumo, abandonou-se completamente a iniciativa, desenvolvida até então pelo Almirante Álvaro Alberto, por uma política atômica autônoma e pela internalização de um centro de decisão nacional referente à energia atômica.

Por outro lado, ao mesmo tempo que se constituíam medidas de aprofundamento da dependência, não deixavam de surgir iniciativas de caráter autônomo. A política externa do governo Juscelino Kubitschek propôs efetivamente um novo caráter para o relacionamento dos Estados Unidos com os países da América Latina e um novo modelo de política de segurança para o continente americano. Destacava a importância do combate ao subdesenvolvimento como meio de garantir a estabilidade

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social, em vez de se focar apenas as medidas de repressão e a integração dos serviços de inteligência – que era a política dos Estados Unidos até então. De certo modo, a ocorrência da Revolução Cubana, em 1959, e a posterior criação, pelo governo Kennedy, do programa Aliança para o Progresso, demonstram que o princípio estabelecido por JK estava correto e que os Estados Unidos foram obrigados a reconhecê-lo. A criação do BID e da Alalc pode ser considerada outra vitória da política externa brasileira.

A tentativa de redefinição das relações com os Estados Unidos, baseada no incentivo ao desenvolvimento dos países latino-americanos, encontra-se dentro do contexto de industrialização e de surgimento de novas necessidades para a reprodução do sistema econômico brasileiro. Apesar dos motivos de barganha política interna, a política externa independente de Jânio Quadros, e a sua continuidade com João Goulart, também podem ser compreendidas dentro desse contexto. No entanto, a sustentação da reformulação das relações com os Estados Unidos encontrou um limite no pacto político e nas forças internas estabelecidas, conforme já ocorrera com o segundo governo Vargas em 1954.

Com a culminação desse processo no golpe de 1964, o que se vê é a opção das Forças Armadas de reestabelecer o equilíbrio de forças a partir de uma composição com o grupo industrial ascendente, na medida em que a hegemonia deste convergia com a opção centralizadora. Sociologicamente, a ascensão do grupo industrial marca muito mais o surgimento de uma nova burguesia internacional, na medida em que está ligado à lógica dos grandes conglomerados internacionais, do que de uma burguesia propriamente nacional. Toda uma gama de fundamentos que marca o quadro cultural dessa classe empresarial (a formação profissional, as fontes de informação, os padrões de consumo) tem sua determinação submetida ao vínculo com o sistema econômico internacional (FURTADO, 1982, p. 34-36).

Em sentido conclusivo, destaca-se que, apesar de ter sido o meio possível para o aprofundamento da industrialização, a presença das empresas estrangeiras provocou a perda de controle sobre o gerenciamento dos centros de decisão econômica e criou uma desarticulação da capacidade dos centros nacionais de decisão, eliminando sua autonomia e eficácia, tendo em vista que as filiais das empresas estrangeiras são tanto parte do sistema de poder correspondente ao local onde estão instaladas, quanto parte de um conjunto de centros que tem sede no estrangeiro. Ademais, essa presença também provocou a instabilidade econômica e a escassez de divisas a partir das remessas de lucros ao exterior e criou, ainda, a necessidade de recorrer a empréstimos externos para aliviar a situação do país, os quais exigiam a realização de planos econômicos de estabilização e de controle à inflação, o que implicava, por sua vez, em arrochos salariais e, por consequência, na insatisfação popular e na instabilidade política - particularmente nas situações de crise institucional. Em certo sentido, a tentativa de tomada do poder pelas Forças Armadas, em 1954, e o golpe efetivo, em 1964, podem ser vistos como uma resposta a essa situação de fragilidade econômica e política, a qual criava dificuldades para os governos e o Estado estabelecerem uma solução política dentro da ordem institucional. É por perceber as fragilidades às quais as sociedades latino-americanas estão expostas devido ao vínculo que mantêm com a economia internacional, e particularmente com os grandes conglomerados internacionais, que Furtado conclui:

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Toda medida que se venha a tomar no sentido de enfraquecer os estados latino-americanos como centros políticos capazes de interpretar as aspirações nacionais e de aglutinar as populações em torno de ideais comuns, terá como resultado limitar as possibilidades de autêntico desenvolvimento na região (FURTADO, 1978, p. 42).

Debilitar o Estado enquanto centro de decisões independente dos conglomerados internacionais não significa, na América Latina, fortalecer a iniciativa privada; significa, sim, renunciar à formação de um sistema econômico nacional, isto é, um sistema de produção articulado em função dos interesses da coletividade nacional (FURTADO, 1978, p. 55).

Os grandes conglomerados internacionais definem a sua estratégia de ação a partir de uma visão de conjunto e de um projeto de crescimento próprio, tendo capacidade de influenciar as decisões econômicas em uma vasta gama de setores da economia internacional. Em certo sentido, essas duas características em conjunto fazem com que os conglomerados se tornem agentes capazes de ameaçar o Estado, enquanto instituição substantivamente soberana, e a formação de um sistema econômico nacional unificado em torno dos interesses de uma coletividade nacional.

Tendo em vista que todos esses mecanismos econômicos da dependência condicionam as possibilidades de desenvolvimento socioeconômico, a construção de um projeto de desenvolvimento nacional deve levar em consideração: a) a regulamentação dos investimentos estrangeiros, de modo a impedir que as remessas lucros criem uma crise de divisas e limitem a capacidade de importação; b) a conciliação da inserção das empresas nacionais nos centros de poder da economia internacional com sua capacidade de servir à interesses propriamente nacionais; c) a centralidade do Estado enquanto centro de decisão capaz de articular os recursos nacionais em prol de um projeto autônomo de desenvolvimento; e d) o poder das grandes corporações internacionais de influenciar as decisões econômicas em âmbito internacional e de desarticular os centros de decisão nacionais, dada sua inserção no mercado interno.

A análise realizada neste trabalho indicou que, por meio de mecanismos econômicos e políticos, a dependência do Brasil em relação aos Estados Unidos estabeleceu condicionantes que limitaram a capacidade nacional de superar o subdesenvolvimento, bloqueando ou mitigando as iniciativas autônomas nesse sentido e geralmente conformando-as aos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos.

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