os jogos tradicionais infantis na educaÇÃo ... - … · os jogos tradicionais infantis na...

26
OS JOGOS TRADICIONAIS INFANTIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR Evandro Spironello de Miranda 1 Fernando Donizete Alves (O) 2 Resumo O presente estudo tem como objetivo descrever e analisar o jogo na Educação Física Escolar, para que sejam compreendidos seus significados e viabilizado sua aplicação sistematizada. Desde os primeiros anos da Educação Física Escolar no Brasil, o jogo tem sido um conteúdo utilizado como prática pedagógica e isso parece ter sido intensificado com o passar do tempo. Apesar de diferentes abordagens justificarem sua importância, usa-se o jogo de modo indiscriminado devido ao fascínio que ele proporciona aos alunos. Com isso, realizamos uma revisão da literatura para entender algumas idéias que permeiam o jogo. Sendo assim, entende-se que o jogo possui uma grande relação com aspectos socioculturais, o que o torna um fenômeno histórico e cultural fazendo sua presença dentro da escola indispensável e consequentemente constituindo um instrumento pedagógico de grande valor no ambiente escolar, proporcionando vivências e experimentações variadas, pois assim como sua importância é inegável os benefícios atribuídos a ele também, já que colaboram com o desenvolvimento infantil de forma singular, atingindo todas as dimensões do comportamento humano. É neste sentido que, a Educação Física Escolar está inserida diante de tanta importância, enquanto área de conhecimento tendo como especificidade tratar dos temas da cultura corporal dentre os quais encontra-se o jogo, proporcionando ao mesmo um sentido sócio- cultural através dos jogos e brincadeiras tradicionais e não apenas como desenvolvimento de determinadas habilidades técnicas ou gesto motor. Palavras Chaves: Educação Física, Educação Física Escolar e Jogos Tradicionais Infantis. Abstract The present study has as objective describes and to analyze the game in the School physical education, so that your meanings are understood and made possible your systematized application. Since the first years of the School physical education in Brazil, the game has been a content used as pedagogic practice and that seems it was intensified in the course of time. In spite of different approaches they justify your importance, the game in an indiscriminate way is used due to the fascination that he provides to the students. With that, we accomplished a revision of the literature to understand some ideas that permeate the game. Being like this, he/she understands each other that the game possesses a great relationship with sociocultural aspects, what turns him/it a historical and cultural phenomenon making your presence inside of the indispensable school and consequently constituting a pedagogic instrument of great value in the school atmosphere, providing existences and varied experimentations, because as well as your importance it is undeniable the benefits also attributed to him, since they collaborate with the infantile development in a singular way, reaching all the dimensions of the human behavior. It is in this sense that, the School physical education is inserted before so much importance, while knowledge area tends as i specify to treat of the themes of the corporal culture among which he/she is the game, providing to the even a partner-cultural sense through the games and traditional games and I don't just eat development certain technical abilities or motor gesture. Key words: School physical education and Traditional Games Children. 1 Professor de Educação Física da Rede Particular de Piracicaba; aluno do III Curso de Especialização em Educação Física Escolar do DEFMH/UFSCar. 2 Professor do DEFM/UFSCar.

Upload: vandang

Post on 06-Nov-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

OS JOGOS TRADICIONAIS INFANTIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Evandro Spironello de Miranda1

Fernando Donizete Alves (O)2

Resumo O presente estudo tem como objetivo descrever e analisar o jogo na Educação Física Escolar, para que sejam compreendidos seus significados e viabilizado sua aplicação sistematizada. Desde os primeiros anos da Educação Física Escolar no Brasil, o jogo tem sido um conteúdo utilizado como prática pedagógica e isso parece ter sido intensificado com o passar do tempo. Apesar de diferentes abordagens justificarem sua importância, usa-se o jogo de modo indiscriminado devido ao fascínio que ele proporciona aos alunos. Com isso, realizamos uma revisão da literatura para entender algumas idéias que permeiam o jogo. Sendo assim, entende-se que o jogo possui uma grande relação com aspectos socioculturais, o que o torna um fenômeno histórico e cultural fazendo sua presença dentro da escola indispensável e consequentemente constituindo um instrumento pedagógico de grande valor no ambiente escolar, proporcionando vivências e experimentações variadas, pois assim como sua importância é inegável os benefícios atribuídos a ele também, já que colaboram com o desenvolvimento infantil de forma singular, atingindo todas as dimensões do comportamento humano. É neste sentido que, a Educação Física Escolar está inserida diante de tanta importância, enquanto área de conhecimento tendo como especificidade tratar dos temas da cultura corporal dentre os quais encontra-se o jogo, proporcionando ao mesmo um sentido sócio-cultural através dos jogos e brincadeiras tradicionais e não apenas como desenvolvimento de determinadas habilidades técnicas ou gesto motor. Palavras Chaves: Educação Física, Educação Física Escolar e Jogos Tradicionais Infantis. Abstract The present study has as objective describes and to analyze the game in the School physical education, so that your meanings are understood and made possible your systematized application. Since the first years of the School physical education in Brazil, the game has been a content used as pedagogic practice and that seems it was intensified in the course of time. In spite of different approaches they justify your importance, the game in an indiscriminate way is used due to the fascination that he provides to the students. With that, we accomplished a revision of the literature to understand some ideas that permeate the game. Being like this, he/she understands each other that the game possesses a great relationship with sociocultural aspects, what turns him/it a historical and cultural phenomenon making your presence inside of the indispensable school and consequently constituting a pedagogic instrument of great value in the school atmosphere, providing existences and varied experimentations, because as well as your importance it is undeniable the benefits also attributed to him, since they collaborate with the infantile development in a singular way, reaching all the dimensions of the human behavior. It is in this sense that, the School physical education is inserted before so much importance, while knowledge area tends as i specify to treat of the themes of the corporal culture among which he/she is the game, providing to the even a partner-cultural sense through the games and traditional games and I don't just eat development certain technical abilities or motor gesture. Key words: School physical education and Traditional Games Children.

1 Professor de Educação Física da Rede Particular de Piracicaba; aluno do III Curso de Especialização em Educação Física Escolar do DEFMH/UFSCar. 2 Professor do DEFM/UFSCar.

171

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho começa a ser elaborado a partir do aprofundamento das teorias

relacionadas à temática do jogo, juntamente com a experiência docente, atuando há quatro anos

como professor de Educação Física na educação básica, ajudando a afirmar a presença do jogo nas

mais diversas faixas etárias.

Antes de se realizar uma abordagem sobre as diferentes idéias de jogo e suas

possibilidades no âmbito escolar, pretende-se definir que sentido será dado a esta palavra.

O termo “jogo” será entendido de uma forma ampla e genérica, com mesmo sentido

de brincar, brincadeira, brinquedo e lúdico. Buscando apoio nos estudos de Negrine (1994), temos

que o termo jogo é de utilização universal, inclusive nos estudos relacionados com as atividades

lúdicas da infância. Sendo assim, o termo jogo será utilizado no texto como sinônimo ao brincar

lúdico.

Dessa forma, a prática de atividade lúdica por crianças em fase escolar, permite

observar que os significados, ritos, valores e número de participantes são elementos passíveis de

alteração, mas a busca pelo jogo mostra-se uma constante. A medida em que se constata a

fascinação das crianças pelo jogo criam-se algumas inferências que motivaram a realização desse

trabalho.

A primeira delas é que o ser humano é de fato um apaixonado pelo jogo, como

Huizinga (2005) já expôs de maneira muito mais complexa, de modo que seu possível afastamento

do lúdico em idades mais avançadas se dá pela imperiosidade das demandas da existência em

distintos momentos da vida e não por um desinteresse das práticas. Afinal, diferentemente das

obrigações, o jogo nem sempre permite uma linearidade.

A segunda é a grande contribuição que o jogo pode representar para a Educação, pela

enorme motivação que leva ao aprendizado. Pode-se nesse momento apelar para o idealismo e dizer

que o jogo deveria ser mais respeitado dentro da sociedade como um todo, em suas diversas

práticas, nas diferentes faixas etárias, mas isso demandaria uma análise mais complexa e apurada

dos imbricados mecanismos da sociedade contemporânea, o que não é objetivo desse trabalho.

As percepções que se tem com essas observações podem não representar uma grande

novidade para alguns estudiosos do assunto, mas a convicção da importância dessas práticas para

diferentes populações traz uma imensa motivação para o aprofundamento da compreensão do

lúdico. Acredita-se que o entendimento e o compartilhar do conhecimento das diversas reações que

as crianças apresentam na prática de um jogo podem ajudar muito a atividade de lecionar.

Dessa maneira, o trabalho procura ter uma compreensão mais aprofundada do

fenômeno jogo e a sua relação com a cultura (capítulo 1); em um segundo momento, será discutida

a relação do jogo com o processo de ensino-aprendizagem, sob a ótica da teoria de Vigotsky

172

(capítulo 2), e por fim dialogar sobre o jogo no âmbito da Educação Física Escolar, analisando

documentos oficiais que permeiam a área, concepções pedagógicas que subsidiam as práticas e

possibilidades do jogo nas aulas, em especifico os jogos tradicionais infantis (capitulo 3).

Portanto, o presente estudo tem como objetivo por meio de uma pesquisa

bibliográfica descrever e analisar os Jogos Tradicionais Infantis na Educação Física Escolar, para

que sejam determinados seus significados e viabilizado sua aplicação sistematizada.

2 EM QUE LUGAR O JOGO ACONTECE?

Chegando em uma sala de aula de uma turma do ensino fundamental (1) ao

acompanhá-los até a aula de Educação Física na quadra, é fácil perceber a vivência dos jogos por

toda parte: alguns brincam de figurinhas; outros se desafiam no braço de ferro; as meninas trocam

palmas no famoso adoletá; outros fazem do lixo uma cesta de basquetebol improvisado que aos

poucos acaba se transformando numa batalha maluca de papéis.

Ao deparar-me diante dessa situação e realizar a intervenção a fim de restabelecer a

calma, realiza-se o registro da chamada e em seguida temos uma rápida explanação sobre as

atividades a serem realizadas naquela aula, logo em seguida outros jogos são iniciados

imediatamente: a disputa para ver quem chega primeiro na quadra (mesmo sob meus alertas para

que não corram na escada), o pega-pega ou o futebol com latinhas amassadas realizados na quadra

até a minha chegada.

É diante de toda essa situação não resta nenhuma dúvida de que o jogo está

constantemente presente na vida dessas crianças, porém surgem algumas questões, como: “Por que

isto acontece?”.

Será que é uma simples busca do prazer, na qual o ser humano mostra-se realmente

insaciável, sendo talvez esse o maior desafio na prática educacional: ensinar as crianças a controlar

os seus desejos? Não se pode esquecer que a busca pelo prazer não se limita à prática de jogos.

Sabe-se que são diversos os meios para se chegar a estados de excitação que não o lúdico. Tal

procura pode ser mais intensificada na fase adulta, como a busca pelo sexo, as drogas, o

consumismo, ações que proporcionam diferentes sensações de gozo.

Seria possível dizer que o jogo é meio de fuga de uma realidade opressora que obriga

as crianças a aprenderem conteúdos que não condizem com sua realidade? Entre as muitas

determinações que as crianças encontram em seu cotidiano escolar que geram desconforto,

podemos citar a “ordem estática” à qual elas estão submetidas, em nome da disciplina e das normas

vigentes, que as obrigam a permanecerem sentadas por cinco horas quase ininterruptas. Então, não é

difícil entender que o jogo seja visto como uma forma de liberdade. Além disso, o controle

173

exacerbado do corpo favorece a busca do jogo na procura pelo movimento, ainda que nem todos os

jogos caracterizem-se por uma grande demanda de movimentação (FREIRE, 2005).

Embora seja inegável a busca pelo jogo, as causas ou motivações que desencadeiam

essa procura podem ter razões e origens muito diversificadas. Apesar de o jogo estar presente em

diversas sociedades e épocas distintas, ainda hoje não se sabe ao certo qual sua origem, mas as

dinâmicas sociais de distintos momentos históricos imprimiram suas marcas em seus praticantes.

Não há um consenso na literatura quanto à constituição do jogo dar-se enquanto um

elemento cultural ou natural (biológico), devido à sua complexidade de prática entre as sociedades

de diversas épocas. Para Bruhns (1999), a causa que leva à busca pelo jogo e os valores que lhe são

atribuídos parecem ser bastante heterogêneos e variável de acordo com a cultura e tempo em que

estão presentes, dificultando uma definição sobre o ambiente do jogo.

Embora acreditemos que o ambiente do jogo seja plural, o objetivo deste trabalho é

compreender o significado do jogo e suas possibilidades na Educação Física Escolar. Para tanto,

serão feitas reflexões quanto à origem do jogo no universo infantil (compreensão necessária para

perceber a sua evolução e como se manifesta na infância) a partir de Huizinga (2005); Geertz

(1989) e o jogo como elemento cultural (para compreender a influência mútua que os dois

elementos proporcionam nos diversos ambientes e principalmente na infância), conforme Geertz

(1989); Brougère (1997); Huizinga (2005); Valsiner (1988).

2.1 A Origem do Jogo no Universo Infantil

O primeiro contato com o jogo se dá ainda no início da infância, quando a criança

encontra-se em um momento de incessante investigação do ambiente, na busca da modificação

desse meio, por meio de brinquedos, brincadeiras, jogos ou simplesmente pela manipulação de

objetos. Nota-se que entre tantos motivos que podem levar o homem a buscar o jogo, a formação de

sua própria cultura surge como elemento fundamental (HUIZINGA, 2005). É possível perceber

nesse momento uma formação complementar do homem proporcionada pelo encontro entre a sua

natureza, caracterizada por sua forma física, seus instintos e sentimentos e a sua cultura,

estabelecida por meio de valores (éticos, morais, estéticos), ritos e regras presentes dentro do

ambiente em que ele convive.

De acordo com Geertz (1989), o homem é o único animal que se apresenta com uma

gestação incompleta, ou seja, que não apresenta ao nascer um desenvolvimento motor e cognitivo

tão amplo quanto outros mamíferos. Além disso, seu pleno desenvolvimento é caracterizado por um

período muito mais longo em relação aos demais animais. A necessidade de uma complementação

só seria possível por meio das relações sociais, ou seja, a “segunda gestação” seria fruto da inserção

174

cultural que pode representar, desde a educação, costumes e valores da sociedade até mesmo a

prática de jogos.

Em seu Homo Ludens, Huizinga (2005), já traz no título do livro uma nova forma de

designação do homem ao apresentar a diversidade de esferas em que as atividades lúdicas podem

ser contextualizadas, não se restringindo apenas ao período da infância, mas ao ser humano em

todas as faixas etárias. O autor aponta o jogo como um elemento da cultura, de forma que se pode

criar uma série de critérios na diferenciação de sua prática, que pode ser representada pelo local em

que é realizada, a pessoa envolvida (desde a diferenciação de faixas etárias até questões sócio-

econômicas), e as questões religiosas.

Assim, ao abordar o jogo como elemento cultural, é possível compreender que seus

valores e significados podem ser completamente distintos em duas sociedades diferentes.

São muitas as funções representadas pelo jogo dentro de uma sociedade, enquanto

um elemento cultural. Dentre elas pode-se observar a formação da identidade entre os praticantes de

uma mesma atividade, exemplificado na formação de clubes e associações, formados a partir da

criação de grupos que buscam a sensação de estarem ‘separadamente juntos’, por se identificarem

em uma aliança de uma mesma ‘sociedade lúdica’ (HUIZINGA, 2005).

Embora seja indiscutível a condição cultural do jogo, o autor assume também sua

essência natural ao afirmar que “os próprios animais brincam tal como os homens. Bastará que

observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes

todos os elementos essenciais do jogo humano” (HUIZINGA, 2005).

Em síntese, com essas considerações buscou-se elucidar as premissas do

comportamento lúdico, a fim de compreender como tal fenômeno desencadeia do ponto de vista

natural e cultural, sendo este último a ser especificamente discutido no próximo tema.

2.2 O Jogo como Elemento Cultural

A relação do jogo com a cultura, aparentemente óbvia, chamou a atenção dos

estudiosos da área, sendo desenvolvida primeiro na Antropologia e na História, como demonstram

os trabalhos de Brougère (1997), Huizinga (2005), Caillois (1990) e Ariès (1978). Antropólogos

que não tinham como foco o estudo do jogo e da brincadeira acabaram por contribuir com suas

visões de cultura para o estudo do lúdico em diferentes contextos culturais.

Acredita-se que a relação jogo-cultura se dá em diversos planos (psicológico, social,

político, cultural, filosófico e histórico), todos ocorrendo simultaneamente e, principalmente, se

interpenetrando.

Diante de algumas idéias expostas por teóricos da área, a concepção de cultura

exposta por Valsiner (1988), outras, como a de Oliveira (1986), discutem a cultura do jogo como

175

subproduto da indústria cultural, ancorada na teoria crítica e no marxismo. No entanto, durante essa

revisão bibliográfica, o enfoque principal será a criança em interação com seu meio, sua atividade

lúdica, assim como qualquer outra atividade desenvolvida por ela, é fruto do seu meio histórico-

cultural, mesmo quando não há diferenciação explícita entre brincadeira, brinquedo e jogo, estas

atividades são colocadas como pertencentes a uma mesma categoria: a infância.

Os trabalhos de Fantin (1996) e Oliveira (1986) merecem maior atenção por

realizarem uma discussão assentada na relação criança-brinquedo/jogo-escola-tevê. Fantin (1996)

ocupa-se de trabalhar a relação jogo-escola, buscando pesquisar os limites e aplicações do jogo na

educação infantil a partir de um enfoque psicopedagógico, valendo-se dos trabalhos de Kishimoto e

Brougére sobre o tema. Já Oliveira (1986) assenta sua discussão acerca da relação criança-indústria

cultural, com o brinquedo sendo encarado como mercadoria, perdendo suas características lúdicas e

adentrando no mundo do valor de troca, próprio do modo de produção capitalista.

Dessa forma, se faz necessário ampliar o conceito da palavra cultura, a fim de

compreender os envoltos que constituem a estrutura da sociedade contemporânea em relação ao

jogo, sendo assim, Valsiner (1988), refere-se à cultura como uma organização estrutural de normas

sociais, rituais, regras de conduta e sistemas de significado compartilhados pelas pessoas que

pertencem a um certo grupo etnicamente homogêneo.

Já para Geertz (1989), o conceito de cultura deve ser eminentemente semiótico; a

cultura deve ser entendida como uma “teia de significados que o indivíduo mesmo teceu”.

Deste modo, as crianças entram em contato o tempo todo durante o jogo, com signos

produzidos pela cultura à qual pertencem. Para Brougére (1997), a brincadeira de casinha, os

brinquedos de guerra, os heróis da televisão ou a sandalinha da dançarina de axé, são elementos que

encerram em si significados e ideologias. Neste sentido é que ocorre a troca da transmissão cultural,

pois a atividade de brincar da criança é estruturada conforme os sistemas de significado cultural do

grupo a que ela pertence. Mas, ao mesmo tempo, está atividade é reorganizada no próprio ato de

brincar da criança, de acordo com o sentido particular que ela atribui às suas ações, em interação

com seus pares ou com os membros mais competentes de sua cultura. Nesse processo, tanto os

significados coletivos quanto os sentidos pessoais são remodelados e redefinidos continuamente.

O jogo e o brincar supõem uma relação dialética. A criança pode brincar com os

significados para mediar simbolicamente a internalização da cultura, que promove saltos

qualitativos no seu desenvolvimento ou elaborar conflitos emocionais, conforme demonstram os

trabalhos em ludoterapia. Segundo Araújo (2006), o adulto deve fortalecer a consciência de si na

criança, atribuindo um sentido externo ao brincar e na medida que o jogo se torna um marco na

atividade simbólica da criança, o adulto deixa de ser necessário para sua plena satisfação.

176

Pensando assim, a assimilação da cultura, mediada pela brincadeira, possui uma

função subjetiva, em que a criança resgata, organiza e constitui sua subjetividade, esta função da

brincadeira corresponde ao que Valsiner (1988) denomina “entidade pessoal” da cultura.

Portanto, os jogos cumprem essa função de unir, juntar a cultura popular à vivência

da criança, perpetuando a cultura infantil e desenvolvendo formas de convívio social, fatos que

além de favorecer a transmissão cultural e a apropriação do acervo de conhecimentos, símbolos e

valores, possibilita contemplar outras competências que favorecem o desenvolvimento e

aprendizagem do ser humano. É neste sentido que no próximo capitulo será feita uma abordagem

sobre a influência do jogo no processo de aprendizagem de acordo com a teoria de Vigotsky.

3 O JOGO E O SEU PERCURSO NA EDUCAÇÃO

Ao pensar o jogo e sua trajetória no âmbito da educação infere-se com Kishimoto

(2003) que embora alguns autores ressaltem o aparecimento dos jogos educativos no século XVI, na

escola maternal francesa, os primeiros estudos em torno do mesmo, situam-se na Roma e Grécia

antigas. Entre os romanos, jogos eram destinados ao preparo físico, formar soldados para a guerra.

A relevância do jogo vem de longa data. Filósofos como Platão, Aristóteles e,

posteriormente, Quintiliano, Montaigne, Rousseau, destacam o papel do jogo na educação.

Entretanto, é com Froebel, o criador do Jardim-de-infância, que o jogo passa a fazer parte do centro

do currículo da educação. Pela primeira vez a criança brinca na escola, manipula brinquedos para

aprender conceitos e desenvolver habilidades. Jogos, música, arte e atividades externas integram o

programa diário composto pelos dons e ocupações froebelianas.

Essas orientações de Froebel dominaram a educação por 50 anos, até o advento da

era progressista. Dewey modifica estes programas Froebilianos e coloca a experiência direta com os

elementos do ambiente e os interesses da criança como novos eixos, afirmando que:

Se as crianças são vistas como seres sociais à aprendizagem infantil far-se-á de modo espontâneo, por meio do jogo, nas situações do cotidiano, isto é, tarefas simples como preparar alimentos, lanche, representações de peças familiares, brincar de faz-de-conta, adivinhações, etc. (KISHIMOTO, 2003, p. 23).

Assim posto, para Dewey, o jogo é concebido como atividade livre, como forma de

apreensão dos problemas cotidianos.

Paralelamente, na Europa, escolanovistas como Montessori, divulgam a importância

de materiais pedagógicos explorados livremente e Decroly expande a noção de jogos educativos. A

ambigüidade das concepções froebelianas dá o alicerce para a estruturação da noção de jogo

177

educativo, uma mistura da ação lúdica e a orientação do professor visando a objetivos como a

aquisição de conteúdos e o desenvolvimento de habilidades e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento

integral da criança (KISHIMOTO, 2003).

Nessa época não se discutia o emprego do jogo como atividade pedagógica. Mas é

durante o Renascimento que o jogo deixa de ser objeto de reprovação oficial e é incorporado no

cotidiano dos estudantes, não como diversão, mas como tendência natural do ser humano. É nesse

contexto, que Rabecq-Maillard (1969) situa o nascimento do jogo educativo (KISHIMOTO, 2003).

O Renascentismo vê a brincadeira também como conduta livre que favorece o

desenvolvimento da inteligência e facilita o estudo, tornando-se uma forma adequada para a

aprendizagem dos conteúdos escolares, reabilita exercícios físicos banidos pela Idade Média.

Exercícios de barra, corridas, jogos de bola semelhante ao futebol e o golfe são praticados em geral.

Aos jogos do corpo são acrescidos os do espírito.

No século XVI, é que se destaca o jogo educativo, com o aparecimento da

Companhia de Jesus. Ignácio de Loyola, militar e nobre, compreende a importância dos jogos de

exercícios para a formação do ser humano e recomenda sua utilização como recurso auxiliar de

ensino. Através de exercícios de caráter lúdico é que o ensino escolástico foi substituído

(ALMEIDA, 1998).

Froebel, Montessori e Decroli, conforme diz Wajskop (2005), contribuíram para a

superação de uma concepção tradicionalista de ensino, inaugurando um período histórico onde as

crianças passaram a ser respeitadas e compreendidas enquanto seres ativos.

A prática, em larga escala, dos ideais humanistas do Renascimento, o século XVIII,

provoca a expansão contínua de jogos didáticos ou educativos. Popularizam-se os jogos. A imagem

da criança com natureza distinta do adulto permite a criação e expansão de estabelecimentos de

ensino. A partir dessas reflexões, é que o jogo, é colocado por Froebel, (apud Kishimoto, 2003, p.

16) “como objeto e ação de brincar, e passa a fazer parte da história da educação”.

O jogo continua presente nas propostas de educação infantil como o advento do

freudismo, como mecanismo de defesa de impulsos não satisfeitos. Neofreudianos, especialmente

Piaget, Gesel, Erikson, Winnicot e outros, enfocam a importância do jogo para o desenvolvimento

emocional e psicológico da criança, como elemento importante frente às pressões oriundas do meio

sócio-cultural em que vivem.

Com a expansão dos novos ideais de ensino, crescem experiências introduzindo o

jogo com a finalidade de facilitar tarefas de ensino. Mas a sua expansão na área de ensino dar-se-á

no inicio deste século, pela discussão sobre as relações entre o jogo e a educação.

O jogo educativo, metade jogo e metade educação, tomam o espaço das escolas

sendo estas chamadas de um ‘grande brinquedo educativo’ e acrescenta:

178

O jogo é para a criança um fim em si mesmo, ele deve ser para nós um meio (de educar), de onde seu nome ‘jogo educativo’ que toma cada vez mais lugar na linguagem da Froebeldagogia maternal (KISHIMOTO, 2003 p.55).

Nesse contexto cresce o número de autores que adotam o jogo na educação,

incorporando a função lúdica e a educativa. Diante desses autores que tratam da temática do jogo e

suas implicações na aprendizagem, a seguir focaremos nos pensamentos de Lev Vigotsky.

3.1 O Jogo sob a ótica da Teoria de Vigotsky

A busca pelo conhecimento e o entendimento do ser humano sempre foi, em todas

as épocas, objetivo do homem. Do mesmo modo, a compreensão de seu desenvolvimento, ou

melhor, dizendo, do desenvolvimento de suas funções também se apresentou como objeto de estudo

impregnado do mesmo desejo.

No entanto, na história dos estudos da psicologia a dificuldade em se tratar o

desenvolvimento humano na perspectiva social foi fato marcante. Para esta área de conhecimento o

desenvolvimento humano foi considerado um evento de natureza individual, mesmo considerando-

se a influência da interação com o meio ou da sua inserção social (PINO, 2000).

Vigotsky, no entanto, inverteu a direção por onde caminhavam estes estudos,

introduzindo nesta ciência a perspectiva da origem e da evolução do homem indo do sentido do

social para o individual, se perguntando como o meio social age no indivíduo, ou seja, como ele se

constitui nas relações em sociedade.

O princípio orientador da abordagem de Vigotsky é a dimensão sócio-histórica do

psiquismo. Segundo este princípio, tudo o que é especificamente humano e distingue o homem de

outras espécies origina-se de sua vida em sociedade. Seus modos de perceber, de representar, de

explicar e de atuar sobre o meio, seus sentimentos em relação ao mundo, ao outro e a si mesmo,

enfim, seu funcionamento psicológico, vão se constituindo nas suas relações sociais (FONTANA;

CRUZ, 1997).

A perspectiva social da constituição do indivíduo permitiu o rompimento da

dicotomia indivíduo-sociedade presente nas teorias que buscavam explicar o desenvolvimento

humano. Deste modo, Vigotsky revoluciona os estudos tradicionais mudando o enfoque, até então

de natureza biológica, para o campo social e cultural.

É neste sentido que, a partir de suas investigações sobre o desenvolvimento dos

processos superiores do ser humano, Vigotsky apresenta estudos sobre o papel psicológico do jogo

para o desenvolvimento da criança.

179

Ao publicar, em 1933, “O papel do brinquedo no desenvolvimento infantil”, o autor

contribui decisivamente para o surgimento de um novo paradigma a respeito da teoria psicológica

do jogo.

O autor enfatiza a importância de se investigar as necessidades, motivações e

tendências que as crianças manifestam e como se satisfazem nos jogos, a fim de compreendermos

os avanços nos diferentes estágios de seu desenvolvimento.

Neste aspecto, é preciso levar em conta que o jogo atende necessidades que se

modificam de acordo com a idade. Assim, um jogo que interessa a uma criança de dois anos de

idade, deixa de ser interessante para outra mais velha.

Esta característica constatada nas necessidades e motivações das atividades lúdicas,

nas diferentes faixas etárias, confere ao jogo um importante papel no que se refere ao conhecimento

do desenvolvimento infantil.

Ao analisar o comportamento infantil, Vigotsky ressalta que uma criança pequena

apresenta certos desejos que, muitas vezes, não podem ser satisfeitos imediatamente. Por exemplo:

a criança quer ocupar o papel de mãe; porém, este papel não pode ser satisfeito. Esta peculiaridade

do comportamento infantil se acentua na idade pré-escolar. Para resolver as tensões e conflitos dos

desejos que não podem ser satisfeitos imediatamente, a criança recorre a um mundo ilusório, de

imaginação, onde os desejos não realizáveis podem se concretizar. O autor denomina este mundo

de “brincadeira”.

Caracterizando o brincar da criança como imaginação em ação, Vigotsky elege a

situação imaginária como um dos elementos fundamentais das brincadeiras e jogos.

De acordo com o autor:

Quando a criança brinca, ela cria uma situação imaginária que ultrapassa a dimensão perceptivo-motora do comportamento e ingressa no campo de significado “a essência da brincadeira é a criação de uma nova relação entre o campo de significado e o campo de percepção visual, ou seja, entre as situações no pensamento e o campo de percepção (VIGOTSKY, 2007, p.121)”.

Conforme Vigotsky, esta possibilidade caracteriza um avanço no desenvolvimento

infantil, na medida em que a criança pequena que agia somente de acordo com seu campo

perceptivo imediato, começa a modificar seu comportamento no jogo, substituindo uma ação real

por outra, um objeto real por outro, etc. Por exemplo: ao brincar de médico, utilizando um lápis

como termômetro, a criança se relaciona com o significado em questão (a idéia de termômetro) e

não com o objeto concreto. O lápis serve como representação de uma realidade ausente e permite a

180

criança separar o objeto do significado, assim, no brinquedo, o pensamento está separado dos

objetos e a ação surge das idéias e não das coisas.

No brinquedo, o significado conferido ao objeto torna-se mais importante que o

próprio objeto, que é relegado a uma posição subordinada.

Segundo Vigotsky (1999), o brinquedo que comporta uma situação imaginária

também comporta uma regra relacionada com o que está sendo representado. Assim, quando a

criança brinca de médico, busca agir de modo muito próximo daquele que ela observou nos médicos

do contexto real. A criança cria e se submete às regras do jogo ao representar diferentes papéis.

Esta brincadeira, onde se evidencia uma situação imaginária às claras e as regras

estão ocultas, se transforma em brincadeira com regras às claras e uma situação imaginária oculta.

Esta modificação se configura na evolução do jogo infantil e se relaciona com o desenvolvimento

da criança.

Na forma mais desenvolvida das brincadeiras, acrescentamos entre a situação

imaginária e a ação da criança, o objetivo do jogo. Ao jogar, as crianças exigem que sejam

consideradas as regras que traduzem o objetivo do jogo.

Outro aspecto enfatizado por Vigotsky, se relaciona com o controle dos desejos e

impulsos imediatos exigidos na brincadeira, onde a cada momento a criança se vê frente a um

conflito. Entre as regras do jogo e seus desejos ao se submeter às regras, evidencia-se controle e

renúncia.

Para Vigotsky (1979), a brincadeira se configura como uma situação privilegiada de

aprendizagem infantil, à medida que fornece uma estrutura básica para mudanças das necessidades

e da consciência.

O autor destaca que a brincadeira potencializa a criação de uma "zona de

desenvolvimento proximal", que se refere à distância entre o nível de desenvolvimento atual -

determinado através da solução de problemas pela criança, sem ajuda de alguém mais experiente - e

o nível potencial de desenvolvimento medido através da solução de problemas sob a orientação de

adultos ou em colaboração com crianças mais experientes.

O tutor ou parceiro chamado de mediador, serve como uma forma indireta de

consciência, até que a criança seja capaz de dominar sua própria ação através de sua própria

consciência e controle. Ocorre, portanto, uma discretização da experiência que permite à criança

refletir sobre seu próprio comportamento, saindo da indiferenciação inicial.

Outro aspecto evidenciado pelo estudioso é o papel essencial da imitação na

brincadeira, na medida em que, inicialmente, a criança faz aquilo que ela viu o outro fazer, mesmo

sem ter clareza do significado da ação. À proporção que deixa de repetir por imitação, passa a

realizar a atividade conscientemente, criando novas possibilidades e combinações. Dessa forma, a

181

imitação não é considerada uma atividade mecânica ou de simples cópia de modelo, uma vez que ao

realizá-la, a criança está construindo, em nível individual, o que observou nos outros.

Vigotsky (1979) afirma que a imitação pode ser entendida como um dos possíveis

caminhos para o aprendizado, uma forma de a criança internalizar o conhecimento externo.

É, portanto, na situação de brincar que as crianças se colocam questões e desafios

além de seu comportamento diário, levantando hipóteses, na tentativa de compreender os problemas

que lhes são propostos pela realidade na qual interagem. Assim, ao brincarem, constroem a

consciência da realidade e, ao mesmo tempo, vivenciam a possibilidade de transformá-la.

Em síntese, com essas categorizações buscou-se delimitar a compreensão do termo

“jogo”, uma vez que sua amplitude requer um maior cuidado ao ser retratado de forma indefinida.

Assim, ao invés de se estabelecer uma definição para o vocábulo jogo, buscou-se sua categorização

de forma a permitir o uso do termo jogo de forma mais delimitada e clara, diminuindo a

possibilidade de interpretações ambíguas.

4 EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: O JOGO COMO A BOLA DA VEZ

O presente capítulo visa a apresentar um breve histórico da Educação Física Escolar

e a inserção do jogo em sua prática, dentro do contexto social em que ela foi produzida. Dessa

maneira, busca-se discutir alguns fatos que ilustram, desde o ingresso da Educação Física na escola,

até a apresentação de algumas perspectivas relevantes surgidas a partir da década de 1980, no

cenário da Educação Física brasileira, com o seu processo de pluralização da área.

O século XIX foi marcado por grandes mudanças socioeconômicas na Europa,

mudanças essas iniciadas pela Revolução Industrial que provocou um movimento de êxodo rural e a

formação de grandes aglomerados urbanos, devido à oferta de trabalho nas cidades. Essa massa

trabalhadora vivia em condições sub-humanas com moradia em precárias condições de higiene e

obrigadas a desempenhar longas jornadas de trabalho, criando condições para o surgimento e

proliferação de epidemias.

O pensamento da medicina clínica, cuja origem é anterior a todos esses

acontecimentos, era de que a etiologia das doenças relacionava-se com a fome, a miséria e a

opressão vividas pela população. Com o desenvolvimento da medicina social, a partir do século

XVIII, há uma aproximação entre a medicina e as ciências sociais, onde se considera a inserção

social e suas devidas conseqüências para a saúde, a doença e os doentes, traçando uma análise

diferenciada de períodos anteriores.

Segundo essa perspectiva, as epidemias estavam relacionadas aos vícios, à

imoralidade e aos maus hábitos higiênicos da população, o que demandava não apenas a cura para

as doenças, mas, sobretudo, a educação da população. Esse status de responsabilidade educacional

182

conquistado pela classe médica levou o médico a ser um conselheiro para a população que, por sua

vez, viu-se na condição de agente e guardião da ordem social. Parte da conseqüência desse processo

foi à responsabilização dos próprios operários e da população em geral pela falta de saúde

(SOARES, 1990).

A partir disso o médico passou a interferir na vida do indivíduo, impondo as regras

que determinariam a manutenção da saúde e dos corpos biológicos. Este movimento

intervencionista que se utilizou da promoção do médico como conselheiro educacional-higiênico foi

chamado de Movimento Higienista. É neste contexto que se deu o surgimento da Educação Física,

ou seja, sobre forte influência médica, como educadora do físico (corpo), valores, ‘bons modos’,

costumes e hábitos higiênicos (CASTELLANI FILHO, 1994).

A ação educadora da Educação Física, nem sempre referida com esse termo nesse

momento histórico, fundiu-se ao movimento médico-higienista e sua introdução no Brasil

restringiu-se a uma educação do corpo com uma preocupação exclusivamente biológica, uma vez

que a justificativa da prática de atividade física visava a benefícios da saúde e da educação

higiênica.

Essa intenção orientou a Educação Física médico-higienista para uma faixa da

população identificada com os trabalhadores, afirmando uma ordem estabelecida que preconizava o

vigor físico do homem para o bom desempenho das atividades profissionais, atendendo às

demandas da burguesia que detinha o controle dos meios de produção. Ao mesmo tempo essa

perspectiva pedagógico-higiênica buscava “adestrar” os corpos, desenvolvendo a disciplina dentro

de um sistema de produção que restringiu o ser humano à condição de mão-de-obra (SOARES,

1990).

A Educação Física, nesse momento, provém de uma íntima ligação com a Força

Militar. Dois fatores podem ilustrar essa relação: um deles é o fato de diversos métodos provirem da

Europa e chegarem ao Brasil por intermédio do exército, como as ginásticas européias, e a

necessidade de haver uma massa trabalhadora com vigor físico para enfrentar o cotidiano de

produção.

Se o século XVIII marcou a Europa como um período de guerras e doenças, o que

levou a Educação Física a tornar-se uma unidade exclusivamente biológica, essa perspectiva

representou grande influência sobre as práticas físicas no Brasil. Isso porque elas foram trazidas e

exercidas na América pelos militares, traduzindo para esse continente as intenções do movimento

higienista europeu, reproduzindo também a idéia de eugenia da raça pelos seus exercícios físicos.

Daí a responsabilidade dos militares na divulgação da Educação Física como unidade

de ensino no Brasil. Seriam eles mesmos, os criadores não só da primeira unidade de ensino de

Educação Física do Brasil (Escola de Educação Física do Exército – 1933), como diversos outros

183

órgãos com objetivo de lecionar a Educação Física, muito embora Marinho (1980) afirme que a

primeira aula de Educação Física em uma instituição escolar foi ministrada na então província do

Amazonas no ano de 1852. Conforme aponta Betti (1991) um ano antes, em 1851, houve a

apresentação da reforma educacional de Couto Ferraz, que propunha a implementação da ginástica

no primário e a dança no secundário. A influência militar sobre a Educação Física brasileira só

diminuiria a partir da década de 40, com a maior formulação das instituições civis (BETTI, 1991).

Foi com o método francês que os jogos e os esportes (coletivos e individuais)

ganharam espaço nos currículos escolares, desencadeando uma discussão sobre o jogo como

interesse e conteúdo “natural” humano, como era até então considerado. A valorização do esporte

deu início ao que se chama de “esportivização da Educação Física”.

Vale ressaltar que o jogo esportivo teve sobre os estudantes um apelo muito maior e

imediato que as ginásticas européias, por apresentar maior ludicidade em sua realização. Sua prática

era justificada pela busca de um conceito bio-psico-social, ou seja, um modelo amplamente difuso

que tinha como princípio posicionar-se contra uma Educação Física exclusivamente biológica como

propunham as ginásticas européias (CASTELLANI FILHO, 1994).

Em 1968, com a criação do ministério da Educação Física e Desportos duas

características importantes marcam a história dessa área: a consolidação da Educação Física para a

Educação nacional e a fusão entre a Educação Física e o Esporte, levando-os a serem considerados

quase como sinônimos, uma vez que o Esporte passou a ser área de estudo e ensino da Educação

Física (BETTI, 1991).

Enquanto política pública, o governo acabou por optar por uma intensa

esportivização da Educação Física a ponto de considerar os alunos ‘não-habilidosos’ como um

atraso para o andamento do processo em formar atletas. Betti (1991) expõe claramente o que isso

representaria para a educação a concepção é a de que o aluno e a escola devem servir ao esporte, e,

portanto aqueles devem adaptar-se a este, e não o esporte estar a serviço dos interesses

educacionais. Assim, a década de 1970 seria marcada por uma intensa esportivização na Educação

Física Escolar, em busca de talentos esportivos que afirmassem o poder da ditadura militar.

A década subseqüente trouxe modificações profundas tanto no âmbito político como

no educacional, e a Educação Física buscou novas alternativas para abordar a área dentro do âmbito

escolar. A esportivização que ocorria na escola e o próprio binômio Educação Física/Esporte, que se

havia estabelecido, perduraria com grande intensidade até os dias atuais.

Neste sentido, apresentam-se a seguir duas propostas do período que Betti (1991)

chamaria de “pluralização” da Educação Física: os parâmetros curriculares nacionais (1997) e a

linha crítico-superadora (1992). Buscou-se assim, apresentar algumas concepções que surgiram

184

naquele momento e a presença do jogo em todas essas abordagens, demonstrando sua importância

independente das concepções apresentadas na Educação Física Escolar.

4.1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais: um olhar para o jogo

A abordagem apresentada como documento oficial serve como referência nacional

para todas as disciplinas escolares. O documento responsável por discutir a Educação Física buscou

contrariar o modelo esportivista vigente. Conforme versão do documento oficial essa nova

perspectiva traz uma proposta que procura democratizar, humanizar e diversificar a prática

pedagógica da área, buscando ampliar de uma visão apenas biológica, para um trabalho que

incorpore dimensões afetivas, cognitivas e socioculturais dos alunos (BRASIL, 1997).

Para introduzir o debate sobre o tema, o documento faz um breve histórico

apresentando as influências militares e esportistas desde o início da Educação Física Escolar

brasileira, que priorizavam o desenvolvimento do corpo humano, enquanto organismo (perspectiva

exclusivamente biológica), desde o final do século XIX até o início da década de 1980, quando

surgiram novas abordagens que trouxeram à disciplina o debate sobre a cultura corporal.

Ao colocar a Educação Física como instrumento que busca democratizar a cultura

brasileira, o PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) propõe o desenvolvimento da autonomia, da

cooperação, da participação social, de valores e de princípios democráticos.

Entendido assim, todos esses elementos constituem a cultura corporal e a promoção

da cidadania, de forma que se coloca essa disciplina escolar como importante meio para inserção

social.

Nesse documento há a descrição de como se aplicar a Educação Física no ensino

fundamental, apresentando pressupostos e estratégias que a concepção de referência brasileira da

época estaria valorizando na prática docente. O primeiro aspecto refere-se ao caráter de promoção

da autonomia, onde os movimentos vivenciados não devem ser realizados de maneira alienada a

partir de um referencial de normalidade, permitindo e valorizando a construção de um

conhecimento do próprio corpo a partir de suas potencialidades e limitações.

Seguindo esses ideais, nessa abordagem há um incentivo à promoção de vivências de

natureza recreativa, cooperativa e competitiva para que o aluno compreenda as diferenças de cada

prática. Assim, o modelo vigente apresenta três elementos a serem trabalhados nas aulas: o

automatismo e a atenção, ou seja, a necessidade de se trabalharem conteúdos e habilidades

repetidamente em busca de uma automatização, por meio de práticas lúdicas, de interesse natural

das crianças; a afetividade e o estilo pessoal, que trata do respeito às particularidades de cada aluno

e a promoção da vivência de diversas emoções, promovendo uma boa relação com seus próprios

185

sentimentos; e, por último, a questão dos portadores de deficiência física que devem ser inseridos

no contexto da aula.

Ao abordar os objetivos gerais, o PCN apresenta grande valorização dos eixos

conceituais e atitudinais, bem como do eixo procedimental por entender a importância desse eixo

não somente enquanto fim, mas também como conteúdo e estratégia para se atingir as metas

definidas.

Dentro dessa perspectiva observam-se os seguintes objetivos conceituais e

atitudinais: conhecer e valorizar a diversidade cultural, apresentar hábitos saudáveis, reconhecer as

condições de trabalho impostas e ter uma atitude de reivindicação de melhoria dessas condições,

conhecer a diversidade estética e padrões de saúde e valorizá-los, conhecer e organizar os espaços

de prática de atividade física de maneira autônoma e reivindicar melhorias que sustentem suas

necessidades básicas.

É possível observar a influência da abordagem crítico-superadora (SOARES et. al.,

1992) nessa proposta pela explicitação da busca de atitudes ativas dentro da sociedade como meta

de formação de alunos.

Os objetivos procedimentais da proposta resumem-se a apenas dois tópicos:

participar das atividades corporais, como situações lúdicas e esportivas, e respeitar as diferenças, e

solucionar problemas corporais, reconhecendo suas potencialidades e limitações. O reduzido

número de tópicos procedimentais não torna a prática corporal menos importante, uma vez que

todos os conceitos e atitudes citados estariam incorporados à prática de atividades físicas em seus

diversos contextos: lúdico trabalho e cotidiano.

Para se atingirem as metas supracitadas são apresentados três blocos de conteúdo a

serem buscados: o conhecimento do corpo; os esportes, jogos, lutas e ginásticas; e as atividades

rítmicas e expressivas.

Ao tratar do conhecimento do corpo, o documento categoriza quatro divisões para tal

fim: anatômico (conhecimento do sistema locomotor), fisiológico (alterações do corpo na atividade

física), biomecânico (hábitos posturais) e bioquímico (metabolismo durante a prática de atividade

física). Tais conceitos são apresentados como elementos que devem ser tratados junto a um

contexto histórico cultural, promovendo a compreensão das diferenças de cada cultura e suas

respectivas relações com o corpo.

Os esportes, jogos, lutas e ginásticas são tratados de maneira conjunta enquanto

patrimônio cultural que deve ser respeitado e valorizado. É importante considerar as diferenças

regionais de um país que apresenta tamanha diversidade cultural devido à sua grande extensão

territorial e seu histórico de diversidade cultural. Os quatro elementos são agrupados devido à sua

possibilidade de serem trabalhados de maneira relacional.

186

As atividades rítmicas e expressivas, entendidas como a apresentação de ritmos e

danças provindos da cultura brasileira ou de outros países, busca conhecer e valorizar a origem e o

significado dessas práticas, além de sua simples aprendizagem procedimental.

Dessa forma, a concepção de Educação Física Escolar explícita nos PCN busca

oferecer diversas referências de diferentes e importantes abordagens, que tratam a cultura corporal

como principal elemento a ser trabalhado na Educação Física Escolar. Ao reduzir o espaço dado ao

modelo esportivista e valorizar os conteúdos dos jogos, lutas, ginásticas e ao próprio esporte (sendo

tratado de maneira inclusiva), o conhecimento do corpo e das atividades rítmicas ampliou o debate e

o conhecimento sobre a cultura corporal de movimento.

Foi então que se pôde observar a importância que o jogo representa para a Educação

e para a Educação Física, uma vez que ele não se limitava a ser um bloco de conteúdos, mas se

encontrava presente no esporte (jogos ‘oficiais’), nas atividades rítmicas (cirandas e brincadeiras de

roda) e nas lutas (capoeira e jogos que envolvem força, como o cabo-de-guerra).

A principal contribuição do jogo nessa abordagem se encontrava na possibilidade de

trabalhá-lo como uma busca genuína de diversidade cultural, ou seja, na medida em que há uma

preocupação pelo respeito e valorização das diferenças culturais locais do país, o jogo se torna um

grande aliado para atingir essa meta. Assim, a concepção apresentada pelos PCN coloca a cultura

corporal como principal elemento a ser desenvolvido pela Educação Física dentro da escola, o jogo

representa o papel de um simples conhecimento (enquanto cultura), de meio (estratégia) para

trabalhar questões atitudinais (relação com os demais praticantes) ou ainda de conceito (percepção

de suas potencialidades e limitações).

4.2 O Jogo e a tendência pedagógica Crítico-Superadora

Essa perspectiva foi criada após os primeiros movimentos ‘renovadores’ da

Educação Física Escolar, que buscavam modificar a visão biológica para uma perspectiva humana.

A apresentação das idéias dessa linha foi dada na publicação do livro “Metodologia do Ensino de

Educação Física” escrito por seis autores: Bracht, Taffarel, Castellani Filho, Escobar, Soares e

Varjal.

A proposta crítico-superadora foi apresentada no início da década de 1990 na busca

de modificar o status quo reinante na Educação, oferecendo a perspectiva crítica da realidade dentro

da Educação Física na formação de estudantes. Essa abordagem buscou retomar conceitos como

projeto político-pedagógico, currículo e ciclos de escolarização até, finalmente, inserir uma

perspectiva de “reflexão sobre a cultura corporal”.

Os autores buscaram demonstrar que, em uma sociedade capitalista existem dois

movimentos antagônicos: por um lado, o trabalhador, que vende sua mão de obra em busca de

187

suprir suas necessidades básicas e, por outro, o dono dos meios de produção, que busca a mais valia

e conservar seus privilégios (manutenção do status quo). Em virtude desse conflito há uma

necessidade da educação posicionar-se, dando as pistas de como o projeto político-pedagógico deve

diagnosticar a realidade, fazer um juízo de valor do cotidiano e posicionar-se quanto a sua intenção

de intervenção.

Daí a concepção de currículo ampliado, onde se busca a formação do aluno para que

ele realize sua própria reflexão. Nesse sentido a escola não deve desenvolver o conhecimento

científico, mas sim se apropriar dele e refletir sobre sua realidade. Escolhas como a relevância

social do conteúdo, a sua contemporaneidade, sua adequação para as possibilidades sócio-

cognitivas, sua simultaneidade (no sentido de não fragmentar o conteúdo) e a provisoriedade do

conhecimento (no sentido de que todo conhecimento tem o caráter de poder ser superado por novos

estudos e mais coesos com uma realidade futura) são alguns dos elementos a serem considerados.

Nesse contexto a Educação Física, enquanto elemento transformador, é apresentada

como possibilidade oposta ao modelo esportivista vigente, modelo que, ainda persistia, apesar da

grande gama de novas abordagens apresentadas a partir da década de 1980, por caracterizar a

legitimidade da busca de aptidão física para a manutenção do status quo. Isso porque o modelo

esportivista apresentava e definia como valores fundantes a lei do mais forte (a busca em superar e

dominar o adversário) ou ainda a tendência biológica na busca do rendimento, sem que houvesse

uma reflexão sobre a prática.

Para a abordagem crítico-superadora a Educação Física é uma prática pedagógica

que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte,

dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de

cultura corporal (SOARES, et. al.,1992). Essa visão é afirmada como provisória, uma vez que os

autores apontam a visão de um conhecimento a ser superado.

A concepção crítico-superadora ressalta sempre a importância do momento histórico

em que o programa está sendo desenvolvido e inserido na prática pedagógica. Assim, a cultura

corporal é entendida como conhecimento que a Educação Física deve tratar na escola. Na medida

em que existe uma intencionalidade na apresentação desse conteúdo, a abordagem busca

proporcionar ao aluno a percepção de sua realidade para que os alunos tenham uma atitude

reflexiva. Os conhecimentos a serem desenvolvidos são o jogo, o esporte, a capoeira, a ginástica e a

dança.

Para os autores o jogo é uma invenção do homem, um ato em que sua

intencionalidade e curiosidade resultam num processo criativo para modificar, imaginariamente, a

realidade e o presente (SOARES et. al., 1992).

188

Seguindo essa definição de jogo, a proposta dessa abordagem busca a possibilidade

de transformar a realidade em que os alunos se encontram e proporcionar uma reflexão da prática

do jogo, tanto num sentido conceitual quanto atitudinal. Dessa maneira, ao se deparar com um jogo

a criança deve refletir sobre a sua representação, como a queimada que poderia representar uma

guerra em que se busca eliminar o adversário, e qual a relação que se estabelece com os outros

jogadores e com a realidade, regras, valores e sua relação com sua família, comunidade e trabalho.

A concepção crítico-superadora busca enfatizar o caráter transformador que o jogo

pode representar para a criança e como essa característica pode ser enriquecedora na reflexão de sua

realidade. Sendo o jogo como uma atividade que pode proporcionar à criança uma relação afetiva

de tamanha significância, ela pode de fato ter a sensação de perdas e ganhos dentro desse contexto,

contribuindo para a percepção e reflexão de aspectos de sua realidade.

Seguindo essa lógica, a abordagem traçada pelos autores propõe a prática de jogos

que façam referência ao reconhecimento de si mesmos e das próprias possibilidades de ação, que

facilitem a comunicação dos alunos, que estimulem as diversas relações sociais na compreensão do

trabalho do homem, convivência do coletivo, auto-organização, auto-avaliação e avaliação coletiva,

elaboração de brinquedos, emprego de pensamento tático, organização dos próprios jogos e decisão

de níveis de sucesso.

Apesar da complexidade e importância do tema, os autores não deixam claro como

trabalhar esse conteúdo na prática escolar. Se, por um lado, o jogo é apresentado como elemento

transformador, o esporte é aqui colocado como elemento a ser transformado. Entendido também

como jogo, o esporte é visto como um jogo que representa os valores capitalistas (divisão de

trabalho, produção, rendimento) e deve ser modificado em valores que sejam adequados para uma

sociedade transformadora. Seguindo essa perspectiva, o conteúdo deve ser apresentado enquanto

“esporte na escola” e não o “esporte da escola”, isto é, trata-se de uma mudança na interpretação do

papel do esporte com características escolares, diferenciando-o do esporte de alto rendimento.

Para o esporte os autores apresentam alguns exemplos de como trabalhar esse

conteúdo segundo essa perspectiva: a compreensão do esporte enquanto espetáculo, enquanto jogo

popularmente praticado, seu histórico (como no futebol que transcendeu barreiras socioeconômicas

passando de um jogo nobre para popular), passando por questões econômicas do esporte (como a

“lei do passe” no futebol).

Além disso, poder-se-ia observar a prática do jogo e a compreensão de elementos

atitudinais, por exemplo, seguindo um compromisso com a solidariedade ao praticar um jogo “a

dois”, tendo o outro como companheiro e não como adversário (jogar “com” e não “contra”);

refletir sobre elementos de cada parte do jogo e suas representações aos jogadores, ou seja, o que

seria um “passe”?

189

Assim, é possível observar que, tanto o jogo como o esporte, são trabalhados como

conceitos e elementos que proporcionam a discussão das relações sociais que as crianças possuem.

Os caminhos traçados podem ser considerados inversos (um, enquanto elemento transformador;

outro como conteúdo a ser transformado), mas as reflexões e objetivos de trabalho podem ser

considerados semelhantes ou complementares.

4.3 O Jogo na Educação Física Escolar

O jogo é conteúdo, estratégia ou objetivo? É possível ir além e dizer que o jogo pode

até ser uma avaliação? O que teria o jogo de tão especial a ponto de ser tratado com tamanha

abrangência? E por que a Educação Física escolheria o jogo como elemento a ser trabalhado nessa

disciplina, se de fato se trata de um tema tão amplo?

O número de indagações parece sempre ser maior do que o de respostas, mas um

trabalho que leve à reflexão de um conceito, como o jogo, acaba propiciando questões que parecem

estar acima de nossa compreensão.

Dessa forma, somos conhecedores da importância do jogo como ação pedagógica na

escola, desde que este esteja inserido dentro de um planejamento educacional, pois de acordo com

Freire (1989), num contexto de educação escolar, o jogo proposto como forma de ensinar conteúdos

às crianças aproxima-se muito do trabalho. Não se trata de um jogo qualquer, mas sim de um jogo

transformado em um instrumento pedagógico, em um meio de ensino.

É notável que sempre que falamos em jogo nas aulas de Educação Física, há um

grande interesse e motivação por parte dos alunos, pois o jogo faz parte da nossa cultura e do nosso

dia-a-dia, ele é movimento, e sendo movimento trabalha com o corpo e representa valores sociais e

culturais.

Segundo Soares et. al. (1992) o jogo satisfaz as necessidades das crianças,

especialmente a necessidade de “ação”. Assim, para entender o avanço da criança no seu

desenvolvimento, o professor deve conhecer quais as motivações, tendências e incentivos que a

colocam em ação. Não sendo o jogo aspecto dominante da infância, ele deve ser entendido como

“fator de desenvolvimento” por estimular a criança no exercício do pensamento, que pode

desvincular-se das situações reais e levá-la a agir independente do que ela vê.

De acordo com a idéia de Soares et. a.l. (1992), quando a criança joga, ela opera com

o significado de suas ações, o que faz desenvolver sua vontade e, ao mesmo tempo, tornar-se

consciente das suas escolhas e decisões. Por isso, o jogo apresenta-se como elemento básico para

mudança das necessidades e da consciência.

190

Ainda num contexto de Educação Física Escolar, o jogo deve ser proposto como uma

forma de ensinar, educar e desenvolver no aluno o seu crescimento cognitivo, afetivo-social e

psicomotor, facilitando e permitindo a interação com o grupo.

Para Brotto (1999) o jogo é um meio para o desenvolvimento integral do ser humano

e de aprimoramento da qualidade de vida.

Por isso quando o conteúdo for jogos nas aulas de Educação Física devemos ter o

cuidado para não colocar os alunos a jogar simplesmente para existir um ganhador ou perdedor, mas

que através do jogo se busque o crescimento do aluno, como pessoa, como ser humano, que este

seja motivado para a aula, que participe do grupo, que se sinta valorizado e acolhido em todos os

momentos, com oportunidade de livre expressão, respeitando suas limitações e valorizando suas

experiências.

Ainda nesse sentido, segundo Brotto (1999), podemos aprender que o verdadeiro

valor do jogo, não está em somente vencer ou perder, mas está também, fundamentalmente, na

oportunidade de jogar juntos para transcender a ilusão de sermos separados uns dos outros, e para

aperfeiçoar nossa vida em comunidade.

Vale ressaltar a importância de que a metodologia utilizada pelos professores de

Educação Física esteja vinculada ao sistema educacional e a uma prática pedagógica

intencionalizada de tal modo que quando o conteúdo ministrado for jogos, não tenha simplesmente

o objetivo de passar o tempo da aula ou de fazê-lo porque os alunos gostam.

Ao encontro dessa perspectiva, Stumpf (2000) diz que o jogo como parte integrante

do conjunto de conteúdos que devem compor a disciplina de Educação Física, caracteriza-se como

um conhecimento de indiscutível importância, que não pode ser considerado simplesmente como

uma mera atividade utilitária e espontaneísta, desprovido de sentido educativo.

Assim implica dizer que o professor junto com o aluno deverá buscar a construção de

novas formas de ensinar e aprender, lembrando que a aprendizagem só acontece quando o aluno

começa a buscar por si mesmo o saber, sentindo nele o sabor da descoberta.

E tal busca pode ser facilitada com a abordagem de uma das variantes e categorias do

jogo, os chamados jogos tradicionais infantis que possibilitam ao professor fazer um trabalho muito

rico e diversificado, utilizando-se de pouquíssimo material. Isto é importante na medida em que

reconhecemos a dura realidade que os profissionais de Educação Física enfrentam em muitas

escolas devido à falta de recursos para o ensino.

4.3.1 Os Jogos Tradicionais Infantis: uma possibilidade

Deparando-nos com a sociedade em que vivemos, onde a tecnologia é o centro das

atenções de nossas crianças, observamos que a importância das brincadeiras tradicionais pode ser

191

significativa neste contexto, o que, no entanto, muitas pessoas desconhecem. Sendo assim, as aulas

de Educação Física poderiam influenciar no resgate dos valores culturais e o melhor

desenvolvimento das crianças da sociedade.

Nesta perspectiva então, destaca-se o papel dos jogos e brincadeiras tradicionais

dentro do universo infantil, facilitando o grau de compreensão da criança e o enriquecimento do

conteúdo pedagógico da escola, procurando resgatar as brincadeiras tradicionais para o ambiente

das aulas de Educação Física Escolar.

Considerada como parte da cultura popular, a Brincadeira Tradicional guarda de

certa forma, alguns “costumes espirituais” de um povo em certo período histórico, e para nós,

algumas destas brincadeiras tem seu período histórico desconhecidos.

Principalmente aqui no Brasil por ser um país de grande mistura de raças, fica bem

difícil saber sobre as origens destas brincadeiras. O primeiro indício de brincadeiras veio com o

folclore lusitano com os primeiros colonizadores, incluindo contos, histórias, lendas, superstições e

também os jogos, festas e valores.

Não se conhece a origem destes jogos. Seus criadores são anônimos. Sabe-se apenas

que são provenientes de praticas abandonadas por adultos, de fragmentos de romances, poesias,

mitos e rituais religiosos. A tradicional idade e universalidade dos jogos assentam-se no fato de que

povos distintos e antigos como da Grécia e do oriente brincaram de amarelinha, de empinar

papagaios, jogar pedrinhas, e até hoje as crianças o fazem quase da mesma forma. Estes jogos

foram transmitidos de geração em geração através de conhecimentos empíricos e permanecem na

memória infantil (KISHIMOTO, 2003).

Com isso, segundo a mesma autora, jogos e brincadeiras infantis provêm dos tempos

passados, de fragmentos de contos, mitos, praticas religiosas e culturais, sendo fundamental para a

educação com o objetivo da transmissão da cultura, da apropriação do acervo de conhecimentos,

competências, valores e símbolos intrínsecos nos jogos e brincadeiras tradicionais.

Velasco (1996), afirma que na antiguidade as crianças brincavam e participavam das

festividades, lazer e jogos dos adultos, mas ao mesmo tempo tinham também um espaço reservado

para que elas realizassem suas próprias atividades. O que incluía nestas atividades o que hoje

chamamos de brincadeiras populares, pois naquela época a brincadeira era considerada um

elemento cultural, do riso e do folclore.

Enfim, podemos notar então, que as brincadeiras utilizadas naquela época, ainda hoje

se fazem presentes em nosso dia-a-dia, porém com um fim diferente, mas com o mesmo prazer

trazido à criança. E entre essas brincadeiras utilizadas, podemos citar vários jogos, como: as

cantigas de roda, o jogo de pedrinhas e a amarelinha, que estão lutando por sua existência em nossa

sociedade, recheada de jogos eletrônicos e computadores.

192

Pensando assim, os jogos e brincadeiras tradicionais além de favorecer a transmissão

cultural e a apropriação do acervo de conhecimentos, símbolos e valores, possibilita contemplar

outras competências que favorecem o desenvolvimento humano. Conforme Cavallari e Zacharias

(1994) comenta, as rodas e brincadeiras cantadas são atividades em que as pessoas podem cantar e

brincar ao mesmo tempo, coordenando sempre as brincadeiras com as músicas entoadas. São

compostas por letras simples e acopladas, gestos e movimentação divertida. As rodas e brincadeiras

podem ainda ajudar no desenvolvimento da sociabilização e aprendizagem motora (ritmo,

coordenação, e desenvolvimento de percepção, observação e atenção).

Do mesmo modo diz Freire e Scaglia (2003) ao abordar que a amarelinha

basicamente, em termos cognitivos exige da criança coordenação espacial. Ora, a noção espacial

que se forma a partir desta relação da criança com o espaço, esta entre outras na base da formação

de noções lógicas como a classificação e a seriação.

Dessa forma ao trabalhar com estas atividades o professor tem a possibilidade de

explorar e valorizar o conhecimento do próprio aluno, aprendendo os seus valores, habilidades,

convivência social e repertório motor, pois a escola é uma grande aliada para o bom

desenvolvimento integral da criança e os professores devem se colocar como os mediadores destes

conhecimentos culturais, além de aproveitarem a própria bagagem cultural trazida pelo aluno. Por

isso, as brincadeiras não só dão prazer às crianças, quanto são parte da cultura lúdica infantil e,

utilizá-los é uma forma de resgatá-las, servindo como um poderoso recurso metodológico

(FREIDMANN, 1996).

Portanto, o brincar é eminentemente educativo no sentido em que constitui meios

para desenvolver a curiosidade e o princípio de toda descoberta, apresenta valores específicos para

todas as fases da vida humana. E ao pensarmos nas brincadeiras populares podemos considera-las

um fenômeno histórico social de irrefutável significação cultural, independentemente de gênero,

ideologia, etnia, credo, raça, condições socioeconômicas etc., e cabe a escola socializar os

indivíduos com patrimônio cientifico e cultural produzido historicamente pela humanidade, de

modo que os homens possam adquirir a autonomia necessária a sua interação e intervenção no

processo de construção e direção da sociedade.

5 CONCLUSÕES

Grande parte da literatura analisada entende como sinônimo o jogo, o brinquedo e a

brincadeira. Não se tem com este trabalho a pretensão de estabelecer uma diferenciação destes

termos, apesar de realizar uma análise apenas do jogo, até mesmo porque se entende que esses

termos se relacionam e se completam e, portanto se consideram sinônimos. O que se procurou foi

explorar uma variedade de olhares sobre o jogo e com isso possibilitar sua maior utilização.

193

É neste sentido também que tal pesquisa possibilitou considerar o jogo como um

elemento tão antigo na história do homem que o leva a ser questionado como um elemento natural

ou cultural da espécie (HUIZINGA, 2005). No entanto, o jogo ultrapassou a barreira do tempo, das

sociedades e dos valores a que ele foi submetido, estando presente em diferentes momentos

históricos. Sua própria história talvez seja uma das principais responsáveis por lhe proporcionar

tamanha amplitude, assim como a complexidade de sua natureza (BRUHNS, 1999).

Com isso considera-se que os jogos possuem uma grande relação com aspectos

socioculturais, o que o torna um fenômeno histórico e cultural fazendo sua presença dentro da

escola indispensável e consequentemente constituindo um instrumento pedagógico de grande valor

no ambiente escolar, proporcionando vivências e experimentações variadas, pois assim como sua

importância é inegável os benefícios atribuídos a ele também, já que colaboram com o

desenvolvimento infantil de forma singular, atingindo todas as dimensões do comportamento

humano.

Paralelo a isso é fato que independentemente de estar em uma escola ou não a

criança vai jogar e brincar. O que torna o jogo importante dentro da escola e principalmente para a

Educação Física, é o fato de além de ser um poderoso recurso pedagógico, ter grande capacidade de

proporcionar prazer e vivências lúdicas aos seus praticantes. O jogo possui a capacidade de

contribuir para o desenvolvimento não só de qualidades e capacidades físicas, mas também para a

disseminação de valores morais e éticos que venham a contribuir para formação intelectual e da

personalidade do indivíduo. Sendo assim, não se pode negar o caráter educacional do jogo, que se

constitui como atividade para o desenvolvimento humano.

Tais observações levam a perceber que o jogo é utilizado dentro do ambiente escolar

muitas vezes de forma competitiva e até em alguns momentos se confundindo com outro fenômeno,

o esporte. Mas nota-se que a aprendizagem de gestos técnicos não é a única forma de utilização do

jogo e muito menos item de discussão desta pesquisa, no entanto, este também é utilizado de forma

lúdica e visa objetivos pedagógicos, contribuindo para formação da personalidade, transmitindo

valores diversos.

Diante disso, deve-se pautar nos pilares da educação para propormos a utilização do

jogo de forma fundamentada para que ele possa contribuir com mudanças significativas, não só no

ambiente escolar ou nas aulas de Educação Física, mas para a construção de autonomia, no resgate

de valores e de forma geral na vida das pessoas.

Assim como foi visto anteriormente, sugere-se ao profissional de Educação Física

uma ampla utilização do jogo, não o limitando a simples adestramento técnico, mas transcendendo a

barreira da competição e do aperfeiçoamento de habilidades. Para isso é fundamental o

planejamento de um amplo programa com atividades lúdicas, cooperativas, culturais e populares

194

que venham a suprir necessidades condicionantes das crianças, objetivando em suas metas atingir

não apenas de forma secundária, mas de modo primordial o prazer e a satisfação na realização das

atividades.

Porém, se faz necessário deixar claro que este trabalho não coloca o jogo como o

redentor da Educação e/ou da Educação Física. Pretende-se mostrar que o jogo não deve

necessariamente ser interpretado como algo altamente competitivo ou que deve servir apenas para

distrair e entreter, mas sim como uma das muitas alternativas para a aquisição de conhecimentos,

vivências e trocas de experiências. Para tanto, deve-se construir objetivos que possam aproximar as

pessoas e uni-las na busca de objetivos comuns, sendo um elo da grande corrente que é a educação

de qualidade.

6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, P. N. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. 9.ed. São Paulo: Loyola,1998.

ARAÚJO, M. J. Crianças sentadas! Os "trabalhos de casa" no ATL.Porto: Livpsic, 2006.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.

BETTI, M. Educação Física e sociedade. São Paulo: Movimento, 1991.

BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. - Brasília: MEC/SEF, 1997.

BROTTO, F. O. Jogos cooperativos: o jogo e o esporte como exercício de convivência. Campinas: 1999. Dissertação (Mestrado) - UNESP.

BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

BRUNHS, H.T. Lazer e meio ambiente: reflexões sobre turismo de aventura. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas: 21(1), p. 727-731, set., 1999.

CAILLOIS, R. Os jogos e o Homem. Lisboa, Portugal: Cotovia, 1990, p. 09-228.

CASTELLANI FILHO, L. Educação Física no Brasil: história que não se conta. 4.ed. Campinas, Papirus, 1994.

CAVALLARI, V. R.; ZACHARIAS, V. Trabalhando com Recreação. Ícone. São Paulo, 1994.

FANTIN, M. Jogo, brincadeira e cultura na educação infantil. Florianópolis. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996.

FONTANA, R.; CRUZ, N. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997.

FREIRE, J. B. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física. São Paulo: Scipione, (1989)

FREIRE, J. B.; SCAGLIA, A. J. Educação como Prática Corporal. São Paulo: Scipione, 2003.

FREIRE, P. Educação e mudança. Trad. de Moacir Gadotti e Lillian Lopes Martin. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

FRIEDMANN, A. Brincar: crescer e aprender - o resgate do jogo infantil. São Paulo: Editora Moderna, 1996.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

195

HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2005.

KISHIMOTO, T. M. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Pioneira, 2003.

MARINHO, I. P. História Geral da Educação Física. São Paulo: Cia Brasil Editora, 1980.

NEGRINE, A. Aprendizagem e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Prodil, 1994.

OLIVEIRA, V. M. Educação Física Humanista. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1986.

PINO, A. A. Afetividade e vida de relação. Campinas, UNICAMP: FE, 2000.

SOARES, C. L. et. a.t. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.

SOARES, C. L. et. al. Fundamentos da Educação Física Escolar. Rev. Bras. de Est. Pedagógicos Brasília 71(167), p. 51-68, jan-fev/1990.

STUMPF, J. M. O jogo nos dizeres e fazeres dos professores de Educação Física que atuam nas Séries Iniciais de Ensino Fundamental. Caxias do Sul: UCS, 2000.

VALSINER, J. Ontogeny of co-construcion of culture within socially organized environmental settings. In J. Valsiner (Ed.), Child development within culturally structured environments, 2, 283–297. New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1988.

VELASCO, C. G. Brincar: o despertar psicomotor. Rio de Janeiro: Sprint Editora, 1996.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

VYGOTSKY, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In. Psicologia e Pedagogia. São Paulo: Centauro, 2007. p. 25-42.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Lisboa: Antídoto, 1979.

WAJSKOP, G. Brincar na pré-escola. São Paulo: Cortez, 2005.