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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O CRIME DE AGRESSÃO 1 I – Introdução Ao contrário do que sucede com os outros crimes sobre os quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) tem competência, o crime de agressão não se encontra definido no Estatuto do TPI, constando a sua referência apenas da alínea d) do nº 1 do art. 5º (“1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afectam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: ...d) O crime de agressão.”) e do nº 2 do mesmo artigo. Estatui o referido número: “ O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crimes de agressão desde de que, nos termos dos artigos 121º e 123º 2 , seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser 1 A autora representou Portugal em negociações sobre o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e documentos posteriores, de 1995 a 2002. Quaisquer opiniões expressas neste artigo são, contudo, meramente pessoais. 2 ? Os artigos 121º e 123º respeitam a alterações do Estatuto, o primeiro dos mesmos por proposta de qualquer Estado Parte após sete anos depois da entrada em vigor do Estatuto e desde de que a Assembleia dos Estados Partes decida, por maioria dos membros presentes e votantes, examinar a questão; o segundo por iniciativa do Secretário-Geral da ONU, que terá obrigatoriamente que convocar uma Conferência de Revisão sete anos após a entrada em vigor do Estatuto e que incidirá “..nomeadamente, mas não exclusivamente, sobre a lista de crimes que figura no artigo 5º.”. Como o Estatuto entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2002, a dita Conferência terá que se realizar em 2009. Tanto num caso como no outro, exige-se uma maioria de dois terços para adopção, pela reunião, de uma qualquer alteração que, no entanto, só entrará em vigor um ano após o depósito dos instrumentos de ratificação de sete oitavos dos Estados Partes. Relativamente a alterações relacionadas com a lista de crimes da competência do Tribunal (ou com a sua definição), estas só entram em vigor para os Estados Partes que as tenham aceitado por ratificação. Como se vê, trata-se de um processo complexo, moroso e difícil, que visa sobretudo preservar a universalidade do documento e manter as obrigações dos Estados Partes tão similares quanto possível. 1

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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O CRIME DE AGRESSÃO 1

I – Introdução

Ao contrário do que sucede com os outros crimes sobre os quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) tem competência, o crime de agressão não se encontra definido no Estatuto do TPI, constando a sua referência apenas da alínea d) do nº 1 do art. 5º (“1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afectam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: ...d) O crime de agressão.”) e do nº 2 do mesmo artigo. Estatui o referido número: “ O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crimes de agressão desde de que, nos termos dos artigos 121º e 123º 2, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.”.

Trata-se de um caso único no Estatuto, que afirma a competência sobre o crime mas difere o momento da eficácia dessa competência para um futuro, relativamente incerto, após o acordo quanto à definição do dito crime e às condições do seu exercício, designadamente quanto às relações entre os poderes que o TPI e o Conselho de Segurança da ONU terão face a essa definição e ao exercício dessa competência.

As considerações breves que se seguem tentam sintetizar as razões por que a situação é tão delicada relativamente ao crime de agressão, apontando aspectos técnicos que, coadjuvando algumas razões que a todos se imporão como óbvias, contribuem decisivamente para as dificuldades políticas que estão presentes nesta assumpção de competência pelo Tribunal.

1 A autora representou Portugal em negociações sobre o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e documentos posteriores, de 1995 a 2002. Quaisquer opiniões expressas neste artigo são, contudo, meramente pessoais.2

? Os artigos 121º e 123º respeitam a alterações do Estatuto, o primeiro dos mesmos por proposta de qualquer Estado Parte após sete anos depois da entrada em vigor do Estatuto e desde de que a Assembleia dos Estados Partes decida, por maioria dos membros presentes e votantes, examinar a questão; o segundo por iniciativa do Secretário-Geral da ONU, que terá obrigatoriamente que convocar uma Conferência de Revisão sete anos após a entrada em vigor do Estatuto e que incidirá “..nomeadamente, mas não exclusivamente, sobre a lista de crimes que figura no artigo 5º.”. Como o Estatuto entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2002, a dita Conferência terá que se realizar em 2009.

Tanto num caso como no outro, exige-se uma maioria de dois terços para adopção, pela reunião, de uma qualquer alteração que, no entanto, só entrará em vigor um ano após o depósito dos instrumentos de ratificação de sete oitavos dos Estados Partes. Relativamente a alterações relacionadas com a lista de crimes da competência do Tribunal (ou com a sua definição), estas só entram em vigor para os Estados Partes que as tenham aceitado por ratificação.

Como se vê, trata-se de um processo complexo, moroso e difícil, que visa sobretudo preservar a universalidade do documento e manter as obrigações dos Estados Partes tão similares quanto possível.

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II - Resumo Histórico3

Tanto o Tribunal de Nuremberga4 como o de Tóquio5 previram, no âmbito das suas competências, os “crimes contra a paz”, tendo julgado e condenado vários indivíduos por esses crimes6. O artigo 6º da Carta de Nuremberga estatui:

“ O Tribunal ... terá competência para julgar e punir pessoas que, tendo actuado em nome dos interesses dos países Europeus do Eixo, quer como indivíduos, quer como membros de organizações, tenham praticado qualquer um dos crimes que se seguem....a) Crimes contra a paz: o planeamento, preparação, iniciação ou condução de uma guerra de agressão, ou de uma guerra em violação de tratados, acordos ou garantias internacionais, ou a participação num plano ou conspiração para prossecução de qualquer das actividades acima mencionadas; ...” (tradução da autora).

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? Sobre os antecedentes históricos do Estatuto de Roma, ver, entre muitos outros, Escarameia, Paula "O Tribunal Criminal Internacional" in Reflexões sobre Temas de Direito Internacional, ISCSP, Lisboa, 2001 (artigo escrito em princípios de 1999) e Lobo, António Costa "Um Tribunal à Escala Mundial", in O Mundo em Português, n°18, Março de 2001. Para um conhecimento mais pormenorizado das negociações, ver Lee, Roy ed. The International Criminal Court – The Making of the Rome Statute: Issues, Negotiations, Results, Kluwer Law International, The Hague, 1999 e Leanza, Umberto "The Rome Conference on the Establishment of an International Criminal Court: a Fundamental Step in the Strengthening of International Criminal Law" in Lattanzi, Flavia and Schabas, William Essays on the Rome Statute of the International Criminal Court – vol.I, Il Sirente, Itália, 1999. Para uma análise histórica dos antecedentes de uma justiça penal internacional e um estudo sobre os principais problemas que hoje se colocam, ver a série de publicações Nouvelles Études Pénales, érès, n. 13, 13bis, 13 ter e 13 quater, desde 1997 a 1999, sobretudo Bassiouni, Cherif, "Historical Survey: 1919-1998" in 13 quater, pp. 1 a 44 e Leanza, Umberto “The Historical Background” in Politi, Mauro e Nesi, Giuseppe editores, The International Criminal Court and the Crime of Aggression, Ashgate, England, 2004, pag. 3 e segs.. Para uma visão dos antecedentes históricos e do decurso das negociações relativamente ao crime de agressão, ver, em geral, Politi, Mauro e Nesi, Giuseppe, editores, op.cit.. Para referências mais gerais, mas com capítulos dedicados ao crime de agressão, ver Cassese, Antonio, International Criminal Law, Oxford University Press, 2003, capítulo 6 “Other International Crimes (Aggression, Torture ans Terrorism), pag. 110 e segs. e Kittichaisaree International Criminal Law, Oxford University Press, 2005, capítulo 7 “Agression and Other International Crimes”, pag. 206 e segs.. 4 O Tribunal de Nuremberga foi constituido por acordo entre o Reino Unido, os Estados Unidos, a França e a União Soviética, assinado em Londres em 8 de Agosto de 1945 (ver United Nations Treaty Series, vol.82, pag. 279), a que foi anexa, como parte integrante do mesmo, a Carta do Tribunal Militar Internacional (a chamada Carta de Nuremberga – ver ibid, pag. 284)).

5 Ao contrário do Tribunal de Nuremberga, este Tribunal foi criado por “Proclamação Especial do Supremo Comandante das Potências Aliadas”, o General MacArthur, no seguimento da Declaração de Potsdam de 26 de Julho de 1945, em que uma das condições de capitulação do Japão era a entrega dos criminosos de guerra à justiça, e do “Instrumento de Capitulação do Japão” de 2 de Setembro de 1945, em que este país aceitou a dita condição de capitulação. Esta declaração (“Proclamação Especial de um Tribunal Militar Internacional para o Longínquo Oriente”) encontra-se no Anexo nº A-4 do Julgamento de Tóquio. A Carta do Tribunal de Tóquio, que estabelece a competência e funções do Tribunal, foi também aprovada pelo General MacArthur, em 19 de Janeiro de 1946 e emendada pela sua ordem de 26 de Abril de 1946 (ver Charter of the International Military Tribunal for the Far East, trial of Japanese War Criminals: Documents, pag. 39, Department of State Publication nº 2613, United States Government Printing Office , 1946). 6

? Para uma visão compreensiva da jurisprudência destes Tribunais relativamente ao crime de agressão, ver United Nations, Historical Review of Developments relating to Aggression, New York, 2003.

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A definição constante do artigo 5º da Carta do Tribunal de Tóquio é semelhante à enunciada, com a única excepção que acrescenta, aquando da referência a “guerra de agressão”, o facto de esta poder ser “declarada ou não declarada”.

Apesar da controvérsia que, em certos meios, gerou o julgamento de pessoas por crimes que supostamente só teriam sido posteriormente definidos, levantando objecções de retroactividade em matéria penal, o certo é que a comunidade internacional reconheceu que tais actividades já eram consideradas anteriormente crimes internacionais e veio expressamente dizê-lo com a aprovação unânime da resolução da Assembleia Geral da ONU nº 95(I)7

que afirma os princípios de Direito Internacional constantes da Carta de Nuremberga e do Julgamento do Tribunal.

A questão da proibição da agressão constitui provavelmente o pilar mais fundamental da Carta da ONU que, contudo, utiliza expressões diferentes no seu articulado. Assim, a famosa norma fundamental da Carta, constante do nº 4 do artigo 2º , estatui: “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas;”8. É apenas no art. 39º que o vocábulo “agressão” é empregue, nos termos que se seguem: “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42 [sanções, respectivamente, que não incluem e que incluem o uso da força armada], a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.”. Deste modo, parece que a Carta designou o Conselho de Segurança como sendo o órgão que determina a existência de uma situação de agressão, o que naturalmente terá fortes implicações nas condições de exercício do crime de agressão por parte do TPI.

Um passo deteminante na procura da definição de agressão foi posteriormente dado pela Assembleia Geral da ONU que, em 14 de Dezembro de 1974, aprovou, por consenso, a resolução 3314 (XXIX), visando fornecer orientações ao Conselho de Segurança na sua determinação, de acordo com o artigo 39º, dos actos que constituem agressão. Deste modo, o artigo 1º afirma: “Agressão é o uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado, ou de qualquer outra forma inconsistente com a Carta das Nações Unidas...” (tradução da autora); o artigo 3º apresenta uma lista, não exaustiva, de actos que são considerados como formas de agressão (invasão ou ataque pelas forças armadas de um Estado ao território de outro Estado, ocupação militar resultante de ataque, anexação de território pelo uso da força, bombardemantos pelas forças armadas contra o território de outro Estado, 7 Para o texto desta e de outras resoluções da Assembleia Geral, ver www.un.org/main organs/ General Assembly.8

? Aqui, como em todas as situações em que se reproduzir um artigo da Carta da Nações Unidas, foi utilizada a tradução oficial para língua portuguesa, constante I Série A do Diário da República nº 117, de 25 de Maio de 1991, pag. 2771 e segs..

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bloqueio dos portos ou costas pelas forças armadas, ataque às forças armadas de outros Estado, utilização de forças armadas, estacionadas num estado estrangeiro com consentimento deste, para fins não acordados, autorização dada por um Estado para utilização do seu território por outro Estado para agressão a um terceiro e envio por um Estado de bandos ou grupos armados que se envolvem em actos num outro Estado da gravidade dos actos referidos anteriormente), ficando claro, pela leitura do art. 4º, que o Conselho de Segurança pode determinar que outros actos constituem também agressão. O nº 2 do artigo 5º faz uma distinção que vai ter uma importância argumentativa forte nas presentes discussões sobre o crime de agressão ao afirmar: “Uma guerra de agressão é um crime contra a paz internacional. A agressão origina responsabilidade internacional.” (tradução da autora)9.

O assunto será novamente estudado com pormenor na cena internacional através dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional (CDI)10 de que resultaram os Projectos de Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1994) e de Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade (1996), que serviram de base às negociações para a criação de um Tribunal Penal Internacional11. A Comissão não define o crime de agressão

9 A argumentação de alguns é a de que esta norma se aplica à responsabilidade penal individual, o que excluiria do crime todos os actos de agressão que não constituissem uma “guerra de agressão”. Parece, contudo, que a norma se refere apenas à responsabilidade penal do Estado, já que a resolução foi elaborada como uma recomendação com directivas de acção para o Conselho de Segurança que não tem quaiquer poderes para decidir da responsabilidade penal do indíviduo. Para mais, a resolução nunca se debruça sobre a questão dos actos de indivíduos, dirigindo-se exclusivamente à acção estatal. Parece que a maioria da doutrina concorda com esta interpretação: ver, por exemplo, as palavras categóricas de Randelzhofer sobre a definição de agressão: "Moreover, Art. 5 para. 2 speaks somewhat enigmatically of 'responsibility' which, coupled with 'international', clearly relates to state rather than individual responsibility." in Simma, Bruno, editor The Charter of the United Nations – A Commentary, Beck, Munique, 1994, pag. 127.

10 A Comissão de Direito Internacional é um órgão composto por 34 peritos independentes que “deverão ser pessoas de reconhecida competência em Direito Internacional” (art. 2°do seu Estatuto), que exercem funções exclusivamente na sua capacidade individual e não como representantes dos Estados. Tem como missão promover o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional (“preparação de projectos de convenções em assuntos ainda não regulados pelo Direito Internacional ou em relação aos quais o Direito não está ainda suficientemente desenvolvido na prática dos Estados”, art. 15° do Estatuto) e codificá-lo (“formulação mais precisa e sistematização de normas de Direito Internacional em campos em que já existe prática estatal, precedente e doutrina extensivos”, art. 15°). A Carta das Nações Unidas estatui, no art. 13°, que “1. A Assembleia Geral promoverá estudos e fará recomendações, tendo em vista: a) Fomentar a cooperação internacional no plano político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação;…” , podendo, para tal, criar um órgão próprio, nos termos do art. 22° (“A Assembleia Geral poderá estabelecer os órgãos subsidiários que julgar necessários ao desempenho das suas funções.”). Assim, foi com base nestes artigos e no parecer do “Comité para o Desenvolvimento Progressivo do Direito Internacional e sua Codificação”, criado para estudar o tema, que a Assembleia Geral deliberou, pela resolução 174 (II), de 21 de Novembro de 1947, criar a Comissão de Direito Internacional e aprovar o seu Estatuto. 11

? Pela resolução n°. 44/39, de 4 de Dezembro de 1989, a Assembleia Geral requereu que a CDI se debruçasse sobre a questão da criação de um tribunal criminal internacional, convidando-a a aprofundar o tema nos anos seguintes, através das resoluções n°s. 45/41, de 28 de Novembro de 1990 e 46/54, de 9 de Dezembro de 1991. A partir de 1992, a 6ª Comissão (Comissão da Assembleia Geral sobre Assuntos Jurídicos) requereu à CDI a elaboração de um projecto de Estatuto do Tribunal como matéria prioritária (res. n°s. 47/33, de 25 de Novembro de 1992 e 48/31, de 9 de Dezembro de 1993). Num esforço que culminou com um dos mais rápidos trabalhos da sua história, a CDI apresentou, em 1994, o dito Projecto

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no Projecto de Estatuto mas inclui-o na alínea b) do art. 20º (Crimes da Competência do Tribunal) e estatui, no nº 2 do art. 23º, que “ Uma queixa de um acto de agressão ou directamente relacionda com um acto de agressão não pode ser feita ao abrigo deste Estatuto sem que o Conselho de Segurança tenha primeiro determinado que o Estado praticou o acto de agressão que é objecto da queixa.” (tradução da autora) 12. Este Projecto irá posteriormente ser profundamente alterado, pelo que o Estatuto que vem a ser aprovado pelos Estados é marcadamente diferente da proposta proveniente da CDI. As definições dos crimes previstos constam, por sua vez, do Projecto de Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade13, um documento que serviu apenas de referência para os trabalhos de aprovação, pelos Estados, do Estatuto do TPI, que acabou por incorporar as definições dos crimes no próprio Estatuto e não num documento à parte, como proposto pela CDI. Neste Projecto, o crime de agressão aparece definido no art. 16º, nos termos que se seguem: “Um indivíduo que, como chefe ou organizador, participe activamente ou ordene o planeamento, a preparação, o início ou a condução de uma agressão praticada pelo Estado será responsável pelo crime de agressão.”(tradução da autora).

Dotado destes e de outros documentos, o Comité Ad Hoc para a criação de um Tribunal Penal Internacional começou os seus trabalhos em princípios de 1995, tendo sido convertido em Comité Preparatório no ano seguinte14 e transmitido o Projecto de Estatuto à “Conferência da ONU de Plenipotenciários para a Criação de um Tribunal Penal Internacional”, que se reuniu em Roma e veio a aprovar o Estatuto em 17 de Julho de 1998, data em que ficou aberto para assinatura.

Desde as primeiras reuniões estatais, em princípios de 1995, que a questão do crime de agressão se colocou, tendo uma maioria de Estados argumentado a favor da sua inclusão, invocando argumentos históricos como a jurisprudência do Tribunal de Nuremberga, que considerou a agressão como “o crime internacional supremo” (United States of America et al v. Goering et al., Julgamento do Tribunal Militar Internacional de 30Setembro/1 de Outubro

à Assembleia Geral. 12 Para o texto do Projecto da CDI de Estatuto do Tribunal Penal Internacional, ver United Nations The Work of the International Law Commission , 6ª edição, Nova Iorque, 2004. pag. 321 e segs. 13

? Para o texto deste Projecto, ver, ibid, pag. 268 e segs.. 14

? A 6ª Comissão da Assembleia Geral da ONU propôs a criação de um Comité Ad Hoc, o que veio a ser consagrado na res. n°.49/53, de 9 de Dezembro de 1994, para "rever os principais assuntos constantes do Estatuto e considerar a convocação de uma conferência internacional de plenipotenciários para adopção do Estatuto". O dito Comité reuniu-se durante 4 semanas em 1995 e, nesse ano, após terem sido vencidas as muitas resistências de vários Estados que sempre se opuseram a todo o processo, foi possível converter o dito Comité num Comité Preparatório, pela res. n°. 50/46, de 11 de Dezembro de 1995, encarregado de “redigir um texto consolidado, que fosse geralmente aceitável, do estatuto para um tribunal criminal internacional, como passo adicional para a sua apreciação por uma conferência de plenipotenciários”. O referido Comité Preparatório trabalhou intensamente de 1996 a 1998 (5 semanas em 1996, 6 semanas em 1997 e 3 semanas em 1998 – res. n°s.51/207, de 17 de Dezembro de 1996 e 52/160, de 15 de Dezembro de 1997), tendo transmitido, após a reunião de Março/Abril de 1998, o dito Projecto de Estatuto à Conferência Diplomática, a realizar em Junho/Julho desse ano.

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de 194615), constituindo a sua omissão um retrocesso histórico não aceitável, ou argumentos mais pragmáticos como o facto de ser, muitas das vezes, o crime que está na origem de todos os outros, já que estes últimos ocorrem muitas vezes em situações e por causa de conflitos armados. Os partidários da exclusão do crime de agressão da competência do Tribunal argumentaram com as dificuldades da sua definição, o facto de que o Conselho de Segurança acabaria por controlar as situações em que se poderia aplicar e levaria consequentemente à politização do mesmo, o facto de que a sua omissão não seria tão grave como poderia parecer já que, em casos de agressão, ocorrem também outros crimes, como crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, pelo que os responsáveis acabariam por ser punidos e, por vezes, com a ideia moderna de que o Direito Internacional de hoje (ou, pelo menos, o Direito Internacional Penal) tem que ser visto predominantemente como um Direito entre as pessoas e não como um Direito entre Estados, sendo o crime de agressão uma reminiscência de um passado de monopólio estatal que não deveria ser reforçado.

A Conferência de Roma acabou por chegar ao compromisso de incluir o crime na competência do Tribunal mas deixar o seu exercício efectivo para data posterior, quando fosse possível chegar a acordo sobre a sua definição e condições de exercício. Na realidade, na Conferência foram apresentadas propostas tão diferentes (desde o México, que dispensava qualquer referência ao Conselho de Segurança, até aos membros permanentes deste órgão, que consideravam a determinação por parte deste como condição sine qua non)16. De todas as propostas apresentadas para a definição do crime de agressão, foi a da Alemanha que mais próximo esteve do consenso, mas acabou por ser abandonada por ser considerada demasiado restritiva, já que exigia como objectivo ou resultado da agressão a ocupação militar ou a anexação do território de um Estado pelas forças armadas do Estado atacante e não fazia qualquer referência ao direito de autodeterminação de territórios ocupados, uma reivindicação forte por parte dos Estados Árabes, que tinham defendido uma definição na linha da res. 3314 (XXIX)17.

Como parte do compromisso, foi ainda aprovada na Conferência de Roma a Resolução F que institui uma Comissão Preparatória (que se reuniu entre a aprovação do Estatuto em 17 de Julho de 1998 e a entrada em vigor do mesmo, em 1 de Julho de 2002), encarregada da elaboração de numerosos documentos complementares, designadamente dos “Elementos dos Crimes” e das “Regras de Procedimento e Prova”. No seu ponto 7, a resolução afirma: “A

15 Ver 41 American Journal of International Law 172, pag. 186. O Tribunal afirmou que “o início de uma guerra de agressão, por isso, não é apenas um crime internacional mas sim o crime internacional supremo, que se distingue dos outros crimes de guerra apenas porque contem, dentro de si, o mal acumulado de todos eles.”. Para uma análise desta frase, ver, entre outros, Schabas, William, “Origins of the Criminalization of Aggression: How Crimes Against Peace Became the “Supreme International Crime””, in Politi, Mauro and Nesi, Giuseppe editores, op. cit., pag. 17 e segs.16

? Para leitura dos documentos apresentados na Conferência de Roma, consultar www.un.org/International Law/ International Criminal Court.

17 Para uma síntese histórica da definição de agressão, ver Gomaa, Mohammed “The Definition of the Crime of Aggression and the ICC Jurisdiction over that Crime” in Politi and Nesi edt., op. cit. , pag. 55 e segs.

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Comissão preparará propostas para uma norma sobre agressão, incluindo a definição e os Elementos dos Crimes relativos à agressão, bem como as condições em que o Tribunal Penal Internacional exercerá a sua competência em relação a este crime. A Comissão apresentará tais propostas à Assembleia dos Estados Partes na Conferência de Revisão, tendo em vista chegar a uma norma aceitável sobre o crime de agressão para inclusão neste Estatuto. As normas relativas ao crime de agressão entrarão em vigor para os Estaos Partes de acordo com as normas relevantes deste Estatuto;” (tradução da autora).

Assim, os trabalhos prosseguiram no âmbito da Comissão Preparatória, que, a partir de 2002, deu lugar à Assembleia dos Estados Partes que, por sua vez, criou, no seu ãmbito, um Grupo de Trabalho sobre o Crime de Agressão.

III – Situação Presente

A Comissão Preparatória foi palco de intensos debates sobre o crime de agressão e produziu numerosos documentos sobre o mesmo18. Até aos dias de hoje, o “Texto Consolidado das Propostas sobre o Crime de Agressão”, produzido pela coordenadora do Grupo sobre a Agressão (PCNICC/2000/L.4/Rev.1, de 14 de Dezembro de 2000), continua, apesar da sua desactualização, a ser a base de trabalho em relação à qual os debates prosseguem. Estes agrupam-se ao longo de três temas (definição do crime, relação do TPI com o Conselho de Segurança e elementos do crime), que se analisarão de seguida.

a) Definição do Crime de Agressão

Relativamente à definição do crime, existe consenso quanto a alguns pontos, indo todas as propostas no sentido de os considerar incluidos na dita definição e seguindo as linhas estabelecidas desde Nuremberga.

Assim, é consensual que o crime se aplica exclusivamente a chefes ou organizadores, isto é, indivíduos que tiveram um papel fundamental na agressão, e não a meros executores, como soldados, que apenas efectivaram a dita agressão. Por outro lado, é também consensual que o crime de agressão envolve a preparação, o planeamento, a ordem, a iniciação e a condução da mesma, isto é, todo o tipo de actividades necessárias à sua

18 Entre outros, produziu uma "Compilation of Proposals on the Crime of Aggression submitted at the Preparatory Committee on the Establishment of an International Criminal Court (1996-1998), the United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court (1998) and the Preparatory Commission for the International Criminal Court (1999)", UN doc. PCNICC/1999/INF/2, de 2 de Agosto de 1999, um "Consolidated Text of Proposals on the Crime of Aggression", reproduzido em UN doc. PCNICC/2000/L.4/Rev.1 of 14 December 2000, uma "Preliminary List of Possible Issues Relating to the Crime of Aggression" UN doc. PCNICC/2000/WGCA/RT.1 de 29 de Março de 2000, e um "Reference Document on the Crime of Aggression, Prepared by the Secretariat", UN doc. PCNICC/2000/WGCA/INF/1, de 27 de Junho de 2000.

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efectiva realização. Finalmente, é também um pressuposto por todos aceite que, para existir o crime individual de agressão, tem que ter ocorrido uma agressão de um Estado a outro (ou outros), sendo a responsabilidade penal individual resultante do envolvimento do indivíduo nessa agressão estatal. Como se vê, este pressuposto pode ser muito redutor, já que exclui os frequentes ataques armados entre facções não estatais, que por vezes ocorrem transfronteiriçamente, mas foi entendido como uma limitação necessária para que pudesse ser obtido algum progresso nas negociações.

Os pontos de desacordo têm, sobretudo, que ver com a questão do nível de generalidade com que a agressão deverá ser definida e com as consequências consideradas necessárias para que a agressão possa ser criminalizada individualmente.

Quanto ao primeiro aspecto, o debate desenrola-se em torno de uma definição “genérica” versus uma definição que inclua uma lista de actos que seria baseada, fundamentalmente, na resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral, já referida. Claro que esta resolução não apresenta uma lista exaustiva mas meramente exemplificativa, já que contem uma cláusula final geral, mencionada supra. De qualquer modo, entendem os defensores desta posição, que seria útil a indicação do tipo de actos envolvidos, o que facilitaria a aplicação da lei. Os que a tal se opõem, e que constituem actualmente a maioria dos Estados, consideram, funadamentalmente, que seria impossível chegar a um acordo sobre que tipo de actividades que constituem agressão, tanto mais que a res. 3314 (XXIX) é uma mera recomendação indicativa ao Conselho de Segurança na determinação, por este, de agressão, e não, como no caso que presentemente nos ocupa, uma indicação sobre situações em que haveria responsabilidade penal individual.

Quanto ao resultado da agressão, as propostas apresentadas variam consideravelmente, desde aquelas que exigem uma anexação territorial ou uma ocupação militar (como o caso da proposta alemã de 11 de Dezembro de 1997, depois revista19) até aquelas que apenas exigem que o uso da força armada se exerça contra a soberania, integridade territorial ou a independência política de um Estado em violação da Carta das Nações Unidas (como o caso da proposta greco-portuguesa de 7 de Dezembro de 1999, depois revista20). Nota-se actualmente uma tendência no sentido do abandono da exigência de resultados específicos da agressão e da qualificação mais exigente das violações da Carta da ONU, designadamente no sentido de que estas sejam graves ou manifestas, o que segue na linha da proposta greco-portuguesa revista.

O actual Grupo de Trabalho sobre o Crime da Agressão, que se reúne no âmbito da Assembleia dos Estados Partes, elaborou um documento informal com as questões que ainda se colocam relativamente à definição de agressão, 19 Ver PCNICC/1999/INF/2. Este documento compila a série de propostas sobre a definição e condições de exercício do crime de agressão apresentadas até Agosto de 1999.20

? Ver PCNICC/1999/WGCA/DP.1, de 7 de Dezembro de 1999, revisto por PCNICC/2000/WGCA/DP.5, de 28 de Novembro de 2000.

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que consolidou em seis: 1. a definição deve ser genérica ou específica? Se for específica, deve a lista de actos ser a da res. 3314(XXIX)?; 2. como deverá a agressão por um Estado ser descrita no contexto do Estatuto do TPI: uso da força (expressão utilizada no nº 4 do art. 2º da Carta e no Preâmbulo da res. 3314), ataque armado (expressão utilizada no art. 51º da Carta, referente à legítima defesa, e no art. 3º a) e d) da res. 3314), acto de agressão (utilizado no art. 39º da Carta e nos arts. 2º e 3º da res. 3314) ou uso da força armada (utilizado no art. 1º da res. 3314)? ; 3. a agressão deverá ser qualificada, por exemplo, como “flagrante” ou “manifesta” violação da Carta da ONU?; 4. esta violação deve ter a gravidade de uma “guerra de agressão” (expressão utilizada no nº 2 do art. 5 da res. 3314)?; 5. o objecto ou o resultado da agressão devem ter relevância na definição? Se a resposta for afirmativa, poderá a ocupação militar ou a anexação de território ser esse objecto ou resultado?; 6. a tentativa de agressão por parte de um Estado deve também ser incluida (a tentativa da utilização da força é proibida pelo art. 2º nº4 da Carta e consta de algumas propostas apresentadas, que não exigem que a agressão tenha, defacto, ocorrido) ?

b) Relação dos poderes do TPI com os do Conselho de Segurança

As dificuldades de negociação agravam-se, contudo, quando se foca a questão das condições de exercício da jurisdição do Tribunal sobre o crime de agressão. Na realidade, a agressão de um Estado a outro é um pressuposto do crime individual de agressão, o que origina a questão da relação entre o TPI e o Conselho de Segurança, já que o artigo 39º da Carta atribui a este último poderes para determinar da existência de agressão.

Assim, coloca-se a questão de saber se, face a uma queixa relativa a responsabilidade individual pelo crime de agressão, teria que ter havido uma determinação prévia por parte do Conselho de Segurança para que o TPI pudesse prosseguir com as investigações. Os Estados dividiram-se neste ponto, tendo alguns, entre os quais, evidentemente, os membros permanentes do Conselho de Segurança, afirmado que os poderes de determinação de agressão residiam, em termos de exclusividade, no Conselho, pelo que o Tribunal não poderia iniciar uma acção sem que previamente a dita determinação tivesse sido estabelecida, e outros (em maioria) que, apesar de entenderem que teria que haver uma determinação de uma agressão entre Estados, esta não tinha necessariamente que ser feita pelo Conselho de Segurança, já que a Carta tinha também conferido estes poderes a outros órgãos, como a Assembleia Geral ou o Tribunal Internacional de Justiça, pelo que estes órgãos, ou mesmo o TPI, poderiam determinar a existência da agressão estatal21.

21 Para este argumento ver, da autora, “ The ICC and the Security Council on Aggression: Overlapping Competencies?” in Politi e Nesi, edit. op. cit, pag. 133 e segs. Para uma visão semelhante, ver Condorelli, Luigi “Conclusions Générales”, ibid, pag. 151 e segs..

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Para além desta questão jurídica, têm-se esgrimido argumentos de parte a parte baseados em considerações políticas ou meramente pragmáticas. Deste modo, vários têm-se oposto a que o TPI possa exercer jurisdição baseando-se numa decisão sua sobre se houve agressão por isso levar inevitavelmente à politização do Tribunal, podendo mesmo prestar-se a abusos de carácter político por este, o que só diminuiria a sua autoridade enquanto órgão judicial.

Por outro lado, tem entendido a maioria que, por ser uma questão de facto que o Conselho de Segurança, mesmo quando impõe sanções, nos termos dos artigos 41º e 42º da Carta, praticamente nunca refere que houve uma agressão, a atribuição da determinação de agressão ao mesmo levaria ao resultado prático de que o crime de agressão seria uma possibilidade meramente teórica, nunca exercida pelo Tribunal. Na realidade, o Conselho de Segurança, relativamente à invasão da Coreia do Sul, considerou, na sua res. 82(V) que se tratava de “uma ruptura da paz”; no caso da invasão de Timor Leste , simplesmente requereu a retirada das forças armadas indonésias do território sem qualificar a situação (res. 384(1975) e res. 389(1976)); no caso da invasão do Kuwait pelo Iraque, considerou, na res. 660(1990) e segs. que tinha ocorrido “uma invasão” e “uma ruptura da paz e segurança” mas utilizou a expressão “actos agressivos” apenas relativamente ao pessoal e instalações diplomáticas (res. 667(1990)), nunca tendo usado a expressão “agressão”. Utilizou a expressão “acto de agressão armada” na res. 573 (1985), relativamente a um ataque das forças israelitas a alvos da OLP na Tunísia e “actos de agressão” na res. 577 (1985) relativamente a ataques da África do Sul em Angola. Os restantes casos são extremamente escassos22.

Por outro lado, deixar esta determinação a um órgão fundamentalmente político, contribuiria, segundo esta visão, para a manipulação do TPI pelas potências com assento permanente no Conselho.

Gostaria apenas de acrescentar algumas considerações relativas ao argumento jurídico em torno da eventual exclusividade de poderes de determinação de agressão estatal por parte do Conselho de Segurança. Claro que em parte alguma a Carta se debruça sobre a questão da responsabilidade individual internacional por crimes especialmente graves nem mesmo (pelo menos expressamente) sobre a responsabilidade estatal pelos mesmos. O art. 2º nº 4 cria a obrigação de não utilização da força e, por isso, parece que necessariamente implica uma responsabildiade internacional do Estado que o violar, sem ser claro se essa responsabilidade é ou não criminal23.

22

? Para uma análise exaustiva de todas as resoluções do Conselho de Segunraça com referências, mais ou menos claras, a “agressão”, ver United Nations, Historical Review..., op.cit, pag. 225 e segs. Ver ainda Simma, Bruno ed. The Charter of the United Nations – a Commentary, op. cit., designadamente os comentários ao art. 39º.23

? A questão da responsabilidade penal dos Estados foi talvez o ponto mais controverso aquando da elaboração do Projecto de Artigos sobre Responsabilidade Internacional dos Estados por Actos Ilícitos pela Comissão de Direito Internacional. O texto foi aprovado durante a 53ª sessão da CDI, em 2001, e enviado à Assembleia Geral, que ainda não constitui nenhum grupo para se pronunciar sobre ele. Para o texto dos artigos, com comentários, ver documento das Nações Unidas A/56/10. O Projecto acaba por não referir a responsabilidade criminal do Estado, substituindo-a por uma forma mais “suave”, a que chama, no capítulo III (arts. 40º e 41º) “violações graves de obrigações decorrentes de normas

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Contudo, a Carta atribuiu competências na área da paz e segurança internacionais a vários órgãos. Os arts. 10º, 11º e 12º ocupam-se dos poderes da Assembleia Geral sobre a discussão e elaboração de resoluções sobre a ameaça ou uso da força, afirmando que esta “poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de qualquer dos órgãos nela previstos” (art. 10º), “poderá discutir quaisquer questões relativas à manutenção da paz e da segurança internacionais ... e, com excepção do que fica estipulado no art. 12, poderá fazer recomendações relativas a quaisquer destas questões ...” (art. 11º nº2) e que “Enquanto o Conselho de Segurança estiver a exercer, em relação a qualquer controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuidas na presente Carta, a Assembleia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança o solicite.” (art. 12º nº1). Como se vê, estas normas atribuem poderes à Assembleia Geral para discutir a aprovar resoluções relativas à manutenção da paz e segurança internacionais, salvo quando o Conselho de Segurança está a exercer os seus poderes relativamente a essa situação.

A Assembleia Geral tem utilizado estes poderes numerosas vezes, tendo mesmo sido estes que serviram de base às elaboradas e complexas negociações que deram origem à resolução 3314(XXIX) sobre a definição de agressão24 e, muitos anos antes, à aprovação da resolução 377(V), a famosa resolução “Unidos para a Paz”, que visa a resolução de situações quando o Conselho de Segurança não consegue cumprir os seus deveres de manutenção da paz e segurança internacionais.

Por outro lado, as funções atribuidas ao Conselho de Segurança foram formuladas como deveres e não como direitos ou privilégios. Assim, o art. 24º estatui: “ 1. A fim de assegurar uma acção pronta e eficaz por parte das Nações Unidas, os seus membros conferem ao Conselho de Segunraça a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que, no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabiliadade, o Conselho de Segurança aja em nome deles. 2. No cumprimento desses deveres, o Conselho de Segurança agirá de acordo com os objectivos e os princípios das Nações Unidas.”25

imperativas de Direito Internacional Geral”.24

? O estudo dos registos dos debates no “Comité Especial sobre a Questão da Definição de Agressão”, dos debates na 6ª Comissão ou dos da Reunião Plenária da Assembleia Geral que aprovou a resolução, revelam que nunca houve intervenção alguma que contestasse ou pudesse, de algum modo, em dúvida, o poder da Assembleia Geral para definir agressão. 25

? Esta posição está de acordo com a maioria da doutrina. Ver, por exemplo, Delbruck, in Simma, Bruno ed. op. cit. , comentários ao art. 24º, pag. 400 e segs.: "...The SC shall act in 'accordance with the Purposes and Principles of the United Nations.' This is an indication that although the 'political approach' is intended to take priority in the actions of the Organization, at least the limits of the Charter have to be observed.". Quanto à questão da exclusividade de competência, o autor conclui: "In other words, placing the primary responsibility for the maintenance of peace and security on the SC means that the SC and the GA have a parallel or concurrent competence with regard to dealing with questions of the maintenance of peace, but that the SC possesses exclusive competence with regard to taking effective and binding action,

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Por fim, a Carta também atribui competências nesta área ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), tanto no âmbito da sua competência litigiosa como na da competência consultiva26. O nº 2 do art. 36º do Estatuto do TIJ considera-o como tendo jurisdição sobre todas as questões que tenham por objecto: a) A interpretação de um tratado; b) Qualquer questão de direito internacional; c)A existência de qualquer facto que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional; d) A natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.”. Se os julgamentos no exercício da competência litigiosa não forem voluntariamente cumpridos, poderão, de acordo com o nº 2 do art. 94º da Carta, originar uma acção por parte do Conselho de Segurança27.

especially enforcement measures.... At the same time, this interpretation of the term 'primary responsibility' does not exclude the possibility that the GA, while recognizing the primary responsibility of the SC, may become active in the field of the maintenance of peace under the general and specific powers conferred upon it, as the GA did in fact rule when it adopted the Uniting for Peace Resolution" (pag. 402).

26 Esta última competência pode ser exercida por solicitação da Assembleia Geral ou do Conselho de Segurança em relaçãoa qualquer questão jurídica ou pelos outros órgãos das Nações Unidas ou organizações especializadas, desde de que autorizados pela Assembleia Geral e as questões jurídicas estejam dentro da esfera das suas actividades (art. 96º da Carta).27

? Estatui o nº2 do art. 94º: “Se uma das partes em determinado caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pelo Tribunal, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança, que poderá, se o julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.”.

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O Tribunal utilizou estas competências em várias instâncias, sendo de salientar os casos que ficaram conhecidos como “Certain Expenses”28, “Nicaragua”29 e “Lockerbie”30.

Finalmente, a própria Carta permite a cada Estado utilizar a força armada se tal for em legítima defesa e dentro dos limites que esta tem em Direito Internacional consuetudinário. Estatui o art. 51º: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais....”. Assim, poder-se-ia argumentar, como o faz Condorelli, que, se acaso a Carta confere o poder a cada Estado de decidir sobre se houve um ataque armado (que, não sendo a mesma expressão que “agressão”, tem certamente muitas semelhanças), certamente que esta determinação não é da exclusividade do Conselho de Segurança31.

Com base neste tipo de argumentação, a proposta greco-portuguesa, que ainda se encontra na mesa de negociações, agora no âmbito do Grupo de Trabalho sobre a Agressão da Assembleia dos Estados Partes do TPI, afirma: “2. O Tribunal exercerá a sua competência relativamente a este crime após determinação pelo Conselho de Segurança, de acordo com o artigo 39º da Carta, de que foi praticado um acto de agressão pelo Estado em questão. 3. Quando for apresentada uma queixa relativa ao crime de agressão, o Tribunal começará por averiguar se o Conselho de Segurança determinou que houve agressão por parte do Estado em causa e, se tal não for o caso, solicitará, de

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? “Certain Expenses of the United Nations (Article 17, Paragraph 2, of the Charter)”, de 20 de Julho de 1962 – ver www.icj-cij.org. O Tribunal torna muito claro que o domínio exclusivo do Conselho de Segurança se refere apenas a “acção coercitiva” , podendo todos os outros poderes na área da paz e segunça mundiais caber na competência da Assembleia Geral. Assim, relativamente ao art. 11º nº 2 da Carta, o Trbunal afirma: "... the action referred to in that provision was coercive or enforcement action. In this context, the word 'action' must mean such action as was solely within the province of the Security Council, namely that indicated by the title of Chapter VII of the Charter.... Accordingly, the last sentence of Article 11, paragraph 2, had no application where the necessary action was not enforcement action.". Mais adiante, quando se refere à qualificação das operações no Congo, o Tribunal considera ser impossível concluir que as mesmas interferiram com os poderes conferidos ao Conselho de Segurança pela Carta, já que "these operations did not involve 'preventive or enforcement measures' against any State under Chapter VII and therefore did not constitute 'action' as that term was used in Article 11.". Se as operações militares de larga escala no Congo não foram consideradas “acção”, o argumento de que a determinação de agressão para fins de responsabilidade penal individual por um órgão judicial também não se inclui nessa categoria torna-se praticamente inevitável. 29 “Case Concerning the Military and Paramilitary Activities in and Against Nicaragua” (Judgment 27 June 1986), site da internet, citado na nota anterior. O Tribunal afirmou, no acórdão (parágrafos 32-35), que, apesar de ter sido sugerido que as questões do uso da força e da legítima defesa colectiva não eram “judiciáveis”, isto é, capazes de serem sujeitas à decisão de um órgão judicial, considerava que elas não o levariam a ultrapassar os limites judiciais e que, consequentemente, tinha poderes para decidir sobre essas questões.

30 “Case Concerning Questions of Interpretation and Application of the 1971 Montreal Convention Arising From the Aerial Incident at Lockerbie” (Judgment of 27 February 1998), site da internet citado.

31 Ver Condorelli, Luigi “ Conclusions Générales” in Politi e Nesi, ed., op. cit., pag.151 e segs.

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acordo com as normas do Estatuto, que o Conselho de Segurança proceda a tal determinação. 4. Se o Conselho de Segurança não proceder a tal determinação e não fizer uso do artigo 16º do Estatuto, no prazo de 12 meses após a solicitação, o Tribunal prosseguirá com o caso em questão.” (tradução da autora)32.

Como se vê, esta proposta visa evitar que o não pronunciamento por parte do Conselho de Segurança sobre a caracterização de actos em questão de um Estado conduza a que o crime individual de agressão seja uma mera possibilidade teórica sem aplicação prática. Esta proposta, contudo, é apenas uma de entre uma série de outras. Entre estas, uma das que mereceu mais atenção foi a proposta da Bósnia Herzegovina, Nova Zelândia e Roménia33, que prevê um modo mais complexo para a determinação de agressão por parte de um Estado quando o Conselho de Segurança não estabelece que houve agressão nem o faz após solicitação pelo Tribunal: a Assembleia Geral é então convidada pelo Tribunal Penal Internacional a pedir um parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça, nos termos do art. 96º da Carta, sobre a existência de um acto de agressão por parte do Estado em causa. Se o Tribunal considerar que houve um acto de agressão, o TPI poderá prosseguir com o caso em questão. A proposta revista prevê um prazo de apenas 6 meses para o Conselho de Segurança se pronunciar sobre a existência de agressão após notificação para tal pelo TPI e considera também que, se acaso o Tribunal Internacional de Justiça já se pronunciou, em caso litigioso anterior, pelo carácter de agressão dos actos do Estado em questão, tal determinação será suficiente para que o TPI possa prosseguir com a queixa que lhe foi apresentada.

Outras propostas, ainda, prevêem que a determinação da agressão por parte do Estado poderia ser feita pela Assembleia Geral. Assim, muitas têm sido as possibilidades aventadas embora nenhuma tenha reunido consenso até ao momento. Deste modo, será necessário decidir sobre se o TPI pode prosseguir com um caso sem interferência de outro órgão, se só o pode fazer após determinação por este outro órgão (que poderá ser o Conselho de Segurança, a Assembleia Geral, o Tribunal Internacional de Justiça ou outro), se a determinação por outro órgão implica a possibilidade imediata de prossecução do caso pelo TPI ou se será necessária uma autorização expressa para tal, se a eventual determinação pelo Conselho de Segurança deverá ser tomada no âmbito do Cap. VII da Carta ou se poderá ser uma mera questão processual (art. 27º nº2 da Carta), o que implica a inexistência de veto, se poderá constar de um parágrafo preambular de uma resolução dp Conselho de Segurança ou se terá que constar de um parágrafo operativo, se a eventual determinação pela Assembleia Geral poderá ser por maioria simples ou terá que ser por 2/3 (art. 18º da Carta), se a eventual determinação pelo Tribunal Internacional de Justiça poderá constar, não apenas de um parecer consultivo mas de anterior acórdão de julgamento em processo litigioso e se terá que 32

? Ver doc. PCNICC/1999/WGCA/DP.1, de 7 de Dezembro de 1999, revisto por PCNICC/2000/WGCA/DP.5, de 28 de Novembro de 2000, já referidos supra..33

? Ver PCNICC/2001/WGCA/DP.1, de 23 de Fevereiro de 2001, revista em PCNICC/2001/WGCA/DP.2, e Add.1, de 27 de Agosto de 2001.

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constar da decisão de julgamento ou meramente dos fundamentos da mesma, etc. Como se vê, são muitas as opções que se colocam e não há ainda uma maioria significativa que apoie um modelo preciso. Todas estas questões serão objecto da próxima reunião do Grupo de Trabalho sobre a Agressão da Assembleia dos Estados Partes que se reunirá em Nova Iorque em Janeiro de 2007.

c) Elementos do Crime de Agressão

Ultimamente, tanto em reuniões formais como em reuniões semi-académicas, que têm decorrido na Woodrow Wilson School da Universidade de Princeton34, as discussões têm-se centrado preferencialmente nos elementos do crime de agressão, um aspecto que foi salientado no ponto 7 da Resolução F da Conferência de Roma, como anteriormente referido. Segundo alguns dos negociadores, seria preferível, face às imensas dificuldades políticas que este crime envolve, começar por analisá-lo enquanto crime, isto é, nos seus elementos constitutivos (pressupostos, condições, elementos materiais e elementos morais). A Comissão Preparatória que se seguiu à Conferência de Roma elaborou os Elementos Constitutivos dos Crimes relativamente ao genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra35 em Junho de 2000, tendo este documento sido aprovado, por consenso, na 1ª reunião da Assembleia dos Estados Partes, em 2002. De notar a importância fundamental dos mesmos, já que o art. 21º do Estatuto do TPI, sob a epígrafe, “Direito Aplicável”, estatui: “1. O Tribunal aplicará: a) Em primeiro lugar, o presente Estatuto, os Elementos Constitutivos do Crime e o Regulamento Processual;...”.

Seguiu-se uma estrutura de apresentação e elenco dos elementos dos crimes que começa pela conduta, depois indica as consequências da mesma e por fim as circunstâncias associadas com cada crime; sempre que necessário, um elemento mental particular aparece depois dos pontos indicados, como é o caso, no genocídio, da intenção específica de destruição, total ou parcial, do grupo em questão; por fim, surge o contexto do crime.

Como será fácil de verificar, muitas são as questões que se podem colocar face ao crime de agressão em relação com os seus elementos constitutivos, sobretudo porque a moldura penal ainda não está definida e esta via é apenas uma nova tentativa de chegar mais facilmente a um acordo sobre a mesma. Por outro lado, o Capítulo III do Estatuto (Princípios Gerais de Direito Penal) não foi elaborado a pensar no crime de agressão, pelo que se levantam muitas

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? É relativamente corrente que, entre sessões formais, delegados de Estados e representantes de outros intervenientes no processo negocial, como ONGs, se reunam, de modo mais informal, normalmente num cenário académico, para discussão mais livre dos problemas em causa e para elaboração de estudos ou propostas para apresentação na próxima reunião formal. Tal tem sido o caso, relativamente à questão do crime de agressão, das reuniões em Princeton, que têm decorrido regularmente, entre as sessões, desde 2002. 35

? Ver PCNICC/2000/1/Add.2, de 2 de Novembro de 2000.

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perguntas sobre a sua aplicação a este crime. Entre essas questões, poder-se-ão incluir as referentes à participação individual, definida no art. 25º do Estatuto (comissão, ordenamento, cumplicidade ou colaboração, participação em grupo que cometa o crime, etc), à tentativa (art.25º nº3 f)), à questão da responsabiliade de superiores, já que este crime é um “crime de chefias” (art. 28º) e, pelas mesmas razões, à relevância das ordens de superiores (art. 33º).

A análise destas questões levar-nos-ia muito para além do tempo desta intervenção, pelo que ficam simplesmente assinalados alguns dos pontos que terão que ser examinados relativamente aos elementos do crime de agressão36.

IV – Conclusão - Possíveis razões da situação presente

Para além das razões óbvias de a conjuntura internacional actual não ser favorável a uma cristalização da noção de agressão, sobretudo por presentemente termos presenciado violações claras da Carta e argumentações, por grandes potências, no sentido da desactualização desta, a questão da dificuldade da definição do crime de agressão colocar-se-ia sempre porque se prende com questões estruturantes da ordem normativa internacional que se encontram a atravessar um processo de transformação.

Nesta breve conclusão salientarei apenas três: a questão da transferência de poderes de soberania do Estado para indivíduos; a questão da transferência do centro de soberania para órgãos para além do Conselho de Segurança e a questão da revisão judicial das decisões deste órgão.

O crime de agressão, embora se aplique a indivíduos, toca profundamente a soberania do Estado em questão, já que, como “crime de chefias”, se aplica exclusivamente a pessoas que ocupam posições centrais na administração estatal e que personificam a própria ideia de soberania. Assim, permitir que a decisão sobre os seus actos seja transferida para indivíduos independentes, que apenas se representam a si mesmos e que têm como missão aplicar o Direito Internacional a estas pessoas, exige uma tomada de consciência, nem sempre presente, de que a punição de tal crime se sobrepõe a quaisquer considerações sobre as funções oficialmente desempenhadas pelos seus autores no quadro da administração do Estado em causa37. De certo modo, estas considerações aplicam-se a quaisquer crimes da 36

? Para um exame pormenorizado destas questões ver o excelente artigo de Clark, Roger, “The Crime of Aggression and the International Criminal Court”, a ser brevemente publicado no livro de homenagem ao Prof. Blishchenko, Professor Blishchenko in Memoriam: The Legal Regime of the ICC, Martinus Nijhoff Publishers, The Hague, 2006. Este autor tem representado a Samoa nas negociações para elaboração dos vários documentos relativos ao Tribunal e tem sido um dos principais defensores da estratégia de determinação dos elementos do crime de agressão como modo de chegar à sua definição e condições de exercício. A autora deste artigo ainda não se encontra persuadida por tal estratégia negocial, entendendo ser necessário começar por enfrentar os problemas políticos que tal definição acarreta e fazer opções quanto aos mesmos. 37

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competência do TPI, mas aqui a resistência torna-se superior porque os indivíduos visados têm que necessariamente pertencer às altas esferas do Estado e as suas acções misturam-se inegavelmente com as acções do próprio Estado.

Quanto à questão da determinação da ocorrência de agressão, o cenário ainda mais se complica quando se pretende passar tal competência do Conselho de Segurança para outro órgão, sobretudo para os Estados com poder de veto no mesmo e, daí, com controlo total sobre as decisões finais. Se acaso se pode afirmar que, após a 2ª Guerra Mundial, os Estados concordaram em transferir parte da sua soberania, no que respeita ao uso da força, para este órgão, o mesmo não se pode dizer, pelo menos no que toca a acções concretas de aplicação de decisões, em relação a outros órgãos como a Assembleia Geral, o Tribunal Internacional de Justiça ou o TPI, sendo que nestes dois últimos casos o “problema” se agrava devido à sua composição, não por representantes estatais mas por peritos independentes, desejavelmente não sujeitos a pressões diplomáticas deste ou daquele Estado.

Por fim, todo este assunto tem que ver com os limites do Direito face à Política na cena internacional, isto é, com a possibilidade de actos do órgão essencialmente “político”, o Conselho de Segurança virem a ser sujeitos ao escrutínio da legalidade por parte de um órgão judicial. Embora tal poder já desde há muito pertença e tenha sido exercido pelo Tribunal Internacional de Justiça (como nos casos citados da Nicarágua e do acidente de Lockerbie, ou, mais recentemente, nos casos das Plataformas de Petróleo38 e das Actividades Armadas no Congo39 e no parecer consultivo sobre a construção do Muro na Palestina40), o que é certo é que não tem havido um escrutínio sistemático da legalidade das acções (ou omissões, por vezes mais importantes) do Conselho de Segurança, pelo que conferir este poder agora a um outro órgão, que poderia ser o próprio TPI, numa área tão politicamente sensível como a determinação da existência de agressão por um Estado, certamente que é uma decisão difícil de tomar pela comunidade internacional.

Concluindo, não será fácil que a Conferência de Revisão do Estatuto de 2009 consiga a aprovação de uma definição do crime de agressão e das condições do exercício dessa competência por parte do TPI. Face às

? A questão da importância do papel de certos indíduos, enquanto tais, na cena internacional, tem sido frequentes vezes abordada pela autora como uma das marcas que distinguem a situação presente do Direito Internacional face à que existia algumas décadas atrás. Ver, entre outros, "Quatro Anos nas Nações Unidas: Testemunhos, Impressões, Especulações", in "Política Internacional", n°. 20, Outono 1999 e “Prelúdios de uma Nova Ordem Mundial: o Tribunal Penal Internacional”, Nação e Defesa n° 104, Lisboa, Março 2003.

38 “Oil Platforms” (Islamic Republic of Iran v. United States of America), acórdão de 6 de Novembro de 2003, in www.icj-cij.org.39

? “Armed Activities on the Territory of the Congo” (Democratic Republic of the Congo v. Rwanda), acórdão de 3 de Fevereiro de 2006, in site cit.40

? “Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory”, parecer de 9 de Julho de 2004, in site cit..

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dimensões políticas do tema e às circunstâncias do momento actual, uma aprovação que não seja por consenso tem poucas probabilidades de vir a ser verdadeiramente eficaz na prática, pelo que se deve tentar negociar essa alteração ao Estatuto tendo sempre em vista esse objectivo.

De qualquer modo, é também forte a intenção daqueles que pretendem que o crime seja efectivamente incluido entre os que o Tribunal poderá julgar, sendo mesmo, para alguns, o crime mais importante de todos quantos são da competência do Tribunal e um incentivo forte para que muitos dos Estados que ainda não são partes do Estatuto o venham a ser. Para além disso, muito se tem progredido no debate das questões relativas ao crime de agressão, pelo que a compreensão dos problemas de carácter técnico e político envolvidos é muito superior neste momento do que o era em Roma.

Seria estranho, pelo menos, que, passado meio século sobre julgamentos que o consideraram como o “crime internacional supremo”, o Tribunal encarregado de julgar os autores dos “crimes de maior gravidade com alcance internacional”41 não conseguisse efectivar a sua competência sobre o crime de agressão por falta de definição do mesmo e estabelecimento das condições sobre o exercício da sua jurisdição. Que as negociações dos Estados Partes se centrem sobre esta questão fundamental e tenham a intensidade e vontade política necessárias para condução a um resultado efectivo, é, pois, o que se pode desejar neste momento.

Paula Escarameia

Conferência proferida em 24 de Março de 2006, na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa

41 Art. 1º do Estatuto do TPI, que sob a epígrafe “O Tribunal”, afirma: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”. O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar das jurisdições penais nacionais. A competência e funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto.”.

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