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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O USO DO NOME SOCIAL NO AMBIENTE ESCOLAR COMO FORMA DE INCLUSÃO
E DEVIDO RECONHECIMENTO DAS PESSOAS TRANS
Paulo Adroir Magalhães Martins1
Rosângela Angelin2
Resumo: Utilizando o método de procedimento sócio-analítico e a abordagem dedutiva, a presente
pesquisa visa analisar o uso do nome social em ambiente escolar como forma de assegurar o devido
reconhecimento às pessoas trans. Apesar da diversidade de manifestações identitárias o
reconhecimento equivocado ou não-reconhecimento das identidades trans auxilia na perpetuação de
diversas formas de violência e constrangimento contra quem assim se expressa. A pesquisa inicia
abordando o processo de expressão e significado dos corpos e das identidades trans, para então,
analisar as situações de reconhecimento dessas identidades no sistema jurídico brasileiro, com foco
no ambiente escolar para então averiguar como se dá reconhecimento e os direitos humanos das
pessoas trans. Verifica-se que apesar de alguns ambientes, tanto escolares como não, assegurarem
uma tentativa de devido reconhecimento e respeito com as pessoas trans com o uso do nome social,
a situação não passa de uma forma de “gambiarra jurídica” que pode nem sempre surtir o efeito
inclusivo, perpetuando preconceitos. O devido respeito às pessoas trans somente é garantido com a
quebra de paradigmas culturais e preconceitos, em que difunda-se a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Identidades Trans. Reconhecimento. Nome social. Educação em Direitos
Humanos.
Considerações Iniciais
O ser humano, no desdobramento da evolução da espécie homo sapiens, adaptou-se ao meio
em que viveu e o transformou. Entretanto, mais importante do que isso, é considerar que os
indivíduos humanos são seres sociais e que sua adaptação ao mundo depende das relações
1 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito – Mestrado e Doutorado da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Santo Ângelo/RS (Brasil). Mestre em Direito
pela mesma instituição. Especialista em Gênero e Sexualidade pelo Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos
Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Integrante do Projeto de Pesquisa Direitos Humanos e Movimentos Sociais na
Sociedade Multicultural e do Projeto de Extensão O lugar dos corpos das Mulheres na Sociedade: uma abordagem do
corpo e da defesa pessoal. Integrante do Núcleo de Pesquisa de Gênero da Faculdades EST. Advogado. E-mail:
2 Pós-Doutora pela Faculdades EST, São Leopoldo-RS. Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrueck
(Alemanha). Docente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito –Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Campus Santo Ângelo/RS e da Graduação de
Direito dessa Instituição. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPQ) “Direito de Minorias, Movimentos Sociais e Políticas
Públicas”. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Direitos Humanos e Movimentos Sociais na Sociedade
Multicultural”. Coordenadora dos Projetos de Extensão “O lugar das Mulheres na Sociedade” e “Direitos de Minorias e
Desenvolvimento Sustentável: Movimentando-se em redes de Cooperação, Solidariedade e Conhecimento na América
Latina”. Integra a Marcha Mundial de Mulheres. E-mail: [email protected]
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construídas, as quais são imprescindíveis ao coletivo para se humanizar. A convivência em
sociedade pressupõe que sejam materializados alguns acordos no contexto social para que o
cotidiano seja mais organizado e as relações entre os seus membros, mais pacífica e humanizadora.
Com o passar dos milênios, as relações entre as pessoas foram sendo construídas a partir de relações
e hierarquizações de poder que acabaram por gerar desigualdades na vida social.
Neste contexto, os indivíduos transexuais possuem uma história de exclusão da vida pública
e suas identidades foram sendo construídas de tal forma, que se gerou uma profunda desigualdade e
opressão de seus corpos nas relações interpessoais, situação essa, naturalizada no seio social e
jurídico, influenciada em especial pela heteronormanitvidade. O debate acerca das identidades
equivocadas das pessoas trans só entrou no foco dos debates do Estado, quando estes reivindicaram,
através dos movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT), o
reconhecimento de suas identidades como seres humanos libertos do estigma de submissão, livres
para decidirem sobre seus corpos e suas vidas, ao mesmo tempo em que buscam a implantação e/ou
efetivação de direitos de cidadania.
As situações de reconhecimento indevido e/ou de não-reconhecimento de identidades
sexuais que não se enquadram nos padrões considerados como “normais” na cultura da sociedade
contemporânea, repercute em situações de extrema angústia e violência, tanto física quanto
psicológica contra os indivíduos que expressam aquelas identidades, como é o caso de pessoas
trans. De forma alarmante, a organização não governamental (ONG) Transgender Europe,
anunciou o Brasil como o país com maior número de assassinatos de transexuais e travestis,
representando uma quantidade quatro vezes superior aos dados apresentados pelo México, o
segundo colocado no ranking (BENTO, 2015, 1). Obviamente, as questões do reconhecimento das
identidades trans já adentraram a esfera de atuação do direito. Logo, questiona-se: qual o tipo de
reconhecimento do direito brasileiro concedido às identidades trans?
Em busca de uma resposta a esse questionamento, a presente pesquisa utilizou-se do método
de procedimento sócio-analítico e a abordagem dedutiva, a partir de levantamento bibliográfico e
documental, para, num primeiro momento, abordar o processo de expressão e significado dos
corpos e das identidades trans. Após, verificar-se-á as situações de reconhecimento dessas
identidades sob o prisma do direito brasileiro, analisando, então, as normas que garantem o uso do
nome social em diversos ambiente, com enfoque nas repercussões desse uso no ambiente escolar
para então averiguar como se dá, pelo menos em parte, o reconhecimento e os direitos humanos das
pessoas trans.
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Significando as identidades trans: transexualidades e travestilidades
A sexualidade, enquanto componente identitário sexual, é parte essencial e integrante da
expressão da identidade humana, e por consequência de sua personalidade, por isso qualquer pessoa
possui o direito de exercê-la livremente, sendo garantida tal liberdade com base no texto da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse sentido Michel Foucault (2015, 65) ensina que
o corpo humano é a “superfície de inscrições dos acontecimentos”, ou seja, através do corpo que
manifestam-se as identidades, em especial as identidades sexuais, e ocorrem infindáveis
possibilidades de relações entre os seres humanos. Ao contrário do que as ciências naturais tentam
impor sobre os indivíduos, o corpo não é um produto finalizado, pronto e dado pela natureza
biológica. Remete-se, então, o corpo à historicidade do indivíduo.
A própria Sexologia Médico-legal já invoca a percepção de que a característica sexual da
identidade de uma pessoa é determinada por quatro fatores: genético, endócrino, morfológico e
psicológico. Nesse sentido, ensina Odon Ramos Maranhão (1995, 127) “[…] não se pode mais
considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial”. Então, o sexo, e
consequentemente a identidade de gênero, o sentimento de pertença social a um sexo, é resultante
de diversos fatores que agem de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social.
Adentrar mais fundo na questão da identidade de gênero remete a abordar o grande conflito
que existe entre o corpo físico e a percepção individual deste dentro dos padrões culturais de um
contexto histórico. Pessoas trans deparam-se com dificuldades para ver garantida a suas identidades
de gênero em razão do senso comum de que estas são determinadas somente por fatores biológicos
e não o resultado de diversos vetores que ultrapassam a forma física humana. Geralmente, os
indivíduos apresentam o sexo psicológico como reflexo do sexo biológico e havendo sincronismo
entre ambos, a identidade de gênero dessa pessoa será condizente com o seu gênero, identificando-
se como uma pessoa cisgênero. Tal situação não condiz com a realidade das pessoas trans, pois a
identidade destas é percebida a partir de uma inteligibilidade que supera os limites socioculturais de
sexo biológico e gênero social, em uma nova compreensão de corpo e identificação com os padrões
do que constitui “ser homem” e “ser mulher”.
A socióloga brasileira Berenice Bento (2008, 20), cujos estudos são referência incontornável
para a temática de gênero e transexualidades no campo das ciências sociais, aborda as
transexualidades como experiências identitárias de enorme conflito com as normas de gênero, as
quais vem da reprodução do pensamento centrado-lógico de que o gênero reflete o sexo, moldando
a sexualidade a partir de disposições supostamente naturais. Nesse sentido Bruno Cesar Barbosa
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(2013, 356-357) demonstra que há uma confusão nos discursos públicos entre transexualidades e
travestilidades, sendo que aquelas se caracterizam por vivências performáticas na qual a
autopercepção encontra-se de encontro às normas sociais de sexo e gênero. Assim, independe da
realização ou não de intervenção cirúrgica para a caracterização transexual, claro que muitos optam
por fazê-la, mas não é uma condição sine qua non para a identificação.
Berenice Bento refere em sua obra a presença do dispositivo da transexualidade na
sociedade contemporânea. A construção da autora sobre o “dispositivo da transexualidade” teve
como inspiração o “dispositivo da sexualidade” de Foucault. Ao utilizar a expressão “dispositivo da
transexualidade”, Bento (2006, 67-68) refere-se aos saberes que produziram a verdade sobre os
corpos transexuais, uma vez que o controle encontra-se além da face identitária. Seguindo uma
acepção foucaultiana, em que a sexualidade é controlada pelos sistemas sociais, ainda está presente
a perspectiva patológica dessa identidade, inclusive no campo acadêmico. Isso remonta ao uso do
sufixo “ismo”, o qual denota doença, ao se referir aos transexuais não pelas expressões identitárias
da transexualidade, mas como a doença que deve ser tratada. Sob a perspectiva patológica, o
“transexualismo” integra a décima versão do Cadastro Internacional das Doenças (CID-10) nó
código F 64.0, como parte da categoria dos transtornos mentais, existindo, inclusive as diretrizes
para seu diagnóstico, sendo que, também, faz parte da quinta edição do Manual de Diagnóstico e
Estatística da Associação Americana de Psiquiatria recebendo a nomenclatura de “disforia de
gênero”. Acontece que está impregnado nos discursos de senso comum a ideia de que as pessoas
que transgridem as normas sociais acerca sexo e gênero são portadores de desvios psíquicos,
expressados de forma simplista em expressões como “pouca-vergonha”.
As considerações biomédicas a respeito da transexualidade demonstram a criação de uma
identidade transexual única. O verdadeiro transexual sob a óbice das ciências da saúde se apresenta,
na concepção do sexólogo alemão Harry Benjamin (1999, 11), como um ser humano em
desconformidade com o seu corpo, em razão das características sexuais primárias e secundárias, que
deve manter-se assexuado até o final da redesignação sexual, para depois relacionar-se intimamente
apenas com os indivíduos que sejam do sexo oposto à sua nova realidade. Em outras, palavras todo
transexual deveria ser heterossexual, situação essa que se torna um dos mecanismos de reprodução
da heteronormatividade.
Judith Butler (2015, 24-26) destaca o caráter compulsório do qual a heterossexualidade e a
visão binária de sexo e gênero se reveste nas sociedades contemporâneas. Destaca-se o modo como
tal caráter faz com que a cultura não admita um indivíduo ser outra coisa além de um homem
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sociobiológico ou uma mulher sociobiológica. Essa ordem impõe que, a única forma legítima de
amor e desejo sentidos por um homem esteja dirigida a uma mulher, e vice-versa. Esse caráter
compulsório recebe a alcunha de heteronormatividade, sendo parte da ordem social, ou seja,
constitui um conjunto estabelecido de relações de poder, que privilegia e promove a
heterossexualidade em congruência com o modelo biológico e morfológico dos sexos e sua
representação social, em detrimento de outras expressões das sexualidades possíveis. A
heteronormatividade abrange um escopo amplíssimo de relações sociais, manifestando-se
cotidianamente em diversas situações.
A teoria queer, buscar romper com os essencialismos e os binarismos de gênero para o
desenvolvimento de sexualidades capazes de dialogar com respeito entre todos os sujeitos do
mundo contemporâneo (BENTO, 2008, 53). Destaca-se que, a desconstrução apregoada pela autora
não é a destruição do conceito em análise, mas sim o rompimento com a sua concepção atual, rumo
a formulação de um novo conhecimento. Atualmente, o tratamento do “gênero” no sistema binário é
o reflexo do dimorfismo sexual humano, ou seja, mesmo sendo uma construção sociocultural
contextual, ao “gênero” ainda é atribuído a realidade da duplicidade dos sexos biológicos, esta tida
como uma grande verdade que fornece seu próprio significado. Como fruto do movimento queer na
busca da desnaturalização e desculturação dos ideais binários de sexo e gênero, alguns transgêneros
identificam-se com o gênero denominado queer, este é uma espécie de identidade de gênero neutra
que opõe-se a qualquer designação a termos masculinos ou femininos. Com isso, a teoria queer
denuncia a rigidez do modelo heteronormativo de dicotomia de gênero, bem como reivindica o
repeito a todos, todas e todxs a partir da necessidade política da afirmação da diversidade.
Entretanto, essa não a realidade da maioria das outras pessoas trans, as quais se identificam
com gênero outro daquele que a lógica heteronormativa binária atribui aos indivíduos. Berenice
Bento (2006, 157-160), em pesquisa desenvolvida por três anos sobre a experiência transexual,
verifica-se que o esteriótipo “homem heterossexual preso no corpo de mulher” ou “mulher
heterossexual presa no corpo de homem”, não conseguiam contemplar todos os envolvidos. A
autora se surpreendeu com a vida sexual ativa que tinham os transexuais não-operados, inclusive
era comum relatos de que alguns e algumas não gostariam de passar pela redesignação cirúrgica da
genitália, isso foi de encontro a toda imagem do transexual assexuado que apregoa a perspectiva
biomédica. Defende-se, então, a desconstrução do ideal universalizante da identidade transexual
heterossexual no pós-operatório e assexuado antes e durante a redesignação sexual. Ela
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obstinadamente aborda a divergência entre o modelo científico apresentado e a realidade concreta,
sendo que esta não pode ser ignorada.
Outro ponto levantado pelos estudos de Berenice Bento (2008, 183) foi a verificação da
intervenção cirúrgica para se caracterizar a transexualidade. As administrações hormonais e
pequenas a adequações cirúrgicas corporais são comum aos transexuais e travestis, ambas as
expressões da sexualidade reconstroem seus corpos. A grande diferenciação entre um e outro está
na percepção de seu gênero. Enquanto as travestilidades não reivindicam uma posição definida na
ordem cultural de masculinidades e feminilidades, as transexualidades buscam reivindicar
mecanismos de identificações das instituições socioculturais. Logo, as transexualidades podem ser
expressas por indivíduos que passem pela redesignação cirúrgica ou que não o façam, desde que
pleiteiem e lutem pelo seu espaço na sociedade hierarquizada a partir de suas subjetividades da
performance do que seria a sua masculinidade ou feminilidade.
A busca do devido reconhecimento identitário da população trans ocorre pelo enfrentamento
dos valores dominantes na sociedade heterocentrista e dimórfica sexual. Assim, leciona Maria
Berenice Dias (2011, 199) que, “[…] todo o ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre
exercício da sexualidade, pois é um elemento integrante da própria natureza humana e abrange sua
dignidade”. Entretanto, como é de saber notório, vários indivíduos adeptos de discursos ideológicos
extremistas não mantêm tal respeito e dignidade com outras expressões sexuais que não se
enquadram nos limites culturais do senso comum de “correto”.
A busca do devido reconhecimento das identidades trans: uma análise através do uso do nome
social
Embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja o respeito à diversidade e estabeleça
como um dos objetivos da República do Brasil a constituição de uma sociedade sem discriminação,
conforme preceitos da Constituição Federal de 1988, a norma jurídica brasileiro é amplamente
omissa em relação à temática e aos direitos atinentes às pessoas trans. A regulamentação dos
direitos destes é imprescindível “[…] para atenuar o desconhecimento, repúdio, o preconceito e a
discriminação, e, consequentemente, gerar uma igualdade de direitos e garantias entre os
transexuais e o restante da sociedade, bem como proporcionar o respeito e a dignidade a estas
pessoas” (Machado, 2011, 75).
Abordar questões envolvendo identidades sexuais e seu reconhecimento envolve,
claramente, tratar da viabilidade de garantir e reconhecer direitos humanos que estão sendo
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violados. Por direitos humanos entende-se o rol não-exaustivo de instrumentos de defesa das
pessoas humanas contra os poderes sociais, públicos e privados, os quais tendem a se manifestar
como poderes reguladores que se traduzem em ações continuadas de opressões e dominações. Os
direitos humanos importam, sobretudo, no reconhecimento da diversidade identitária das
humanidades. O não reconhecimento político e social dos direitos de indivíduos e de coletividades,
a partir do devido tratamento de suas identidades pautadas nas diferenças, implica em extrema
violação dos direitos humanos. Isso em razão das repercussões negativas que afetam a vida das
pessoas. Esta forma de reconhecimento indevido desclassifica e estigmatiza os sujeitos, bem como
segrega os diferentes no meio social.
[…] o reconhecimento incorreto não implica só uma falta de respeito devido. Pode também
marcar suas vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante
de ódio contra elas mesmas. Por isso, o respeito devido não é um acto de gentileza para
com os outros. É uma necessidade humana vital (TAYLOR, 1998, 46).
O devido reconhecimento das pessoas transexuais não se restringe à questão do direito à
autonomia sobre o corpo, uma vez que para o devido exercício da identidade de gênero, o Estado
deve ter resguardar uma série de direitos conexos, entre eles, o direito à intimidade, à privacidade,
ao nome, à saúde, à liberdade e à integridade física e moral (Romano, 2009, 125). Para haver o
devido respeito e reconhecimento do indivíduo transexual é necessária que sua documentação e o
registro público se adéquem a sua identidade sexual, logo é imprescindível a alteração de duas
informações para evitar o tratamento vexatório: o prenome e o sexo. Ambos são passíveis de
mudança por meio da tutela jurisdicional do Estado, porém isso repercute na submissão a uma
arbitrariedade de juízo, a qual pode ou não resguardar a manifestação identitária do indivíduo, e que
geralmente pauta-se nos conhecimentos biomédicos, os quais patologizam as identidades trans.
A situação dos direitos das pessoas trans perpassam por numa espécie de “gambiarra
jurídica” (Bento, 2012), uma vez que, para que possam postular a mudança registral, elas
necessitam se apresentar como portadoras de uma patologia, confirmada por laudos psiquiátricos
e/ou psicológicos. Por conseguinte, esse tipo de reconhecimento jurídico de identidades trans como
uma patologia reforça a ideia reconhecimento equivocado, o que por si já os classifica como
cidadãos e cidadãs de segunda categoria, ou detentores de uma cidadania precária.
Numa forma de tentar remediar as situações de falta de reconhecimento devido as
identidades trans, aposta-se no uso do “nome social”. Este nada mais é que a autodenominação das
pessoas trans em contrapartida ao nome que consta no registro público (Maranhão Filho, 2012, 93).
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Nesse sentido, cabe ressaltar que a capacidade do uso do nome social é atrelado, muitas vezes a
existência de normas que possibilitem o uso em determinados ambientes, portanto, há um grande
limite delimitado sobre o seu uso e a possibilidade de respeito a autodenominação nas relações
sociais em locais estritamente limitados. A seguir, abordar-se-á o uso do nome social em diferentes
espaços, limitados pelas normas que asseguram a possibilidade de sua utilizaçõa.
Apesar do descaso pelo Poder Legislativo com a temática das identidades trans,
posicionamentos como o Decreto número 8.727, de 28 de abril de 2016, o qual dispõe sobre o uso
do nome social por transexuais e travestis no âmbito da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional, são formas de devido reconhecimento às identidades das pessoas trans.
Esta normativa é fruto de uma assimilação pelo Poder Executivo de parte das demandas desse
público, promovendo uma tentativa de respeito à diversidade sexual esteja presente nas ações
estatais. Entretanto, o Decreto 8.727/2016 está sendo alvo do Projeto de Decreto Legislativo de
Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDC) 395/2016, de autoria do Deputado Federal
João Campos e outros 26 membros da Frente Parlamentar Evangélica. Apesar de não ser utilizar de
um discurso religioso discriminatório na fundamentação do PDC mencionado, está implícita a
tentativa de controlar os corpos transexuais e travestis e minar a autonomia de seus direitos, uma
vez que essa ação legislativa é proposta por um número expressivo de membros de Frente
Parlamentar Evangélica, os quais deflagram publicamente discursos discriminatórios, pautados na
sua perspectiva religiosa fundamentalista e essencializadora.
Nesse sentido iniciativas de chefes do executivo de entes estatais, como o caso do Estado do
Rio Grande do Sul através do Decreto 48.118 de 2011, o qual dispõe sobre o tratamento nominal,
inclusão e uso do nome social de travestis e transexuais nos registros estaduais relativos a serviços
públicos prestados no âmbito do Poder Executivo Estadual, buscaram garantir respeito,
reconhecimento, e uma maior integração das pessoas trans. Entre os fundamentos desse Decreto, o
governador gaúcho, há época da promulgação da norma, considerou os princípios constitucionais da
liberdade, igualdade e autonomia pessoal, os quais orientam a atuação do Estado na promoção da
cidadania e do respeito para com as diferenças identitárias humanas. Destaca-se que esse Decreto
possui sua eficácia limitada aos registro estaduais (Rio Grande Do Sul, 2011, 3).
Entretanto, as determinações do Decreto 48.118/2011 ganharam a devida eficácia com o
Decreto 49.112 de 2012. Este instituiu a Carteira de Nome Social para travestis e transexuais no
Estado do Rio Grande do Sul. No referido documento consta tanto o prenome, com o qual o
indivíduo efetivamente se identifica, quanto dados relativos a sua identificação no Registro Geral,
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com o propósito que seja possível efetuar-se uma conexão entre a denominação social e civil das
pessoas transexuais e travestis, sem que seja necessário o uso de um processo jurisdicional para
mudar o Registro Público desses indivíduos.
Estudos realizados sobre a Carteira de Nome Social evidencia que, mesmo sendo uma
medida que auxilia no tratamento e respeito das pessoas transexuais, esta não finaliza a
problemática frente ao reconhecimento identitário no meio social, pois meramente garante o seu
tratamento nominal em órgãos do poder executivo estadual do Rio Grande do Sul, uma vez que tal
documento não tem o valor substitutivo da carteira de identidade. Portanto, efetivamente ocorre a
necessidade de uma dupla apresentação de documentos em alguns órgãos, o que demonstra a
contradição entre a busca de se ter o tratamento pelo nome devido às pessoas trans somente quando
se verificar, também, a existência de sua condição anterior, provocando, assim, uma violência
simbólica diante de uma tentativa de reconhecimento devido das identidades daquelas (Aguinsky;
Ferreira; Rodrigues, 2013, 7).
Vale destacar aqui o posicionamento dos servidores públicos gaúchos diante do uso da
Carteira Social, os quais afirmam que obtiveram relatos de que as legislações gaúchas são
respeitadas e apresentam relativo sucesso, sendo uma tentativa válida de conceder visibilidade e
espaço às demandas de transexuais e travestis. É apontada como eficaz não somente em seu efeito
material, quanto à determinação do tratamento nominal adequado, assegurando extensivamente uma
cidadania devida, como também no aspecto simbólico, por um reconhecimento das demandas
identitárias pelo ente estatal (Aguinsky; Ferreira; Rodrigues, 2013, 7).
Entre outras medidas administrativas referentes aos direitos identitários de pessoas
transexuais, destaca-se a Portaria 1.612, de 18 de novembro de 2011, do Ministério da Educação
(MEC), que assegura o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos
promovidos pelo ministério. Em razão desta portaria, e em consonância com os decretos do Poder
Executivo, várias instituições de ensino superior buscam assegurar o uso do nome social, entretanto
a efetividade desse reconhecimento das identidades trans encontra obstáculos na prática cotidiana.
O desrespeito ao uso do nome social é reportado como uma das principais causas de transfobia no
ensino superior e uma das mais corriqueiras (Vendrossi, 2014).
Ressalta-se que a possibilidade de uso do nome social de travestis e transexuais no registro
escolar, bem como no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), tem contribuído para a inclusão
desses indivíduos na sociedade. Em razão da possibilidade de uso do nome social a cada ano,
aumenta o número de pessoas trans candidatas no ENEM. A exemplo disso o MEC reportou um
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acréscimo de 46% nas inscrições de pessoas trans no exame de 2016 quando comparado a 2015
(G1, 2016). Apesar disso apenas 434 das 842 solicitações do uso do nome social foram atendidas,
uma vez que é necessário o preenchimento de um formulário e a submissão de cópia nítida do
documento registral e uma foto que “comprove” a identidade trans, a qual será analisada para a
autorização, o que demonstra que somente quando se há uma mudança corporal significativa no,
padrão binário de masculinidade e feminilidade estereotipados, é que se resguarda o uso do nome
social. O que demonstra a prevalência de um reconhecimento falho, que impede parte dos
indivíduos escritos tenham sua identidade respeitada.
Isso tudo demonstra que é necessária a implementação e efetivação de legislações e mais
políticas públicas para que seja possível a inclusão dos segmentos de pessoas trans que ainda
beiram a margem da sociedade, garantindo seu direito de liberdade de escolhas pessoais e direitos
de personalidade que, na sua falta, geram grande demanda da intervenção do Poder Judiciário.
Ocorre que, no Brasil, as legislações existentes não têm atendido as demandas da realidade, quando
se aborda as sexualidades, muito menos quando se trata da diversidade sexual, como nas situações
das pessoas trans. Apesar de avanços no reconhecimento de direitos das pessoas trans pelo Poder
Judiciário, o Poder Legislativo brasileiro, impregnado por discursos essencializantes e
discriminatórios, de influência principalmente extremista religiosa, tem se oposto à diversidade
sexual, nas discussões sobre a temática.
Considerações Finais
Apesar das tentativas de reconhecimento das identidades trans por meio do uso social sejam
medidas que possibilitem a inclusão e o devido reconhecimento das pessoas que assim se
expressam, o seu uso remonta uma gama de obstáculos que impedem o pleno exercício dos direitos
daquelas pessoas. A temática das identidades trans necessitam ser abordadas pelos legisladores sob
um óbice dos direitos humanos. Uma série de preceitos devem ser respeitados nessa abordagem, tais
como a visibilidade, integração e respeito. Isso somente é possível quando garante-se a disposição
sobre o próprio corpo, à sua integridade física e moral, à saúde física e emocional, à sua intimidade,
à privacidade, ao nome, à igualdade e à liberdade de sua sexualidade. Somente com uma educação
pautada no respeito às diferenças e aos direitos humanos é que possível uma mudança de
paradigmática para que, efetivamente, mudanças sociais que possibilitem o respeito às pessoas trans
sejam efetivadas e, portanto, sejam devidamente reconhecidas como sujeitos de direitos.
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Referências
AGUINSKY, Beatriz Gershenson; FERREIRA, Guilherme Gomes; RODRIGUES, Marcelli
Cirpriani. A carteira de nome social para travestis e transexuais no Rio Grande do Sul: entre
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2013, Florianópolis. Anais… Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
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The use of social name in the school environment as a form of inclusion and due recognition of
trans people
Astract: Using the socio-analytical procedure method and the deductive approach, this research
aims to analyze the use of the social name in a school environment as a way to ensure due
recognition to trans people. Despite the diversity of identity manifestations, the misdirect
recognition or non-recognition of trans identities assists in the perpetuation of violence and
embarrassment against this persons. This research begins by approaching the process of expression
and meaning of bodies and trans identities, to then analyze the situations of recognition of these
identities in the Brazilian legal system, focusing on the school environment to then investigate how
is the recognition and human rights of trans people. It is verified that some environments, school
and others, ensure an attempt to recognize and respect the trans people with the use of the social
name, although the situation is just a form of "legal kludge" that may not always provide the
inclusive effect, thus perpetuating prejudices. The due respect to trans people is only guaranteed
with the breaking of cultural paradigms and prejudices, which ensures the human dignity.
Keywords: Trans identities. Recognition. Social name. Education in Human Rights.