os desafios da escola pÚblica paranaense na perspectiva do ... · vinculada ao departamento de...
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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
WILLENDORF : reflexões sobre os cultos femininos nas sociedades arcaicas
Maria Isabelle Palma Gomes Corrêa Marcon1
Maria Paula Costa2
Resumo:
Este artigo procura sintetizar as principais atividades desempenhadas na Escola Estadual do Campo Miguel Desanoski, no município de Rio Azul. A proposta buscou promover reflexões que facilitassem a aprendizagem histórica e a formação da consciência histórica no que diz respeito ao estudo das sociedades arcaicas. Procurou analisar as Vênus pré-históricas numa perspectiva estética e temporal, entendendo as relações de sacralidade e beleza no tempo. Também promoveu debates acerca das noções de beleza e feiura no tempo, refletindo sobre a naturalização e a desconstrução desses padrões pré-definidos pela cultura estabelecida.
Palavras-chave: pré-história – fontes históricas – mitologia – sacralidade – hierofania
1 INTRODUÇÃO
A discussão em torno das Diretrizes Curriculares é um dos aspectos fundamentais
na construção pedagógica do currículo e dos desdobramentos metodológicos que os
conteúdos acadêmicos pressupõem. Isso significa ampliar o debate acerca do que
ensinar e como aprimorar os métodos de ensino. Pensando neste pressuposto, o projeto
de intervenção pedagógica apresentado para o Programa PDE em 2013 buscou a
resolução de um entrave metodológico para a aprendizagem histórica: como proporcionar
a construção do conhecimento sobre os períodos arcaicos da humanidade em turmas do
6º ano do Ensino Fundamental, considerando as questões temporais recuadas e as
características culturais que as distinguem.
É importante salientar porém que além dos documentos oficiais que definem os
currículos escolares, a saber as Diretrizes Curriculares Estaduais e os Parâmetros
Curriculares Nacionais, na prática, os livros didáticos distribuídos gratuitamente aos
alunos do Ensino Fundamental também compõem um arcabouço de concepções teóricas
norteadoras do currículo. E todas as problemáticas que envolvem o trânsito dos livros
didáticos em termos editoriais e metodológicos deveriam ser consideradas. Isso significa
1 Professora PDE, licenciada e bacharel em História, Mestre em História, Cultura e Sociedade, pela Universidade Federal do Paraná. Vinculada à Escola Estadual do Campo Miguel Desanoski, Rio Azul/Paraná. E-mail: [email protected]
2 Professora Orientadora, Doutora em História. Vinculada ao Departamento de História da Universidade do Centro-Oeste.
que existe uma convergência proposital a ser observada entre o plano de ensino proposto
pelo professor e os conteúdos “sugeridos” para cada série. Esse rol de tópicos a serem
explorados na construção do conhecimento, no caso da disciplina histórica, muitas vezes
considera apenas a linearidade dos eventos e despreza a articulação entre os seus temas
possíveis. Alguns manuais didáticos tendem a superar essa sucessão temporal de
acontecimentos históricos, buscando a combinação de estudos temáticos, com maior
relevância e significado para a compreensão dos contextos históricos.
Acontece que apesar da opção do livro didático estar sob a direta responsabilidade
do professor desde 1985, essa escolha sofre inúmeras ações de agentes externos, a
começar pela lista de obras a serem eleitas que é restringida pelo Ministério da Educação.
Não é preocupação deste artigo discutir as diferentes leituras teóricas e posicionamentos
políticos que o MEC e seus associados elegem no momento de incluir e sobretudo excluir
autores e títulos, mas é importante registrar que existe sim uma postura política recôndita
neste processo. Portanto, na prática, os livros didáticos ainda são um elemento
importante na definição dos currículos escolares, mesmo porque muitas vezes
constituem-se as únicas fontes de pesquisa dos alunos.
Com base nessa altercação entre as forças que concorrem na construção do
currículo escolar, esse estudo buscou suplantar uma visão tradicional da disciplina
histórica, ao mesmo tempo em que não se furtou de uma clara abordagem dos conteúdos
presentes no livro didático, apesar de sua linearidade marcante.
Buscou-se portanto uma proposta de intervenção pedagógica que pudesse
promover reflexões acerca do desenvolvimento humano nos primórdios das civilizações,
ao reconsiderar as formas de acesso aos períodos antigos sobretudo em relação ao
público-alvo deste estudo: alunos de 6º ano do Ensino Fundamental, com variação etária
entre 10 e 18 anos. A partir da análise de fontes históricas iconográficas das chamadas
Vênus pré-históricas, no que se refere a um entendimento não linear da história das
sociedades arcaicas, esta proposta recorreu ao cotejo dos padrões estéticos passados e
contemporâneos, por meio de uma reflexão histórica sobre as deusas antigas da
fertilidade, tendo como horizonte a desnaturalização de estereótipos temporais acerca da
beleza humana.
2 A IMPLEMENTAÇÃO
A preocupação essencial do projeto de intervenção não foi focada em uma
problemática específica da comunidade escolar a que se vinculava a proposta. Antes,
pautou-se num embaraço teórico-metodológico da aprendizagem histórica, podendo ser
ampliado e ressignificado para quaisquer ambientes de aprendizagem. Durante o
processo de implementação do projeto, a lotação de exercício do professor foi removida
para o município de Rio Azul, numa escola estadual de educação do campo, o que
obviamente presumiu certas peculiaridades.
A proposta foi implementada numa turma de 6º ano, com alunos entre 11 e 18
anos, filhos de produtores rurais da cultura do fumo e advindos em sua maioria de escolas
multisseriadas do campo, cujo déficit na alfabetização era evidente. Neste sentido, não
existiram apenas empecilhos metodológicos quanto aos conteúdos acadêmicos em si,
mas sobretudo em esferas anteriores na construção do pensamento teórico e histórico. O
trabalho com a língua portuguesa foi essencial para dinamizar a leitura e traçar
estratégias de interpretação e produção textual suficientes para a elaboração de conceitos
mais complexos.
As primeiras dificuldades puderam ser identificadas no entendimento das noções
de cultura e na relativização do conceito. Com o objetivo de convergir aspectos das
sociedades arcaicas com modos de produção social contemporâneos, buscou-se
paralelos com os grupos indígenas da atualidade. Esse procedimento tentou considerar
os conhecimentos prévios dos alunos que pudessem contribuir para a promoção de
reflexões, críticas e entendimentos múltiplos em relação a historicidade própria dos
educandos, tendo em vista a oportunidade de se criar uma “autonomia cognitiva” para
teorizar o conhecimento. Destarte, é mister levar em consideração a necessidade de
compreender a história a partir das significações que ela pode produzir, no mínimo para a
compreensão de que a contemporaneidade é o resultado de processos históricos
passados. A ciência histórica viabiliza a desnaturalização das organizações sociais, dos
valores temporais e das posturas político-culturais assumidas no tempo. Conforme Rüsen,
a reflexão histórica é o resultado da articulação entre o passado, o presente e o futuro:
(...) a consciência histórica não pode ser meramente equacionada como simples conhecimento do passado. A consciência histórica dá estrutura ao conhecimento histórico como um meio de entender o tempo presente e antecipar o futuro. Ela é uma combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela necessidade de entender o presente e de presumir o futuro.3
No entanto, ao se estabelecer tal estratégia, os alunos reproduziram a ideia de que
os “índios eram menos evoluídos” e portanto seriam sociedades menores e menos
3 SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba : Editora da UFPR, 2011. p.36-37
importantes. Aliado ao fato de existirem poucas comunidades tradicionais indígenas na
região (sobretudo porque a comunidade é solidamente constituída por imigrações
polonesa, ucraniana e italiana), os alunos demonstraram ter pouca vivência com
organizações sociais diferentes do modelo de acumulação em que estão inseridos.
Iniciou-se portanto um processo anterior de estudo, em que fosse possível articular
uma nova concepção de cultura, partindo da perspectiva da relativização. A dificuldade
em se construir um conceito histórico de sociedades tradicionais não se limitou à questão
temporal, mas sobretudo ao entendimento da existência de modos de produção
alternativos e de percepções sociais diferentes dos modelos em que os alunos estão
inseridos (no sentido da acumulação de capitais por meio do trabalho exaustivo no
campo).
Ao se buscar a construção de um pensamento que considerasse a diversidade
cultural e temporal, um segundo obstáculo emergiu: a dificuldade dos alunos na leitura de
um texto teórico e na produção de uma escrita que superasse o senso comum,
demonstrando um conhecimento mais complexo e científico. Pode-se observar que os
requisitos mínimos para a articulação textual são elementos ausentes na produção dos
alunos, tais como: ortografia, paragrafação, coesão, coerência e organização de ideias.
Alguns textos foram construídos com um conjunto de palavras sem conectivos verbais ou
nominais, o que quase inviabilizou uma correção e avaliação ou, no mínimo, uma
comunicação escrita. Optou-se pela oralidade, em debates mais produtivos durante os
momentos de aula, significando um avanço no andamento dos trabalhos.
Num segundo momento, os trechos do filme Guerra do Fogo4 possibilitaram
situações de aprendizado, ao se propor certos diálogos entre a teoria e aspectos do filme.
Nestas circunstâncias, pôde-se perceber um avanço concreto nas discussões, sobretudo
em relação à periodização da pré-história e às fontes pré-documentais como forma de
acesso ao passado.
Professor: - Por que o termo “pré-história” é considerado não adequado para
definir os períodos arcaicos da humanidade?
Aluno 1: - Não é serto (sic) falar porque pré significa antes, e antes tinha história,
mas sim não tinha escrita e eles usavam pinturas, pegadas, dezenhos.(sic)
4 A obra é uma produção cinematográfica francesa, onde o roteiro procura recriar o ambiente paleolítico e neolítico, numa perspectiva de vivência mútua entre os grupos humanos com graus de domínio tecnológico diferenciado. Ficha Técnica: La guerre du feu (1981). Realização: Jean-Jacques Annaud. Gênero: Fantasia – Aventura. Duração: 100 min. Origem: Canadá – França. Direção: Jean Jacques Annaud. Interpretação: Everett McGill, Ron Perlman, Nicholas Kadi, Rae Dawn Chong. Argumento: Gérard Brach, segundo um romance de J.H. Rosny Sr.
Aluno 2: - O termo pré-história é errado porque quando a gente fala pré-história a
gente pensa antes da história mas na verdade era tudo feito com objetos, crânios, os
restos de pessoas, porque naquele tempo não tinha escrita.(sic)
Durante muito tempo, a escola absorveu esses documentos imagéticos somente
por seu caráter ilustrativo, lúdico ou comprobatório de eventos históricos. Há que se
superar esta concepção distorcida de documento (que muitas vezes, mascara o mau uso
do tempo de aula) e promover a problematização do recurso audiovisual de forma a
garantir que ele seja de fato um instrumento metodológico para promover a aprendizagem
histórica. Nesse sentido, o uso pedagógico do filme possibilitou a compreensão de que o
desenvolvimento tecnológico de uma sociedade não significa que seus aspectos culturais
estejam igualmente subordinados a uma perspectiva evolucionista (do menos ao mais
“evoluído”) e que o termo cultura compreende inúmeras características de uma sociedade
para que se estabeleça uma definição superficial. Observe esse relato da aluna 3 em que
ela associa o aprendizado cultural com um impulso na melhoria das condições de
existência do grupo. Ela também articula a ampliação do grupo com um fator de
favorecimento ao progresso tecnológico: “Com as mudanças de lugares, eles foram
conhecendo mais os outros grupos... Os homens conheceram outras mulheres e com isso
foi aumentando mais os grupos. E assim aprenderam a fazer o fogo e o arco-flecha (sic).
Depois que os homens aprenderam a fazer o arco-flecha, a caça facilitou mais. E também
criaram plantações e foram melhorando o modo de vida”.
Os estudos de mitologia acabaram se tornando pouco ou quase irrelevantes, uma
vez que a noção de mito enquanto uma história verdadeira porque real para as pessoas
que nele acreditavam, acabou sendo compreendida como uma história verdadeira
apenas, tal como os mitos cristãos a respeito do mundo. Por se tratar de uma comunidade
extremamente religiosa e alunos muito pequenos, não foi possível promover uma
discussão tão aprofundada e de tantas desconstruções a contento, optando-se por
postergar esse debate.
Ao final das análises propostas acerca do filme, foi possível observar que os alunos
em geral compreenderam a diferença entre o criacionismo bíblico e a teoria do
evolucionismo darwinista, ao conseguir distinguir que as categorias de análise para um e
outro evento resultaram nos estudos arqueológicos e nas comprovações científicas que a
fé religiosa não tem condições de apresentar. Compreenderam que o ser humano é um
conjunto de complexas transformações biológicas e sociais, que estas modificações
compuseram centenas de milhares de anos até o alvorecer de sociedades mais
elaboradas e que os desígnios da religião explicam um mundo pré-científico, em que os
deuses ocupavam o papel central na explicação de eventos que hoje são melhores
conhecidos e descritos pela razão.
“A chuva e todas as coisas da natureza eram feitas pelos deuses no passado.
Hoje, a gente sabe que elas são só a Natureza (sic)”. Nesta observação, o aluno 1
consegue compreender que em tempos remotos a explicação dos fenômenos naturais era
dada por entes sobre-humanos. Obviamente que a concepção de uma entidade
sobrenatural não desapareceu durante a aprendizagem histórica; antes, ficou camuflada
entre alguns conhecimentos científicos que são inclusive aceitáveis no universo religioso
– o ciclo da água, as fases da Lua, os movimentos da Terra. Nestes termos, outras
disciplinas da matriz curricular contribuíram para que os alunos pudessem perceber que
existe um conhecimento formal e acadêmico, resultado de pesquisas científicas e,
portanto, concreto do ponto de vista da veracidade dos fatos, e uma fé religiosa,
transmitida por gerações, que, embora não contenha autenticidade científica, é resultado
de uma experiência particular, não comprovada, mas com virtude teológica. “O professor
de Geografia disse que na escola não se pode falar de Deus”, remetendo a esse discurso
científico do qual a escola se apropria e contribui para a construção.
Originalmente, a produção didático-pedagógica previa a aplicação de um
vocabulário histórico, em que os alunos pudessem elaborar conceitos acerca da pré-
história, ao caracterizar o paleolítico, o neolítico, o sedentarismo e o nomadismo,
percebendo que cada um deles são parte de um processo mais amplo e complexo. No
entanto, devido às grandes dificuldades identificadas nos textos dos estudantes, optou-se
em solicitar que eles elaborassem uma história em quadrinhos com o tema “um dia na
pré-história”. O vocabulário foi realizado de forma individual, mas com muita dificuldade.
Já os quadrinhos foram produzidos em grupos de 4 alunos, proporcionando contribuições
coletivas e atendimento mais efetivo do professor. Nesta atividade, observou-se que os
alunos compreenderam a existência de grupos humanos com níveis de desenvolvimento
tecnológico diferentes (figura 1), que o domínio do fogo foi uma das descobertas de maior
impacto sobre o desenvolvimento das sociedades (figura 2 e 3) e que este processo de
evolução tecnológica foi extenso e progressivo.
Figura 1: História em quadrinhos – Aluno 4
Fonte: arquivo pessoal
Figura 2: História em quadrinhos – Aluno 5
Fonte: arquivo pessoal
Figura 3: História em quadrinhos – Aluno 2
Fonte: Arquivo pessoal
Na esteira dessa discussão, pôde-se refletir coletivamente que o desenvolvimento
histórico do homem aconteceu sempre a partir de processos complexos, cujas
permanências e rupturas culturais são os motores da história. No trecho a seguir de
autoria do aluno 3, é possível observar que houve uma compreensão significativa das
adaptações que os grupos arcaicos foram impelidos para a sobrevivência: “Com o tempo,
elas [as mulheres, personagens da história] descobriram que não precisavam sair do
lugar para ter comida e sim plantar (sic)”. Nesta outra passagem, de autoria do aluno 2, os
alunos compreendem uma rústica divisão social definida entre os membros do grupo, o
que sugere a percepção de que aspectos da organização coletiva começaram a se
instituir: “Era sempre o mais velho que ordenava o grupo... Para qualquer situação”.
A ação posterior previa o estudo da religiosidade no mundo antigo, a partir dos
conceitos de hierofania (manifestação do sagrado) proposto por Mircea Eliade e Rudolf
Otto5 especificamente a respeito de sociedades arcaicas. Um dos primeiros pressupostos
que permitiu compreender o modo como o homem antigo se comunicou com a natureza e
expressou os múltiplos aspectos envolvidos nessa relação é que para ele as forças
naturais manifestavam e carregavam um profundo valor religioso: "a Natureza nunca é
exclusivamente natural"6. Os elementos do universo (o sol, a lua, a Terra, as chuvas, os
rios, os ventos, as flores, as plantas e o próprio homem) tiveram uma origem divina, foram
5 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.6 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo : Martins Fontes, 1992. p.99.
concebidos pelos deuses, portanto foram dotados primordialmente de um poder
supranatural. E, desse modo, o homem antigo percebeu a natureza a partir das epifanias
que a sua condição histórica e cultural permitiu.
Para que a mitologia pudesse ser compreendida a partir desse conceito de história
sagrada, foi proposta a leitura de textos a respeito das narrativas míticas. Porém, o estudo
teórico do mito não resultou em uma aprendizagem efetiva, levando em consideração a
problemática da construção do pensamento teórico. A aplicação da atividade prevista no
material didático (o mito de Atrasis) não proporcionou a compreensão de que ali estava
uma história mítica na medida em que ela era considerada verdadeira por aqueles que a
forjaram. Os alunos questionaram a autenticidade da história, desconsiderando que ali se
apresentava uma narrativa mitológica e significativa (portanto verdadeira) apenas para
aqueles que fundavam o seu mundo a partir dela. O professor postergou a análise do
texto para o momento em que fossem abordadas as mitologias da Grécia Antiga, uma vez
que suas histórias mágico-religiosas são bem mais difundidas no mundo ocidental.
Por outro lado, a compreensão de algumas características do elemento religioso a
partir da análise do filme (a ideia da fertilidade em mulheres mais avantajadas e a
preocupação em ritualizar as ações envolvendo a preservação da comunidade) foram
percebidas a contento entre os alunos. Ao promover a pesquisa sobre as Vênus pré-
históricas no laboratório de informática da Biblioteca Cidadã de Rio Azul (considerando a
inexistência de um espaço de pesquisa virtual na própria escola), os alunos
compreenderam que as estatuetas femininas tinham a função mágico-religiosa de recriar
o mundo maravilhoso dos começos ao reproduzir de forma ritual as narrativas míticas da
comunidade, apesar das diferenças estéticas existentes.
Ao cotejar as diversas estatuetas encontradas, os alunos preencheram um quadro
comparativo, delineando as funções e a origem de cada uma delas. Ao retornar as
discussões em sala, na confecção das Vênus em sabão, percebeu-se que os alunos
buscaram imprimir na escultura elementos de outras estatuetas visitadas virtualmente
(além da Willendorf que servia como modelo). Além disso, esculpiram o triângulo
invertido, símbolo da mulher e da fecundidade para a escrita ideográfica dos primórdios, e
acrescentaram rostos como os observados na pesquisa, argumentando que algumas
deusas eram personalizadas, porque tinham um epíteto, comprovando sua identidade e
pertencimento.
Figura 4 : escultura da Vênus em sabão produzida pelos alunos da Escola Estadual do Campo Miguel Desanoski
Fonte: Arquivo Pessoal
Figura 5: escultura da Vênus em sabão produzida pelos alunos da Escola Estadual do Campo Miguel Desanoski
Fonte: Arquivo Pessoal
A fim de proporcionar uma recuperação dos assuntos discutidos acerca dos
ambientes em que os homens arcaicos promoveram seu modus vivendi, realizou-se a
confecção de uma caverna pré-histórica, com materiais encontrados na região (“taquara
caratuva”) e papel jornal. As pinturas rupestres foram simuladas com o tingimento do
guache e em todos esses momentos o professor pode estimular, recuperar e reforçar
conhecimentos prévios do processo anterior de aprendizagem. Observou-se que durante
a exposição, os alunos conseguiram promover discursos sobre o período pré-histórico,
relataram modos de vida comparando o paleolítico e o neolítico, argumentaram sobre as
diferenças entre nômades e sedentários, a partir da noção de moradia e domínio sobre o
ambiente natural.
Em relação às Vênus pré-históricas, os alunos realizaram uma atividade escrita
analisando a imagem da estatueta e produziram reflexões complexas, tais como:
Professor: - A Vênus de Willendorf é feia? Justifique sua resposta:
Aluno 2: - Ela é feia porque ela é gorda.
Aluno 3: - Não, ela é bonita porque ela é sagrada.
Aluno 4: - Ela é bonita porque naquele tempo era uma mulher muito importante.
Claramente, observa-se que a noção de beleza para os alunos foi relativizada em
relação ao tempo histórico e compreendido a partir do seu próprio contexto. Em relação
ao aluno 2, interessante observar que ao retomar a atividade sobre os tipos de beleza ao
longo do tempo, ele modificou sua percepção e compreendeu que a mesma pessoa pode
ser considerada feia ou bonita, segundo parâmetros pessoais aplicados à analise.
Após a confecção das peças em sabão e o estudo pormenorizado que se
empreendeu durante o processo de escavação do material, os alunos já conseguiam
visualizar as dimensões e as dificuldades em produzir aquele artefato. E reconheceram a
importância que foi atribuída às estatuetas femininas, relembrando aspectos do filme
Guerra do Fogo em que as mulheres avantajadas eram melhor consideradas no grupo,
por suposição de que suas formas maiores pudessem criar mecanismos mais eficientes
de sobrevivência coletiva.
O debate sobre as funções religiosas das Vênus pré-históricas foram ampliadas
para as questões estéticas, referente à beleza e à feiura, uma vez que a ideia de
fertilidade está associada à noção do belo. Para as populações arcaicas, a estética
feminina estava diretamente relacionada à quantidade de descendentes viáveis de
indivíduos, fossem pessoas ou cultivos, o que garantiria igualmente a sobrevivência da
comunidade. Neste sentido, a noção de beleza estava associada às formas grandes de
mulher, com seios fartos e nádegas avantajadas, além do abdômen distendido.
Comparativamente, foram expostas imagens de pinturas de mulheres durante o período
grego, renascimento, século XIX e modelos das décadas de 30, 40, 50 e 70 do século XX.
Além disso, modelos contemporâneas em desfiles do século XXI.
Os alunos foram estimulados a contribuir com suas opiniões acerca da beleza e da
feiura que observavam nas imagens. Foi possível perceber que os padrões estéticos
contemporâneos prevaleceram até o momento em que a magreza em excesso foi posta
em debate. Foi nesses momentos que os alunos conseguiram compreender que os
exageros estéticos são mais prejudiciais (para a magreza ou obesidade) do que a própria
estética. Observe alguns textos coletados no debate e em atividades de aula: “As pessoas
feias não são feias no ponto de vista (sic) de outras pessoas”; “o que é bonito hoje,
amanhã é feio e o que é feio hoje, pode ser bonito amanhã”; “o tipo de beleza muda
muito, porque ninguém tem o mesmo gosto”; “o bonito hoje não vai ficar para sempre”.
Por fim, o aluno 2 organiza a seguinte frase que sintetiza parte desses estudos: “Eu acho
o Donizete bonito e a Emília acha ele feio. A beleza é temporal, pois ela se modifica com
o tempo. O que é lindo hoje, pode ser muito e muito feio amanhã”. Relevante colocar que
durante a atividade de escultura no sabão, o mesmo aluno foi categórico em associar a
feiura da estatueta com as formas volumosas apresentadas pelo artefato. Aqui, após os
estudos realizados, já realiza de modo satisfatório uma reflexão mais aprofundada,
desconstruindo estereótipos culturalmente estabelecidos.
Algumas respostas associam questões de higiene e de personalidade com
beleza/feiura, como a citação do aluno 4: “ele é bonito porque toma banho e passa
perfume” e “eu sou bonito porque sou divertido e legal”. Em sala de aula, o aluno 6 ainda
expressou a seguinte opinião: “uma pessoa só pode ser bonita se a cara dela for bonita.
Ela até pode ser legal, mas para namorar comigo tem que ter a cara bonita”.
Por fim, é possível concluir que a implementação da proposta de intervenção
pedagógica passou por uma série de peculiaridades não previstas nos momentos de
elaboração inicial. Muitos conhecimentos foram suprimidos em razão das dificuldades
inerentes à educação do campo, sobretudo em espaços escolares com parcos recursos
humanos e financeiros. Outros tantos poderão ser retomados ao longo do Ensino
Fundamental – séries finais, considerando que essa modalidade de ensino prevê a
formação humana como um dos pilares para a eficiência do processo. Importante frisar
que a educação histórica é uma área do conhecimento escolar que tem por primazia a
formação de sujeitos que se percebam na sua historicidade. E que, para tanto,
compreendam que o estudo da história é muito mais eficiente quando ele parte de uma
problematização (e, portanto, de uma investigação das fontes históricas) do que quando
ele se torna uma “transmissão” de conceitos didáticos e livrescos.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ciência histórica tem passado por inúmeras modificações metodológicas desde
que se fundamentou como um saber escolar. A reprodução e a memorização de eventos
históricos, a exaltação de líderes políticos e a construção de heróis nacionais foram os
instrumentos pedagógicos da história durante quase todo o século XX. Ainda resistem
posicionamentos tais na prática docente em relação aos conteúdos de história e sua
avaliação.
Este artigo buscou justamente superar a visão factual e massificadora da ciência
histórica, problematizando seus conceitos e relacionando-os temporalmente com a nossa
realidade. Ao refletir sobre a pré-história e sobre as características que a arqueologia
pôde desvendar, espera-se que os alunos compreendam a sua própria percepção de
mundo, no cotejo das semelhanças e diferenças de organização social. Espera-se que a
reflexão não se perca em datas distantes e em entendimentos anacrônicos do período. E
que mais do que o estudo da antiguidade arcaica, os alunos se percebam como seres que
produzem história.
É, portanto, urgente que a análise dos processos não se restrinja ao seu passado
remoto e que possa afinal promover a compreensão da nossa própria historicidade.
É indiscutível que vivemos hoje um momento histórico em que as mídias são
facilitadoras das relações humanas. As redes sociais e a geração de jovens que se
utilizam de meios eletrônicos para conhecer pessoas e lugares estão em evidente
crescimento. A necessidade do mundo cibernético em requerer imagens, muito mais do
que os textos, é outro importante ponto de reflexão. Aqui está a questão do que é belo ou
feio, uma vez que o universo virtual dita padrões de beleza. E assoberbados de tanta
iconografia (às vezes, iconoclastia), os jovens naturalizam o que é histórico e, portanto,
forjado por um contexto cultural e temporal. Cabe ao saber histórico escolar construir um
entendimento de que as pessoas são fruto de uma época e que podem modificar suas
próprias maneiras de ver a realidade. E que, por fim, a formação histórica é afinal o
indivíduo conseguir transitar pelas ideias de forma livre e libertária, compreendendo que
suas percepções de vida são parte de um emaranhado de histórias. Histórias que
poderão ser recontadas e ressignificadas a qualquer tempo.
4 REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Programa Nacional do Livro Didático. Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=668id=12391option=com_contentview=article. Acesso em 03/09/2104.ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs).
Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2011.
OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.