os lusíadas - luis vaz de camões

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Os Lusíadas Versão Integral em Slide Luís Vaz de Camões By Antonio Minharro

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A obra de Luis de Camões, épico da era das navegações e descobrimento portugueses.

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  • 1. Lus Vaz de CamesOsLusadasVerso Integral em Slide By Antonio Minharro

2. Os Lusadas,de Lus de Cames 3. Lus Vaz de CamesOs LusadasCANTO PRIMEIRO 4. 1As armas e os Bares assinaladosQue da Ocidental praia LusitanaPor mares nunca de antes navegadosPassaram ainda alm da Taprobana,Em perigos e guerras esforadosMais do que prometia a fora humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram; 5. 2E tambm as memrias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA F, o Imprio, e as terras viciosasDe frica e de sia andaram devastando,E aqueles que por obras valerosasSe vo da lei da Morte libertando,Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte. 6. 3Cessem do sbio Grego e do TroianoAs navegaes grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitrias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta. 7. 4E vs, Tgides minhas, pois criadoTendes em mim um novo engenho ardente,Se sempre em verso humilde celebradoFoi de mi vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandloco e corrente,Por que de vossas guas Febo ordeneQue no tenham enveja s de Hipocrene. 8. 5Dai-me a fria grande e sonorosa,E no de agreste avena ou frauta ruda,Mas de tuba canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda;Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda;Que se espalhe e se cante no universo,Se to sublime preo cabe em verso. 9. 6E vs, bem nascida seguranaDa Lusitana antgua liberdade,E no menos certssima esperanaDe aumento da pequena Cristandade;Vs, novo temor da Maura lana,Maravilha fatal da nossa idade,Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,Para do mundo a Deus dar parte grande; 10. 7Vs, tenro e novo ramo florecenteDe a rvore, de Cristo mais amadaQue nenha nascida no Ocidente,Cesrea ou Cristianssima chamada(Vede-o no vosso escudo, que presenteVos amostra a vitria j passada,Na qual vos deu por armas e deixouAs que Ele pera si na Cruz tomou); 11. 8Vs, poderoso Rei, cujo alto ImprioO Sol, logo em nascendo, v primeiro,V-o tambm no meio do Hemisfrio,E quando desce o deixa derradeiro;Vs, que esperamos jugo e vituprioDo torpe Ismaelita cavaleiro,Do Turco Oriental e do GentioQue inda bebe o licor do santo Rio: 12. 9Inclinei por um pouco a majestadeQue nesse tenro gesto vos contemplo,Que j se mostra qual na inteira idade,Quando subindo ireis ao eterno templo;Os olhos da real benignidadePonde no cho: vereis um novo exemploDe amor dos ptrios feitos valerosos,Em versos divulgado numerosos. 13. 10Vos Vereis amor da ptria, no movidoDe prmio vil, mas alto e qusi eterno;Que no prmio vil ser conhecidoPor um prego do ninho meu paterno.Ouvi: vereis o nome engrandecidoDaqueles de quem sois senhor superno,E julgareis qual mais excelente,Se ser do mundo Rei, e de tal gente. 14. 11Ouvi, que no vereis com vs faanhas,Fantsticas, fingidas, mentirosas,Louvar os vossos, como nas estranhasMusas, de engrandecer-se desejosas:As verdadeiras vossas so tamanhas,Que excedem as sonhadas, fabulosas;Que excedem Rodamonte, e o vo Rugeiro,E Orlando, inda que fora verdadeiro, 15. 12Por estes vos darei um Nuno fero,Que fez ao Rei e ao Reino tal servio,Um Egas e um Dom Fuas, que de HomeroA ctara pareles s cobio;Pois polos Doze Pares dar-vos queroOs Doze de Inglaterra e o seu Magrio;Dou-vos tambm aquele ilustre Gama,Que para si de Eneias toma a fama. 16. 13Pois se a troco de (Carlos, Rei de Frana,Ou de Csar, quereis igual memria,Vede o primeiro Afonso, cuja lanaEscura faz qualquer estranha glria;E aquele que a seu Reino a seguranaDeixou, com a grande e prspera vitria;Outro Joane, invicto cavaleiro;O quarto e quinto Afonsos e o terceiro. 17. 14Nem deixaro meus versos esquecidosAqueles que nos Reinos l da AuroraFizeram, s por armas to subidos,Vossa bandeira sempre vencedora:Um Pacheco fortssimo, e os temidosAlmeidas, por quem sempre o Tejo chora;Albuquerque terrbil, Castro forte,E outros em quem poder no teve a morte. 18. 15E, enquanto eu estes canto e a vs no posso,Sublime Rei, que no me atrevo a tanto - ,Tomai as rdeas vs do Reino vosso:Dareis matria a nunca ouvido canto.Comecem a sentir o peso grosso(Que polo mundo todo faa espanto)De exrcitos e feitos singulares,De frica as terras e do Oriente os mares. 19. 16Em vs os olhos tem o Mouro frio,Em quem v seu excio afigurado;S com vos ver, o brbaro GentioMostra o pescoo ao jugo j inclinado;Ttis todo o cerleo senhorioTem pera vs por dote aparelhado,Que, afeioada ao gesto belo e tento,Deseja de comprar-vos pera genro. 20. 17Em vs se vm, da Olmpica morada,Dos dous avs as almas c famosas;a, na paz anglica dourada,Outra, pelas batalhas sanguinosas.Em vs esperam ver-se renovadaSua memria e obras valerosas;E l vos tm lugar, no fim da idade,No templo da suprema Eternidade. 21. 18Mas, enquanto este tempo passa lentoDe regerdes os povos, que o desejam,Dai vs favor ao novo atrevimento,Pera que estes meus versos vossos sejam,E vereis ir cortando o salso argentoOs vossos Argonautas, por que vejamQue so vistos de vs no mar irado,E costumai-vos j a ser invocado. 22. 19J no largo Oceano navegavam,As inquietas ondas apartando;Os ventos brandamente respiravam,Das naus as velas cncavas inchando;Da branca escuma os mares se mostravamCobertos, onde as proas vo cortandoAs martimas guas consagradas,Que do gado de Prteu so cortadas, 23. 20Quando os Deuses no Olimpo luminoso,Onde o governo est da humana gente,Se ajuntam em conslio glorioso,Sobre as cousas futuras do Oriente.Pisando o cristalino Cu fermoso,Vm pela Via Lctea juntamente,Convocados, da parte de Tonante,Pelo neto gentil do velho Atlante. 24. 21Deixam dos sete Cus o regimento,Que do poder mais alto lhe foi dado,Alto poder, que s co pensamentoGoverna o Cu, a Terra e o Mar irado.Ali se acharam juntos num momentoOs que habitam o Arcturo congeladoE os que o Austro tm e as partes ondeA Aurora nasce e o claro Sol se esconde. 25. 22Estava o Padre ali, sublime e dino,Que vibra os feros raios de Vulcano,Num assento de estrelas cristalino,Com gesto alto, severo e soberano;Do rosto respirava um ar divino,Que divino tornara um corpo humano:Com a coroa e ceptro rutilante,De outra pedra mais clara que diamante. 26. 23Em luzentes assentos, marchetadosDe ouro e de perlas, mais abaixo estavamOs outros Deuses, todos assentadosComo a Razo e a Ordem concertavam(Precedem os antigos, mais honrados,Mais abaixo os menores se assentavam);Quando Jpiter alto, assi dizendo,Cum tom de voz comea grave e horrendo: 27. 24- Eternos moradores do luzente,Estelfero Plo e claro Assento:Se do grande valor da forte genteDe Luso no perdeis o pensamento,Deveis de ter sabido claramenteComo dos Fados grandes certo intentoQue por ela se esqueam os humanosDe Assrios, Persas, Gregos e Romanos. 28. 25J lhe foi (bem o vistes) concedido,Cum poder to singelo e ao pequeno,Tomar ao Mouro forte e guarnecidoToda a terra que rega o Tejo ameno.Pois contra o Castelhano ao temidoSempre alcanou favor do Cu sereno:Assi que sempre, enfim, com fama e glria.Teve os trofus pendentes da vitria. 29. 26Deixo, Deuses, atrs a fama antiga,Que co a gente de Rmulo alcanaram,Quando com Viriato, na inimigaGuerra Romana, tanto se afamaram;Tambm deixo a memria que os obrigaA grande nome, quando alevantaramUm por seu capito, que, peregrino,Fingiu na cerva esprito divino. 30. 27Agora vedes bem que, cometendoO duvidoso mar num lenho leve,Por vias nunca usadas, no temendode frico e Noto a fora, a mais satreve:Que, havendo tanto j que as partes vendoOnde o dia comprido e onde breve,Inclinam seu propsito e perfiaA ver os beros onde nasce o dia. 31. 28Prometido lhe est do Fado eterno,Cuja alta lei no pode ser quebrada,Que tenham longos tempos o governoDo mar que v do Sol a roxa entrada.Nas guas tm passado o duro Inverno;A gente vem perdida e trabalhada;J parece bem feito que lhe sejaMostrada a nova terra que deseja. 32. 29E porque, como vistes, tm passadosNa viagem to speros perigos,Tantos climas e cus exprimentados,Tanto furor de ventos inimigos,Que sejam, determino, agasalhadosNesta costa Africana como amigos;E, tendo guarnecida a lassa frota,Tornaro a seguir sua longa rota. 33. 30Estas palavras Jpiter dizia,Quando os Deuses, por ordem respondendo,Na sentena um do outro diferia,Razes diversas dando e recebendo.O padre Baco ali no consentiaNo que Jpiter disse, conhecendoQue esquecero seus feitos no OrienteSe l passar a Lusitana gente. 34. 31Ouvido tinha aos Fados que viriaa gente fortssima de EspanhaPelo mar alto, a qual sujeitariaDa ndia tudo quanto Dris banha,E com novas vitrias venceriaA fama antiga, ou sua ou fosse estranha.Altamente lhe di perder a glriaDe que Nisa celebra inda a memria. 35. 32V que j teve o Indo sojugadoE nunca lhe tirou Fortuna ou casoPor vencedor da ndia ser cantadoDe quantos bebem a gua de Parnaso.Teme agora que seja sepultadoSeu to clebre nome em negro vasoDgua do esquecimento, se l chegamOs fortes Portugueses que navegam. 36. 33Sustentava contra ele Vnus bela,Afeioada gente LusitanaPor quantas qualidades via nelaDa antiga, to amada, sua Romana;Nos fortes coraes, na grande estrelaQue mostraram na terra Tingitana,E na lngua, na qual quando imagina,Com pouca corrupo cr Latinaque a 37. 34Estas causas moviam CitereiaE mais, porque das Parcas claro entendeQue h-de ser celebrada a clara DeiaOnde a gente belgera se estende.Assi que, um, pela infmia que arreceia,E o outro, pelas honras que pretende,Debatem, e na perfia permanecem;A qualquer seus amigos favorecem. 38. 35Qual Austro fero ou Breas na espessuraDe silvestre arvoredo abastecida,Rompendo os ramos vo da mata escuraCom mpeto e braveza desmedida,Brama toda montanha, o som murmura,Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:Tal andava o tumulto, levantadoEntre os Deuses, no Olimpo consagrado. 39. 36Mas Marte, que da Deusa sustentavaEntre todos as partes em porfia,Ou porque o amor antigo o obrigava,Ou porque a gente forte o merecia,De antre os Deuses em p se levantava:Merencrio no gesto parecia;O forte escudo, ao colo pendurado,Deitando pera trs, medonho e irado; 40. 37Viseira do elmo de diamanteAlevantando um pouco, mui seguro,Por dar seu parecer se ps dianteDe Jpiter, armado, forte e duro;E dando a pancada penetranteCo conto do basto no slio puro,O Cu tremeu, e Apolo, de torvado,Um pouco a luz perdeu, como enfiado; 41. 38E disse assi:- Padre, a cujo imprioTudo aquilo obedece que criaste:Se esta gente que busca outro Hemisfrio.Cuja valia e obras tanto amaste,No queres que padeam vituprio,Como h j tanto tempo que ordenaste,No ouas mais, pois s juiz direito,Razes de quem parece que suspeito. 42. 39Que, se aqui a razo se no mostrasseVencida do temor demasiado,Bem fora que aqui Baco os sustentasse,Pois que de Luso vm, seu to privado;Mas esta teno sua agora passe,Porque enfim vem de estmago danado;Que nunca tirar alheia envejaO bem que outrem merece e o Cu deseja. 43. 40E tu, Padre de grande fortaleza,Da determinao que tens tomadaNo tornes por detrs, pois fraquezaDesistir-se da cousa comeada.Mercrio, pois excede em ligeirezaAo vento leve e seta bem talhada,Lhe v mostrar a terra onde se informeDa ndia, e onde a gente se reforme. 44. 41Como isto disse, o Padre poderoso,A cabea inclinando, consentiuNo que disse Mavorte valerosoE nctar sobre todos esparziu.Pelo caminho Lcteo gloriosoLogo cada um dos Deuses se partiu,Fazendo seus reais acatamentos,Pera os determinados apousentos. 45. 42Enquanto isto se passa na fermosaCasa etrea do Olimpo omnipotente,Cortava o mar a gente belicosaJ l da banda do Austro e do Oriente,Entre a costa Etipica e a famosaIlha de So Loureno; e o Sol ardenteQueimava ento os Deuses que TifeuCo temor grande em pexes converteu. 46. 43To brandamente os ventos os levavamComo quem o Cu tinha por amigo;Sereno o ar e os tempos se mostravam,Sem nuvens, sem receio de perigo.O promontrio Prasso j passavamNa costa de Etipia, nome antigo,Quando o mar, descobrindo, lhe mostravaNovas ilhas, que em torno cerca e lava. 47. 44Vasco da Gama, o forte Capito,Que a tamanhas empresas se oferece,De soberbo e de altivo corao,A quem Fortuna sempre favorece,Pera se aqui deter no v razo,Que inabitada a terra lhe parece.Por diante passar determinava,Mas no lhe sucedeu como cuidava. 48. 45Eis aparecem logo em companhiaUns pequenos batis, que vm daquelaQue mais chegada terra parecia,Cortando o longo mar com larga vela.A gente se alvoroa, e de alegriaNo sabe mais que olhar a causa dela.Que gente ser esta, em si diziam,Que costumes, que Lei, que Rei teriam? 49. 46As embarcaes eram na maneiraMui veloces, estreitas e compridas;s velas com que vm eram de esteira,Das folhas de palma, bem tecidas;A gente da cor era verdadeiraQue Fton, nas terras acendidas,Ao mundo deu, de ousado e no prudente(O Pado o sabe e Lampetusa o sente). 50. 47De panos de algodo vinham vestidos,De vrias cores, brancos e listrados;Uns trazem derredor de si cingidos,Outros em modo airoso sobraados;Das cintas pera cima vm despidos;Por armas tm adagas e tarados;Com toucas na cabea; e, navegando,Anafis sonorosos vo tocando. 51. 48Cos panos e cos braos acenavams gentes Lusitanas, que esperassem;Mas j as proas ligeiras se inclinavam,Pera que junto s Ilhas amainassem.A gente e marinheiros trabalhavamComo se aqui os trabalhos sacabassem:Tomam velas, amaina-se a verga alta,Da ncora o mar ferido em cima salta. 52. 49No eram ancorados, quando a genteEstranha polas cordas j subia.No gesto ledos vm, e humanamenteO Capito sublime os recebia.As mesas manda pr em continente;Do licor que Lieu prantado haviaEnchem vasos de vidro; e do que deitamOs de Fton queimados nada enjeitam. 53. 50Comendo alegremente, perguntavam,Pela Arbica lngua, donde vinham,Quem eram, de que terra, que buscavam,Ou que partes do mar corrido tinham?Os fortes Lusitanos lhe tornavamAs discretas repostas que convinham:- Os Portugueses somos do Ocidente,Imos buscando as terras do Oriente. 54. 51Do mar temos corrido e navegadoToda a parte do Antrtico e Calisto,Toda a costa Africana rodeado;Diversos cus e terras temos visto;Dum Rei potente somos, to amado,To querido de todos e benquisto,Que no no largo mar, com leda fronte,Mas no lago entraremos de Aqueronte. 55. 52"E por mandado seu, buscando andamosA terra Oriental que o Indo rega;Por ele, o mar remoto navegamos,Que s dos feios focas se navega.Mas j razo parece que saibamos,Se entre vs a verdade no se nega,Quem sois, que terra esta que habitais,Ou se tendes da ndia alguns sinais?" 56. 53- Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)Estrangeiros na terra, Lei e nao;Que os prprios so aqueles que criouA Natura, sem Lei e sem Razo.Ns temos a Lei certa que ensinouO claro descendente de Abrao,Que agora tem do mundo o senhorio;A me Hebreia teve e o pai, Gentio. 57. 54Esta Ilha pequena, que habitamos, em toda esta terra certa escalaDe todos os que as ondas navegamos,De Quloa, de Mombaa e de Sofala;E, por ser necessria, procuramos,Como prprios da terra, de habit-la;E por que tudo enfim vos notifique,Chama-se a pequena Ilha - Moambique. 58. 55E j que de to longe navegais,Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,Piloto aqui tereis, por quem sejaisGuiados pelas ondas sbiamente.Tambm ser bem feito que tenhaisDa terra algum refresco, e que o RegenteQue esta terra governa, que vos vejaE do mais necessrio vos proveja. 59. 56Isto dizendo, o Mouro se tornouA seus batis com toda a companhia;Do Capito e gente se apartouCom mostras de devida cortesia.Nisto Febo nas guas encerrouCo carro de cristal, o claro dia,Dando cargo Irm que alumiasseO largo mundo, enquanto repousasse. 60. 57A noite se passou na lassa frotaCom estranha alegria e no cuidada,Por acharem da terra to remotaNova de tanto tempo desejada.Qualquer ento consigo cuida e notaNa gente e na maneira desusada,E como os que na errada Seita creram,Tanto por todo o mundo se estenderam. 61. 58Da La os claros raios rutilavamPolas argnteas ondas Neptuninas;As Estrelas os Cus acompanhavam,Qual campo revestido de boninas;Os furiosos ventos repousavamPolas covas escuras peregrinas;Porm da armada a gente vigiava,Como por longo tempo costumava. 62. 59Mas assim como a Aurora marchetadaOs formosos cabelos espalhouNo Cu sereno, abrindo a roxa entradaAo claro Hiperinio, que acordou,Comea a embandeirar-se toda a armada,E de toldos alegres se adornou,Por receber com festas e alegriaO Regedor das ilhas, que partia. 63. 60Partia, alegremente navegando,A ver as naus ligeiras Lusitanas,Com refresco da terra, em si cuidandoQue so aquelas gentes inumanasQue, os apousentos Cspios habitando,A conquistar as terras AsianasVieram e, por ordem do Destino,O Imprio tomaram a Costantino. 64. 61Recebe o Capito alegrementeO Mouro e toda sua companhia;D-lhe de ricas peas um presente,Que s pera este efeito j trazia;D-lhe conserva doce e d-lhe o ardente,No usado licor, que d alegria.Tudo o Mouro contente bem recebe,E muito mais contente come e bebe 65. 62Est a gente martima de LusoSubida pela enxrcia, de admirada,Notando o estrangeiro modo e usoE a linguagem to brbara e enleada.Tambm o Mouro astuto est confuso,Olhando a cor, o trajo e a forte armada;E, perguntando tudo, lhe diziaSe porventura vinham de Turquia. 66. 63E mais lhe diz tambm que ver desejaOs livros de sua Lei, preceito ou f,Pera ver se conforme sua seja,Ou se so dos de Cristo, como cr;E por que tudo note e tudo veja,Ao Capito pedia que lhe dMostra das fortes armas de que usavamQuando cos inimigos pelejavam. 67. 64Responde o valeroso Capito,Por um que a lngua escura bem sabia:-Dar-te-ei, Senhor ilustre, relaoDe mi, da Lei, das armas que trazia.Nem sou da terra, nem da geraoDas gentes enojosas de Turquia,Mas sou da forte Europa belicosa;Busco as terras da ndia to famosa. 68. 65A Lei tenho dAquele a cujo imprioObedece o visbil e invisbil,Aquele que criou todo o Hemisfrio,Tudo o que sente e todo o insensbil;Que padeceu desonra e vituprio,Sofrendo morte injusta e insofrbil,E que do Cu Terra enfim deceu,Por subir os mortais da Terra ao Cu. 69. 66Deste Deus-Homem, alto e infinito,Os livros, que tu pedes no trazia,Que bem posso escusar trazer escritoEm papel o que na alma andar devia.Se as armas queres ver, como tens dito,Cumprido esse desejo te seria;Como amigo as vers; porque eu me obrigo,Que nunca as queiras ver como inimigo." 70. 67Isto dizendo, manda os diligentesMinistros amostrar as armaduras:Vm arneses e peitos reluzentes,Malhas finas e lminas seguras,Escudos de pinturas diferentes,Pelouros, espingardas de ao puras,Arcos e sagitferas aljavas,Partazanas agudas, chuas bravas. 71. 68As bombas vm de fogo, e juntamenteAs panelas sulfreas, to danosas;Porm aos de Vulcano no consenteQue dm fogo s bombardas temerosas;Porque o generoso nimo e valente,Entre gentes to poucas e medrosas,No mostra quanto pode; e com razo,Que fraqueza entre ovelhas ser lio. 72. 69Porm disto que o Mouro aqui notou,E de tudo o que viu com olho atento,Um dio certo na alma lhe ficou,a vontade m de pensamento;Nas mostras e no gesto o no mostrou,Mas, com risonho e ledo fingimento,Trat-los brandamente determina,At que mostrar possa o que imagina. 73. 70Pilotos lhe pedia o Capito,Por quem pudesse ndia ser levado;Diz-lhe que o largo prmio levaroDo trabalho que nisso for tomado.Promete-lhos o Mouro, com tenoDe peito venenoso, e to danado,Que a morte, se pudesse, neste dia,Em lugar de pilotos lhe daria. 74. 71Tamanho o dio foi e a m vontadeQue aos estrangeiros spito tomou,Sabendo ser sequaces da VerdadeQue o filho de David nos ensinou! segredos daquela EternidadeA quem juzo algum no alcanou:Que nunca falte um prfido inimigoqueles de quem foste tanto amigo! 75. 72Partiu-se nisto, enfim, co a companhia,Das naus o falso Mouro despedido,Com enganosa e grande cortesia,Com gesto ledo a todos e fingido.Cortaram os batis a curta viaDas guas de Neptuno; e, recebidoNa terra do obseqente ajuntamento,Se foi o Mouro ao cgnito aposento. 76. 73Do claro assento etreo o gro Tebano,Que da paternal coxa foi nascido,Olhando o ajuntamento LusitanoAo Mouro ser molesto e avorrecido,No pensamento cuida um falso engano,Com que seja de todo destrudo.E enquanto isto s na alma imaginava,Consigo estas palavras praticava: 77. 74"Est do fado j determinado,Que tamanhas vitrias, to famosas,Hajam os Portugueses alcanadoDas Indianas gentes belicosas.E eu s, filho do Padre sublimado,Com tantas qualidades generosas,Hei de sofrer que o fado favoreaOutrem, por quem meu nome seescurea? 78. 75J quiseram os Deuses que tivesseO filho de Filipo nesta parteTanto poder que tudo sometesseDebaixo do seu jugo o fero Marte;Mas h-se de sofrer que o Fado desseA topoucos tamanho esforo e arte,Que eu coo gro Macednio, e o Romano,Demos lugar ao nome Lusitano? 79. 76No ser assi, porque, antes que chegadoSeja este Capito, astutamenteLhe ser tanto engano fabricadoQue nunca veja as partes do Oriente.Eu decerei Terra e o indignadoPeito revolverei da Maura gente;Porque sempre por via ir direitaQuem do oportuno tempo se aproveita. 80. 77Isto dizendo, irado e qusi insano,Sobre a terra Africana descendeu,Onde, vestindo a forma e gesto humano,Pera o Prasso sabido se moveu.E, por milhor tecer o astuto engano,No gesto natural se converteuDum Mouro, em Moambique conhecido,Velho, sbio, e co Xeque mui valido. 81. 78E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas,A sua falsidade acomodadas,Lhe diz como eram gentes roubadorasEstas que ora de novo so chegadas;Que das naes na costa moradoras,Correndo a fama veio que roubadasForam por estes homens que passavam,Que com pactos de paz sempre ancoravam. 82. 79- E sabe mais (lhe diz), como entendidoTenho destes Cristos sanguinolentos,Que qusi todo o mar tm destrudoCom roubos, com incndios violentos;E trazem j de longe engano urdidoContra ns; e que todos seus intentosSo pera nos matarem e roubarem,E mulheres e filhos cativarem. 83. 80"E tambm sei que tem determinadoDe vir por gua a terra muito cedoO Capito dos seus acompanhado,Que da tenso danada nasce o medo.Tu deves de ir tambm coos teus armadoEsper-lo em cilada, oculto e quedo;Porque, saindo a gente descuidada,Cairo facilmente na cilada. 84. 81E se inda no ficarem deste jeitoDestrudos ou mortos totalmente,Eu tenho imaginada no conceitoOutra manha e ardil que te contente:Manda-lhe dar piloto que de jeitoSeja astuto no engano, e to prudenteQue os leve aonde sejam destrudos,Desbaratados, mortos ou perdidos. 85. 82Tanto que estas palavras acabouO Mouro, nos tais casos sbio e velho,Os braos pelo colo lhe lanou,Agradecendo muito o tal conselho;E logo nesse instante concertouPera a guerra o belgero aparelho,Pera que ao Portugus se lhe tornasseEm roxo sangue a gua que buscasse. 86. 83E busca mais, pera o cuidado engano,Mouro que por piloto nau lhe mande,Sagaz, astuto e sbio em todo o dano,De quem fiar se possa um feito grande.Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano,Por tais costas e mares co ele ande,Que, se daqui escapar, que l dianteV cair onde nunca se alevante. 87. 84J o raio Apolneo visitavaOs Montes Nabateios acendido,Quando Gama cos seus determinavaDe vir por gua a terra apercebido.A gente nos batis se concertavaComo se fosse o engano j sabido;Mas pde suspeitar-se facilmente,Que o corao pres[s]ago nunca mente. 88. 85E mais tambm mandado tinha a terra,De antes, pelo piloto necessrio,E foi-lhe respondido em som de guerra,Caso do que cuidava mui contrrio.Por isto, e porque sabe quanto erraQuem se cr de seu prfido adversrio,Apercebido vai como podiaEm trs batis somente que trazia. 89. 86Mas os Mouros, que andavam pela praiaPor lhe defender a gua desejada,Um de escudo embraado e de azagaia,Outro de arco encurvado e seta ervada,Esperam que a guerreira gente saia,Outros muitos j postos em cilada;E, por que o caso leve se lhe faa,Pem uns poucos diante por negaa. 90. 87Andam pela ribeira alva, arenosa,Os belicosos Mouros acenandoCom a adarga e coa hstia perigosa,Os fortes Portugueses incitando.No sofre muito a gente generosaAndar-lhe os ces os dentes amostrando.Qualquer em terra salta to ligeiro,Que nenhum dizer pode que primeiro. 91. 88Qual no corro sanguino o ledo amante,Vendo a fermosa dama desejada,O touro busca e, pondo-se diante,Salta, corre, sibila, acena e brada,Mas o animal atroce, nesse instante,Com a fronte corngera inclinada,Bramando, duro corre e os olhos cerra,Derriba, fere e mata e pe por terra. 92. 89Eis nos batis o fogo se levantaNa furiosa e dura artelharia;A plmbea pla mata, o brado espanta;Ferido, o ar retumba e assovia.O corao dos Mouros se quebranta,O temor grande o sangue lhe resfria.J foge o escondido, de medroso,E morre o descoberto aventuroso. 93. 90No se contenta a gente Portuguesa,Mas, seguindo a vitria, estrui e mata;A povoao sem muro e sem defesaEsbombardeia, acende e desbarata.Da cavalgada ao Mouro j lhe pesa,Que bem cuidou compr-la mais barata;J blasfema da guerra, e maldizia,O velho inerte e a me que o filho cria. 94. 91Fugindo, a seta o Mouro vai tirandoSem fora, de covarde e de apressado,Apedra, o pau e o canto arremessando;D-lhe armas o furor desatinado.J a Ilha, e todo o mais, desemparando, terra firme foge amedrontado;Passa e corta do mar o estreito braoQue a Ilha em torno cerca em pouco espao. 95. 92Uns vo nas almadias carregadas,Um corta o mar a nado, diligente;Quem se afoga nas ondas encurvadas,Quem bebe o mar e o deita juntamente.Arrombam as midas bombardadasOs pangaios sutis da bruta gente.Destarte o Portugus, enfim, castigaA vil malcia, prfida, inimiga. 96. 93Tornam vitoriosos pera a armada,Co despojo da guerra e rica presa,E vo a seu prazer fazer aguada,Sem achar resistncia nem defesa.Ficava a Maura gente magoada,No dio antigo mais que nunca acesa;E, vendo sem vingana tanto dano,Smente estriba no segundo engano. 97. 94Pazes cometer manda arrependidoO Regedor daquela inqua terra,Sem ser dos Lusitanos entendido,Que em figura de paz lhe manda guerra;Porque o piloto falso prometido,Que toda a m teno no peito encerra,Para os guiar morte lhe mandava,Como em sinal das pazes que tratava. 98. 95O Capito, que j lhe ento convinhaTornar a seu caminho acostumado,Que tempo concertado e ventos tinhaPara ir buscar o Indo desejado,Recebendo o piloto, que lhe vinha,Foi dele alegremente agasalhado;E respondendo ao mensageiro a tento,As velas manda dar ao largo vento. 99. 96Destarte despedida, a forte armadaAs ondas de Anftrite dividia,Das filhas de Nereu acompanhada,Fiel, alegre e doce companhia.O Capito, que no caa em nadaDo enganoso ardil que o Mouro urdia,Dele mui largamente se informavaDa ndia toda e costas que passava. 100. 97Mas o Mouro, instrudo nos enganosQue o malvolo Baco lhe ensinara,De morte ou cativeiro novos danos,Antes que ndia chegue, lhe prepara.Dando razo dos portos Indianos,Tambm tudo o que pede lhe declara,Que, havendo por verdade o que dizia,De nada a forte gente se temia. 101. 98E diz-lhe mais, co falso pensamentoCom que Snon os Frgios enganou,Que perto est a Ilha, cujo assentoPovo antigo Cristo sempre habitou.O Capito, que a tudo estava atento,Tanto co estas novas se alegrouQue com ddivas grandes lhe rogavaQue o leve terra onde esta genteestava. 102. 99O mesmo o falso Mouro determinaQue o seguro Cristo lhe manda e pede;Que a Ilha possuda da malinaGente que segue o torpe Mahamede.Aqui o engano e morte lhe imagina,Porque em poder e foras muito excede Moambique esta Ilha, que se chamaQuloa, mui conhecida pola fama. 103. 100Pera l se inclinava a leda frota;Mas a Deusa em Citere celebrada,Vendo como deixava a certa rotaPor ir buscar a morte no cuidada,No consente que em terra to remotaSe perca a gente dela tanto amada,E com ventos contrairos a desviaDonde o piloto falso a leva e guia. 104. 101Mas o malvado Mouro, no podendoTal determinao levar avante,Outra maldade inica cometendo,Ainda em seu propsito constante,Lhe diz que, pois as guas, discorrendo,Os levaram por fora por diante,Que outra Ilha tem perto, cuja genteEram Cristos com Mouros juntamente. 105. 102Tambm nestas palavras lhe mentia,Como por regimento enfim levava,Que aqui gente de Cristo no havia,Mas a que a Mahamede celebrava.O Capito, que em tudo o Mouro cria,Virando as velas, a ilha demandava;Mas, no querendo a Deusa guardadora,No entra pela barra, e surge fora. 106. 103Tambm nestas palavras lhe mentia,Como por regimento, enfim, levava;Que aqui gente de Cristo no havia,Mas a que a Mahamede celebrava.O Capito, que em tudo o Mouro cria,Virando as velas, a Ilha demandava;Mas, no querendo a Deusa guardadora,No entra pela barra, e surge fora. 107. 104E sendo a ela o Capito chegado,Estranhamente ledo, porque esperaDe poder ver o povo baptizado,Como o falso piloto lhe dissera,Eis vm batis da terra com recadoDo Rei, que j sabia a gente que era;Que Baco muito de antes o avisara,Na forma doutro Mouro, que tomara. 108. 105O recado que trazem de amigos,Mas debaxo o veneno vem coberto,Que os pensamentos eram de inimigos,Segundo foi o engano descoberto. grandes e gravssimos perigos, caminho de vida nunca certo,Que aonde a gente pe sua esperanaTenha a vida to pouca segurana! 109. 106No mar tanta tormenta e tanto dano,Tantas vezes a morte apercebida!Na terra tanta guerra, tanto engano,Tanta necessidade avorrecida!Onde pode acolher-se um fraco humano,Onde ter segura a curta vida,Que no se arme e se indigne o Cu serenoContra um bicho da terra to pequeno? 110. CANTO SEGUNDO 111. Lus Vaz de Cames Os LusadasCANTO SEGUNDO 112. 1J neste tempo o lcido Planeta,Que as horas vai do dia distinguindo,Chegava desejada e lenta meta,A luz celeste s gentes encobrindo,E da casa martima secretaLhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,Quando as infidas gentes se chegaramAs naus, que pouco havia que ancoraram. 113. 2Dentre eles um, que traz encomendadoO mortfero engano, assim dizia:"Capito valeroso, que cortadoTens de Neptuno o reino e salsa via,O Rei que manda esta ilha, alvoroado Davinda tua, tem tanta alegria,Que no deseja mais que agasalhar-te,Ver-te, e do necessrio reformar-te. 114. 3"E porque est em extremo desejosoDe te ver, como cousa nomeada,Te roga que, de nada receoso,Entres a barra, tu com toda armada:E porque do caminho trabalhosoTrars a gente dbil e cansada,Diz que na terra podes reform-la,Que a natureza obriga a desej-la. 115. 4"E se buscando vs mercadoriaQue produze o aurfero Levante,Canela, cravo, ardente especiaria,Ou droga salutfera e prestante;Ou se queres luzente pedraria,O rubi fino, o rgido diamante,Daqui levars tudo to sobejoCom que faas o fim a teu desejo." 116. 5Ao mensageiro o Capito respondeAs palavras do Rei agradecendo:E diz que, porque o Sol no mar se esconde,No entra para dentro, obedecendo;Porm que, como a luz mostrar por ondeV sem perigo a frota, no temendo,Cumprir sem receio seu mandado,Que a mais por tal senhor est obrigado. 117. 6Pergunta-lhe depois, se esto na terraCristos, como o piloto lhe dizia;O mensageiro astuto, que no erra,Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.Desta sorte do peito lhe desterraToda a suspeita e cauta fantasia;Por onde o Capito seguramenteSe fia da infiel e falsa gente. 118. 7E de alguns que trazia condenadosPor culpas e por feitos vergonhosos,Por que pudessem ser aventuradosEm casos desta sorte duvidosos,Manda dous mais sagazes, ensaiados,Por que notem dos Mouros enganososA cidade e poder, e por que vejamOs Cristos, que s tanto ver desejam. 119. 8E por estes ao Rei presentes manda,Por que a boa vontade, que mostrava,Tenha firme, segura, limpa e branda;A qual bem ao contrrio em tudo estava.J a companhia prfida e nefandaDas naus se despedia e o mar cortava:Foram com gestos ledos e fingidos,Os dous da frota em terra recebidos. 120. 9E depois que ao Rei apresentaram,Coo recado, os presentes que traziam,A cidade correram, e notaramMuito menos daquilo que queriam;Que os Mouros cautelosos se guardarasDe lhes mostrarem tudo o que pediam:Que onde reina a malcia, est o receio,Que a faz imaginar no peito alheio. 121. 10Mas aquele que sempre a mocidadeTem no rosto perptua, e foi nascidoDe duas mes, que urdia a falsidadePor ver o navegante destrudo,Estava numa casa da cidade,Com rosto humano e hbito fingido,Mostrando-se Cristo, e fabricavaUm altar sumptuoso, que adorava. 122. 11Ali tinha em retrato afiguradaDo alto e Santo Esprito a pintura:A cndida pombinha debuxadaSobre a nica Fnix, Virgem pura;A companhia santa est pintadaDos doze, to torvados na figura,Como os que, s das lnguas que caram,De fogo, vrias lnguas referiram. 123. 12Aqui os dous companheiros conduzidosOnde com este engano Baco estava,Pem em terra os giolhos, e os sentidosNaquele Deus que o mundo governava.Os cheiros excelentes, produzidosNa Pancaia odorfera, queimavaO Tioneu, e assim por derradeiroO falso Deus adora o verdadeiro. 124. 13Aqui foram de noite agasalhados,Com todo o bom e honesto tratamento,Os dous Cristos, no vendo que enganadosOs tinha o falso e santo fingimento.Mas assim como os raios espalhadosDo Sol foram no mundo, e num momentoApareceu no rbido horizonteDa moa de Tito a roxa fronte, 125. 14Tornam da terra os Mouros coo recadoDo Rei, para que entrassem, e consigoOs dous que o Capito tinha mandado,A quem se o Rei mostrou sincero amigo;E sendo o Portugus certificadoDe no haver receio de perigo,E que gente de Cristo em terra havia,Dentro no salso rio entrar queria. 126. 15Dizem-lhe os que mandou, que emterraSacras aras e sacerdote sinto; viramQue ali se agasalharam o dormiram,Enquanto a luz cobriu o escuro manto;E que no Rei e gentes no sentiramSeno contentamento e gosto tanto,Que no podia certo haver suspeitaNuma mostra to clara e to perfeita. 127. 16Com isto o nobre Gama recebiaAlegremente os Mouros que subiam;Que levemente um nimo se fiaDe mostras, que to certas pareciam.A nau da gente prfida se enchia,Deixando a bordo os barcos que traziam.Alegres vinham todos, porque crmQue a presa desejada certa tm. 128. 17Na terra, cautamente aparelhavamArmas e munies que, como vissemQue no rio os navios ancoravam,Neles ousadamente se subissem;E, nesta treio determinavamQue os de Luso de todo destrussem,E que incautos pagassem deste jeitoO mal que em Moambique tinham feito. 129. 18As ncoras tenaces vo levandoCom a nutica grita costumada;Da proa as velas ss ao vento dandoInclinam para a barra abalizada.Mas a linda Ericina, que guardandoAndava sempre a gente assinalada,Vendo a cilada grande, e to secreta,Voa do Cu ao mar como uma seta. 130. 19Convoca as alvas filhas de Nereu,Com toda a mais cerlea companhia,Que, porque no salgado mar nasceu, Dasguas o poder lhe obedecia.E propondo-lhe a causa a que desceu,Com todas juntamente se partia,Para estorvar que a armada nochegasse 131. 20J na gua erguendo vo, com grande pressa,Com as argnteas caudas branca escuma;Cloto e oo peito corta e atravessaCom mais furor o mar do que costuma.Salta Nise, Nerine se arremessaPor cima da gua crespa, em fora suma.Abrem caminho as ondas encurvadasDe temor das Nereidas apressadas. 132. 21Nos ombros de um Trito, com gesto aceso,Vai a linda Dione furiosa;No sente quem a leva o doce peso,De soberbo com carga to formosa.J chegam perto donde o vento tesoEnche as velas da frota belicosa;Repartem-se e rodeiam nesse instanteAs naus ligeiras, que iam por diante. 133. 22Pe-se a Deusa com outras em direitoDa proa capitaina, e ali fechandoO caminho da barra, esto de jeito,Que em vo assopra o vento, a vela inchando.Pem no madeiro duro o brando peito,Para detrs a forte nau forando;Outras em derredor levando-a estavam,E da barra inimiga a desviavam. 134. 23Quais para a cova as prvidas formigas,Levando o peso grande acomodado,As foras exercitam, de inimigasDo inimigo inverno congelado;Ali so seus trabalhos e fadigas,Ali mostram vigor nunca esperado:Taisandavam as Ninfas estorvandoA gente Portuguesa o fim nefando. 135. 24Torna para detrs a nau forada,Apesar dos que leva, que gritandoMareiam velas; ferve a gente irada,O leme a um bordo e a outro atravessando;O mestre astuto em vo da popa brada,Vendo como diante ameaandoOs estava um martimo penedo,Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo. 136. 25A celeuma medonha se alevantaNo rudo marinheiro que trabalha;O grande estrondo a Maura gente espanta,Como se vissem hrrida batalha;No sabem a razo de fria tanta,No sabem nesta pressa quem lhe valha;Cuidam que seus enganos so sabidos,E que ho de ser por isso aqui punidos. 137. 26Ei-los subitamente se lanavamA seus batis velozes que traziam;Outros em cima o mar alevantavam,Saltando ngua, a nado se acolhiam;De um bordo e doutro sbito saltavam,Que o medo os compelia do que viam;Que antes querem ao mar aventurar-seQue nas mos inimigas entregar-se. 138. 27Assim como em selvtica alagoaAs rs, no tempo antigo Lcia gente,Se sentem por ventura vir pessoa,Estando fora da gua incautamente,Daqui e dali saltando, o charco soa,Por fugir do perigo que se sente,E acolhendo-se ao couto que conhecem,Ss as cabeas na gua lhe aparecem: 139. 28Assim fogem os Mouros; e o piloto,Que ao perigo grande as naus guiara,Crendo que seu engano estava noto,Tambm foge, saltando na gua amara.Mas, por no darem no penedo imoto,Onde percam a vida doce e cara,A ncora solta logo a capitaina,Qualquer das outras junto dela amaina. 140. 29Vendo o Gama, atentado, a estranhezaDos Mouros, no cuidada, e juntamenteO piloto fugir-lhe com presteza,Entende o que ordenava a bruta gente;E vendo, sem contraste e sem bravezaDos ventos, ou das guas sem corrente,Que a nau passar avante no podia,Havendo-o por milagre, assim dizia: 141. 30" caso grande, estranho e no cuidado, milagre clarssimo e evidente, descoberto engano inopinado, prfida, inimiga e falsa gente!Quem poder do mal aparelhadoLivrar-se sem perigo sabiamente,Se l de cima a Guarda soberanaNo acudir fraca fora humana? 142. 31"Bem nos mostra a divina ProvidnciaDestes portos a pouca segurana;Bem claro temos visto na aparncia,Que era enganada a nossa confiana.Mas pois saber humano nem prudnciaEnganos to fingidos no alcana, tu, Guarda Divina, tem cuidadoDe quem sem ti no pode ser guardado! 143. 32"E se te move tanto a piedadeDesta msera gente peregrina,Que s por tua altssima bondade,Da gente a salvas prfida e malina,Nalgum porto seguro de verdadeConduzir-nos j agora determina,Ou nos amostra a terra que buscamos,Pois s por teu servio navegamos." 144. 33Ouviu-lhe essas palavras piedosasA formosa Dione, e comovida,Dentre as Ninfas se vai, que saudosasFicaram desta sbita partida.J penetra as Estrelas luminosas,J na terceira Esfera recebidaAvante passa, e l no sexto Cu,Para onde estava o Padre, se moveu. 145. 34E como ia afrontada do caminho,To formosa no gesto se mostrava,Que as Estrelas e o Cu e o Ar vizinho,E tudo quanto a via namorava.Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,Uns espritos vivos inspirava,Com que os Plos gelados acendia,E tornava do Fogo a esfera fria. 146. 35E por mais namorar o soberanoPadre, de quem foi sempre amada e eria,Se lhe apresenta assim como ao Troiano,Na selva Idea, j se apresentara.Se a vira o caador, que o vulto humanoPerdeu, vendo Diana na gua clara,Nunca os famintos galgos o mataram,Que primeiro desejos o acabaram. 147. 36Os crespos fios douro se esparziamPelo colo, que a neve escurecia; Andando,as lcteas tetas lhe tremiam,Com quem Amor brincava, e no se via;Da alva petrina flamas lhe saam,Onde o Menino as almas acendia;Pelas lisas colunas lhe trepavamDesejos, que como hera se enrolavam. 148. 37Cum delgado sendal as partes cobre,De quem vergonha natural reparo,Porm nem tudo esconde, nem descobre,O vu, dos roxos lrios pouco avaro;Mas, para que o desejo acenda o dobre,Lhe pe diante aquele objeto raro.J se sentem no Cu, por toda a parte,Cimes em Vulcano, amor em Marte. 149. 38E mostrando no anglico semblanteCoo riso uma tristeza misturada,Como dama que foi do incauto amanteEm brincos amorosos mal tratada,Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,E se torna entre alegre magoada,Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,Mais mimosa que triste ao Padre fala: 150. 39"Sempre eu cuidei, Padre poderoso,Que, para as cousas que eu do peito amasse,Te achasse brando, afbil e amoroso,Posto que a algum contrrio lhe pesasse;Mas, pois que contra mim te vejo iroso,Sem que to merecesse, nem te errasse,Faa-se como Baco determina;Assentarei enfim que fui mofina. 151. 40"Este povo que meu, por quem derramoAs lgrimas que em vo cadas vejo,Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,Sendo tu tanto contra meu desejo!Por ele a ti rogando choro e bramo,E contra minha dita enfim pelejo.Ora pois, porque o amo mal tratado,Quero-lhe querer mal, ser guardado. 152. 41"Mas moura enfim nas mos das brutas gentes,Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa,O rosto banha em lgrimas ardentes,Como coo orvalho fica a fresca rosa.Calada um pouco, como se entre os dentesSe lhe impedira a fala piedosa,Torna a segui-la; e indo por diante,Lhe atalha o poderoso e gro Tonante. 153. 42E destas brandas mostras comovido,Que moveram de um tigre o peito duro,Coo vulto alegre, qual do Cu subido,Torna sereno e claro o ar escuro,As lgrimas lhe alimpa, e acendidoNa face a beija, e abraa o colo puro;De modo que dali, se s se achara,Outro novo Cupido se gerara. 154. 43E coo seu apertando o rosto amado,Que os soluos e lgrimas aumenta,Como menino da ama castigado,Que quem no afaga o choro lhe acrescente,Por lhe pr em sossego o peito irado,Muitos casos futuros lhe apresenta.Dos fados as entranhas revolvendo,Desta maneira enfim lhe est dizendo: 155. 44"Formosa filha minha, no temaisPerigo algum nos vossos Lusitanos,Nem que ningum comigo possa mais,Que esses chorosos olhos soberanos;Que eu vos prometo, filha, que vejaisEsquecerem-se Gregos e Romanos,Pelos ilustres feitos que esta genteH-de fazer nas partes do Oriente. 156. 45"Que se o facundo Ulisses escapouDe ser na Oggia ilha eterno escravo,E se Antenor os seios penetrouIlricos e a fonte de Timavo;E se o piedoso Eneias navegouDe Cila e de Carbdis o mar bravo,Os vossos, mores cousas atentando,Novos mundos ao mundo iro mostrando. 157. 46"Fortalezas, cidades e altos muros,Por eles vereis, filha, edificados;Os Turcos belacssimos e duros,Deles sempre vereis desbaratados.Os Reis da ndia, livres e seguros,Vereis ao Rei potente sojugados;E por eles, de tudo enfim senhores,Sero dadas na terra leis melhores. 158. 47"Vereis este, que agora pressurosoPor tantos medos o Indo vai buscando,Tremer dele Neptuno, de medrosoSem vento suas guas encrespando. caso nunca visto e milagroso,Que trema e ferva o mar, em calma estando! gente forte e de altos pensamentos,Que tambm dela ho medo os Elementos! 159. 48"Vereis a terra, que a gua lhe tolhia,Que inda h-de ser um porto mui decente,Em que vo descansar da longa viaAs naus que navegarem do Ocidente.Toda esta costa enfim, que agora urdiaO mortfero engano, obedienteLhe pagar tributos, conhecendoNo poder resistir ao Luso horrendo. 160. 49"E vereis o mar Roxo, to famoso,Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;Vereis de Ormuz o Reino poderosoDuas vezes tomado e sojugado.Ali vereis o Mouro furiosoDe suas mesmas setas traspassado:Que quem vai contra os vossos, claro vejaQue, se resiste, contra si peleja. 161. 50"Vereis a inexpugnbil Dio forte,Que dous cercos ter, dos vossos sendo.Ali se mostrar seu preo e sorte,Feitos de armas grandssimos fazendo.Invejoso vereis o gro MavorteDo peito Lusitano fero e horrendo:Do Mouro ali vero que a voz extremaDo falso Mahamede ao Cu blasfema 162. 51"Goa vereis aos Mouros ser tomada,A qual vir depois a ser senhoraDe todo o Oriente, e sublimadaCoos triunfos da gente vencedora.Ali soberba, altiva, e exalada,Ao Gentio, que os dolos adora,Duro freio por, e a toda a terraQue cuidar de fazer aos vossos guerra 163. 52"Vereis a fortaleza sustentar-seDe Cananor, com pouca fora e gente;E vereis Calecu desbaratar-se,Cidade populosa e to potente:E vereis em Cochim assinalar-seTanto um peito soberbo e insolente,Que ctara jamais cantou vitria,Que assim merea eterno nome e glria. 164. 53"Nunca com Marte instructo e furioso,Se viu ferver Leucate, quando AugustoNas civis Actias guerras animoso,O Capito venceu Romano injusto,Que dos povos da Aurora, e do famosoNilo, e do Bactra Ctico e robustoA vitria trazia, e presa rica,Preso na Egpcia linda e nego pudica. 165. 54Como vereis o mar fervendo acesoColos incndios dos vossos pelejando,Levando o Idololatra, e o Mouro preso,De naes diferentes triunfando.E sujeita a rica urea Quersoneso,At ao longnquo China navegando,E as ilhas mais remotas do Oriente,Ser-lhe- todo o Oceano obediente. 166. 55"De modo, filha minha, que de jeitoAmostraro esforo mais que humano,Que nunca se ver to forte peito,Do Gangtico mar ao Gaditano,Nem das Boreais ondas ao Estreito,Que mostrou o agravado Lusitano,Posto que em todo o mundo, de afrontados,Ressuscitassem todos os passados." 167. 56Como isto disse, manda o consagradoFilho de Maia Terra, por que tenhaUm pacfico porto o sossegado,Para onde sem receio a frota venha;F, para que em Mombaa, aventurado,O forte Capito se no detenha,Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostraA terra, onde quieto repousasse. 168. 57J pelo ar o Cileneu voava;Com as asas nos ps Terra desce; Sua varafatal na mo levava,Com que os olhos cansados adormece:Com esta, as tristes almas revocavaDo Inferno, e o vento lhe obedece.Na cabea o galero costumado.E desta arte a Melinde foi chegado. 169. 58Consigo a Fama leva, por que digaDo Lusitano o preo grande e raro,Que o nome ilustre a um certo amor obrigaE faz, a quem o tem, amado e caro.Desta arte vai fazendo a gente amiga,Co rumor famosssimo, e perclaro.J Melinde em desejos arde todoDe ver da gente forte o gesto e modo. 170. 59Dali para Mombaa logo parte,Aonde as naus estavam temerosas,Para que gente mande que se aparteDa barra amiga e terras suspeitosas:Porque mui pouco val esforo e arte,Contra infernais vontades enganosas;Pouco val corao, astcia e siso,Se l dos Cus no vem celeste aviso. 171. 60No feio caminho a noite tinha anelado,E, as estrelas no Cu, coa luz alhea,Tinham o largo Mundo alumiado;E s coo sono a gente se recreia.O Capito ilustre, j cansadoDe vigiar a noite que arreceia,Breve repouso ento aos olhos dava,A outra gente a quartos vigiava; 172. 61Quando Mercrio em sonhos lhe aparece,Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,Da cilada que o Rei malvado tece,Por te trazer ao fim, e extremo dano;Fuge, que o vento, e o Cu te favorece;Sereno o tempo tens e o Oceano,E outro Rei mais amigo, noutra parte,Onde podes seguro agasalhar-te. 173. 62"No tens aqui seno aparelhadoO hospcio que o cru Diomedes dava,Fazendo ser manjar acostumadoDe cavalos a gente que hospedava;As aras de Busris infamado,Onde os hspedes tristes imolava,Ters certas aqui, se muito esperas.Fuge das gentes prfidas e feras. 174. 63"Vai-te ao longo da costa discorrendo,E outra terra achars de mais verdade,L quase junto donde o Sol ardendoIguala o dia e noite em quantidade;Ali tua frota alegre recebendoUm Rei, com muitas obras de amizade,,Gasalhado seguro te daria,E, para a ndia, certa e sbia guia." 175. 64Isto Mercrio disse, e o sono levaAo Capito, que com mui grande espantoAcorda, e v ferida a escura trevaDe uma sbita luz e raio santo.E vendo claro quanto lhe relevaNo se deter na terra inqua tanto,Com novo esprito ao mestre seu mandavaQue as velas desse ao vento que assopravam. 176. 65"Dai velas, disse, dai ao largo vento,Que o Cu nos favorece e Deus o manda;Que um mensageiro vi do claro assentoQue s em favor de nossos passos anda."Alevanta-se nisto o movimentoDos marinheiros, de uma e de outra banda;Levam gritando as ncoras acima,Mostrando a ruda fora, que se estima. 177. 66Neste tempo, que as ncoras levavam,Na sombra escura os Mouros escondidosMansamente as amarras lhe cortavam,Por serem, dando costa, destrudos;Mas com vista de linces vigiavamOs Portugueses, sempre apercebidos.Eles, como acordados os sentiram,Voando, e no remando, lhe fugiram 178. 67Mas j as agudas proas apartandoIam as vias hmidas de argento;Assopra-lhe galerno o vento, e brando,Com suave e seguro movimento.Nos perigos passados vo falando,Que mal se perdero do pensamentoOs casos grandes, donde em tanto apertoA vida em salvo escapa por acerto. 179. 68Tinha uma volta dado o Sol ardenteE noutro comeava, quando viramAo longe deus navios, brandamenteCoos ventos navegando, que respiram:Porque haviam de ser da Maura gente,Para eles arribando, as velas viram:Um, de temor do mal que arreceava,Por se salvar a gente costa dava. 180. 69No o outro que fica to manhoso;Mas nas mos vai cair do Lusitano,Sem o rigor de Marte furioso,E sem a fria horrenda de Vulcano;Que como fosse dbil e medrosoDa pouca gente o fraco peito humano,No teve resistncia; e se a tivera,Mais dano resistindo recebera. 181. 70E como o Gama muito desejassePiloto para a ndia que buscava,Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;Mas no lhe sucedeu como cuidava,Que nenhum deles h que lhe ensinasseA que parte dos cus a ndia estava;Porm dizem-lhe todos, que tem pertoMelinde, onde achar piloto certo. 182. 71Louvam do Rei os Mouros a bondade,Condio liberal, sincero peito,Magnificncia grande e humanidade,Com partes de grandssimo respeito.O Capito o assela por verdade,Porque j lhe dissera, deste jeito,Cileneu em sonhos; e partiaPara onde o sonho e o Mouro lhe dizia. 183. 72Era no tempo alegre, quando entravaNo roubador de Europa a luz Febeia,Quando um e outro corno lhe aquentava,E Flora derramava o de Amalteia:A memria do dia renovavaO pressuroso Sol, que o Cu rodeia,Em que Aquele, a quem tudo est sujeito,O selo ps a quanto tinha feito; 184. 73Quando chegava a frota quela parte,Onde o Reino Melinde j se via,De toldos adornada, e leda de arteQue bem mostra estimar o santo dia.Treme a bandeira, voa o estandarte,A cor purprea ao longe aparecia;Soam os atambores o pandeiros,E assim entravam ledos e guerreiros. 185. 74Enche-se toda a praia MelindanaDa gente que vem ver a leda armada,Gente mais verdadeira, e mais humana,Que toda a doutra terra atrs deixada.Surge diante a frota Lusitana,Pega no fundo a ncora pesada;Mandam fora um dos Mouros que tomaram,Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. 186. 75O Rei, que j sabia da nobrezaQue tanto os Portugueses engrandece,Tomarem o seu porto tanto preza,Quanto a gente fortssima merece:E com verdadeiro nimo e pureza,Que os peitos generosos enobrece,Lhe manda rogar muito que sassem,Para que de seus reinos se servissem. 187. 76So oferecimentos verdadeiros,E palavras sinceras, no dobradas,As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,Que tanto mar e terras tem passadas.Manda-lhe mais langeros carneiros,E galinhas domsticas cevadas,Com as frutas, que ento na terra havia;E a vontade ddiva excedia. 188. 77Recebe o Capito alegrementeO mensageiro ledo e seu recado;E logo manda ao Rei outro presente,Que de longe trazia aparelhado:Escarlata purprea, cor ardente,O ramoso coral, fino e prezado,Que debaixo das guas mole cresce,E como fora delas se endurece. 189. 78Manda mais um, na prtica elegante,Que coo Rei nobre as pazes concertasse,E que de no sair naquele instanteDe suas naus em terra o desculpasse.Partido assim o embaixador prestante,Como na terra ao Rei se apresentasse,Com estilo que Palas lhe ensinava,Estas palavras tais falando orava: 190. 79"Sublime Rei, a quem do Olimpo puroFoi da suma Justia concedidoRefrear o soberbo povo duro,No menos dele amado, que temido:Como porto mui forte e mui seguro,De todo o Oriente conhecido,Te vimos a buscar, para que achemosEm ti o remdio certo que queremos. 191. 80"No somos roubadores, que passandoPelas fracas cidades descuidadas,A ferro e a fogo as gentes vo matando,Por roubar-lhe as fazendas cobiadas;Mas da soberba Europa navegando,Imos buscando as terras apartadasDa ndia grande e rica, por mandadoDe um Rei que temos, alto e sublimado. 192. 81"Que gerao to dura h hi de gente,Que brbaro costume e usana feia,Que no vedem os portos to somente,Mas inda o hospcio da deserta areia?Que m teno, que peito em ns se sente,Que de to pouca gente se arreceia?Que com laos armados, to fingidos,Nos ordenassem ver-nos destrudos? 193. 82"Mas tu, e quem mui certo confiamosAchar-se mais verdade, Rei benigno,E aquela certa ajuda em ti esperamos,Que teve o perdido taco em Alcino,A teu porto seguro navegamos,Conduzidos do intrprete divino;Que, pois a ti nos manda, est mui claro,Que s de peito sincero, humano e raro. 194. 83"E no cuides, Rei, que no sasseO nosso Capito esclarecidoA ver-te, ou a servir-te, porque visseOu suspeitasse em ti peito fingido:Mas sabers que o fez, porque cumprisseO regimento, em tudo obedecido,De seu Rei, que lhe manda que no saia,Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. 195. 84"E porque , de vassalos o exerccio,Que os membros tem regidos da cabea,No querers, pois tens de Rei o ofcio,Que ningum a seu Rei desobedea;Mas as mercs e o grande benefcio,Que ora acha em ti, promete que conheaEm tudo aquilo que ele e os seus puderem,Enquanto os rios para o mar correrem." 196. 85Assim dizia; e todos juntamente,Uns com outros em prtica falando,Louvavam muito o estmago da gente,Que tantos cus e mares vai passando.E o Rei ilustre, o peito obedienteDos Portugueses na alma imaginando,Tinha por valor grande e mui subidoO do Rei que to longe obedecido. 197. 86E com risonha vista e ledo aspeito,Responde ao embaixador, que tanto estima:"Toda a suspeita m tirai do peito,Nenhum frio temor em vs se imprima;Que vosso preo e obras so de jeitoPara vos ter o mundo em muita estima;E quem vos fez molesto tratamento,No pode ter subido pensamento. 198. 87"De no sair em terra toda a gente,Por observar a usada preminncia,Ainda que me pese estranhamente,Em muito tenho a muita obedincia;Mas, se lho o regimento no consente,Nem eu consentirei que a excelnciaDe peitos to leais em si desfaa,S porque a meu desejo satisfaa. 199. 88"Porm, como a luz crstina chegadaAo mundo for, em minhas almadiasEu irei visitar a forte armada,Que ver tanto desejo, h tantos dias;E se vier do mar desbaratada,Do furioso vento e longas vias,Aqui ter, de limpos pensamentos,Piloto, munies e mantimentos." 200. 89Isto disse; e nas guas se escondiaO filho de Latona; e o mensageiroCoa embaixada alegre se partiaPara a frota, no seu batel ligeiro.Enchem-se os peitos todos de alegria.Por terem o remdio verdadeiroPara acharem a terra que buscavam;E assim ledos a noite festejavam. 201. 90No faltam ali os raios de artifcio,Os trmulos cometas imitando;Fazem os bombardeiros seu ofcio,O cu, a terra e as ondas atroando.Mostra-se dos Ciclopas o exerccioNas bombas que de fogo esto queimando;Outros com vozes, com que o cu feriam,Instrumentos altssonos tangiam. 202. 91Respondem-lhe da terra juntamente,Coo raio volteando, com zunido;Anda em giros no ar a roda ardente,Estoura o p sulfreo escondido.A grita se alevanta ao cu, da gente;O mar se via em fogos acendido,E no menos a terra; e assim festejaUm ao outro, a maneira de peleja. 203. 92Mas j o Cu inquieto revolvendo,As gentes incitava a seu trabalho,E j a me de Menon a luz trazendo,Ao sono longo punha certo atalho;Iam-se as sombras lentas desfazendo,Sobre as flores da terra em frio orvalho,Quando o Rei Melindano se embarcavaA ver a frota, que no mar estava. 204. 93Viam-se em derredor ferver as praiasDa gente, que a ver s concorre leda;Luzem da fina prpura as cabaias,Lustram os panos da tecida seda;Em lugar das guerreiras azagaiasE do arco, que os cornos arremedaDa Lua, trazem ramos de palmeira,Dos que vencem, coroa verdadeira. 205. 94Um batel grande e largo, que toldadoVinha de sedas de diversas cores,Traz o Rei de Melinde, acompanhadoDe nobres e seu Reino e de senhores:Vem de ricos vestidos adornado,Segundo seus costumes e primores;Na cabea uma fota guarnecidaDe ouro, e de seda e de algodo tecida. 206. 95Cabaia de Damasco rico e dino,Da Tria cor, entre eles estimada,Um colar ao pescoo, de ouro fino,Onde a matria da obra superada,Cum resplendor reluze adamantino;Na cinta, a rica bem lavrada;Nas alparcas dos ps, em fim de tudo,Cobrem ouro e aljfar ao veludo. 207. 96Com um redondo emparo alto de seda,Numa alta e dourada hstia enxerido,Um ministro solar quentura veda.Que no ofenda e queime o Rei subido.Msica traz na proa, estranha e leda,De spero som, horrssono ao ouvido,De trombetas arcadas em redondo,Que, sem concerto, fazem rudo estrondo. 208. 97No menos guarnecido o LusitanoNos seus batis, da frota se partiaA receber no mar o Melindano,Com lustrosa e lograda companhia.Vestido o Gama vem ao modo Hispano,Mas Francesa era a roupa que vestia,De cetim da Adritica VenezaCarmesi, cor que a gente tanto preza: 209. 98De botes douro as mangas vm tomadas,Onde o Sol reluzindo a vista cega;As calas soldadescas recamadasDo metal, que Fortuna a tantos nega,E com pontas do mesmo delicadasOs golpes do gibo ajunta e achega;Ao Itlico modo a urea espada;Pluma na gorra, um pouco declinada. 210. 99Nos de sua companhia se mostravaDa tinta, que d o mrice excelente,A vria cor, que os olhos alegrava,E a maneira do trajo diferente.Tal o formoso esmalte se notavaDos vestidos, olhados juntamente,Qual aparece o arco rutilanteDa bela Ninfa, filha de Taumante. 211. 100Sonorosas trombetas incitavamOs nimos alegres, ressoando;Dos Mouros os batis, o mar coalhavam,Os toldos pelas guas arrojando;As bombardas horrssonas bramavam,Com as nuvens de fumo o Sol tomando;Amidam-se os brados acendidos,Tapam com as mos os Mouros os ouvidos. 212. 101J no batel entrou do CapitoO Rei, que nos seus braos o levava;Ele coa cortesia, que a razo(Por ser Rei) requeria, lhe falava.Cumas mostras de espanto e admirao,O Mouro o gesto e o modo lhe notava,Como quem em mui grande estima tinhaGente que de to longe ndia vinha. 213. 102E com grandes palavras lhe ofereceTudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,E que, se mantimento lhe falece,Como se prprio fosse, lho pedisse.Diz-lhe mais, que por fama bem conheceA gente Lusitana, sem que a visse;Que j ouviu dizer, que noutra terraCom gente de sua Lei tivesse guerra. 214. 103E como por toda frica se soa,Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,Quando nela ganharam a coroaDo Reino, onde as Hespridas viveram; Ecom muitas palavras apregoaO menos que os de Luso mereceram,E o mais que pela fama o Rei sabia.Mas desta sorte o Gama respondia: 215. 104" tu, que s tiveste piedade,Rei benigno, da gente Lusitana,Que com tanta misria e adversidadeDos mares experimenta a fria insana;Aquela alta e divina Eternidade,Que o Cu revolve e rege a gente humana,Pois que de ti tais obras recebemos,Te pague o que ns outros no podemos. 216. 105"Tu s, de todos quantos queima Apolo,Nos recebes em paz, cio mar profundo;Em ti dos ventos hrridos de EoloRefgio achamos bom, fido e jocundo.Enquanto apascentar o largo PloAs Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,Onde quer que eu viver, com fama e glriaVivero teus louvores em memria." 217. 106Isto dizendo, os barcos vo remandoPara a frota, que o Mouro ver deseja;Vo as naus uma e uma rodeando,Porque de todas tudo note e veja.Mas para o cu Vulcano fuzilando,A frota coas bombardas o festeja,E as trombetas canoras lhe tangiam;Coos anafis os Mouros respondiam. 218. 107Mas depois de ser tudo j notadoDo generoso Mouro, que pasmavaOuvindo o instrumento inusitado,Que tamanho terror em si mostrava,Mandava estar quieto e ancoradoNgua o batel ligeiro que os levava, Porfalar de vagar coo forte Gama,Nas cousas de que tem notcia e faina. 219. 108Em prticas o Mouro diferentesSe deleitava, perguntando agoraPelas guerras famosas e excelentesCoo povo havidas, que a Mafoma adora;Agora lhe pergunta pelas gentesDe toda a Hespria ltima, onde mora;Agora pelos povos seus vizinhos,Agora pelos midos caminhos. 220. 109"Mas antes, valeroso Capito,Nos conta, lhe dizia, diligente,Da terra tua o clima, e regioDo mundo onde morais distintamente;E assim de vossa antiga gerao,E o princpio do Reino to potente,Coos sucessos das guerras do comeo,Que, sem sab-las, sei que so de preo. 221. 110"E assim tambm nos conta dos rodeiosLongos, em que te traz o mar irado,Vendo os costumes brbaros alheios.Que a nossa frica ruda tem criado.Conta: que agora vm coos ureos freiosOs cavalos que o carro marchetadoDo novo Sol, da fria Aurora trazem,O vento dorme, o mar e as ondas jazem. 222. 111"E no menos coo tempo se pareceO desejo de ouvir-te o que contares;Que quem h, que por fama no conheceAs obras Portuguesas singulares?No tanto desviado resplandeceDe ns o claro Sol, para julgaresQue os Melindanos tm to rudo peito,Que no estimem muito um grande feito. 223. 112"Cometeram soberbos os Gigantes,Com guerra v, o Olimpo claro e puro;Tentou Pirtoo e Teseu, de ignorantes,O Reino de Pluto horrendo e escuro.Se houve feitos no mundo to possantes,No menos trabalho ilustre e duro,Quanto foi cometer Inferno o Cu,Que outrem cometa a fria de Nereu. 224. 113"Queimou o sagrado templo de Diana,Do subtil Tesifnio fabricado,Herstrato, por ser da gente humanaConhecido no mundo e nomeado:Se tambm com tais obras nos enganaO desejo de um nome avantajado,Mais razo h que queira eterna glriaQuem faz obras to dignas de memria." 225. Canto Terceiro 226. Lus Vaz de Cames Os LusadasCanto Terceiro 227. 1Agora tu, Calope, me ensinaO que contou ao Rei o ilustre Gama:Inspira imortal canto e voz divinaNeste peito mortal, que tanto te ama.Assim o claro inventor da Medicina,De quem Orfeu pariste, linda Dama,Nunca por Dafne, Clcie ou Leucotoe,Te negue o amor devido, como soe. 228. 2Pe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,Como merece a gente Lusitana;Que veja e saiba o mundo que do TejoO licor de Aganipe corre e mana.Deixa as flores de Pindo, que j vejoBanhar-me Apolo na gua soberana;Seno direi que tens algum receio,Que se escurea o teu querido Orfeio. 229. 3Prontos estavam todos escutandoO que o sublime Gama contaria,Quando, depois de um pouco estar cuidando,Alevantando o rosto, assim dizia:"Mandas-me, Rei, que conte declarandoDe minha gente a gro genealogia:No me mandas contar estranha histria,Mas mandas-me louvar dos meus a glria. 230. 4"Que outrem possa louvar esforo alheio,Cousa que se costuma e se deseja;Mas louvar os meus prprios, arreceioQue louvor to suspeito mal me esteja;E para dizer tudo, temo e creio,Que qualquer longo tempo curto seja:Mas, pois o mandas, tudo se te deve,Irei contra o que devo, e serei breve. 231. 5"Alm disso, o que a tudo enfim me obriga, no poder mentir no que disser,Porque de feitos tais, por mais que diga,Mais me h-de ficar inda por dizer.Mas, porque nisto a ordens leve e siga,Segundo o que desejas de saber,Primeiro tratarei da larga terra,Depois direi da sanguinosa guerra. 232. 6"Entre a Zona que o Cancro senhoreia,Meta setentrional do Sol luzente,E aquela que por f ria se arreceiaTanto, como a do meio por ardente,Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,Pela parte do Areturo, e do Ocidente,Com suas salsas ondas o Oceano,E pela Austral o mar Mediterrano. 233. 7"Da parte donde o dia vem nascendo,Com sia se avizinha; mas o rioQue dos montes Rifeios vai correndo,Na alagoa Meotis, curvo o frio,As divide: e o mar que, fero e horrendo,Viu dos Gregos o irado senhorio,Onde agora de Tria triunfanteNo v mais que a memria o navegante. 234. 8"L onde mais debaixo est do Plo,Os montes Hiperbreos aparecem, E aquelesonde sempre sopra Eolo,E coo nome, dos sopros se enobrecem.Aqui to pouca fora tem de ApoloOs raios que no mundo resplandecem,Que a neve est contido pelos montes,Gelado o mar, geladas sempre as fontes. 235. 9"Aqui dos Citas grande quantidadeVivem, que antigamente grande guerraTiveram, sobre a humana antiguidade,Coos que tinham ento a Egpcia terra;Mas quem to fora estava da verdade,(J que o juzo humano tanto erra)Para que do mais certo se informara,Ao campo Damasceno o perguntara. 236. 10"Agora nestas partes se nomeiaA Lpia fria, a inculta Noruega,Escandinvia Ilha, que se arreiaDas vitrias que Itlia no lhe nega.Aqui, enquanto as guas no refreiaO congelado inverno, se navegaUm brao do Sarmtico OceanoPelo Brsio, Sucio e frio Dano. 237. 11"Entre este mar e o Tnais vive estranhaGente: Rutenos, Moseos e Livnios,Srmatas outro tempo; e na montanhaHircnia os Marcomanos so Polnios.Sujeitos ao Imprio de AlemanhaSo Saxones, Bomios e Pannios,E outras vrias naes, que o Reno frioLava, e o Danbio, Amasis e Albis rio. 238. 12"Entre o remoto Istro e o claro Estreito,Aonde Hele deixou coo nome a vida,Esto os Traces de robusto peito,Do fero Marte ptria to querida, Onde, coloHemo, o Rdope sujeitoAo Otomano est, que submetidaBizncio tem a seu servio indino:Boa injria do grande Constantino! 239. 13"Logo de Macednia esto as gentes,A quem lava do Axio a gua fria;E vs tambm, terras excelentesNos costumes, engenhos e ousadia,Que criastes os peitos eloquentesE os juzos de alta fantasia,Com quem tu, clara Grcia, o Cu penetras,E no menos por armas, que por letras. 240. 14"Logo os Dlmatas vivem; e no seio,Onde Antenor j muros levantou,A soberba Veneza est no meioDas guas, que to baixa comeou.Da terra um brao vem ao mar, que cheioDe esforo, naes vrias sujeitou,Brao forte, de gente sublimada,No menos nos engenhos, que na espada. 241. 15"Em torno o cerca o Reino Neptunino,Coos muros naturais por outra parte;Pelo meio o divide o Apenino,Que to ilustre fez o ptrio Marte;Mas depois que o Porteiro tem divino,Perdendo o esforo veio, e blica arte;Pobre est j de antiga potestade:Tanto Deus se contenta de humildade! 242. 16"Glia ali se ver que nomeadaCoos Cesreos triunfos foi no mundo,Que do Squana e Rdano regada,E do Giruna frio e Reno fundo.Logo os montes da Ninfa sepultadaPirene se alevantam, que segundoAntiguidades contam, quando arderam,Rios de ouro e de prata ento correram. 243. 17"Eis aqui se descobre a nobre Espanha,Como cabea ali de Europa toda,Em cujo senhorio o glria estranhaMuitas voltas tem dado a fatal roda;Mas nunca poder, com fora ou manha,A fortuna inquieta pr-lhe noda,Que lhe no tire o esforo e ousadiaDos belicosos peitos que em si cria. 244. 18"Com Tingitnia entesta, e ali pareceQue quer fechar o mar Mediterrano,Onde o sabido Estreito se enobreceCoo extremo trabalhado Tebano.Com naes diferentes se engrandece,Cercadas com as ondas do Oceano;Todas de tal nobreza e tal valor,Que qualquer delas cuida que melhor 245. 19"Tem o Tarragons, que se fez claroSujeitando Partnope inquieta;O Navarro, as Astrias, que reparoJ foram contra a gente Mahometa;Tem o Galego cauto, e o grande e raroCastelhano, a quem fez o seu PlanetaRestituidor de Espanha e senhor dela,Btis, Lio, Granada, com Castela. 246. 20"Eis aqui, quase cume da cabeaDe Europa toda, o Reino Lusitano,Onde a terra se acaba e o mar comea,E onde Febo repousa no Oceano.Este quis o Cu justo que floresaNas armas contra o torpe Mauritano,Deitando-o de si fora, e l na ardentefrica estar quieto o no consente. 247. 21"Esta a ditosa ptria minha amada,A qual se o Cu me d que eu sem perigoTorne, com esta empresa j acabada,Acabe-se esta luz ali comigo.Esta foi Lusitnia, derivadaDe Luso, ou Lisa, que de Baco antigoFilhos foram, parece, ou companheiros,E nela ento os ncolas primeiros. 248. 22"Desta o pastor nasceu, que no seu nomeSe v que de homem forte os feitos teve;Cuja fama ningum vir que dome,Pois a grande de Roma no se atreve.Esta, o velho que os filhos prprios comePor decreto do Cu, ligeiro e leve,Veio a fazer no mundo tanta parte,Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte: 249. 23"Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,Que fez aos Sarracenos tanta guerra,Que por armas sanguinas, fora e manha,A muitos fez perder a vida o a terra;Voando deste Rei a fama estranhaDo Herculano Calpe Cspia serra,Muitos, para na guerra esclarecer-se,Vinham a ele e morte oferecer-se. 250. 24"E com um amor intrnseco acendidosDa F, mais que das honras populares,Eram de vrias terras conduzidos,Deixando a ptria amada e prprios lares.Depois que em feitos altos e subidosSe mostraram nas armas singulares,Quis o famoso Afonso que obras taisLevassem prmio digno e dons iguais. 251. 25"Destes Anrique, dizem que segundoFilho de um Rei de Ungria exprimentado,Portugal houve em sorte, que no mundoEnto no era ilustre nem prezado;E, para mais sinal damor profundo,Quis o Rei Castelhano, que casadoCom Teresa, sua filha, o Conde fosse;E com ela das terras tornou posse. 252. 26"Este, depois que contra os descendentesDa escrava Agar vitrias grandes teve,Ganhando muitas terras adjacentes,Fazendo o que a seu forte peito deve,Em prmio destes feitos excelentes,Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,Um filho, que ilustrasse o nome ufanoDo belicoso Reino Lusitano. 253. 27"J tinha vindo Anrique da conquistaDa cidade Hieroslima sagrada,E do Jordo a areia tinha vista,Que viu de Deus a carne em si lavada;Que no tendo Gotfredo a quem resista,Depois de ter Judeia sojugada,Muitos, que nestas guerras o ajudaram,Para seus senhorios se tornaram; 254. 28"Quando chegado ao fim de sua idade,O forte e famoso ngaro estremado,Forado da fatal necessidade,O esprito deu a quem lhe tinha dado,Ficava o filho em tenra mocidade,Em quem o pai deixava seu traslado,Que do mundo os mais fortes igualava;Que de tal pai tal filho se esperava. 255. 29"Mas o velho rumor, no sei se errado,Que em tanta antiguidade no h certeza,Conta que a me, tomando todo o estado,Do segundo himeneu no se despreza.O filho rfo deixava deserdado,Dizendo que nas terras a grandezaDo senhorio todo s sua era,Porque, para casar, seu pai lhes dera. 256. 30"Mas o Prncipe Afonso, que desta arteSe chamava, do av tomando o nome,Vendo-se em suas terras no ter parte,Que a me, com seu marido, as manda e come,Fervendo-lhe no peito o duro Marte,Imagina consigo como as tome.Revolvidas as causas no conceito,Ao propsito firme segue o efeito. 257. 31"De Guimares o campo se tingiaCoo sangue prprio da intestina guerra,Onde a me, que to pouco o parecia,A seu filho negava o amor e a terra.Com ele posta em campo j se via;E no v a soberba o muito que erraContra Deus, contra o maternal amor;Mas nela o sensual era maior. 258. 32" Progne crua! mgica Medeia!Se em vossos prprios filhos vos vingaisDa maldade dos pais, da culpa alheia,Olhai que inda Teresa peca mais:Incontinncia m, cobia feia,So as causas deste erro principais:Cila, por uma, mata o velho pai,Esta, por ambas, contra o filho vai. 259. 33"Mas j o Prncipe claro o vencimentoDo padrasto e da inqua me levava;J lhe obedece a terra num momento,Que primeiro contra ele pelejava.Porm, vencido de ira o entendimento,A me em ferros speros atava;Mas de Deus foi vingada em tempo breve:Tanta venerao aos pais se deve! 260. 34"Eis se ajunta o soberbo Castelhano,Para vingar a injria de Teresa,Contra o to raro em gente Lusitano,A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.Em batalha cruel o peito humano,Ajudado da anglica defesa,No s contra tal fria se sustenta,Mas o inimigo asprrimo afugenta. 261. 35"No passa muito tempo, quando o fortePrncipe em Guimares est cercadoDe infinito poder; que desta sorteFoi refazer-se o inimigo magoado;Mas, com se oferecer dura morteO fiel Egas amo, foi livrado;Que de outra arte pudera ser perdido,Segundo estava mal apercebido. 262. 36"lulas o leal vassalo, conhecendoQue seu senhor no tinha resistncia,Se vai ao Castelhano, prometendoQue ele faria dar-lhe obedincia.Levanta o inimigo o cerco horrendo,Fiado na promessa e conscinciaDe Egas Moniz; mas no consente o peitoDo moo ilustre a outrem ser sujeito. 263. 37"Chegado tinha o prazo prometido,Em que o Rei Castelhano j aguardavaQue o Prncipe, a seu mando sometido,Lhe desse a obedincia que esperava.Vendo Egas que ficava fementido,O que dele Castela no cuidava,Determina de dar a doce vidaA troco da palavra mal cumprida. 264. 38"E com seus filhos e mulher se parteA alevantar com eles a fiana,Descalos e despidos, de tal arte,Que mais move a piedade que a vingana.- "Se pretendes, Rei alto, de vingar-teDe minha temerria confiana,Dizia, eis aqui venho oferecidoA te pagar, coa vida, o prometido. 265. 39"Vs aqui trago as vidas inocentesDos filhos sem pecado e da consorte;Se a peitos generosos e excelentes,Dos fracos satisfaz a fera morte.Vs aqui as mos e a lngua delinquentes:Nelas ss exprimenta toda a sorteDe tormentos, de mortes, pelo estiloDe Cnis e do touro de Perilo"! - 266. 40"Qual diante do algoz o condenado,Que j na vida a morte tem bebido,Pe no cepo a garganta, e j entregadoEspera pelo golpe to temido:Tal diante do Prncipe indinado,Egas estava a tudo oferecido.Mas o Rei, vendo a estranha lealdade,Mais pde, enfim, que a ira a piedade. 267. 41" gro fidelidade Portuguesa,De vassalo, que a tanto se obrigava!Que mais o Persa fez naquela empresa,Onde rosto e narizes se cortava?Do que ao grande Dario tanto pesa,Que mil vezes dizendo suspirava,Que mais o seu Zopiro so prezara,Que vinte Babilnias que tomara. 268. 42Mas j o Prncipe Afonso aparelhavaO Lusitano exrcito ditoso,Contra o Mouro que as terras habitavaDalm do claro Tejo deleitoso;J no campo de Ourique se assentavaO arraial soberbo e belicoso,Defronte do inimigo Sarraceno,Posto que em fora e gente to pequeno. 269. 43"Em nenhuma outra cousa confiado,Seno no sumo Deus, que o Cu regia,Que to pouco era o povo batizado,Que para um s cem Mouros haveria.Julga qualquer juzo sossegadoPor mais temeridade que ousadia,Cometer um tamanho ajuntamento,Que para um cavaleiro houvesse cento. 270. 44"Cinco Reis Mouros so os inimigos,Dos quais o principal Ismar se chama;Todos exprimentados nos perigosDa guerra, onde se alcana a ilustre fama.Seguem guerreiras damas seus amigos,Imitando a formosa e forte Dama,De quem tanto os Troianos se ajudaram,E as que o Termodonte j gostaram. 271. 45"A matutina luz serena e fria,As estrelas do Plo j apartava,Quando na Cruz o Filho de Maria,Amostrando-se a Afonso, o animava.Ele, adorando quem lhe aparecia,Na F todo inflamado assim gritava:- "Aos infiis, Senhor, aos infiis,E no a mim, que creio o que podeis!" 272. 46"Com tal milagre os nimos da gentePortuguesa inflamados, levantavamPor seu Rei natural este excelentePrncipe, que do peito tanto amavam;E diante do exrcito potenteDos imigos, gritando o cu tocavam,Dizendo em alta voz: - "Real, real,Por Afonso alto Rei de Portugal." 273. 47"Qual coos gritos e vozes incitado,Pela montanha o rbido Moloso,Contra o touro remete, que fiadoNa fora est do corno temeroso:Ora pega na orelha, ora no lado,Latindo mais ligeiro que foroso,At que enfim, rompendo-lhe a garganta,Do bravo a fora horrenda se quebranta: 274. 48"Tal do Rei novo o estmago acendidoPor Deus e pelo povo juntamente,O Brbaro comete apercebido,Coo animoso exrcito rompente.Levantam nisto os perros o alaridoDos gritos, tocam a arma, ferve a gente,As lanas e arcos tomam, tubas soam,Instrumentos de guerra tudo atroam. 275. 49"Bem como quando a flama, que ateadaFoi nos ridos campos (assoprandoO sibilante Breas) animadaCoo vento, o seco mato vai queimando;A pastoral companha, que deitadaCoo doce sono estava, despertandoAo estridor do fogo que se ateia,Recolhe o fato, e foge para a aldeia: 276. 50"Desta arte o Mouro atnito e torvado,Toma sem tento as armas mui depressa;No foge; mas espera confiado,E o ginete belgero arremessa.O Portugus o encontra denodado,Pelos peitos as lanas lhe atravessa:Uns caem meios mortos, e outros voA ajuda convocando do Alcoro. 277. 51"Ali se vem encontros temerosos,Para se desfazer uma alta serra,E os animais correndo furiososQue Neptuno amostrou ferindo a terra.Golpes se do medonhos e forosos;Por toda a parte andava acesa a guerra:Mas o de Luso arns, couraa e malhaRompe, corta, desfaz, abola e talha. 278. 52"Cabeas pelo campo vo saltandoBraos, pernas, sem dono e sem sentido;E doutros as entranhas palpitando,Plida a cor, o gesto amortecido.J perde o campo o exrcito nefando;Correm rios de sangue desparzido,Com que tambm do campo a cor se perde,Tornado carmesi de branco e verde. 279. 53"J fica vencedor o Lusitano,Recolhendo os trofus e presa rica;Desbaratado e roto o Mauro Hispano,Trs dias o gro Rei no campo fiei.Aqui pinta no branco escudo ufano,Que agora esta vitria certifica,Cinco escudos azuis esclarecidos,Em sinal destes cinco Reis vencidos, 280. 54"E nestes cinco escudos pinta os trintaDinheiros por que Deus fora vendido,Escrevendo a memria em vria tinta,Daquele de quem foi favorecido. Em cada unidos cinco, cinco pinta,Porque assim fica o nmero cumprido,Contando duas vezes o do meio,Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio. 281. 55"Passado j algum tempo que passadaEra esta gro vitria, o Rei subidoA tomar vai Leiria, que tomadaFora, mui pouco havia, do vencido.Com esta a forte Arronches sojugadaFoi juntamente, e o sempre enobrecidoScalabicastro, cujo campo ameno,Tu, claro Tejo, regas to sereno. 282. 56"A estas nobres vilas sometidas,Ajunta tambm Mafra, em pouco espao,E nas serras da Lua conhecidas,Sojuga a fria Sintra o duro brao;Sintra, onde as Naiades, escondidasNas fontes, vo fugindo ao doce lao,Onde Amor as enreda brandamente,Nas guas acendendo fogo ardente. 283. 57"E tu, nobre Lisboa, que no MundoFacilmente das outras s princesa,Que edificada foste do facundo,Por cujo engano foi Dardnia acesa;Tu, a quem obedece o mar profundo,Obedeceste fora Portuguesa,Ajudada tambm da forte armada,Que das Boreais partes foi mandada. 284. 58"L do Germnico Albis, e do Rene,E da fria Bretanha conduzidos,A destruir o povo Sarraceno,Muitos com tenso santa eram partidos.Entrando a boca j do Tejo ameno,Coo arraial do grande Afonso unidos, Cuja altafama ento subia aos Cus,Foi posto cerco tos muros Ulisseus. 285. 59"Cinco vezes a Lua se escondera,E outras tantas mostrara cheio o rosto,Quando a cidade entrada se renderaAo duro cerco, que lhe estava posto.Foi a batalha to sanguina e fera,Quanto obrigava o firme pressupostoDe vencedores speros e ousados,E de vencidos j desesperados. 286. 60"Desta arte enfim tomada se rendeuAquela que, nos tempos j passados,A grande fora nunca obedeceuDos frios povos Cticos ousados,Cujo poder a tanto se estendeuQue o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;E enfim coo Btis tanto alguns puderamQue terra de Vandlia nome deram. 287. 61"Que cidade to forte por venturaHaver que resista, se LisboaNo pde resistir fora duraDa gente, cuja fama tanto voa?J lhe obedece toda a Estremadura,bidos, Alenquer, por onde soaO tom das frescas guas, entre as pedras,Que murmurando lava, e Torres Vedras. 288. 62"E vs tambm, terras Transtaganas,Afamadas coo dom da flava Ceres,Obedeceis s foras mais que humanas,Entregando-lhe os muros e os poderes.E tu, lavrador Mouro, que te enganas,Se sustentar a frtil terra queres;Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas,E Alccere-do-Sal esto rendidas. 289. 63"Eis a nobre Cidade, certo assentoDo rebelde Sertrio antigamente,Onde ora as guas ntidas de argentoVem sustentar de longo a terra e a gente,Pelos arcos reais, que cento e centoNos ares se alevantam nobremente,Obedeceu por meio e ousadiaDe Giraldo, que medos no temia. 290. 64"J na cidade Beja vai tomarVingana de Trancoso destrudaAfonso, que no sabe sossegar,Por estender coa fama a curta vida.No se lhe pode muito sustentarA cidade; mas sendo j rendida,Em toda a cousa viva a gente iradaProvando os fios vai da dura espada. 291. 65"Com estas sojugada foi Palmela,E a piscosa Cezimbra, e juntamente,Sendo ajudado mais de sua estrela,Desbarata um exrcito potente:Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela,Que a socorr-la vinha diligentePela fralda da serra, descuidadoDo temeroso encontro inopinado. 292. 66"O Rei de Badajoz era alto Mouro,Com quatro mil cavalos furiosos,Inmeros pees, darmas e de ouroGuarnecidos, guerreiros e lustrosos.Mas, qual no ms de Maio o bravo touro,Coos cimes da vaca, arreceosos,Sentindo gente o bruto e cego amanteSalteia o descuidado caminhante: 293. 67"Desta arte Afonso sbito mostradoNa gente d, que passa bem segura,Fere, mata, derriba denodado;Foge o Rei Mouro, e s da vida cura.Dum pnico terror todo assombrado,S de segui-lo o exrcito procura;Sendo estes que fizeram tanto abaloNo mais que s sessenta de cavalo. 294. 68"Logo segue a vitria sem tardanaO gro Rei incansbil, ajuntandoGentes de todo o Reino, cuja usanaEra andar sempre terras conquistando.Cercar vai Badajoz, e logo alcanaO fim de seu desejo, pelejandoCom tanto esforo, e arte, e valentia,Que a fez fazer s outras companhia. 295. 69"Mas o alto Deus, que para longe guardaO castigo daquele que o merece,Ou, para que se emende, s vezes tarda,Ou por segredos que homem no conhece,Se at que sempre o forte Rei resguardaDos perigos a que ele se oferece;Agora lhe no deixa ter defesaDa maldio da me que estava presa. 296. 70"Que estando na cidade, que cercara,Cercado nela foi dos Lioneses,Porque a conquista dela lhe tomara,De Lio sendo, e no dos Portugueses.A pertincia aqui lhe custa cara,Assim como acontece muitas vezes,Que em ferros quebra as pernas, indo acesoA batalha, onde foi vencido e preso. 297. 71" famoso Pompeio, no te peneDe teus feitos ilustres a runa, Nem ver que ajusta Nmesis ordeneTer teu sogro de ti vitria dina,Posto que o frio Fsis, ou Siene,Que para nenhum cabo a sombra inclina,O Bootes gelado e a linha ardente,Temessem o teu nome geralmente. 298. 72"Posto que a rica Arbia e que os ferozesEnocos e Colcos, cuja famaO Vu dourado estende, e os Capadoces,E Judeia, que um Deus adora e ama,E que os moles Sofenos, e os atrocesCilcios, com a Armnia, que derramaAs guas dos dous rios, cuja fonteEst noutro mais alto e santo monte; 299. 73"E posto enfim que desde o mar de AtlanteAt o Ctico Tauro monte erguido,J vencedor te vissem, no te espantoSe o campo Emtio s te viu vencido,Porque Afonso vers, soberbo e ovante,Tudo render-se ser depois rendido.Assim o quis o conselho alto e celeste,Que vena o sogro a ti, e o genro a este. 300. 74"Tornado o Rei sublime finalmente,Do divino Juzo castigado,Depois que em Santarm soberbamenteEm vo dos Sarracenos foi cercado,E depois que do mrtire VicenteO santssimo corpo veneradoDo Sacro Promontrio conhecidoA cidade Ulisseia foi trazido; 301. 75"Porque levasse avante seu desejo,Ao forte filho manda o lasso velhoQue s terras se passasse dAlentejo,Com gente e coo belgero aparelho.Sancho, desforo o dnimo sobejo,Avante passa, e faz correr vermelhoO rio que Sevilha vai regando,Coo sangue Mauro, brbaro e nefando. 302. 76"E com esta vitria cobioso,J no descansa o moo at que vejaOutro estrago como este, temeroso,No Brbaro que tem cercado Beja.No tarda muito o Prncipe ditosoSem ver o fim daquilo que deseja.Assim estragado o Mouro, na vinganaDe tantas perdas pe sua esperana. 303. 77"J se ajuntam do monte a quem MedusaO corpo fez perder, que teve o Cu;J vem do promontrio de AmpelusaE do Tinge, que assento foi de Anteu.O morador de Abila no se escusa,Que tambm com suas armas se moveu,Ao som da Mauritana e ronca tuba,Todo o Reino que foi do nobre Juba. 304. 78"Entrava com toda esta companhiaO Miralmomini em Portugal;Treze Reis mouros leva de valia,Entre os quais tem o ceptro imperial;E assim fazendo quanto mal podia,O que em partes podia fazer mal,Dom Sancho vai cercar em Santarm;Porm no lhe sucede muito bem. 305. 79"D-lhe combates speros, fazendoArdis de guerra mil o Mouro iroso;No lhe aproveita j trabuco horrendo,Mina secreta, arete foroso:Porque o filho de Afonso no perdendoNada do esforo e acordo generoso,Tudo prov com nimo e prudncia;Que em toda a parte h esforo e resistncia. 306. 80"Mas o velho, a quem tinham j obrigadoOs trabalhosos anos ao sossego,Estando na cidade, cujo pradoEnverdecem as guas do Mondego,Sabendo como o filho est cercadoEm Santarm do Mauro povo cego,Se parte diligente da cidade;Que no perde a presteza coa idade. 307. 81"E coa famosa gente guerra usadaVai socorrer o filho; e assim ajuntados,A Portuguesa fria costumadaEm breve os Mouros tem desbaratados.A campina, que toda est coalhadaDe marlotas, capuzes variados,De cavalos, jaezes, presa rica,De seus senhores mortos cheia fica. 308. 82"Logo todo o restante se partiuDe Lusitnia, postos em fugida;O Miralmomini s no fugiu,Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.A quem lhe esta vitria permitiuDo louvores e graas sem medida:Que em casos to estranhos claramenteMais peleja o favor de Deus que a gente. 309. 83"De tamanhas vitrias triunfavaO velho Afonso , Prncipe subido,Quando, quem tudo enfim vencendo andava,Da larga e muita idade foi vencido.A plida doena lhe tocavaCom fria mo o corpo enfraquecido;E pagaram seus anos deste jeitoA triste Libitina seu direito. 310. 84"Os altos promontrios o choraram,E dos rios as guas saudosasOs semeados campos alagaramCom lgrimas correndo piedosas.Mas tanto pelo mundo se alargaramCom faina suas obras valerosas,Que sempre no seu Reino chamaro"Afonso, Afonso" os ecos, mas em vo. 311. 85"Sancho, forte mancebo, que ficaraImitando seu pai na valentia,E que em sua vida j se exprimentara,Quando o Btis de sangue se tingia,E o brbaro poder desbarataraDo Ismaelita Rei de Andaluzia;E mais quando os que Beja em vo cercaram,Os golpes de seu brao em si provaram; 312. 86"Depois que foi por Rei alevantado,Havendo poucos anos que reinava,A cidade de Silves tem cercado,Cujos campos o brbaro lavrava.Foi das valentes gentes ajudadoDa Germnica armada que passava,De armas fortes e gente apercebida,A recobrar Judeia j perdida. 313. 87"Passavam a ajudar na santa empresaO roxo Federico, que moveuO poderoso exrcito em defesaDa cidade onde Cristo padeceu,Quando Guido, coa gente em sede acesa,Ao grande Saladino se rendeu,No lugar onde aos Mouros sobejavamAs guas que os de Guido desejavam. 314. 88"Mas a formosa armada, que vieraPor contraste de vento quela parte,Sancho quis ajudar na guerra fera,J que em servio vai do santo Marte.Assim como a seu pai aconteceraQuando tomou Lisboa, da mesma arteDo Germano ajudado Silves toma,E o bravo morador destrue e doma. 315. 89"E se tantos trofus do MahometaAlevantando vai, tambm do forteLions no consente estar quietaA terra, usada aos casos de Mavorte,At que na cerviz seu jugo metaDa soberba Tui, que a mesma sorteViu ter a muitas vilas suas vizinhas,Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas. 316. 90"Mas entre tantas palmas salteadoDa temerosa morte, fica herdeiroUm filho seu, de todos estimado,Que foi segundo Afonso, e Rei terceiro.No tempo deste, aos Mouros foi tomadoAlccere-do-Sal por derradeiro;Porque dantes os Mouros o tomaram,Mas agora estrudos o pagaram. 317. 91"Morto depois Afonso, lhe sucedeSancho segundo, manso e descuidado,Que tanto em seus descuidos se desmede,Que de outrem, quem mandava, era mandado.De governar o Reino, que outro pede,Por causa dos privados foi privado,Porque, como por eles se regia,Em todos os seus vcios consentia. 318. 92"No era Sancho, no, to desonestoComo Nero, que um moo recebiaPormulher, e depois horrendo incestoCom a me Agripina cometia;Nem to cruel s gentes e molesto,Que a cidade queimasse onde vivia,Nem to mau como foi Heliogabalo,Nem como o mole Rei Sardanapalo. 319. 93"Nem era o povo seu tiranizado,Como Siclia foi de seus tiranos;Nem tinha como Flaris achadoGnero de tormentos inumanos;Mas o Reino, de altivo e costumadoA senhores em tudo soberanos,A Rei no obedece, nem consente,Que no for mais que todos excelente. 320. 94"Por esta causa o Reino governouO Conde Bolonhs, depois aladoPor Rei, quando da vida se apartouSeu irmo Sancho, sempre ao cio dado.Este, que Afonso o bravo, se chamou,Depois de ter o Reino segurado,Em dilat-lo cuida, que em terrenoNo cabe o altivo peito, to pequeno. 321. 95"Da terra dos Algarves, que lhe foraEm casamento dada, grande parteRecupera coo brao, e deita foraO Mouro, mal querido j de Marte.Este de todo fez livre e senhoraLusitnia, com fora e blica arte;E acabou de oprimir a nao forte,Na terra que aos de Luso coube em sorte. 322. 96"Eis depois vem Dinis, que bem pareceDo bravo Afonso estirpe nobre e dina,Com quem a fama grande se escureceDa liberalidade Alexandrina. Com este oReino prspero florece(Alcanada j a paz urea divina)Em constituies, leis e costumes,Na terra j tranquila claros lumes. 323. 97"Fez primeiro em Coimbra exercitar-seO valeroso ofcio de Minerva;E de Helicona as Musas fez passar-seA pisar do Monde-o a frtil erva.Quanto pode de Atenas desejar-se,Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.Aqui as capelas d tecidas de ouro,Do bcaro e do sempre verde louro. 324. 98"Nobres vilas de novo edificouFortalezas, castelos mui seguros,E quase o Reino todo reformouCom edifcios grandes, e altos muros.Mas depois que a dura tropos cortouO fio de seus dias j maduros,Ficou-lhe o filho pouco obediente,Quarto Afonso, mas forte e excelente. 325. 99"Este sempre as soberbas CastelhanasCoo peito desprezou firme e sereno,Porque no das foras Lusitanas,Temer poder maior, por mais pequeno.Mas porm, quando as gentes Mauritanas,A possuir o Hesprico terrenoEntraram pelas terras de Castela,Foi o soberbo Afonso a socorr-la. 326. 100"Nunca com Semirmis gente tantaVeio os campos idspicos enchendo,Nem Atila, que Itlia toda espanta,Chamando-se de Deus aoute horrendo,Gtica gente trouxe tanta, quantaDo Sarraceno brbaro estupendo, Coo poderexcessivo de Granada,Foi nos campos Tartsios ajuntada. 327. 101"E vendo o Rei sublime CastelhanoA fora inexpugnbil, grande e forte,Temendo mais o fim do povo hispano,J perdido uma vez, que a prpria morte,Pedindo ajuda ao forte Lusitano,Lhe mandava a carssima consorte,Mulher de quem a manda, e filha amadaDaquele a cujo Reino foi mandada. 328. 102"Entrava a formosssima MariaPelos paternais paos sublimados,Lindo o gesto, mas fora de alegria,E seus olhos em lgrimas banhados;Os cabelos anglicos traziaPelos ebrneos ombros espalhados:Diante do pai ledo, que a agasalha,Estas palavras tais, chorando, espalha: 329. 103- "Quantos povos a terra produziuDe frica toda, gente fera e estranha,O gro Rei de Marrocos conduziuPara vir possuir a nobre Espanha:Poder tamanho junto no se viu,Depois que o salso mar a terra banha.Trazem ferocidade, e furor tanto,Que a vivos medo, e a mortos faz espanto. 330. 104- "Aquele que me deste por marido,Por defender sua terra amedrontada,Coo pequeno poder, oferecidoAo duro golpe est da Maura espada;E se no for contigo socorrido,Ver-me-s dele e do Reino ser privada,Viva e triste, e posta em vida escura,Sem marido, sem Reino, e sem ventura. 331. 105"Portanto, Rei, de quem com puro medoO corrente Muluca se congela,Rompe toda a tardana, acude cedoA miseranda gente de Castela.Se esse gesto, que mostras claro e ledo,De pai o verdadeiro amor assela,Acude e corre, pai, que se no corres,Pode ser que no aches quem socorres." 332. 106"No de outra sorte a tmida MariaFalando est, que a triste Vnus, quandoA Jpiter, seu pai, favor pediaPara Eneias, seu filho, navegando;Que a tanta piedade o comoviaQue, cado das mos o raio infando,Tudo o