os defensores - museu de ladrões

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Bem-vindo à tirânica cidade de Jewel, onde a impaciência é um pecado e a ousadia é um crime. Goldie Roth viveu em Jewel por toda a sua vida. Como toda criança da cidade, ela deve andar presa em correntes até o Dia da Separação, e é forçada a obedecer aos temidos Guardiões Abençoados. [...]

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O DIA DA SEPARAÇÃO

G oldie Roth detestava as correntes de castigo. Ela detestava aquilo mais do que qualquer outra coisa...

a não ser, talvez, os Guardiões Abençoados. As algemas de latão se fechavam ao redor de seus pulsos e o peso das correntes caía sobre seus ombros; ela só olhava tristonha para o calçamento de pedra.

Ela sabia o que iria acontecer a seguir. A Guardiã Esperança faria alguma citação para ela. Alguma coisa idiota tirada do Livro dos Sete. O Guardião Consolo provavelmente também diria alguma coisa, e os dois ficariam com aquela cara de quem está feliz consigo mesmo.

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Pronto, lá vinha. A Guardiã Esperança deu alguns puxões nas correntes de castigo para ter certeza de que estavam bem presas, então ergueu um dedo gorducho.

— Uma Criança Impaciente — ela disse — É Uma Criança Sem Segurança.

— Uma Criança Sem Segurança — disse o Guardião Consolo, juntando as mãos na frente do corpo, em um gesto de piedade — Coloca Todas as Outras Crianças em Risco!

“A única coisa que eu f iz foi correr um pouquinho”, Goldie pensou. Mas ela não disse nada. Não queria se meter em mais confusão ainda. Não naquele dia. Ah, hoje não, com certeza...

Ela espiou os colegas de classe com o canto do olho. Jube, Plum, Glory e Fort olhavam para qualquer lugar que não fosse para Goldie, esperando que a confusão que ela causou não sobrasse para eles. Só Favour observava, com os olhos sérios, as mãos se agitando para se unir e tremelicando para se separar nos pequenos movimentos secretos da linguagem dos dedos.

Para os Guardiões Abençoados, devia parecer que Favour estava tirando os fiapos da bata, ou brincando com os elos de sua correntinha de guarda prateada. Mas, para Goldie, as palavras eram límpidas como cristal. “Não se preocupe. Agora não vai demorar.”

Goldie tentou sorrir, mas o peso das correntes de castigo parecia ter tirado toda sua alegria. “Hoje era para ser um dia BOM”, ela disse com sinais bem marcados. “Agora, olhe só para mim!”

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— Por acaso você fez uma careta? — a Guardiã Esperança disse. — Você fez careta para mim, Goldie?

— Não, Guardiã — Goldie balbuciou.— Foi uma careta sim, colega — disse o Guardião Con-

solo. A manhã já estava quente, ele tinha afastado as vestes pretas pesadas dos ombros e enxugava a testa. — Eu vi uma careta, sem dúvida nenhuma!

— Talvez as correntes de latão não sejam castigo suficiente — disse a Guardiã Esperança. — Deixe-me ver. O que pode-mos fazer para tornar esta lição mais memorável? — Seus olhos caíram sobre o passarinho esmaltado que estava preso na parte da frente da bata de Goldie. — Esse broche. De onde ele veio?

O coração de Goldie se apertou.— Foi Ma que me deu — ela balbuciou.— Fale alto! Não estou escutando.— Foi Ma que me deu. Era da minha tia Praise.— Aquela que desapareceu há anos?— Sim, Guardiã.— Desapareceu? — o Guardião Consolo perguntou com

a sobrancelha erguida.— Praise Koch sumiu — a Guardiã Esperança respondeu,

amarga — no dia seguinte de sua Separação. Ela era ousada demais, é claro, igual a esta sua sobrinha aqui. Sem uma cor-rente de guarda para protegê-la, deve ter caído em um dos canais e se afogado. Ou foi sequestrada por mercadores de escravos e levada para uma vida de tristeza e desesperança.

Ela olhou de novo para Goldie.

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— Este broche é importante para você e para a sua família?— É sim, Guardiã — Goldie balbuciou.— E suponho que você pense na sua tia audaciosa quando

o usa?— Penso... quer dizer, não, Guardiã! Nunca!— Não acredito em você. Sua primeira resposta era a que

continha a verdade. Você não devia andar com este adorno. É um mau exemplo.

— Mas...!A Guardiã Esperança puxou as correntes de castigo. Elas

fizeram clank, clank, clank. Goldie mordeu a língua para não reclamar. Se fosse qualquer outro dia, ela teria reclamado, fossem quais fossem as consequências. Mas hoje, não. Hoje, não!

Com um gesto ríspido, a Guardiã Esperança tirou o bro-che azul da bata dela e o colocou no bolso de suas vestes. Gol-die observou enquanto o passarinho azul cheio de promessa desaparecia na escuridão.

— E agora — disse a Guardiã Esperança — precisamos ir andando. — A boca dela se contorceu em um sorriso sar-cástico. — Não podemos nos atrasar para uma cerimônia tão importante, não é mesmo? A Grande Protetora ficaria muuuito decepcionada.

Ela saiu pela Praça Forlorn, com Goldie tropeçando a seu lado. Clank, clank, clank. As outras crianças seguiam atrás do Guardião Consolo, com suas correntes de guarda presas ao cinto de couro dele. Todos por quem eles passavam ficavam

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olhando fixo para Goldie, mas logo desviavam o olhar, como se ela tivesse alguma doença.

Claro que as pessoas estavam acostumadas a ver crianças acorrentadas. Todas as crianças da cidade de Jewel usavam uma corrente de guarda de prata no pulso esquerdo, do momento em que aprendiam a andar até o Dia da Sepa-ração. Sempre que saíam de casa, a corrente de guarda as ligava aos pais ou a um dos Guardiões Abençoados. À noite, a corrente era amarrada à cabeceira da cama, para que nin-guém pudesse invadir a casa e levá-las embora enquanto os pais dormiam.

Mas as correntes de castigo eram diferentes. As correntes de castigo ficavam presas nos dois pulsos. Elas eram muito mais pesadas do que as correntinhas prateadas de guarda e faziam um barulho de dar vergonha, para todo o mundo saber que a criança tinha feito algo que desagradou os Guardiões Abençoados. E isso era algo muito perigoso de se fazer...

Ao se aproximarem do Grande Canal, Goldie ouviu um rugido seco. O Guardião Consolo parou e inclinou a cabeça.

— O que foi isso? Será que algum perigo nos aguarda, colega?

A Guardiã Esperança encurtou ainda mais as correntes de castigo e arrastou Goldie pela rua estreita até a esquina seguinte. Goldie cerrou os dentes e tentou não pensar no broche azul.

— Nenhum perigo — a Guardiã Esperança gritou. — É só um monte de gente.

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O Guardião Consolo fez com que o restante da classe fosse até a esquina e todos ficaram olhando para a multidão que caminhava pelo bulevar que ladeava o Grande Canal.

— Para onde essa gente toda está indo? — o Guardião Consolo quis saber. — Os mercados só abrem amanhã.

— Imagino que estejam indo para o Grande Salão — a Guardiã Esperança respondeu. Então, ergueu a voz. — Para presenciar esta cerimônia de Separação. Esta Abominação!

Várias das pessoas que passavam se viraram para ver quem estava falando. Quando viram os dois Guardiões Abençoados, pareceram se encolher um pouco, como se a visão das vestes negras e dos chapeuzinhos quadrados e negros bastasse para lhes meter medo.

Goldie sentiu um rompante de raiva. Ela detestava a maneira como os Guardiões faziam todas as pessoas agirem como se fossem menos importantes do que de fato eram. Ela mudou as mãos de posição para que Favour pudesse enxergá-las.

“Amanhã eu vou pegar um brizzlehound”, ela disse em sinais. “Um brizzlehound COM FOME. Coloco em um saco, levo para a Guardiã Esperança: ‘Ah, Guardiã Abençoada, aqui está um presente para agradecer por todos os anos de cuidados ternos. Por favor, abra com cuidado!’”

O rosto de Favour permaneceu vazio, mas seus olhos deram risada.

“Não vai dar certo”, ela fez com sinais. “O brizzlehound vai morrer de medo quando vir a cara feia da Guardiã Esperança.”

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— Não sei o que a Grande Protetora deve estar pensando — o Guardião Consolo resmungou ao dar uma olhada na multidão. — Diminuir a Idade da Separação de dezesseis para doze anos! Se ela tivesse alguma noção, iria aumentar a idade! Para dezoito. Ou vinte!

— A Protetora é uma tola. Ela acredita que a cidade está mais segura do que antes. Ela acha que está na hora de mudar — disse a Guardiã Esperança. Ela e o Guardião Consolo se entreolharam e soltaram uma gargalhada grosseira. Então entraram no meio da multidão, arrastando as crianças consigo.

As pessoas logo iam abrindo caminho para eles e, em pou-co tempo, já estavam caminhando em espaço aberto. Goldie ficou pensando que parecia haver uma linha invisível traçada ao redor deles que ninguém queria atravessar.

— Olhe só para esta gente — a Guardiã Esperança sibi-lou. — Elas nos evitam como se fôssemos cachorros. Não sabem como têm sorte por nós cuidarmos das crianças deles!

— Talvez devêssemos lembrar a eles, colega — a Guar-diã Esperança assentiu com a cabeça, pensativa. — Talvez devêssemos mesmo. — Ela ergueu a voz. — Deve ser óbvio para qualquer pessoa que pensa, colega, que a Protetora está cometendo um erro sério ao diminuir a Idade de Separação. Você não acha?

— Acho sim, colega. Um erro muito sério.— Jewel hoje é tão perigosa quanto sempre foi. A única

coisa que mantém as crianças em segurança é a vigilância dos Guardiões Abençoados. Tire esta vigilância e nós vamos

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voltar diretamente para como era antes! Será que todo o mundo se esqueceu de como aquele tempo era terrível? Será que se esqueceram dos afogamentos? Das doenças?

— Febre púrpura — disse o Guardião Consolo, tremendo de um jeito dramático. — Feridas com pus no coração. Peste!

As pessoas que estavam por perto e escutaram se entreo-lharam de mau jeito.

— Será que se esqueceram dos mercadores de escravos? — a Guardiã Esperança perguntou.

Você se esqueceu do seu broche? uma voz baixinha sussurrou no fundo da mente de Goldie.

Os olhos de Goldie se arregalaram. Ela tinha escutado aquela voz a vida toda, como se fosse um sussurro que viesse de algum lugar bem no fundo dela. Às vezes, ela a metia em encrencas; às vezes, fazia com que se safasse. Ela nunca tinha contado para ninguém a respeito dela, nem mesmo a Ma e a Pa. Nem mesmo a Favour.

Ela não vai devolver, a voz sussurrou. E talvez você nunca mais volte a f icar assim tão perto dela.

Goldie deu uma olhada para o lugar em que sua mão direita se apertava contra as vestes da Guardiã Esperança.

“Hm, hm”, ela pensou, sacudindo a cabeça mentalmente. Aquele com certeza seria um péssimo momento para arrumar confusão. Imagine o alarde se a Guardiã Esperança descobris-se que o broche não estava mais lá!

Ela vai achar que perdeu, a voz disse baixinho. E, além do mais, é o Dia da Separação.

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O Dia da Separação! O dia em que a corrente de guarda prateada de Goldie seria removida para sempre! A partir de agora, ela teria permissão para andar sozinha pelas ruas, sem estar presa aos Guardiões Abençoados. Era como se fosse o começo de uma vida nova.

Talvez a voz tivesse razão...O Guardião Consolo se inclinou na direção da Guardiã

Esperança.— Fui informado de fonte segura — ele disse em voz

bem alta — que os navios dos mercadores de escravos estão ancorados logo além do horizonte, só esperando que nós baixemos a guarda! Natkin Gull, Old Lady Skint, o infame Capitão Roop. O que uma criança de doze anos vai poder fazer contra esses monstros, pode me dizer?

Um homem na beirada do círculo invisível balbuciou:— Os Sete Deuses nos protegem — e estalou os dedos,

ansioso.Goldie estalou os dedos dela também, só para garantir.Os Sete Deuses de Jewel não eram deuses benevolentes.

Eles eram violentos e imprevisíveis (menos Thoke Careca, cujo maior problema era o senso de humor estranho). Louvá--los era bem difícil para os homens. Não dava para ignorá-los, porque deuses não gostam de ser ignorados. Mas pedir a ajuda deles era arriscado. Se estivessem com o humor errado, podiam muito bem enviar uma chuva de bolas de fogo quan-do alguém só tivesse pedido um clima mais quente para que as mangas amadurecessem.

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Então, como a maior parte das pessoas, Goldie recorria a eles em momentos de dificuldade. Mas, ao mesmo tempo, estalava os dedos, que significava: “Não se preocupem comigo! Por favor, vão ajudar outra pessoa!”.

Ela certamente não queria que o Grande Amadeirado e seus companheiros imortais viessem se interessar por ela agora. Ela também não queria que ninguém a ficasse observando. Por sorte, todo o mundo na multidão que avançava devagar olhava firme para frente, tentando parecer pequeno e insignificante para que os Guardiões Abençoados não tivessem nenhum motivo para implicar. Ninguém estava observando Goldie.

Ela pensou no passarinho azul, perdido na escuridão das vestes da Guardiã Esperança. Ela pensou em tia Praise. Tia Praise, tão audaciosa! Respirou fundo. Empurrou a algema da corrente de castigo o mais alto possível no braço, para não fazer barulho nem atrapalhar. Então enfiou a mão no bolso da Guardiã Esperança.

Ela sempre tinha sido boa para se movimentar sem fazer barulho. Agora, apalpava a escuridão com o mesmo silêncio que uma folha caindo da árvore. As correntes traiçoeiras permaneceram silenciosas. A Guardiã Esperança caminhava a seu lado, fazendo cara feia.

Os dedos de Goldie tocaram as asas abertas.E, de repente, ela teve a sensação de que alguém a estava

observando. Sua mão se paralisou, ainda dentro do bolso das vestes negras. Da maneira mais inocente que foi capaz, ela olhou ao redor. Não conseguiu ver ninguém que a observasse.

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Era só uma multidão comum, amedrontada. Tirando... tirando um ponto específico em que seus olhos pareceram deslizar...

Olhe com mais atenção, a voz no fundo da mente dela sus-surrou.

Goldie olhou com mais atenção. Enxergou um vislumbre de preto que não parecia pertencer a nenhuma das pessoas ao redor dela. Por algum motivo, era difícil fixar os olhos nele. A luz meio que... passou deslizando, como se fosse desimpor-tante demais para merecer preocupação.

Olhe com mais atenção.E então Goldie o viu. Um homem alto e magro, vestido

com uma casaca preta antiquada, com mangas curtas demais para seus braços compridos, de modo que seus pulsos se pro-jetavam em ângulos desajeitados. Ele acompanhava o ritmo do grupinho de crianças e Guardiões e olhava fixo para ela.

Quando viu que ela também estava olhando para ele, seu rosto ficou lívido de surpresa. Ele se escondeu atrás de outro homem e desapareceu no meio da multidão.

A força retornou aos dedos de Goldie. Ela os fechou em volta do passarinho azul e o libertou das vestes da Guardiã Esperança. Suas asas pareciam bater dentro da mão dela, como se a agradecessem pela liberdade.

Apesar do peso das correntes de castigo, uma onda de ani-mação se formou dentro de Goldie. Era o Dia da Separação. Dali a uma hora, ela também estaria livre.

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