obscuro visionário

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  • 7/26/2019 Obscuro visionrio

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    Obscuro visionrio:Ecoando estilos e escolas diversos, Augusto dos Anjos escapa doreal figurativo e elege a noite como cenrio de seus densos enigmas.

    Henrique Duarte Neto(Revista de Histria, !"#$.

    %orte e mist&rio. A poesia de Augusto dos Anjos ("''#")"#$ parece carregar em seusversos estes dois polos de atra*+o. primeiro tem no cemit&rio o cenrio em que dei-ade ser mera amea*a para se tornar realidade suprema. segundo a/ita a noite, ondesurgem as quest0es incompreens1veis. uso de termos como visionrio, destino,esfinge e trevas corro/oram a tese de que o poeta se coloca diante de quest0es denature2a metaf1sica.

    No soneto 34olilquio de um visionrio5, o que se devassa ultrapassa uma apreens+opuramente material. Augusto dos Anjos e-plora no poema a transcend6ncia do olar7

    8ara desvirginar o la/irintoDo velo e metaf1sico %ist&rio,9omi meus olos crus no cemit&rio,

    Numa antropofagia de faminto:

    8ara al&m da autofagia e da metfora grotesca, o que se delineia no soneto n+o & umdescolamento do mundo, mas uma tentativa de compreend6lo. ;isa atingir a ess6ncia,romper a superf1cie e o figurativo, ultrapassar a realidade o/jetiva para tentar e-plicarcomo se regula o processo que leva < inapelvel decomposi*+o de toda a vida org=nica. poeta privilegia o mist&rio acerca do destino dos seres e do universo. >a2 poesiametaf1sica, enfim.

    %as Augusto dos Anjos tam/&m tra2 para o leitor a esfera mais imediata e cotidiana darealidade. A utili2a*+o de palavras e e-press0es coloquiais, sem registro po&tico at&ent+o, & um tra*o estil1stico do autor que antecipa o modernismo em nossas letras. Esten+o & o ?nico aspecto de vanguarda em sua o/ra. H as rimas inovadoras @ e mesmodissonantes @ as elipses entre estrofes e versos, as metforas grotescas.

    %uitas ve2es & o prprio voca/ulrio que sugere a dilacera*+o tanto dos corpos como dalinguagem, o que no segundo caso, principalmente, revela a faceta moderna do autor.

    No poema 3uei-as noturnas5, por e-emplo, ele se utili2a de variantes dos ver/osromper, arrancar, esmagar, dilatar, torcer, tom/ar, estorcer e estrangular. Estacaracter1stica, somada a outras, como a recorr6ncia de ip&r/oles e superlativos, fa2com que sua poesia seja marcada por atmosferas de tens+o e pelo desenvolvimentoconstante de um cl1ma- e-pressivo.

    Bntensidade que gana contornos m-imos quando o 3poeta do Eu5 descortina a noite,uma de suas paisagens privilegiadas. A palavra noite (e suas deriva*0es$ & enfati2adaconstantemente em sua o/ra. Cornase uma esp&cie de cenrio onde ocorremdesagrega*0es, despeda*amentos, mis&rias e d?vidas metaf1sicas. uando a escurid+ogana o c&u, criase o espetculo prop1cio para a e-press+o de um lado mais pessimista

    do poeta, e outro de nature2a interrogativa. s questionamentos de Augusto dos Anjosest+o relacionados ao mist&rio csmico. Em38oema negro5, ele indaga7 3uem sou

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    8ara onde vou ual mina origem5. 4+o perguntas relacionadas unda*+o Ii/lioteca Nacional$Ao fa2er uso do grotesco, Augusto dos Anjos, em gravura acima, e-plora umainterioridade para al&m da realidade o/jetiva. (Bmagem7 >unda*+o Ii/lioteca Nacional$

    que se coloca muitas ve2es como sinal de mist&rio & a impossi/ilidade do olarfigurativo, aquele composto na retina, que foca os seres o/jetivamente atrav&s das

    sensa*0es ticas. E-p0ese mesmo uma degrada*+o do olar. Cal como em 34olilquiode um visionrio5, tentase, ao eliminar o sensrio, /uscar uma forma especial de

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    capta*+o do que est distante do plano f1sico. que Augusto dos Anjos persegue & umolar para al&m do olar.

    N+o & < toa que, em muitos outros momentos, e-p0e a degrada*+o dos olos, comotam/&m do tato. E em algumas ocasi0es prop0e o encontro de uma forma especial de

    ver ou tocar. 9omo nesta estrofe de 3%ist&rios de um fsforo5, em que e-pressa umaesp&cie de supraolar a devassar a prpria g6nese da vida7

    E afago mentalmente os olos fundosNa amorfia da c1tula inicial,De onde, por epig6nese geral,Codos os organismos s+o oriundos.

    A e-press+o 3olos fundos5 corro/ora a ideia de que estamos lidando com uma fuga daperspectiva naturalista de encarar o real. Referese a algo transcendental. A noitesim/oli2a este espa*o do olar n+o retiniano. que se perscruta & o inominado por trs

    da 3amorfia5 (aus6ncia de forma determinada$, da 3c1tula5 (desagrega*+o de c&lulas$3inicial5. %uito atento ao discurso cient1fico que tina < m+o na sua &poca, ele so/rep0eao sa/er da ci6ncia e da filosofia a interroga*+o, o mist&rio muito prop1cio < seara da

    poesia.

    uma verdade corrente entre os estudiosos de Augusto dos Anjos o fato de ele n+o terassumido uma escola literria, nem ter sido acolido por uma delas, mesmo aps suamorte em ")"#, aos J! anos de idade. Bsso n+o impediu, no entanto, que os cr1ticossempre fi2essem paralelos e esta/elecessem converg6ncias entre sua poesia e diversasest&ticas do per1odo @ ou anteriores e posteriores.

    Em/ora nunca tena pertencido a uma escola literria, Augusto dos Anjos foi associadoa muitos artistas, como o cineasta espanol Kuis IuLel. Acima, imagem do filme c+oandalu2. (Bmagem7 Reprodu*+o$Em/ora nunca tena pertencido a uma escola literria, Augusto dos Anjos foi associadoa muitos artistas, como o cineasta espanol Kuis IuLel. Acima, imagem do filme c+oandalu2. (Bmagem7 Reprodu*+o$

    Assim como rastros /arrocos em 3%ist&rios de um fsforo5 @ com a sim/ologiacrist+ das cin2as (3s p e ao p voltars5$ @ tam/&m a presen*a do agMnico defei*0es rom=nticas em muitos de seus poemas. %ais n1tidas s+o as semelan*as e as

    poss1veis analogias com escolas est&ticas que fogem da representa*+o colada aofigurativo. Na constante /usca da disson=ncia e da deforma*+o, o 3poeta do Eu5 &e-poente de uma tradi*+o art1stica que prefigura o antimimetismo, ou seja, rompe com arepresenta*+o colada aos dados sensoriais, < realidade figurativa. sim/olismo, com ainfla*+o do eu @ que se torna csmico @ com a atra*+o pelo gouffre @ a/ismo @ e pelamorte. e-pressionismo, que o poeta muito provavelmente n+o coneceu, mas cujostra*os se fa2em presentes na s&rie de poemas nos quais irrompem o grotesco, a metforaousada, a palavra /r/ara. E tam/&m o surrealismo, que ele anteviu em poemas geniaiscomo 3Criste2as de um quarto minguante5 e 3As cismas do destino57 cenas dedilacera*+o (3Duas, tr6s, quatro, cinco, seis e sete ;e2es que eu me furei com umcanivete, A emoglo/ina vina ceia de gua:5$ parecem sa1das de um filme de

    IuLuel, como c+o andalu2 ("))$.

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    As facetas da o/ra de Augusto dos Anjos, muitas ve2es so/repostas, resultam em umapoesia ricamente povoada. As guas onde o poeta navega s+o profundas e densas, epodem revelar acados magn1ficos. %esmo que, eventualmente, adentre numa 2ona derarefa*+o e certa e-or/it=ncia.

    Henrique Duarte Neto & autor de A noite enigmtica e dilacerante de Augusto dos Anjos.Ilumenau7 Nova Ketra, !"" e da tese 3Dentro da Noite >unda7 Enigma, 8erda e8erman6ncia na 8oesia de Augusto dos Anjos5 (F>49, !!O$.

    4ai/a %ais7

    AN4, Augusto dos. /ra completa (org. Ale-ei Iueno$. Rio de aneiro7 NovaAguilar, "))P.QFKKAR, >erreira. 3Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina5. Bn7 Augusto dosAnjos. Coda poesia. J. ed. revista. 4+o 8aulo7 8a2 e Cerra, "))O.