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Ao final desta Unidade, o aluno deverá saber:
• compreender as diferenças entre as formas
de conhecimento mítico-religioso, filosófico
e científico;
• entender quais os principais problemas
envolvidos na teoria do conhecimento e
como, ao longo da história, diferentes
soluções foram exploradas para tais
problemas.Obje
tivos
TEORIAS DOCONHECIMENTO
unidade
UNIDADE 2TEORIAS DO CONHECIMENTO
1 INTRODUÇÃO
Esta unidade apresenta as diferentes teorias sobre o
conhecimento e os diferentes tipos de conhecimento e seus respectivos
critérios de validade.
Na unidade anterior vimos que o conhecimento é algo vital para
nossa sobrevivência. Podemos até mesmo dizer que “conhecer é viver”,
mas, como toda realidade humana, está permeado por interesses
e conflitos gerando fenômenos como a ideologia e a divulgação de
visões fantasiosas de mundo para garantir os interesses da classe
dominante. Diante dessa realidade, surgem vários questionamentos:
se muito do que é divulgado é falso, como separar o que é falso do
que é verdadeiro? Existe realmente algum conhecimento que possa
estar acima de qualquer suspeita? Será que cada um defende as
opiniões que lhes convém e que, no fundo, cada um tem parte da
verdade, mas ninguém a tem completamente?
Tais questões não são nada novas, elas acompanham a
humanidade há milhares de anos. O filósofo Aristóteles dizia que temos
um desejo natural de saber. Desde crianças, somos maravilhados
pelo mundo e tudo desperta nossa curiosidade. Com o tempo, vamos
nos acostumando com as coisas e nossa curiosidade diminui, em
alguns casos drasticamente. É que a curiosidade vai se sedimentando
em hábitos e crenças. As coisas vão se tornando “normais”, ou seja,
se não são explicadas pelo menos nos são familiares e, portanto,
previsíveis. Por outro lado, por mais que estejamos acostumados com
o mundo nunca nos satisfazemos apenas em compreender como as
coisas acontecem, nós buscamos um sentido para elas. Como diz
Jung Mo Sung,
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O sentido é o que se sente, o que se segue ou se persegue e o que se compreende. Quando falamos do sentido da vida estamos tratando das duas acepções: direção e significado; isto é, se a vida tem uma direção (finalidade) que devemos seguir e se ela tem uma significação (SUNG, 2006, p. 39).
Não nos satisfazemos em ficar na pele das coisas queremos
entender suas causas, fundamentos, propósitos... E isso não só em
relação aos fatos extraordinários. Na verdade, os fatos extraordinários
despertam uma curiosidade momentânea incapaz de fixar-se como
crença ou hábito de ação. O que nos intriga é saber por que a gente
fica doente, envelhece, morre... Se existe uma vida após a morte,
se o universo existiu sempre ou foi criado e, se foi criado, quem
ou o que o criou? Além dessas questões mais filosóficas, coisas
cotidianas também nos intrigam, por exemplo, para muitos povos
determinado alimento era tão importante para sobrevivência deles
que não conseguiam parar de pensar em como tinha surgido o milho,
a mandioca, o trigo e podemos encontrar vários mitos que explicam
a origem de cada um desses alimentos. Sem dúvida, mais do que
qualquer alimento, sempre nos intrigou a nossa própria origem.
Desde tempos imemoriais, o homem percebeu-se como um ser
singular na natureza: temos linguagem, fabricamos ferramentas,
nos organizamos em sociedade, sonhamos... Tudo isso afeta a nossa
autocompreensão, a forma como pensamos a nós mesmos: por que
os outros animais não se comportam como nós? Como nos tornamos
seres tão especiais? Seríamos descendentes dos deuses?
Mito: A origem da Via Láctea Zeus, o deus maior da mitologia grega, era muito namorador. Em uma de suas andanças pela Terra, se apaixonou pela jovem princesa Alcmena. Uma noite, aproveitando a ausência do marido, o aventureiro deus foi visitá-la e se uniu com ela. A deusa Hera, esposa de Zeus, quando se deu conta da infidelidade, se encheu de cólera. E foi ainda maior sua indignação quando soube que a princesa Alcmena tinha ficado grávida. Para castigar Alcmena, Hera prolongou a gestação da jovem princesa. Mas aos 10 meses, sem poder retê-lo mais, a princesa Alcmena deu àluz um menino belo e forte, um semideus, ao qual chamou de Hércules. Desde que Hércules nasceu, seu pai Zeus o considerou como favorito entre seus muitos filhos. A deusa Hera, dominada pelo ciúme, enviou duas serpentes para envenenar o recém-nascido. Hércules, um bebê muito robusto, as estrangulou no berço, antes que o mordessem. Então, o mensageiro dos deuses veio para ajudar a princesa Alcmena, a mãe do bebê Hércules. Ele a alertou do perigo que seu filho corria e que a única maneira de salvá-lo era tornando-o imortal, colocando-o para mamar nos esplêndidos seios da grande deusa Hera. Então, o mensageiro tomou o menino nos braços, levou-o aonde a deusa Hera dormia, o pôs em seu seio para que mamasse o leite da imortalidade. Mas Hércules chupou os bicos dos seios da deusa com tanta força que esta acordou, o retirou bruscamente e o leite de seu seio derramou pelo céu em um jato imenso, um magnífico rio de leite branco e brilhante. Assim se formou, segundo a lenda grega, a Via Láctea.
Fonte: adaptado de Radialistas apaixonadas e apaixonados: http://www.radialistas.net/portuclip.php?id=1100008.
Você sabe a origem do arco-íris? Esse é um mito bem brasileiro, visite o site e desvende este mistério: http://www.
radialistas.net/portuclip.php?id=1100041
SAIB
A M
AIS
40 Módulo 2 I Volume 2 EAD
As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
2 A VISÃO MÍTICA DO MUNDO
Obviamente, apenas fazer perguntas não produz sentido, não
forma hábitos nem crenças para orientar nossas vidas. Também não
é qualquer tipo de explicação que nos satisfaz, ela deve traduzir a
nossa experiência pessoal e coletiva, poder ser vivida cotidianamente
na forma como nos vestimos, comemos, trabalhamos, enfim, deve ser
capaz de direcionar nossas formas de pensar e agir. Às representações
simbólicas capazes de realizar tudo isso, damos o nome de cosmovisões,
são elas que nos põem no mundo, que nos dizem onde estamos,
de onde viemos e qual é nosso destino. Na história da humanidade,
as primeiras formas de cosmovisões são chamadas de mitos. Mas é
importante destacar que mitos não são coisas de povos “antigos e
ignorantes” como alguns positivistas costumam pensar. Civilizações
altamente tecnológicas também fabricam seus mitos e orientam suas
vidas em torno deles. Não acredita? Veja só este exemplo:
Diverte e instrui considerar o que aconteceria se transmitíssemos toda a estrutura do corpo, do cérebro humano com suas recordações e conexões entrelaçadas, de tal modo que o aparato receptor hipotético pudesse reencarnar tudo em matéria apropriada, capaz de continuar os processos do corpo e da alma e de manter a integridade necessária para esse prolongamento mediante a homeostase (WIENER apud HINKELAMMERT, 1983, p. 64).
Quem diz isso não é nenhum religioso reencarnacionista,
mas Norbert Wiener o fundador da cibernética. Hoje todos nós
falamos em realidade virtual ou ciberespaço, criamos avatares que
conversam e agem em um mundo de fantasia. Mas isso é o máximo
que conseguimos fazer, pois não é possível que nos desprendamos de
nossos corpos sem ocasionalmente morrermos no percurso. Todavia,
muitas pessoas, inclusive cientistas, acreditam ser esta uma ideia
bastante razoável e que, no futuro, o sonho da imortalidade será
finalmente realizado.
O que nos faz pensar que tais sonhos são razoáveis, enquanto
a crença em anjos, demônios ou espíritos nos parece algo “primitivo”
ou coisas de pessoas de pouca instrução, é que nós só somos capazes
de ver o mito “dos outros”. O nosso mito não é mito, é ciência.
Ou melhor, é a ciência transformada em mito. Hoje em dia se fala
nos “milagres da ciência”, em sua capacidade para resolver todos
os nossos problemas através das novas descobertas. É claro que
as conquistas da ciência, quando bem aplicadas, trazem grandes
Avatar: Em informática, avatar é a representação gráfica de um
utilizador em realidade virtual. De acordo com a tecnologia,
pode variar desde um sofisticado modelo 3D até uma simples imagem. São normalmente
pequenos, aproximadamente 100 píxeis de altura por 100px
de largura, para que não ocupem demasiado espaço na interface, deixando espaço livre para a função principal do site, programa ou jogo que se está
a usar.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Avatar_(realidade_virtual) Acesso em 09 jul.
2009.
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benefícios para humanidade, mas daí a dizer que ela resolverá todos
os nossos problemas ou que nos trará a imortalidade, é transformar
a ciência em mito.
Portanto, os mitos, apesar de serem antigos, não são coisas
do passado, já que mesmo os mitos antigos são constantemente
reelaborados acompanhando as mudanças próprias de nossa cultura.
ATIVIDADES
1. Leia o texto abaixo. Após a leitura, responda as questões propostas e discuta as
respostas com os colegas.
10 euros semanais para ser congelado com nitrogênio líquidoPublicado em 29/03/2009 por Juan Diego Polo
Dez euros por semana. Este é o preço que estão pagando os britânicos que queiram, e possam, congelar seus corpos no momento da sua morte. Segundo o Daily Mail, o número de cidadãos britânicos que optaram por deixar seus restos com esperança na futura ressurreição, tem aumentado nos últimos anos, principalmente devido aos preços mais baixos. O Cryonics Institute, uma organização privada que armazena órgãos, criou uma modesta taxa de 10 euros por semana, “mais barato do que uma pizza”, diz um futuro congelado. O pacote completo inclui congelamento e manutenção (o corpo está imerso em nitrogênio líquido), até que os avanços científicos permitam regressar à vida algum dia.
Fonte: http://www.fayerwayer.com.br/2009/03/10-euros-semanais-para-ser-congelado-com-nitrogenio-liquido/
2. Agora responda:
a) Se você tivesse dinheiro, mandaria congelar o seu corpo após a morte?
b) Acredita que no futuro a ciência poderá ressuscitar as pessoas é um fato ou mito? Qual
o critério que você usou para separar o que é fato do que é mito?
c) É possível estabelecer uma separação clara entre religião e ciência? Explique o seu
ponto de vista?
d) Você julgaria que uma pessoa que espera pela vida eterna rezando na igreja é mais
razoável do que uma que economiza dinheiro para congelar o corpo após a morte, ou
vice-versa? Seriam ambas as atitudes irracionais? Justifique.
3. Após responder as questões confronte-as com as dos colegas no Seminário Integrado.
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
3 ESTRUTURA E FUNÇÃO DOS MITOS
Como vimos acima, os mitos não são
coisas do passado ou interpretações “falsas”
da realidade. Mesmo povos ditos primitivos
sabem distinguir seus mitos verdadeiros dos
mitos falsos (contos e lendas que fazem parte
de sua cultura, mas que não são fundantes),
da mesma forma como para um crente a sua
religião é sempre verdadeira em oposição às
outras religiões ou seitas. Mitos e religiões não
estão destinados a competir com as explicações
científicas, ou serem superados por elas. Como
dizia o sociólogo Émile Durkheim (1989, p.
493), “a verdadeira função da religião não é nos
fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento,
acrescentar às representações que devemos à
ciência, representações de outra origem e de
outro caráter, mas nos fazer agir, nos ajuda a
viver”. O que o crente busca na religião ou nos
mitos são regras para o agir. É a ação, portanto,
o que domina a vida religiosa. É inútil, portanto,
tentar desmoralizar a conduta mítica ou religiosa
como não científica, disso a maioria dos crentes
tem consciência. Pois, como podemos observar
em nossa experiência cotidiana, não são as
grandes verdades científicas que moldam nossa
conduta moral e nossa relação com as outras
pessoas em sociedade. A influência da ciência
atinge aspectos pontuais de nossas vidas, por
exemplo, podemos evitar alimentos gordurosos,
praticar o sexo seguro etc. Mas as questões
decisivas na vida das pessoas como ter filhos,
casar-se, sermos honestos, amorosos ou cruéis
e violentos, isso tudo tem pouco de científico,
mas muito a ver com o que acreditamos, com
nossos valores e história pessoal.
Mito, religião e ciência não são, portanto,
partes em conflito lutando pelo monopólio
da verdade, apenas formas diferentes de
compreender e dar sentido às coisas. Somente
em casos extremos, quando o dogmatismo
obscurece completamente a razão é que surgem
os conflitos.
Para completar nossa exposição, veja o que diz o grande historiador e filósofo das religiões Mircea Eliade (1907–1986) sobre a estrutura dos mitos e a importância do “mito vivo”:
Estas observações preliminares bastam para precisar certas notas características do mito. De uma maneira geral se pode dizer que o mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, 1°, constitui a história dos atos dos Seres Sobrenaturais; 2°, que esta História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada (porque é obra dos Seres Sobrenaturais); 3°, que o mito se refere sempre a uma ‘criação’, conta como algo chegou à existência ou como um comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar, foi fundada; é esta a razão de que os mitos constituam os paradigmas de todo ato humano significativo; 4°, que ao conhecer o mito, se conhece a ‘origem’ das coisas e, por conseguinte, se chega a dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento ‘exterior’, ‘abstrato’, mas de um conhecimento que se ‘vive’ ritualmente, seja ao narrar cerimonialmente o mito, seja ao efetuar o ritual para o qual serve de justificação; 5°, que, de uma maneira ou de outra, se ‘vive’ o mito, no sentido de que se está dominado pela potência sagrada, que exalta os acontecimentos que se rememoram e se reatualizam. ‘Viver’ os mitos implica, pois, uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’, posto que se distingue da experiência ordinária, da vida cotidiana. A ‘religiosidade’ desta experiência se deve ao fato de que se reatualizam acontecimentos fabulosos, exaltantes, significativos; se assiste de novo às obras criadoras dos Seres Sobrenaturais; se deixa de existir no mundo de todos os dias e se penetra em um mundo transfigurado, auroral, impregnado da presença dos Seres Sobrenaturais. Não se trata de uma comemoração dos acontecimentos míticos, mas de sua reiteração. As pessoas do mito se fazem presentes, se tornam nossos contemporâneos. Isto implica também que não se vive já em um tempo cronológico, mas no Tempo primordial, o Tempo no qual o acontecimento teve lugar pela primeira vez. Por esta razão se pode falar de ‘tempo forte’ do mito: é o Tempo prodigioso, ‘sagrado’, no qual algo novo, forte e significativo se manifestou plenamente. Reviver aquele tempo, reintegrá-lo o mais amiúde possível, assistir de novo o espetáculo das obras divinas, reencontrar os seres sobrenaturais e voltar a aprender sua lição criadora é o desejo que pode ler-se como em filigrana em todas as reiterações rituais dos mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenatural, e que esta história é significativa, preciosa e exemplar.
(ELIADE, Mircea. A estrutura dos mitos – a importância do “Mito Vivo”. In: Mito, rito, símbolo – lecturas atropológicas. Coletânea organizada pelo Instituto de Antropología Aplicada, Quito, 1994, p. 113-114)
SAIBA MAIS
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4 CONHECIMENTO E VALIDADE
Como dissemos anteriormente, não nos contentamos com
apenas saber como as coisas são, mas também porque são como são.
Obviamente que a maior parte das explicações dificilmente concorda
entre si, gerando o inevitável problema: qual das explicações é a
verdadeira?
Diante dessa questão podemos ter quatro atitudes gerais: o
ceticismo, o dogmatismo, o relativismo e o criticismo. Vejamos cada
uma delas.
1) A atitude cética afirmará que não é possível ter certeza absoluta
sobre coisa alguma e mesmo se existisse uma explicação
verdadeira sobre a realidade, jamais a conheceríamos. E
por que não? Bom, aqui as respostas dos céticos variam um
pouco. Uma delas atribui a razão aos limites de nosso próprio
aparato cognitivo: nossos sentidos são falhos (quantas vezes
pensamos ter ouvido ou visto algo e depois percebemos estar
completamente enganados?); nossa memória nos escapa ao
controle e não temos certeza se podemos lembrar sequer
do que comemos no jantar de ontem; nosso raciocínio, por
vezes, se confunde mesmo em operações simples. Com
uma percepção tão precária da realidade, como podemos
pretender um conhecimento certo e indubitável sobre o que
quer que seja?
Outro argumento empregado pelos céticos é que
mesmo as mentes mais brilhantes, os grandes filósofos da
humanidade, divergem em suas doutrinas sobre as questões
mais elementares. Ora, se os grandes sábios divergem entre
si, não é porque são tolos, mas porque existem questões cujas
respostas estão além da capacidade humana de respondê-las.
Portanto, a atitude mais saudável para um cético é afastar-se
dos debates que não levam a parte alguma e tomar uma atitude
de distanciamento em relação a eles. Devemos, igualmente,
nos contentarmos com as verdades provisórias com as quais
lidamos todos os dias: de que o padeiro fará pão amanhã cedo;
que o cajueiro dará frutos a seu tempo etc. Mesmo sabendo
que tais fatos não passam de crenças justificadas e não
certezas absolutas; que algo que frequentemente acontece
poderá não acontecer ou que eu posso estar errado sobre algo
ou alguém. Uma atitude de suspeita frente a tudo e a todos
pode nos ajudar a evitar desapontamentos provenientes de
Figura 1 - Fonte: http://files.nireblog.com/blo-gs1/comportamentosdiferentes/files/ceticismo.jpg
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
uma crença ingênua e sem fundamentos firmes. Moralmente
falando, um cético não considera que um determinado modo
de agir seja superior a outro e que existem tantas morais
quanto culturas humanas. Nenhuma delas pode reivindicar o
monopólio da verdade, portanto, viva e aja segundo a sua
cultura sem se preocupar em viver ou copiar a cultura dos
outros, pois todas elas valem o mesmo e estão igualmente
distanciadas da verdade que, talvez, sequer existe.
2) A atitude dogmática afirma que existem verdades universais e
imutáveis que servem de fundamento para outras verdades. Em
sua origem no grego, a palavra dogma significa “decisão”, com
o passar do tempo tomou a acepção de princípio incontestável,
principalmente por seu uso religioso. As religiões não podem
ficar discutindo seus fundamentos o tempo todo, o que acaba
dando margem a novas discussões e divisões internas. Por
isso, procuram fixar alguns princípios, chamados de dogmas.
O problema é que, uma vez estabelecido, o dogma tende a
ser imposto aos discordantes, amiúde, de modo violento. O
dogmatismo torna-se, assim, um fundamentalismo intelectual
que confunde a defesa do seu ponto de vista com o combate
e exclusão das opiniões divergentes. Por outro lado, é difícil
estabelecer uma ciência ou teoria sem partir de princípios
indemonstráveis. Pois, se os princípios que fundamentam uma
teoria fossem eles mesmos deduzidos de outros princípios,
então seriam esses últimos os fundamentais e não os primeiros.
Na matemática, tais princípios indemonstráveis são chamados
de axiomas, que são sentenças hipotéticas iniciais das quais
se derivam outras sentenças, permitindo a construção de
sistemas, tais como a geometria euclidiana, por
exemplo. O problema é quando se supõe que
tais hipóteses são verdades inquestionáveis,
o que pode comprometer o processo de
investigação e descoberta nas ciências. Em
vários momentos de nossa história, muitas
ideias inovadoras, na ciência e nas artes,
encontraram uma forte resistência dos que
se aferravam a velhos dogmas, como se
estes fossem verdades eternas e não meras
hipóteses de trabalho.
3) A atitude relativista aproxima-se da postura cética em sua
Figura 2Fonte: http://4.bp.blogspot.com
“beware-dogma-cross”
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desconfiança quanto à possibilidade de encontrarmos verdades
universais. A diferença é que não se baseia em uma suspeita
generalizada sobre os órgãos dos sentidos, mas em colocar
o ser humano no centro de todo conhecimento. “O homem
é a medida de todas as coisas”, dizia Protágoras. Ou seja,
tudo o que existe é dependente de nossa forma de percebê-
los e de valorá-los. Quando as pessoas falam de maus-tratos
dos animais, obviamente não estão pensando em baratas ou
moscas. Seriam tais insetos menos animais que coelhos ou
gatos? Ocorre que julgamos o mundo segundo o nosso ponto
de vista ou o de nossa cultura. Então, inevitavelmente o que
pensamos está informado pela interpretação que temos sobre
determinado objeto. Por exemplo, você acha que o medo
de cobras é em nós algo natural? Pois não é! Se um bebê
encontrasse uma cobra sua reação provável seria a de brincar
com o animal. Só adquirimos o medo de cobra pela reação das
pessoas a nossa volta quando as veem ou falam sobre elas.
Por outro lado, o sentimento de pudor ao ficarmos nus diante
de outras pessoas, simplesmente não existe em determinadas
culturas, em que andar nu é visto como algo completamente
natural. Portanto, o que é verdade, ou certo para uma
determinada pessoa ou grupo pode não ser para outra. Tudo
é relativo. Tentar impor uma opinião como verdadeira é não
respeitar o pluralismo democrático de diferentes pontos de
vista. O máximo que podemos almejar é estabelecermos
alguns consensos provisórios válidos aqui e agora, mas que
poderão não valer mais amanhã, ou daqui a uma hora. Todo
ponto de vista deve ser respeitado, pois nenhuma opinião é
melhor que outra, apenas diferente.
Diante da impossibilidade de estabelecermos verdades
duradouras, os relativistas preconizam a tolerância e o
pluralismo tanto de opiniões quanto de conduta moral. No
limite, o relativismo coloca em xeque todos os princípios
universais, por exemplo, a ideia de direitos humanos.
Estariam as práticas de culturas ancestrais acima da moderna
Declaração Universal dos Direitos Humanos? Teriam culturas
ancestrais o direito de praticar a mutilação genital feminina
levando, muitas vezes, à morte das vítimas de tal violência?
Se reconhecermos que existem determinados direitos que são
universais e estão acima do que pensamos sobre eles, então
temos que admitir forçosamente que nem tudo é relativo.
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
4) A atitude crítica procura responder aos desafios colocados pelas
posturas anteriores, ou seja, a um só tempo, escapar tanto do
ceticismo quanto do relativismo sem cair em um dogmatismo.
Muitos são os que tentaram realizá-lo, nem sempre com muito
êxito. Basicamente uma atitude crítica admite que embora
não possamos ter certeza absoluta sobre uma série de coisas,
como afirmam os céticos, podemos ter conhecimentos seguros
sobre os quais é possível construirmos alguns consensos.
Mesmo um cético quando diz que não podemos ter certeza de
coisa alguma, pelo menos está admitindo uma certeza: a de
que não podemos ter certeza. Ou seja, de que há uma certeza
possível. O mesmo se aplica ao relativismo, se afirmamos que
“tudo é relativo”, pelo menos essa frase não pode ser relativa,
pois, do contrário, haveria algo que não é relativo (a frase
“tudo é relativo”). Além disso, diante da ameaça de um ladrão
armado, nem o cético nem o relativista hesitariam em obedecer
às ameaças do ladrão, colocando em dúvida o ponto de vista
do ladrão ou a existência do mesmo. Apesar dos sentidos,
às vezes, nos pregarem algumas peças, a realidade é algo
que independe da nossa vontade. Ignorá-la não é algo que
possa ser posto em questão como um exercício intelectual,
pois se um leão feroz vem em nossa direção, duvidar dele não
vai fazer com que desapareça e isso tampouco é uma mera
questão de ponto de vista.
Por outro lado, existem verdades como as da matemática ou
da lógica cuja validade independe do que possamos pensar sobre
elas, dois mais dois será sempre quatro, pois o número dois não varia
em seu valor, pois é, ele mesmo, uma idealidade.
Isso significa que os dogmáticos estão certos ao afirmarem que
existem verdades eternas e universais? Não exatamente. O erro dos
dogmáticos é o de confundir aquilo que é idealidade com o que é real.
A realidade muda constantemente e, mesmo sem nos darmos conta,
estamos atuando para que tais mudanças continuem ocorrendo.
Afirmar que determinados dogmas valem para sempre é negar a
realidade e suas mudanças. Por exemplo, quando a humanidade
não passava de uns poucos milhões de indivíduos, o mandamento
“crescei-vos e multiplicai-vos” fazia sentido. Atualmente com a
humanidade na casa dos seis bilhões de indivíduos e aproximando-
se rapidamente dos dez bilhões, é preciso repensar tal mandamento
à luz de uma série de questões: haverá comida e água para todos?
Em caso contrário, deveríamos levar o mandamento a sério? O que
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deveriam fazer os governos e a sociedade como um todo?
Em uma perspectiva crítica, o mais importante não é preservar
o dogma, mas garantir que nossas crenças sejam justificadas. Isto
é, que tenhamos critérios para distinguir o que é válido e o que não
é, o que é eticamente aceitável ou não. Devemos nos ocupar mais
com as regras e critérios de verdade do que com os resultados de
tais processos. Pois, os resultados serão sempre provisórios, já que a
natureza está em processo de constante mudança e evolução, assim
como a sociedade e nós mesmos. Uma atitude crítica será sempre
falibilista, ou seja, sempre admitirá a possibilidade de estarmos
errados e, portanto, de que devemos estar abertos a rever nossos
conceitos e nos autocorrigir.
5 A VALIDADE DO CONHECIMENTO COMO PROBLEMA
FILOSÓFICO
Desde seus primórdios, a filosofia tem feito do conhecimento um
dos seus problemas centrais. Isso torna possível que acompanhemos
esse longo debate, em suas linhas gerais, no decorrer da história. Assim,
começando pela Antiguidade Clássica, faremos um percurso didático
como se existisse uma continuidade histórica que nos permitisse ir
de um filósofo a outro, como se estivessem eles respondendo ou
dialogando com os que lhe antecederam. É claro que, na realidade,
tanto em termos históricos quanto das problemáticas abordadas não
foi assim que aconteceu, mas quando estamos começando, preferimos
algumas ideias gerais sem contornos muito precisos a explicações
muito complexas e cheias de detalhes. Nesse sentido, achamos que
esta primeira aproximação será um bom começo, mas não esqueça
que é só um começo e que você não deve contentar-se com ele.
5.1 Em busca do fundamento
Os mitos gregos nunca forneceram explicações muito
convincentes sobre a realidade. Embora os mitos fossem muito ricos e
diversos, as preocupações cosmológicas e metafísicas não ocupavam
um lugar central na religião grega. Como aponta Moses Finley,
[...] a religião grega carecia de dogma e de teologia sistemática; os seus rituais podem ter sido emocionalmente estimulantes, mas as suas explicações resumiam-se ao mito e eram
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
insatisfatórias do ponto de vista intelectual. Este vazio da religião (e a correspondente ausência de uma igreja institucionalizada) conferiu à especulação uma invulgar liberdade de manobra: possivelmente, porque havia um vácuo a ser preenchido; negativamente, porque nem as classes dos homens nem os seus guardas terrenos se sentiam ameaçados pelas idéias, por mais ultrajantes que fossem (FINLEY, 1984, p.110).
Com explicações tão pouco consistentes era natural que
surgisse na Antiguidade Clássica, na Grécia, uma nova maneira de
propor respostas para as grandes perguntas da humanidade. Essa
nova forma ficou conhecida como filosofia. Conta-se que Pitágoras
foi o primeiro a usá-la; ao ser chamado de sábio, teria dito que era
apenas um “amante da sabedoria”, em grego, filosofia (filo = amante,
amigo; sofia = sabedoria). Os primeiros filósofos, assim como
Pitágoras, eram antes de tudo sábios: matemáticos, astrônomos,
físicos, biólogos... Esses seriam os termos modernos que poderíamos
usar para tentar defini-los. Mas naquela época não havia uma clara
distinção entre os vários campos de conhecimento. O conhecer, o
investigar, era isso que definia os filósofos, muito mais do que a
direção que a investigação tomava.
Preocupavam-se principalmente com o princípio ou fundamento
de tudo. Se vemos o mundo em constante mudança e agitação, seria
possível encontrar um fundamento ou princípio (arqué em grego)
de onde tudo teria surgido? Um dos primeiros filósofos a oferecer
uma resposta a essa pergunta foi Tales de Mileto (cerca de 625-558
a.C.); hoje muito mais conhecido por seus trabalhos em geometria
e matemática e o famoso “teorema de Tales”, com o qual conseguiu
medir a altura de uma pirâmide pela projeção de sua sombra.
Ele inaugurou a filosofia ao afirmar que “tudo é água”. Essa
frase pode nos parecer estranha e absurda hoje, mas ela revela duas
características importantes que distinguem o pensar filosófico tanto
da ciência quanto da religião. Difere da ciência, porque a ciência
estuda e busca respostas para fenômenos particulares. A ciência se
ocupa de questões como se o colesterol faz mal a saúde ou se existem
planetas fora do sistema solar. Mas a ciência não diz nada sobre a
razão das coisas serem do modo como são e não de outra maneira, se
a evolução tem algum propósito ou se existe um sentido para a vida.
Ao contrário da ciência, a filosofia não lida com fatos particulares,
mas com o geral, com aquilo que é comum à experiência de todos
nós; o particular não desperta o interesse dos filósofos, pois não estão
atrás do que é fundamento para isso ou aquilo, mas do fundamento
Pitágoras de Samos viveu entre 570 a.C. e 497 a.C., ficou famoso por ter desenvolvido o teorema que leva o seu nome (o teo-rema de Pitágoras), segundo o qual, em um triângulo re-tângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao qua-drado da hipotenusa: C2 = A2 + B2
Além de ser o primeiro a usar a palavra “filosofia”, Pi-tágoras é também o primeiro a definir a matemática como um sistema de pensamento baseado em provas deduti-vas.
Figura 3 e 4 - Pitágoras e Teore-ma de Pitágoras
Fonte: http://pt.wikipedia.org
SAIBA MAIS
Figura 5 - Tales de Mileto.Fonte: http://upload.
wikimedia.org/wikipedia/commons/4/45/Thales.jpg
?
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comum de toda experiência humana. Enquanto a ciência caminha a
passos seguros, indo de um experimento a outro e avançando muito
lentamente, a filosofia busca de um salto abarcar a síntese de tudo o
que existe, indicando para ciência quais seriam as hipóteses a seguir.
Afasta-se igualmente da religião por não usar de mitos e
fabulações para fundamentar seus pontos de vista. Assim, Tales falou
da água (de onde surgiu a vida em nosso planeta), um elemento
bastante conhecido de nós todos em sua busca de uma explicação
que fosse racional e não mágica. Afirma-se que Tales também
teria dito que “as coisas estão cheias de deuses”. O que pode ser
interpretado tanto como de uma forma mística, como quando se fala
hoje em dia de uma “energia”, quanto de forma dessacralizada como
se não houvesse uma fronteira que dividisse os limites do profano e
do sagrado. Em ambos os casos, percebemos a mesma intuição de
que tudo é um, de que há um fundamento secreto que unifica todas
as coisas.
Outro componente que afasta definitivamente a filosofia
de qualquer religião é a ausência de dogmas. Dificilmente uma
religião pode sobreviver sem dogmas, legitimados por alguma força
sobrenatural. A filosofia, por seu turno, tem como base unicamente
o rigor racional que a sustenta. Por isso, muitos criticam a filosofia
por nunca chegar a definições certas e indubitáveis, sempre
retomando discussões antigas sem encontrar uma solução definitiva.
Por outro lado, é esta justamente a riqueza da filosofia que nunca
impõe dogmaticamente um conhecimento, mas o submete à crítica
democrática como forma de aprimorá-lo e ampliá-lo. Se, por vezes,
não conseguimos encontrar uma resposta definitiva na filosofia, pelo
menos alargamos nossa compreensão sobre os problemas, o que
significa saber melhor onde estamos pisando.
Isso pode ser percebido mesmo entre os discípulos de Tales.
Anaximandro considerava que o elemento primordial não poderia ser
ele mesmo algo sujeito à mutação. Ora, a água é mutável, ela pode
congelar ou evaporar, então era necessário encontrar outro elemento
que não estivesse sujeito à mutação. Tal elemento seria o apeíron, que
pode ser traduzido por infinito ou ilimitado. Segundo Anaximandro,
esse elemento seria indestrutível e teria gerado todas os outros sem
ter sido, ele mesmo, gerado por nenhum outro.
Anexímenes, também de Mileto, considerava que o ar infinito
teria sido a origem de tudo por um processo de condensação e
rarefação. Mas como um elemento pode gerar outros? É claro que
vemos as coisas mudando o tempo todo no mundo, o que é um bom
indicativo para pensarmos que isso tem uma causa, uma origem, mas
50 Módulo 2 I Volume 2 EAD
As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
não explica o que põe o elemento primordial em movimento para gerar
os outros. Empédocles de Agrigento elaborou uma boa solução para
o problema. Ele achava que tudo era composto por quatro elementos
(fogo, terra, água e ar) em diferentes combinações. Duas forças
seriam as responsáveis pelas combinações dos elementos, a força
de repulsão (ódio) e a de atração (amor). Demócrito de Abdera, por
seu turno, achava que tudo era composto de átomos (do grego, não-
divisível). Se partirmos uma maçã ao meio, veremos que, por mais
afiada que seja a faca, não conseguimos cortá-la de modo que fique
uma superfície completamente lisa. Isso indica que existem partículas
infinitamente pequenas que não podem mais ser divididas em partes
menores. Estas seriam as menores unidades possíveis de que tudo
o que vemos a nossa volta é formado. Mas como explicar que esse
único elemento, o átomo, possa formar coisas com cores, formas,
sabores e cheiros diferentes? Demócrito acreditava que os átomos
tinham diferentes formas, uns eram redondos, outros triangulares,
outros quadrados etc. Cada forma seria capaz de provocar uma
sensação diferente em nós, por exemplo, átomos redondos poderiam
provocar uma sensação de doce, enquanto pontiagudos teriam um
gosto amargo. O mesmo ocorreria em relação aos outros sentidos,
diferentes átomos provocariam sons mais graves ou agudos, cheiros
perfumados ou desagradáveis, de acordo com a sensação que a
figura do átomo provoca ao entrar em contato com nossos órgãos
dos sentidos.
Ao olharmos as teorias dos primeiros filósofos sobre o
fundamento do universo à luz das descobertas científicas de hoje,
parece que todas elas se aproximaram em algum grau da verdade, ao
pensarem em combinação de elementos, forças de atração e repulsão
etc. O problema é que não havia na época os meios para testar qualquer
das hipóteses, permanecendo no nível puramente especulativo.
Por outro lado, as discussões sobre as
diferentes concepções acerca da origem
e modo de ser do universo permitiram
um grande desenvolvimento intelectual
por se travar em um ambiente livre da
coerção religiosa, sempre preocupada em
preservar os dogmas contra os dissidentes.
Com ela desenvolveu-se a lógica, como
forma de pensamento rigoroso baseado
em asserções garantidas. A filosofia
começava a dar seus primeiros passos
como um pensar que interroga a si mesmo Figura 6 - Moderna concepção do átomoFonte: http://www.algosobre.com.br/fisica/atomo.html
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em busca da verdade.
5.2 Ser e não-ser
Em outra linha de investigação, Heráclito e Parmênides
buscaram entender os processos de geração e corrupção na natureza
como um todo.
Para Heráclito (540-470 a.C.), a verdade estava diante de
nossos olhos. Se vemos as coisas mudando em um fluir constante
é porque esta é a real natureza das coisas: fluir. Heráclito dizia, por
exemplo, que não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio,
pois as águas já não são as mesmas e tampouco nós permanecemos
idênticos a quem éramos há um dia ou há uma hora. Mas se tudo
muda como podemos conhecer a realidade? Conhecemos algo quando
podemos entender como algo se comporta, se podemos prever como
estará no futuro. Heráclito pensava ter encontrado a lógica secreta
que rege o movimento de tudo o que existe: a dialética. Para o filósofo
de Éfeso, “o combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. As coisas
mudam porque existe uma tensão constante em seu interior entre
forças contrárias que as põe em movimento. Por exemplo, quando
colocamos uma vasilha com água no fogo, o fundo fica mais quente
que a parte de cima. O quente e o frio se opõem, então a água quente,
mais leve tende a subir, e a fria a fazer o movimento contrário. Depois
de um tempo vemos a água fervendo em um movimento que equilibra
novamente a água, distribuindo o calor. Ou seja, a luta dos contrários
não produz destruição, mas uma nova organização que dará lugar a
outra tensão da qual emergirá outra organização e uma nova tensão
em um processo contínuo. Assim, a tensão é uma força promotora
de harmonia: “o contrário é convergente e dos divergentes nasce a
mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. No curso do tempo
as tensões encontram seu ponto de equilíbrio gerando regularidade,
como se houvesse uma lógica disciplinando o caos.
Parmênides de Eléia (cerca de 530 a 460 a.C.), por sua vez,
acreditava que seguir pela via sensível era inevitavelmente trilhar
o caminho do erro, por considerar o ser e o não-ser como sendo o
mesmo. Ora, argumenta Parmênides, só o ser pode ser pensado, já
que o não-ser não é. Tudo o que pode ser pensado é ser, o não-ser
sequer pode ser pensado, daí Parmênides concluir que só o ser é e
que o não-ser não é. Na mesma linha de raciocínio, conclui que o ser
é eterno, pois o ser não poderia vir do não-ser, tampouco ir do ser
para o não-ser, pois isso seria contraditório, logo o ser só pode ser
imutável. Igualmente, o ser não pode ter partes, pois, nesse caso,
Figura 7 - Heráclito, em detalhe do afresco pintado por Rafael, A Escola
de AtenasFonte: http://pt.wikipedia.org
52 Módulo 2 I Volume 2 EAD
As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
haveria algo dele separado, ou seja, o ser teria algo em si que não
seria idêntico a si mesmo, o que não é ser é não-ser. Ora, o ser não
pode ser e não-ser ao mesmo tempo. Novamente somos forçados a
concluir que o ser é uno, indivisível e imutável.
Mas poderíamos alegar que na natureza não existe nada de
eterno e imutável, ao que Parmênides responderia que a verdade não
precisa estar em conformidade com os sentidos, pois algo pode ser
verdade independente do que as pessoas pensem a respeito. Por mais
que as pessoas possam discutir sobre algo que viram ou ouviram,
dois mais dois será sempre quatro e isso nunca vai mudar. O que
muda são as aparências, o erro está em tomar aquilo que é aparente
como sendo a realidade última das coisas. Para nos afastarmos da via
do erro, devemos nos guiar unicamente pela razão e não confiar em
tudo o que nos informam os sentidos.
5.3 O real e o ideal
Platão (428-347 a.C.) foi discípulo de Sócrates, e após a morte
de seu
mestre fundou sua própria escola chamada Academia em
homenagem ao deus Academus. Em sua época florescia a democracia
em Atenas. Muitos jovens que pretendiam se destacar na vida política
procuravam professores que pudessem lhes educar na arte de
argumentar e convencer os outros para ganhar as disputas no debate
político. Esses professores eram chamados de sofistas que significa
originalmente “sábio”.
Os sofistas, como Protágoras (480-411 a.C.) e Górgias (485-
380 a.C.), eram relativistas e afirmavam que não existem verdades
eternas e imutáveis como pensava Parmênides, mas que tudo
depende daquilo que nós pensamos ser verdade em cada momento.
Por isso, defendiam a democracia como a melhor forma de se chegar
a uma verdade consensualmente e modificá-la para se adaptar às
exigências de cada conjuntura.
Para Platão, esse relativismo era algo perigoso, pois
transformava a verdade em joguete dependente da opinião do
momento. Platão concordava com Heráclito de que a realidade é
algo que está sempre mudando, mas também estava de acordo com
Parmênides no sentido em que há certas coisas que nunca mudam.
Do contrário, teríamos apenas opiniões (doxa), mas nunca um
conhecimento (episteme) sobre elas.
O que não muda são as ideias das quais as coisas são meras
Figura 8 - Platão: Busto Museu Louvre - UAB/UESC
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cópias. As coisas podem mudar de forma e tamanho, mas a soma
dos ângulos internos de um triângulo será sempre 180 graus. O
que conhecemos da realidade não é o que percebemos através dos
sentidos, mas os modelos ideais imutáveis das quais elas são cópias.
Para entender melhor o que Platão quer dizer, imagine uma casa.
A pessoa comprou o terreno e nela vai erguer uma casa, o que faz
primeiro? Antes de tudo ele deve definir quantos cômodos a casa
vai ter, os materiais etc., de acordo com os recursos de que dispõe.
Então ele faz, ou pede a ajuda de um arquiteto, uma planta da casa,
um modelo ideal de como ela vai ser. Depois de construída, a casa
vai ser uma cópia da planta. Poderíamos construir centenas de casas
com a mesma planta e todas seriam iguais. Se alguém andasse por
um bairro em que todas as casas são praticamente idênticas, o que
pensaria? Talvez que elas foram pré-fabricadas, ou que foi usada a
mesma planta para fazer todas elas. Com o tempo, as casas vão
ficando velhas e precisando de reformas, mas a planta continua
sempre a mesma. Se eu for para outra cidade e lá quiser fazer uma
casa igual a que tinha, é só seguir a planta.
Agora aplique esta ideia às coisas que vemos a nossa volta.
O que são? Todos os cães seriam variações de uma única ideia de
cachorro, nossas leis, tentativas imperfeitas de aplicar a ideia de
justiça, e assim por diante. Como as cópias são feitas de matéria
estão sujeitas à criação e à corrupção, nascem e morrem. É, por isso,
que vemos as coisas em constante mudança, mas mudam de acordo
com modelos que não variam. É, por isso, que mesmo que tenha
apenas três rodas, que seja movido a energia elétrica e tenha apenas
uma porta, podemos reconhecer imediatamente que se trata de um
carro, por corresponder à ideia que temos dele em nossa alma.
É inútil, portanto, buscar a verdade sobre o mundo nas coisas,
que são meras cópias das ideias eternas. Para Platão, existe a realidade
com a qual todos nós estamos acostumados que é o mundo sensível,
mas há também um mundo suprasensível, o mundo das ideias do qual
o nosso mundo é uma cópia imperfeita. Mas poderíamos perguntar a
Platão: se o mundo das ideias é separado do mundo sensível, como
posso saber que ele existe? Segundo o filósofo, podemos saber que o
mundo das ideias existe porque já estivemos lá.
Temos em nós duas partes: um corpo corruptível e uma alma
imortal. Nossa alma imortal tem sua origem no mundo das ideias. Lá
contemplou as ideias de tudo o que existe antes de encarnar em um
corpo mortal. Assim, quando olhamos para algo, nossa alma lembra-
se das formas que contemplou antes vir ao mundo. Até mesmo uma
criança sabe quando foi injustiçada na partilha dos doces com seu
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
irmão, isso porque temos uma ideia inata do que seja justo. Da mesma
forma que somos capazes de perceber quando alguém fez uma conta
errada, ou quando o círculo não está perfeitamente redondo. Isso
porque temos em nossa mente os modelos ideais para podermos
avaliar a realidade. Nosso conhecimento consiste não em aprender,
mas em lembrar. Lembrar das formas ideais que contemplamos no
mundo das ideias.
Muitas almas permanecem no mundo das sombras e simulacros
da realidade, presas às cópias imperfeitas, no nível da mera opinião
sem nunca contemplar a verdade. Outras, porém, conseguem ver
as ideias por trás das aparências e sentem saudade do tempo em
que viviam no mundo das ideias e para lá querem voltar. Por isso,
elas buscam se afastar de tudo o que atrapalha a vida da alma, ou
seja, as necessidades e desejos do corpo, buscando ter uma vida
completamente dedicada à reflexão filosófica.
Infelizmente, são poucos os que escolhem o caminho da
verdade e da filosofia. Estes são, até mesmo, vistos como loucos
pela maioria que vaga entre opiniões incertas. Por tentar retirá-los do
mundo de sombras e ilusões em que se encontram, alguns filósofos
são perseguidos e até condenados à morte, como aconteceu com
Sócrates. Mas o filósofo não pode abandonar sua missão de emancipar
os homens de suas ilusões através do diálogo filosófico, em que as
almas finalmente podem encontrar a verdade que está no interior de
cada um de nós.
Resumindo a teoria do conhecimento de Platão: não podemos
ter mais do que opiniões incertas sobre o que sentimos ou percebemos
através dos sentidos. Por outro lado, podemos ter um conhecimento
certo e imutável sobre aquilo que reconhecemos através da razão,
como as verdades geométricas e matemáticas, por exemplo. Buscar
o conhecimento é, portanto, realizar um movimento de ascese
separando-se das imagens sensíveis em direção ao Sumo Bem, que
é a fonte de tudo o que é Bom, Belo e Verdadeiro. O método para
atingir a Verdade é a dialética:
O método da dialética é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que analisamos (PLATÃO, 1987, p. 533c-d).
A função do educador, nessa perspectiva, é de questionar e
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problematizar as opiniões dos alunos através do diálogo, para que
eles próprios possam perceber as incoerências em suas opiniões
e reformular seus pontos de vista. Ou seja, o professor não deve
“transmitir” uma doutrina aos alunos como se eles fossem depósitos
vazios nos quais depositamos nosso saber. Como seres dotados
de uma alma racional, todos já têm dentro de si a verdade, falta
apenas ajudá-los a parir essa verdade através do diálogo. Colocando
as questões certas, qualquer um é capaz de se dar conta de que
muito do que julgava saber, na realidade, eram meras suposições e
hipóteses. Nós não damos a visão aos outros, nem emprestamos os
nossos olhos para que os alunos vejam através deles. O que fazemos
como educadores é corrigir o olhar na direção da verdade; o resto o
educando é capaz de fazer por si mesmo.
5.4 Aristóteles: conhecer através das coisas
Apesar de ter sido discípulo de Platão durante vinte anos,
Aristóteles (384-322 a.C.) apresenta uma teoria do conhecimento
muito distinta da do seu mestre. Isso pode ser atribuído, em parte,
ao profundo interesse que Aristóteles tinha por investigar o mundo
natural realizando trabalhos em biologia e física, sem descuidar de
assuntos sociais como a ética e a política. Aristóteles achava que
nosso conhecimento surge, principalmente, da observação do mundo
sensível, para ele “nada está no intelecto sem antes ter passado pelos
sentidos”. Portanto, o dualismo platônico entre mundo das ideias
e mundo sensível, não faria o menor sentido, sendo apenas uma
projeção ideal do real.
Nós só podemos ter ideias daquilo que conhecemos através
da experiência. Por exemplo, é possível encontrar pessoas em terras
isoladas que não têm a mínima ideia do que seja um celular. Existem,
igualmente, pessoas cultas que vivem em grandes cidades que não
sabem dizer se jupará é uma ave, um mamífero ou uma fruta. Ou seja,
nós não temos ideias inatas de coisa alguma, nosso conhecimento
depende de nosso grau de experiência.
Por outro lado, nosso conhecimento não se limita em receber
os dados da experiência. Se eu guardasse cada imagem das coisas
como numa fotografia em minha mente não saberia como separá-las
nem me referir a elas. Para conhecer é preciso reter apenas aquilo
que é importante e significativo e desprezar os detalhes irrelevantes.
Mas como saber o que é relevante e o que não é para poder separá-
los? Esse é o papel do nosso intelecto que realiza uma atividade
Figura 9 - AristótelesFonte: http://commons.wikimedia.org
56 Módulo 2 I Volume 2 EAD
As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
extremamente importante que é a abstração.
Abstrair é um processo de separar o que é regular e acontece
sempre em todos os que pertencem a mesma espécie do que é
acidental, ou seja, que ocorre de vez em quando ou só em alguns
membros da espécie. Vamos usar um exemplo da biologia, em que
Aristóteles deu contribuições importantes. Pergunta: Se você tivesse
que fazer uma definição do tipo “todos os insetos...”, como você a
construiria?
Coloque a sua resposta no espaço abaixo:
Todos os insetos ..............................................................
Bom, poderia colocar que todos os insetos põem ovos, mas
há outros animais que põem ovos e não são insetos. Que são seres
repulsivos, mas as borboletas são adoráveis e também são insetos.
Entendeu a dificuldade? Para definir os insetos temos que encontrar
algo que está em todos eles e que os diferenciam dos demais, ou
seja, que diga porque uma aranha, uma centopeia, uma minhoca não
são insetos e uma barata, uma formiga e uma abelha são. É preciso
saber separar o que é essencial daquilo que são meros acidentes. No
caso dos insetos, ter asas não é essencial, mas no das aves sim. Pois
todas as aves têm asas, embora algumas delas não possam voar.
O erro dos sofistas (como o de muita gente ainda hoje) é o de
tomar algo acidental como sendo a essência. Através desse artifício,
diziam que não se pode determinar quem é Sócrates, porque se
Sócrates é músico, então ele não é filósofo, se é filósofo, então não
é músico. Ora, todos nós fazemos várias coisas sem que isso mude
nossa essência enquanto animais racionais. Animal racional definiria
a nossa essência, se somos altos ou baixos, gordos ou magros,
asiáticos ou africanos, tudo isso são meros acidentes. Eliminados
todos os acidentes o que ficaria de comum a todos os insetos? Todos
os insetos têm seis pernas. Aranhas não têm seis pernas, então não
são insetos. Se abstrairmos mais, podemos buscar o que os insetos
têm em comum com os peixes e aves, então diremos que todos são
animais. E o que os animais têm em comum com as plantas? São seres
vivos, e assim por diante. E poderíamos ir mais longe, separando o
que é ser do que não é. E aqui chegamos à outra grande contribuição
de Aristóteles: se o ser é o não-ser não é, como dizia Parmênides,
então como é possível o movimento?
Para Aristóteles, o movimento é a passagem da potência ao
ato, os dois estados em que uma coisa pode estar. Uma semente
é uma árvore em potência, mas não em ato, pois uma semente
pode dormir por milhares de anos sem germinar. Quando germina, a
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semente torna-se árvore em ato. A passagem da potência ao ato é a
causa do movimento.
Por outro lado, se as coisas mudassem aleatoriamente, não
poderíamos conhecê-las. Conhecer é saber a causa de algo. Se tenho
dor de estômago, mas não sei a causa, também não posso me tratar.
Conhecendo a causa é possível saber não só o que a coisa é, mas o que
se tornará no futuro. Pois, se determinado efeito se segue sempre de
uma determinada causa, então podemos estabelecer leis e regras, tal
como se opera nos vários ramos da ciência. Há vários tipos de causas
entre as quais se destaca a causa final que é razão pela qual algo
existe. A ciência que estuda as causas últimas de tudo é chamada
de filosofia. Por isso, a tradição costuma situar a filosofia como a
ciência mais elevada ou mãe de todas as ciências, por ser o ramo do
conhecimento que estuda as questões mais gerais e abstratas.
5.5 A questão dos universais
Durante a Idade Média, o pensamento filosófico sofre o impacto
do encontro entre a cultura helenista, cujo centro é a filosofia grega, e
a cultura judaico-cristã com a ascensão do cristianismo como religião
hegemônica no Ocidente.
O cristianismo, em seus primórdios, tinha uma fraca
institucionalização e ainda guardava algumas inconsistências
internas. O cristianismo rapidamente espalhou-se não só entre pobres
e escravos, mas conquistou adeptos também entre a elite letrada.
Pouco a pouco foi surgindo a filosofia e teologia cristã, que buscava
conciliar os ensinamentos das Sagradas Escrituras
com o legado filosófico da Antiguidade, notadamente,
com as filosofias de Platão e Aristóteles. Ou seja,
um grande desafio para os filósofos cristãos era o de
demonstrar que o caminho da fé e o caminho da razão
são duas formas de se chegar à verdade e que não são
contraditórios entre si. Sendo Deus a única verdade,
é possível por meios puramente racionais provar as
verdades que já conhecemos através da Bíblia. Por
exemplo, que Deus existe e é o Criador do universo.
Mas é enganoso pensar que toda filosofia
na Idade Média ocupou-se de questões relativas à
existência de Deus. Um dos debates mais interessantes
no que diz respeito à teoria do conhecimento, ficou
conhecido como a querela dos universais e estendeu-se Figura 10 - Jesus e seu amigo, ícone de Taizé - Ícone da Amizade.
http://www.diocese-algarve.pt/site/Sid x.php?name=News&file=article&Sid=1407
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
por séculos. Antes de entrar propriamente no debate, cabe esclarecer
o que são os universais.
Como vimos, Platão e Aristóteles foram dois marcos
fundamentais na história da filosofia. Embora defendessem pontos de
vista opostos sobre a origem do conhecimento, eles definiram o campo
da nossa experiência cognitiva ao estabelecer que todo conhecimento
tem uma parte sensível e outra intelectiva. Para conhecer algo é
preciso que ele seja percebido pelos sentidos, mas isso ainda não é
suficiente para dizermos que conhecemos o que a coisa é. É preciso
que reconheçamos tal objeto como pertencente a certa classe de
objetos e não de outra.
Para isso, eu preciso de um conceito. Conceito é uma
representação geral e abstrata de algo. Ele é um meio entre o sujeito
que conhece e o objeto conhecido. Por meio dele me refiro às coisas
no mundo e posso comunicar meus conhecimentos para outras
pessoas. O conceito pode ser considerado subjetivamente como ato de
conceituar ou classificar os objetos e, objetivamente, como conteúdo
do ato, ou seja, o que o conceito significa. Por seu caráter geral e
abstrato, os conceitos são considerados universais, ou seja, um termo
que é comum a muitos singulares, sem designar a nenhum deles em
particular, de modo que podemos dizer que os indivíduos singulares
Maria, João, José pertencem à humanidade (universal), mas nenhum
deles é a “humanidade”. Tampouco a humanidade é a mera soma dos
indivíduos que a compõem, pois, mesmo que sobrasse apenas um
ser humano na face da Terra, não seria ele menos humano por causa
disso. Como já deu para perceber, a questão dos universais revela a
complexa relação entre sujeito, conceito e objeto. Por exemplo, se
todos os gatos que existem desaparecessem, a palavra “gato” ainda
faria sentido?
O primeiro filósofo a expor o problema dos universais foi
Porfírio (232 – 304) no prefácio de sua Introdução às categorias
de Aristóteles (Isagoge). Recusando-se a tomar partido em favor
de Aristóteles ou Platão, Porfírio limita-se a enunciar a natureza do
problema: antes de qualquer coisa, no que se refere aos gêneros e
às espécies, a questão é saber se eles são realidades em si mesmas,
ou apenas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam
realidades substanciais, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim,
são separadas ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.
Detalhando um pouco a questão de Porfírio, ideias gerais são
categorias que abrangem vários indivíduos. Dependendo do seu grau
de abstração, elas podem ser gênero ou espécie. Indo do mais geral
para o particular, poderíamos ilustrar a relação da seguinte maneira:
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Gênero Espécie IndivíduoAnimal Homem Sócrates
A espécie é o que está mais próximo do indivíduo, por isso,
o qualifica melhor. Se digo que Pingo é um cão, você pode ter uma
ideia melhor do que ele é do que se dissesse simplesmente que
Pingo é um animal. Por outro lado, se o gênero é mais indefinido, é
também mais amplo e designa uma quantidade maior de indivíduos.
Muito bem, já entendemos o que são gêneros e espécies agora falta
definir o que são eles, ou seja, se são realidades subsistentes em si
ou simples concepções do nosso espírito. Como você lembra, Platão
achava que as ideias eram independentes das coisas, existindo por si
mesmas em um mundo à parte. Já Aristóteles achava que gêneros e
espécies eram abstrações realizadas por nosso intelecto, só existindo
enquanto coisas e nunca fora delas. Se ficamos com Platão ou com
Aristóteles, dependerá também da resposta à segunda questão: se o
universal tem algum suporte na realidade, ou seja, se ele é corpóreo
ou incorpóreo. Supondo que sejam incorpóreos, cabe ainda perguntar
se existem independentemente das coisas ou somente unidos a elas.
Boécio (470-525) logo percebeu o magnífico programa que
as questões de Porfírio anunciavam. Além disso, viu nelas uma
oportunidade de apresentar uma solução capaz de conciliar Platão e
Aristóteles em uma única teoria. Inicialmente, o filósofo latino concorda
com Aristóteles sobre a impossibilidade de ideias gerais serem
substâncias, já que os gêneros e as espécies são comuns por definição,
e o que é comum a vários indivíduos não pode ser um indivíduo. Por
outro lado, imaginemos que
as ideias gerais são simples
representações de nosso
espírito, isto é, que nenhum
objeto corresponda na
realidade às ideias que temos
deles. Mas um pensamento
sem objeto não é sequer um
pensamento. Logo, é preciso
que os universais sejam
pensamentos de alguma coisa.
A solução proposta por Boécio
é que nossos sentidos nos
comunicam as coisas no estado
de confusão. Nosso espírito,
Figura 11 - Filosofia de consolação Inicial. Iluminura de um manuscrito da De Consolatione Philosophiae, feita em Itália no ano de 1385, mostrando Boécio a ensinar os seus pupilos.
Fonte: “Boécio” http://pt.wikipedia.org
60 Módulo 2 I Volume 2 EAD
As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
porém, tem a capacidade de distinguir nos corpos as propriedades
que se encontram misturadas e separá-las. O espírito extrai dos
seres corpóreos o que eles têm de incorpóreo, como os gêneros e as
espécies. Os universais são, portanto, incorpóreos, mas abstraídos dos
seres corpóreos. Ocorre que, uma vez abstraídos, podemos pensá-los
independentemente dos corpos, por exemplo, quando pensamos em
um leão alado.
A solução, apresentada por Boécio, não foi suficiente para
dirimir todas as questões, por exemplo, como o intelecto consegue
separar exatamente aquilo que é o universal na coisa? Seria o
universal algo que existe na realidade ou apenas uma abstração de
nosso intelecto?
5.6 Nominalismo e realismo
No decorrer da Idade Média, duas posições extremadas
se desenvolveram, o Nominalismo e o Realismo. Guilherme de
Champeaux (1070-1120) foi um dos representantes do realismo,
dizia ele que a natureza ou essência de algo – por exemplo, de um
homem – é única e idêntica em todos os indivíduos dos quais podemos
predicar “homem”. Os indivíduos seriam meras variações acidentais
da natureza ou da essência.
Um dos discípulos de Guilherme de Champeaux, Pedro Abelardo
(1079-1142), logo percebeu o problema que a ideia de universais nas
coisas (universale in re) poderia criar e colocou o seu mestre em
dificuldades ao propor que se Platão é um homem e Sócrates é um
homem, e se só existe uma única natureza humana, então Platão é
Sócrates.
No extremo oposto, Roscelino (1050-1120), negava que os
conceitos fossem algo distinto de sua expressão linguística, os nomes
não eram mais do que sons arbitrários (flatus vocis) que associamos
a determinados objetos. Fora de nosso intelecto só existem os seres
singulares. Para os nominalistas, os conceitos universais são criações
do nosso intelecto e não têm existência fora da mente. Usamos
conceitos para nos referirmos às coisas, mas tais conceitos não são
uma propriedade das coisas, existindo exclusivamente em nossas
mentes. Se a mente forma os conceitos a partir das coisas, por perceber
semelhanças entre elas, ou se já possui em si mesma os conceitos
que associa às coisas, em ambos os casos, os conceitos permanecem
como sendo uma produção intelectual sem correspondência a nada
de real fora da mente.
Nominalismo admite que nenhuma substância metafísica
se esconde por trás das palavras: as pretensas essências não
são além de palavras ou signos que representam coisas sempre
singulares.
Realismo afirma a existência de coisas exteriores a nós e
independentes do que pensamos sobre elas.
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A partir do século XII começa a se desenvolver uma versão
moderada de realismo com Pedro Abelardo, com importantes
desdobramentos em Tomás
de Aquino (século XIII). Tomás de Aquino teve a vantagem, em
relação a Abelardo, de contar com a tradução das obras de Aristóteles
para o latim. Assim pode incorporar elementos aristotélicos em seu
realismo moderado. Os realistas moderados aceitavam os seguintes
testes como forma de resolver o problema:
1. as únicas coisas que existem são os indivíduos particulares;
universais enquanto universal, isto é, enquanto predicável
de muitos, existem somente na mente;
2. o que os universais significam (sua compreensão) está
fundada imediatamente nas coisas, mas encontram seu
fundamento último nas ideias divinas; nesse sentido,
existem universais nas coisas e universais anteriores às
coisas;
3. todos os nossos conceitos vêm da experiência, pois não há
ideias inatas.
Portanto, os realistas moderados concordam com os
nominalistas nos pontos 1 e 2. Concordam, em parte, com os realistas
extremados no ponto 3, mas precisam encontrar uma maneira de
evitar o problema da identificação de Platão e Sócrates como sendo
o mesmo ser humano. Finalmente, no ponto 4, eles rejeitam tanto o
inatismo como o sensorialismo (que os conceitos não são mais do que
imagens captadas pelos sentidos).
Para Tomás de Aquino, os indivíduos são compostos de matéria
e forma, sendo a matéria o princípio de individuação. A forma (em
nosso caso a alma) ao se unir à matéria (corpo) forma os indivíduos
(Sócrates, Platão, Maria...) como unidades indissociáveis. Nosso
intelecto, porém, é capaz de percebê-las como separadas através
do processo de abstração. Nossos sentidos imprimem uma imagem
de um objeto físico em nossa mente. Essa impressão ou imagem
é chamada por Aquino de fantasma. Nosso intelecto agente abstrai
das imagens a forma (o padrão inteligível) que está impressa em
nosso intelecto passivo (que somente a recebe dos sentidos). Esta
forma, recebida pelos sentidos, impressa em nosso intelecto passivo
e abstraída pelo intelecto agente, é o conceito.
A posição de Aquino ainda encontrou objeções entre seus
sucessores. João Duns Escoto objeta em favor do realismo de que se
nosso intelecto é capaz de abstrair a forma das coisas é porque algo
Figura 12 - Tomás de AquinoFonte: “Saint Thomas Aquinas” http://commons.wikimedia.org/
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
de geral, algo de regular existe na natureza: se o universo fosse um
puro caos, não poderíamos abstrair coisa alguma, pois cada evento
seria único. Ora, se podemos ver traços comuns nos particulares é
porque tais traços existem não em nossa mente, mas na realidade.
Contrariamente, Guilherme de Ockham advoga uma posição
conceitualista-nominalista. Para ele, só os objetos singulares são
reais, as abstrações que fazemos deles existem apenas em nossas
mentes. O conceito de “mamífero” não mama, nem tem sangue
quente, é apenas uma característica geral que usamos para designar
um grupo de indivíduos, mas o mamífero, em si, não é algo real.
De certa forma, a querela dos universais não terminou junto
com o fim da Idade Média. Ela atravessou a Era Moderna chegando
até os nossos dias, ganhando contornos cada vez mais elaborados.
ATIVIDADE6 ATIVIDADES
As questões a seguir têm como objetivo ajudar a fixar tudo que aprendemos até agora. Elas seguem a ordem em que está organizado o texto, portanto, seria melhor respondê-las na sequência em que estão. Após respondê-las seria bom confrontar suas respostas com as dos colegas no Seminário Integrador e esclarecer as dúvidas com o tutor. Depois, reformule suas respostas, se for o caso, e entregue suas respostas ao tutor.
1. Qual a relação entre mito e conhecimento?2. Qual a função social do mito?3. Como a explicação filosófica se distingue da religião e da ciência?4. Como podemos atingir a verdade segundo Platão?5. Qual a crítica que faz Aristóteles à teoria do conhecimento de Platão e a solução
que este apresenta para o problema?6. O que são os universais?
7. Qual a diferença entre nominalistas e realistas sobre a questão dos universais?
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RESUMINDO7 RESUMINDO
As questões sobre quais os conhecimentos que são realmente
confiáveis ocuparam corações e mentes desde os primórdios da nossa
história. A princípio, as perguntas direcionavam-se para o sentido da
vida e do universo, o que gerou os grandes horizontes de sentido e
compreensão como as religiões, os mitos e a filosofia. Diferentemente da
religião, entretanto, a filosofia buscou criar uma explicação puramente
racional do universo sem recorrer às imagens míticas e religiosas
para fundamentar seus argumentos. Entre as teorias filosóficas do
conhecimento, destacam-se as de Platão, que acreditava que o mundo
em que vivemos é uma mera cópia das formas ideais, e a de Aristóteles
que achava que o conhecimento é resultado de um processo de abstração
do intelecto a partir da experiência. As posições de Platão e Aristóteles
também alimentaram o debate medieval sobre os universais gerando
duas posições antagônicas: o nominalismo e o realismo.
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FE
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8 REFERÊNCIAS
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São
Paulo: Edições Paulinas, 1989.
FINLEY, M. I. Os gregos antigos. Lisboa: Edições 70, 1984.
HINKELLAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo:
Edições Paulinas, 1983.
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida. Petrópolis: Vozes,
2006.
WIENER, Norbert. Cibernética y sociedad. Buenos Aires, 1969.
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As Teorias do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
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Suas anotações