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O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com surpreendente sinceridade, o resgate do corpo de seu irmão Joseph, que fora enterrado às pressas durante a guerra 1 . Nos quatro anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, o Serviço de Registro de Túmulos dos Estados Unidos (AGRS, na sigla em inglês) assumiu a desoladora missão de recuperar os corpos dos soldados mortos, de acordo com o desejo de suas famílias, enterrá-los em cemitérios militares norte-americanos ou transportá-los de volta aos Estados Unidos para cerimônias privadas. O tenente David Arthur Thompson, de 27 anos, era secretário-executivo do comandante do AGRS e estava pessoalmente envolvido na identificação de tropas abatidas na Europa. O trabalho, no entanto, tornou-se particularmente pessoal quando organizou o resgate do corpo de seu próprio irmão, Joseph, que fora morto durante a guerra. Em um relato compreensivelmente emocionado, mas extremamente franco, Thompson explica em detalhes a seu pai como foi feita a remoção do corpo de seu irmão, bem como quais os objetos pessoais que encontrou entre os despojos. (Esta carta apresenta uma descrição particularmente intensa e pode chocar alguns leitores. No entanto, em meio a expressões mais pungentes de pesar e fé, ela nos permite compreender melhor o modo como Thompson lidou com a morte de um querido membro de sua família e camaradas de armas.) 24 de maio de 1919 Querido pai, Eu pretendia escrever à mamãe, mas não posso contar a ela o tanto que posso fazê-lo a você. Após ler esta carta, você pode explicar a ela o que julgar necessário. 1 Extraído de Andrew Carroll (comp.) Cartas do Front relatos emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007, pp.329-334.

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Page 1: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

O t e n e n t e D a v i d A r t h u r T h o m p s o n n a r r a a s e u p a i , c o m s u r p r e e n d e n t e s i n c e r i d a d e , o r e s g a t e d o c o r p o d e s e u i r m ã o J o s e p h , q u e f o r a e n t e r r a d o à s p r e s s a s d u r a n t e a g u e r r a 1.

N o s q u a t r o a n o s q u e s e s e g u i r a m à P r i m e i r a G u e r r a M u n d i a l , o S e r v i ç o d e R e g i s t r o d e T ú m u l o s d o s E s t a d o s U n i d o s ( A G R S , n a s i g l a e m i n g l ê s ) a s s u m i u a d e s o l a d o r a m i s s ã o d e r e c u p e r a r o s c o r p o s d o s s o l d a d o s m o r t o s , d e a c o r d o c o m o d e s e j o d e s u a s f a m í l i a s , e n t e r r á - l o s e m c e m i t é r i o s m i l i t a r e s n o r t e - a m e r i c a n o s o u t r a n s p o r t á - l o s d e v o l t a a o s E s t a d o s U n i d o s p a r a c e r i m ô n i a s p r i v a d a s . O t e n e n t e D a v i d A r t h u r T h o m p s o n , d e 2 7 a n o s , e r a s e c r e t á r i o - e x e c u t i v o d o c o m a n d a n t e d o A G R S e e s t a v a p e s s o a l m e n t e e n v o l v i d o n a i d e n t i f i c a ç ã o d e t r o p a s a b a t i d a s n a E u r o p a . O t r a b a l h o , n o e n t a n t o , t o r n o u - s e p a r t i c u l a r m e n t e p e s s o a l q u a n d o o r g a n i z o u o r e s g a t e d o c o r p o d e s e u p r ó p r i o i r m ã o , J o s e p h , q u e f o r a m o r t o d u r a n t e a g u e r r a . E m u m r e l a t o c o m p r e e n s i v e l m e n t e e m o c i o n a d o , m a s e x t r e m a m e n t e f r a n c o , T h o m p s o n e x p l i c a e m d e t a l h e s a s e u p a i c o m o f o i f e i t a a r e m o ç ã o d o c o r p o d e s e u i r m ã o , b e m c o m o q u a i s o s o b j e t o s p e s s o a i s q u e e n c o n t r o u e n t r e o s d e s p o j o s . ( E s t a c a r t a a p r e s e n t a u m a d e s c r i ç ã o p a r t i c u l a r m e n t e i n t e n s a e p o d e c h o c a r a l g u n s l e i t o r e s . N o e n t a n t o , e m m e i o a e x p r e s s õ e s m a i s p u n g e n t e s d e p e s a r e f é , e l a n o s p e r m i t e c o m p r e e n d e r m e l h o r o m o d o c o m o T h o m p s o n l i d o u c o m a m o r t e d e u m q u e r i d o m e m b r o d e s u a f a m í l i a e c a m a r a d a s d e a r m a s . )

24 de maio de 1919

Querido pa i ,

Eu pretend ia es crever à mamãe, mas não posso contar a ela o tanto

que posso fazê - lo a você . Após le r e sta carta , você pode explicar a ela o que julgar

necessário.

1 E x t r a í d o d e A n d r e w C a r r o l l ( c o m p . ) – C a r t a s d o F r o n t — r e l a t o s e m o c i o n a n t e s d a v i d a n a g u e r r a , t r a d . p o r t . , R i o d e J a n e i r o , Z a h a r , 2 0 0 7 , p p . 3 2 9 - 3 3 4 .

Page 2: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

Há pouco , transportei o corpo de Joe de uma cova na f l ores ta para

um lot e no Cemitério Norte -Ameri cano em Romagne, na França . Tive eu mesmo

que supervi sionar o t rabalho por causa do pequeno número de of i c iais . Fiz,

por tanto, o re conhecimento do corpo. Um trabalho que eu, como o senhor deve

imaginar , pref er ia a morte a cumpri - lo, mas que prec isava ser f e i to.

Serei bastante f ranco em meu relato e s ei que poderei magoá -lo,

porém sei que o senhor gostaria de s aber. Estou muito contente por ter s ido eu a

real izar is so, e não o senhor ou a mamãe, pois is so os deixaria t ranstornados.

Com os tr ês rapazes de cor desi gnados para in tegrar minha unidade e

com uma caminhonete Dodge, a travessei 60 quilômetros pelas col in as. Em alguns

momentos, a estrada estava tão ruim que t ínhamos que c ruzar os campos e, em um

determinado ponto , t i vemos que const rui r uma pequena ponte sobre um tre cho onde

a es trada fora dest ruída .

Deixamos Romagne às 7h30 e ao meio -dia chegamos à cova na

f loresta Harmont. Fiz os rapazes de cor e scavarem o local da cova até que

chegássemos ao corpo, ou pudéssemos ver suas roupas . Vi primeiro seus pés e

pernas, e en tão o res to do corpo, da forma como tombara.

Ele estava vest ido com roupas novas , portava sua capa de chuva,

bem como todo o equipamento , com exceção do ri f l e e do capace te . Como eu

esperava, não havia um caixão, mas simplesmente um cober tor sobre s eu corpo, e

algumas tábuas sol tas por c ima .

Removemos o cobertor, as tábuas etc . e é c laro que o cor po

encontrava -se bastante decomposto. A cabeça fora arrancara do corpo por uma alta

Page 3: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

carga explosiva, mas o que res tava do crânio jazia al i . O rosto fora completamente

dest ruído. Então, desabotoe i o casaco e encontrei , ao redor do pescoço, a outra

placa de identi f i cação, que bastava para cert i f i car de quem se t ratava.

Em segu ida, o coloque i em um caixão que havíamos t razido conosco

e o levamos para dentro do carro. Removemos, então, o corpo de Carl Coombs, ta l

qual f izéramos com o de Joe. O corpo de Coombs t ambém se encontrava em

avançado estado de decomposi ção e era um suje i to bem pesado de carregar .

O odor de ambos era t errível e t i ve de esquecer por um momento

quem eram. Usava luvas de borracha, mas mal conseguia tocar os corpos sem

arrancar- lhes a carne d os ossos. Por is so , t i ve de trabalhar com vagar e cu idado.

Quando os dois corpos estavam no carro , diri g imos de vol ta para

Romagne, s eguindo por um caminho por t rás das fronteiras alemãs. Chegamos ao

cemit ér io de Romagne por vo l ta das 5h da tarde.

Ali entreguei os doi s corpos aos covei ros que es tavam presentes. Fiz

com que re t irassem as roupas e as vasculhassem, obtendo bons resultados .

Na roupa dele encontre i : a úl t ima carta que o senhor enviou, um

canivet e , uma caneta - t in te i ro , um d iário, o t es tamento , o l ivro dos Salmos, outro

l ivro com anotações re fe rentes a toda correspondência que e l e rec ebera e enviara ,

alguns pequenos ret ratos que re cebera de casa, cerca de dez francos em dinheiro,

dois re lógios, o del e e outro al emão, algumas moedas alemãs e carões -pos tais

alemães .

O diário é mui to int eressante e o l i vro dos Salmos, maravi lhoso, o

que demonstra que morreu com a alma imaculada. Esse pequeno l i vro é conhecido

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como “O salmo do pastor” e lhe fo i presen teado por Emily M. Rogers. Nele, Joe

esc reveu a pequena oração que se segue :

“rogo a Vós, oh, Deus, que eu tenha beleza interior. É essa a

minha súpl ica mais ardente . A maior ia de nós, creio eu, r everá suas casas e seus

amigos. Se assim for, quantos amaldi çoarão cada bebida que tomaram, cada praga

que lançaram, cada vergonha que aqui cometeram e que, em casa, não teriam f ei to.

“isso põe em ri sco minhas divi sas, minha disc ip l ina, minha

popular idade e meu progresso. Essas quatro coisas são t emporárias. A pureza

interior é permanente e é maior que todas as coisa s mundanas.

“esta guerra não durará muito. Tenho uma chance em 30 de

sobreviver. O que é um ano de serviço comparado à indulgência , digamos , 50 anos e

um ano de serviço; e uma consci ênc ia l impa pe los outros 50 anos? De qualquer

modo, depoi s , antes , agora, ou em qualquer ocasião , desprezo tudo o que não é

divino. Meu verdadei ro eu int erior ressente diante de tudo is so.

“em segundo lugar, em nome do amor de mãe, pa i , parentes, e tantos

amigos, eu desprezo tudo o que não é divino. Em nome do amor de Deus que

manteve todos bem e saudávei s em casa, no campo de t r einamento, no mar, e que me

manteve em perf e i ta saúde desde minha chegada, por essa razão eu desprezo tudo o

que Deus despreza.”

Isso não é maravi lhoso, pai? Gostaria que contasse i sso ao dr. Day.

Há muitos outros versos menores, todos de grande int eresse . No ú lt imo dia do

diário, e sc ri to em 14 de outubro, quando part ia de Verdun para Harmont, e l e

esc reveu o seguinte:

Page 5: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

“Oh, é di f í c i l deslumbrar a paz quando as bombas do inimigo es tão

estourando ao nosso redor. „Paz. ‟ Oh! Rogo a Deus que e la venha antes do

amanhecer, e que as prec es de minha mãe se jam atendidas .

“há todo t ipo de re lato desal entador a respei to do trabalho que t emos

pela fr ente. Envie i uma carta de natal para casa, e notí c ias para Art. Sinto -me

bem e ok es ta noite . A tempestade parece te r s e diss ipado às 2h30 da manhã. Os

velhos camaradas franceses levam o gás bastante a sério.”

O pobre garoto rogou por paz e Deus a concedeu a ele , pai . Quão

fe l iz estou que Deus o t enha atendido tão prontamente. Ele estava preparado para

morrer, e nada so freu. Fico fe l iz ao pensar nisso, mas somente Deus sabe quanto

sinto a fa l ta del e . Eu o amava muito.

Pai, e ssas coi sas são extremamente va l iosas para o senhor. Vou

preservá - las cuidadosamente ; embora já est e jam em péss imas condi ções, graças à

umidade do so lo e do corpo. Estão i gualmente sujas e malchei rosas . Limpei tudo

com gasol ina e , em um ou doi s dias, es tarão ok.

Levarei tudo is so para mamãe, todas as coisas. Peço a vocês, porém,

que as mantenham na famíl ia , depoi s que os s enhores part i rem para se juntar ao

pobre Joe . Atravessei um verdadei ro inferno para consegui - las, e , depoi s do senhor e

da mamãe, e las per tencem a mim.

Joe agora des cansa ao lado de Carl Coombs no cemi tério Romagne ,

na companhia de outros 35 mil . É um belo local e tornou -se nosso Monumento

Nacional na França. Rogo para que permitam que o corpo del e permaneça aqui

para descansar em paz . Sei que e l e aprec iaria que assim fosse.

Page 6: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

Agora el e s e encontra sepul tado em um caixão; e , no Dia d a

Memória 2, s eu túmulo re ceberá uma bela decoração. O general Pershing lá es tará

para prestar seus respei tos aos homens que lutaram sob suas ordens e será uma

bela c er imônia.

Agradeço a Deus por tudo que conquis te i . Fui mui to bem

recompensado por cada minu to que aqui passei . Aguardo, em breve, uma promoção

e, na proxima semana, me desl i garei de minha companhia para me tornar um

of i c ia l a judante .

Esperamos t erminar nossos afazeres aqui dentro dos próximos meses .

Então, todos vol taremos para casa. A maior par te do t rabalho agora é da

art i lharia e pouco se faz com armas l eves.

Tirei muitas fo tos. Entreguei -as ao fo tógra fo do campo ontem, e as

terei de vo l ta em uma semana. Por sorte , quando olhava em minha mala na noit e

passada, encontrei vár ios mapas de Romagne , então poderei lhes mostrar

exatamente onde se local iza o c emitério.

Quanto mais tempo permaneço aqui, mais perc ebo o cuidado que

dedicam a nossos c emitér ios , e e stou convencido de que nosso Joe deveria permanecer

aqui.

Remover o seu corpo foi uma experiê ncia e tanto, e f oi tão cus toso

que espero que o senhor permi ta que e le permaneça aqui como part e do grande

monumento à contribui ção do nosso paí s à Guerra Mundial .

2 T o d a u l t i m a s e g u n d a - f e i r a d e m a i o , e m m e m ó r i a a o s s o l d a d o s m o r t o s n a g u e r r a ( N . E ) .

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Inic iou -se na França uma campanha para que cada moça se torne

responsável por um túmulo, ou um conjunto de túmulos . Há uma jovem que cu idará

de ambos, ou se ja , do de Joe e do de Carl Boombs.

Ela é a úni ca moça que vi s i tou, at é agora, o túmulo dos dois . Foi

até lá com di f i culdade e sob grande ri sco. Apenas porque dese java Sr responsáve l

pelos túmulos depois de nossa part ida. Ela es creveu à mamãe, e fa la e e s creve mui to

bem em inglê s . Se i que mamãe f i cará contente em lhe esc rever nos anos que vi rão.

Sempre que e la t iver tempo e condi ções de ir até lá , o fará de bom grado.

Ela está lendo o diário de Joe , o l i vro dos Salmos e lhes digo que

isso já é suf i c ien te para causar uma boa impressão. Todos aqui têm sido ót imos

amigos para mim.

Sei que mamãe f i cará sati s fe i ta de t er e ssas coi sas . A visão da

cal igraf ia de Joe si gni f i cará mais para ela do que o pr óprio corpo del e . Por favor,

agora, deixem-no des cansar em paz.

Sinto que f iz tudo o que es tava ao meu al cance. A local ização do

túmulo é : se ção 9, lot e 3 , túmulo 155. Joe e stá sepultado na extremidade Nordes te .

Escreva logo , pai . Meu amor a todos.

Seu f i lho,

Art.

U m a n o d e p o i s , o c o r p o d e J o s e p h T h o m p s o n f o i e x u m a d o e l e v a d o a o s E s t a d o s U n i d o s , o n d e f o i s e p u l t a d o n o l o t e d a f a m í l i a e m W a t e r t o w n , e m M a s s a c h u s e t t s . D a v i d T h o m p s o n p e r m a n e c e u n a F r a n ç a a t é 1 9 2 3 e , m a i s t a r d e , c o l a b o r o u c o m o S e r v i ç o d e R e g i s t r o d e T ú m u l o s d o s E s t a d o s U n i d o s n a e s c o l h a d o ‗ s o l d a d o d e s c o n h e c i d o ‖ n o C e m i t é r i o N a c i o n a l d e A r l i n g t o n .

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L i l a O l i v e r e s c r e v e a u m a a m i g a c o n t a n d o - l h e s o b r e a s a t i t u d e s d o s s o l d a d o s f e r i d o s q u e e l a d e s e n h a c o m o a r t i s t a v o l u n t á r i a d a U S O 3

A l é m d o s e s t i m a d o s 2 5 m i l h õ e s d e s o l d a d o s m o r t o s d u r a n t e a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , m i l h õ e s d e o u t r o s f i c a r a m p a r a s e m p r e i n c a p a c i t a d o s . E m b o r a t e n h a m v o l t a d o v i v o s p a r a c a s a , e n f r e n t a r a m u m d i f í c i l p e r í o d o d e r e a b i l i t a ç ã o q u e , m u i t a s v e z e s , i n c l u í a e x a u s t i v a s s e s s õ e s d e f i s i o t e r a p i a e n u m e r o s a s c i r u r g i a s , e s p e c i a l m e n t e n o s c a s o s d e c e g u e i r a , p a r a l i s i a , q u e i m a d u r a s g r a v e s e a m p u t a ç õ e s d e m e m b r o s . C o n f i n a d o s a u m a c a m a d e h o s p i t a l d u r a n t e d i a s , s e m a n a s o u m e s e s s e g u i d o s , l o n g e d e a m i g o s e e n t e s q u e r i d o s , e s s e s h o m e n s t i n h a m d e s u p e r a r o t é d i o c o n s t a n t e . L i l a O l i v e r , u m a j o v e m d e 2 2 a n o s q u e s e f o r m a r a n o P h i l a d e l p h i a C o l l e g e o f A r t , r e c o n h e c i a q u e n ã o h a v i a n a d a q u e p u d e s s e f a z e r p a r a a l i v i a r o s o f r i m e n t o f í s i c o d a q u e l e s j o v e n s f e r i d o s , m a s , p o r m e i o d e s e u t a l e n t o , p r o c u r a v a a o m e n o s o f e r e c e r - l h e s m o m e n t o s m a i s a g r a d á v e i s . E m 1 9 4 3 , e l a s e i n s c r e v e u c o m o v o l u n t á r i a n a ― U n i d a d e d e D e s e n h o ‖ d a U S O , q u e p e r c o r r i a h o s p i t a i s m i l i t a r e s p o r t o d o o p a í s p a r a f a z e r r e t r a t o s d o s s o l d a d o s . E m u m a c a r t a e n d e r e ç a d a à s u a a m i g a T e r r y , L i l a r e s p o n d e s o b r e s e o s p a c i e n t e s a p r e c i a v a m o u n ã o s e u t r a b a l h o 4.

Acredito que pouco re conheçam seu va lor art í st i co e , do meu ponto de

vis ta, eu di ria que nada sabem. Pouco se importavam com uma l inha del i cada e

sensível . Por outro lado, saúdam minha chegad a ao hospita l para desenhá - los.

Acham que essa é uma “exce lente” idéia e apreciam a semelhança dos desenhos ,

uma vez que eu os re tra to de uni forme, quando na real idade se encontram ves t idos

de pi jamas . Minha t i rada favori ta é : “Sabe, já vest i mais soldados do que

qualquer um aqui”, sempre arranca algumas risadas. É para is so que estou aqui,

3 A s U n i t e d S e r v i c e O r t a n i z a t i o n s ( U S O ) e r a m i n s t i t u i ç õ e s c i v i s s e m f i n s l u c r a t i v o s q o f e r e c i a m s e r v i ç o s d e a p o i o p s i c o l ó g i c o e r e c r e a t i v o a o s m e m b r o s d o E x é r c i t o n o r t e - a m e r i c a n o ( N . T . )

4 E x t r a í d o d e A n d r e w C a r r o l l ( c o m p . ) – C a r t a s d o F r o n t — r e l a t o s e m o c i o n a n t e s d a v i d a n a g u e r r a , t r a d . p o r t . , R i o d e J a n e i r o , Z a h a r , 2 0 0 7 , p p . 3 3 5 - 3 3 9 .

Page 9: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

não para ser “art is ta” , mas. . . para dar aos rapazes um mot ivo a mais de

descontração e para fazê - los esquecer de que es tão doentes e , até mesmo, bajulá - los

um pouco. Quase todos e les me conf idenciam: “Sabe, e sta é a pr imeira vez que

alguém faz o meu ret rato — espero que eu não fa ça o carvão se quebrar . . .”

O l i v e r t a m b é m s e c o m o v i a c o m o m o d o p e l o q u a l o s h o m e n s l i d a v a m c o m o s o f r i m e n t o . E m u m a c a r t a e n v i a d a l o g o a p ó s a g u e r r a a T e r r y , c u j o m a r i d o , A l l a n , e s t a v a e m s e r v i ç o , L i l a c o m e n t o u a s d i f e r e n t e s a t i t u d e s n a s v á r i a s a l a s d o h o s p i t a l . E l a e s t a v a e s p e c i a l m e n t e e n c a n t a d a c o m u m j o v e m s o l d a d o , q u e a t u a v a c o m o m é d i c o , a n t e s d e s e r b a l e a d o e m c o m b a t e .

Querida Terry,

O tempo voa. Meu trabalho, a fo tograf ia , a cantina, as idas ao

hospi tal l ocal para desenhar, tudo conspira para me manter ocupada.

Page 10: O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com ...€¦ · Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então,

Que longa aque la car ta. Mais dessas, por favor . Com certeza estás

pensando em Allan quando me perguntas se os rapazes mudaram mu i to . Engraçado

— mas acho que não mudaram. Alguns, depois de passarem por exper iências

suf i c ien tes para toda uma vida, es tão mais velhos , têm até cabelos brancos . Embora

um pouco mais velhos, têm um entusiasmo maior em re lação à vida. Parece

contradi tório? Mas não é. Eles vi ram coisas demais, por i sso estão mais velhos,

mas aquilo pelo qual passaram faz com que apreci em cada dia e cada hora. Para

ser s in cera, nunca antes t inha v is to esses rapazes aqui , mas, entre meus modelos,

estão os t ipos de pessoas que já conhec ia. Há os estudantes e os pés -de-valsa, o

espert inho, o f est e i ro , o universi tário bajulador, o queridinho de todos, o pess imis ta

e o ot imista (mais dest e úl t imo) e at é mesmo o f i lhoinho da mamãe manteve sua

individua lidade.

Me perguntas se acred it o que os rapazes es te jam voltando para casa

mudados e d i fe ren tes e , para dizer a verdade, não acho que i sso a conte ça; e l es t êm

novas idéias, uma aparência mais madura , o que é suf i c ien te para l evar a sério

uma vida mais e stáve l , mas estou convi cta de que, ao vol tar, a maioria dos

soldados mantém, em essênc ia, a mesma es tru tura de caráter que demonstravam

quando se apresentaram ao serviço. Suponho que haja quem di scorde. De fa to , a

reação das famí l ias logo após a chegada dos rapazes cria tantos probl emas qua nto

aqueles que e l es já t raziam consigo. Não dese jam que os tra temos de modo especia l ,

mas que os deixemos em paz. Não esqueceram como é e star em casa, nem como se

comportar en tre c i vis . Desde o momento da part ida, guardaram cuidadosamente

todas as pequenas l embranças que puderam reunir. Esses garotos não esqueceram.

Ainda cederiam seu lugar em um bonde a uma senhora tão pres tat ivamente quanto

qualquer outro que não tenha abandonado a c idade, s em necess idade de aulas,

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l ivros de ins truções ou dez l i ções fáce i s para se tornar um civi l . A maioria dele s

não consegue compreender por que as pessoas pensam que el es pre c isam de conselhos

em relação a como se comportar em sua primeira l i c ença nos Estados Unidos . Isso

foram el es que me di sseram.

Os incapaci tados? Dese jam ser tra tados de forma sincera e honesta .

A maioria dos rapazes tem mais coragem do que eu ju lgava possível . Se não nos

compadecermos ou vi rarmos o rosto com olhares compridos e t r is te s , e les f i carão

bem. Precisam de uma oportunidade . Digo que não devem os t er pena dele s ; mas não

disse que não devamos a judá -los; ainda mais c er to é que não devemos nos esquecer

dele s . Como poder íamos compensar a perda de uma perna aos 20 anos de idade?

Desenhei , no últ imo domingo, um jovem da for ça médica, pacien te de

um dos hospitai s de Atlant ic City. Seus dois companhei ros de quarto foram

rec entemente t rans feridos e e l e s e encontrava sozinho. Foi por i sso que me

mandaram até lá . Era um rapaz de uma admirável d ispos ição e bri lhantes cabelos

ruivos, com um tufo espe tado no a lto da cabeça. Este garoto passava por uma séri e

de neuroci rurgias. Ele me contou como fora ser médico no teatro de guerra europeu.

“Passamos a maior part e do tempo atrás das l inhas. Então, quando

os rapazes são at ing idos , uau, é pre c iso i r até lá para aju dá-los e resga tá - los . Se as

coi sas p ioram ainda mais, en tramos em combate. E sempre há aquel e que faz algo

estúp ido e acaba se machucando. Então, pre c i samos arri scar nosso pes coço para

arrastá- lo de lá . Claro que juramos que nunca mais faremos is so — a f ina l , não é

nossa cu lpa se e sses suj ei tos correm ris cos de modo tão estúpido! Mas, na ocasião

seguinte, vamos ao seu encontro desgraçadamente , fazemos tudo outra vez .”

Ele me contou como fora atingido.

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“Atacávamos um ninho de metra lhadoras e havia muito fogo .

Arrast ei -me para ajudar alguns homens. Próximo dal i , um alemão fora fe rido e ,

por is so, avancei vagarosamente para prestar - lhe os primeiros socorros. Ele es tava

muito mal. Os boches me viram e ce ssaram o fogo. Esperaram até que eu

f inal izasse o curativo daquele suje i to e , então, abr iram fogo contra mim —

acer taram-me na perna! Naturalmente, nossos rapazes f i caram loucos de raiva,

pois t es temunharam tudo. Pegaram o grupo todo, e os poucos alemães que restaram

foram postos para marchar com as mãos para o a lto, enquanto nós aguardávamos

por aquele que atirara em mim. Ele foi o úl t imo a sair . Então, todos os rapazes

gri taram juntos para mim: „Ei, ve ja i sso, garoto! ‟ , e , juntos, deram cabo del e .

Tomamos os outros como pri sionei ros.”

Quando termine i o desenho , e l e o aprovou e me disse seu nome. Era

Goldbla tt . “Mas pode me chamar de Goldy .”

Esta também foi uma carta comprida . Fizest e uma pergunta que me

toca profundamente.

Meu dente de si so e stá despontando — em cima, à di rei ta . Dói

quando mast igo e l imita minha masti gação. Sequer posso apreciar um bom bocejo.

Mas es tou com sono. Hora de dormir.

Com amor,

Lila.

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O l w y n G r e e n e s c r e v e u m a c a r t a f i n a l d e a m o r p a r a o s e u m a r i d o C h a r l i e , q u e s e r v i u t a n t o n a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l q u a n t o n a G u e r r a d a C o r e i a 5.

I n d e p e n d e n t e m e n t e d o s e u e n t e q u e r i d o t e r d e s a p a r e c i d o p a r a s e m p r e o u r e g r e s s a r p a r a c a s a u m a p e s s o a v i s i v e l m e n t e d i f e r e n t e , a s e s p o s a s , o s f a m i l i a r e s e o s a m i g o s d o s h o m e n s e m u l h e r e s q u e s e r v i r a m n a s f o r ç a s A r m a d a s f r e q u e n t e m e n t e p r e c i s a m c i c a t r i z a r s u a s p r ó p r i a s f e r i d a s n o p ó s - g u e r r a e e n f r e n t a r t a m b é m u m p e r í o d o d e a d a p t a ç ã o . N a s c i d o e m 2 6 d e d e z e m b r o d e 1 9 1 9 , e m S o u t h G r a f t o n , n a A u s t r á l i a , C h a r l i e G r e e n u n i u - s e à m i l í c i a a o s 1 6 a n o s e p a r t i u p a r a l u t a r n a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , i n i c i a l m e n t e c o m o o f i c i a l d e i n f a n t a r i a e , e m s e g u i d a , c o m o c o m a n d a n t e d e u m b a t a l h ã o i n t e i r o . S u a j o v e m e s p o s a O l w y n a g u a r d a v a c o m g r a n d e e x p e c t a t i v a s u a v o l t a p a r a c a s a , a p ó s a n o s d e u m a e s p e r a a n g u s t i a n t e . A r e l a ç ã o e n t r e e l e s p e r m a n e c e u f o r t e e a m o r o s a , m a s q u a n d o C h a r l i e v o l t o u p a r a c a s a s u a e s p o s a d e s c o b r i u q u e e l e j á n ã o e r a o m e s m o . O h o m e m q u e e s c r e v e r a c a r t a s a p a i x o n a d a s d u r a n t e a g u e r r a e r a a g o r a t a c i t u r n o e , m u i t a s v e z e s , p a r e c i a p o u c o à v o n t a d e n o c o n v í v i o c o m o u t r a s p e s s o a s . O c o m a n d a n t e d e b a t a l h ã o q u e r e c e b e r a u m a C o n d e c o r a ç ã o p o r S e r v i ç o s D i s t i n t o s a t o r m e n t a v a - s e c o m a i d e i a d e t e r u m a f a z e n d a . E l e e s t a v a p e r d i d o . S e n t i a f a l t a d a a m i z a d e d e s e u s a n t i g o s c a m a r a d a s e d o s e n t i m e n t o d e v i d a e m o r t e a s s o c i a d o à s m i s s õ e s . E m j u n h o d e 1 9 5 0 , r o m p e u a G u e r r a d a C o r e i a e , p a r a e s p a n t o d e s u a e s p o s a , C h a r l i e e s t a v a a n s i o s o p a r a p a r t i c i p a r d o s c o m b a t e s . ― E s t á n a h o r a d e s o l t a r o s c a v a l o s ‖ , e x p l i c a v a e l e . E m s e t e m b r o , f o i d e s i g n a d o o f i c i a l - c o m a n d a n t e d o 3 º B a t a l h ã o d o R e g i m e n t o R e a l a u s t r a l i a n o . E m 1 2 d e s e t e m b r o , a c a m i n h o d a C o r e i a , C h a r l i e e n v i o u a p r i m e i r a c a r t a p a r a c a s a : ― O p r o b l e m a n ã o é t ã o r u i m q u a n t o p o s s a s i m a g i n a r . N a v e r d a d e , a s s e m e l h a - s e m a i s a u m a g u e r r a c i v i l e , c o m a n o s s a u n i d a d e , t e m o s p o u c o c o m o q u e n o s p r e o c u p a r m o s . ‖ A p e n a s d u a s s e m a n a s d e p o i s , e l e s e e n c o n t r a v a n a C o r e i a e o c a r i n h o q u e t a n t a s v e z e s m a n i f e s t a r a e m s u a s c a r t a s d a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l r e a p a r e c e u . ― C o m o e s t á s , m i n h a q u e r i d a , e t a m b é m , é c l a r o , m i n h a p e q u e n a ? ‖ , e s c r e v e u C h a r l i e e m 2 7 d e o u t u b r o , r e f e r i n d o - s e à s u a f i l h a A n t h e a , d e 3 a n o s .

5 E x t r a í d o d e A n d r e w C a r r o l l ( c o m p . ) – C a r t a s d o F r o n t — r e l a t o s e m o c i o n a n t e s d a v i d a n a g u e r r a , t r a d . p o r t . , R i o d e J a n e i r o , Z a h a r , 2 0 0 7 , p p . 3 3 9 - 3 4 2 .

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Espero que es te jam tão fe l izes quanto for possível . Temos ainda

outros 30km a percorrer at é nosso obj et i vo f inal e , depois di sso, a coi sa deve

terminar. . . .Deus t e abençoe, meu amor, e mantenha -se bem. Te amo mais do que

nunca e e spero que possamos es tar juntos novamente em breve.

A n t e s d e O l w y n r e c e b e r a c a r t a , o c a r t e i r o l o c a l v e i o d e b i c i c l e t a a t é s u a c a s a , e m G r a f t o n , t r a z e n d o u m e n v e l o p e c o r -d e - r o s a . E l a p e r m a n e c e u c o n g e l a d a n o s d e g r a u s e m f r e n t e à c a s a . ― L a m e n t o i n f o r m a r q u e s e u m a r i d o , o t e n e n t e - c o r o n e l C h a r l e s H e r c u l e s G r e e n , 2 / 3 7 5 0 4 ‖ , c o m e ç a v a o t e l e g r a m a , ― f o i f e r i d o n a C o r e i a , s o f r e n d o f e r i m e n t o s d e m e t r a l h a . . . ‖ E m b o r a h o u v e s s e m o t i v o p a r a e s p e r a n ç a — e l e e s t a v a ― a p e n a s ‖ f e r i d o —, O l w y n s a b i a q u e s e u s p i o r e s t e m o r e s h a v i a m s e c o n c r e t i z a d o . P o r v o l t a d a m e i a - n o i t e d o d i a s e g u i n t e , d e p o i s d e u m a a n g u s t i a n t e e s p e r a , e l a r e c e b e u a n o t i f i c a ç ã o d e q u e s e u m a r i d o h a v i a , d e f a t o , m o r r i d o d u r a n t e u m a t a q u e d a a r t i l h a r i a c h i n e s a . E l e t i n h a 3 0 a n o s . D é c a d a s d e p o i s , O l w y n G r e e n s e n t o u - s e e r e v i v e u s e u a n t i g o r e l a c i o n a m e n t o , p o r m e i o d e t o d a s a s c a r t a s q u e e l e l h e e n v i a r a e q u e , a t é a q u e l e m o m e n t o , n ã o h a v i a r e l i d o . E m 1 9 9 2 , m o r a n d o e S y d n e y , O l w y n G r e e n e s c r e v e u u m a ú l t i m a c a r t a a o m a r i d o :

Sydney, 1992

Meu amado Charl i e ,

Faz muito tempo que não lhe e sc revo. Não achava que você re ceber ia

qualquer mensagem. Agora já não tenho tanta cer teza.

Veja só, t enho revi s i tado o passado. Revi sua vida antes de nos

conhecermos. Adorei fazer is so. Um ret rato seu quando bebê me lembra muito

Anthea, quando e la estava cresc endo. Tenho pensado muito sobre o t empo curto,

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mas fe l iz, que passamos juntos . Os ve lhos tempos foram maravi lhosos , não foram?

Parece que foi ontem e que você es tava aqui presen te . Então sonhei contigo. Por

isso a chei que prec i sava esc rever.

Acho que aprendi bastante, meu querido. Não há motivo para

quest ionar ou lamentar o passado. Tudo passou. Por anos, me preocupei com o que

nos acontec eu. Uma coi sa já não me amedronta mais. É o tempo. O tempo não

existe . Cometemos um grande erro ao medi - lo em minutos e anos, ou em passado e

futuro. Nosso casamento foi para a vida in tei ra. Algumas ocas iões assus tadoras em

que o lhei para o futuro me f izeram perceber que talvez, de vez em quando, nos é

permit ido um vis lumbre do inf in ito. Acho que é o medo que nos impede de ver o

futuro — ou de vê- lo de forma adequada. Faz 40 anos que não vejo você , mas esse

tempo parec e t er desaparecido.

Ultimamente, parei de ter o pesadelo no qual você aparec ia muito

distante e não consegu ia entrar em conta to comigo . Odiava esse sonho, que sempre

se repet ia . Nunca consegui en tendê - lo.

Como d isse , outra noi te sonhei com você . Foi um sonho bem

di ferente. Você ve io para perto de mim . Então, uma luz est ranha e muito bri lhante

i luminou a sua fa ce esquerda, de modo que eu podia ver seus o lhos. A luz reve lava

lágr imas, e i sso me acordou. Não posso suportar imaginá -lo chorando. Por favor,

não chore. As lágrimas — minhas ou suas — não mais são necessárias. Não

prec isamos mais chorar . O que comparti lhamos foi belo demais para que choremos .

E, embora, em um certo sent ido , t enhamos fa lhado, Deus sabe que t entamos.

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Não sou mais j ovem, Charl ie . Tenho rugas e cabelos gr isalhos .

Aquela bel eza juveni l que você me pediu para manter desapareceu. No entanto,

ainda tenho bastante energia . Preci sei dela para cuidar de nossos netos .

Sinto agora uma cer ta maturidade. Não sin to mais aquelas dores no

corpo que tanto me incomodavam ao pensar em você . Na verdade, o modo como me

sinto t raz sempre a l embrança de uma l inha que tu me enviast e da Coreia :

“Estação de névoa e del i cada fert i l idade .” É exatamente assim que me sinto. Você

se lembra de como eu gostava de poesia? Não posso impedir que e la me invada o

pensamento . Foi assim que escolhemos o nome de Anthea 6.

Trabalhei e economize i o suf i c i ent e para garanti r uma certa

tranqüil idade . Agora , posso aprovei tar os dias de outono. Sinto-me f e l iz e , s im,

sinto-me r ica, embora jamais tenha conseguido preencher o vazio que você me

deixou. Não era um vazio. Sempre houve seu amor para me amparar.

Espero ansiosamente o dia em que nossos doi s netos se jam homens

fe i tos . Eles são belos meninos. O mais novo é a cara de Anthea quando ela era

pequena, tanto na aparência quanto na determinação de tr i lhar seu própr io

caminho de vida. O caminho de Anthea sof reu mui tos desvios antes que e la

descobris se quem era verdadei ramente. Sua f i lha tem a sua força. O mais velho,

dizem alguns, s e parece comigo. Na aparência, é como você — bonito.

Em todas aquelas centenas de cartas que lhe es crevi , eu sempre lhe

disse quanto o amava. Mas talvez não t enha d ito que você é o melhor ser humano

que jamais conheci .

6 N o m e d e o r i g e m g r e g a , r e l a c i o n a d o à f l o r a ç ã o , p r i m a v e r a .

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Fique em paz e lembre - se de que sempre t e amei .

Sua querida esposa,

Olwyin.