o tema de ulisses em cinco poetas portugueses contemporâneos

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O tema de Ulisses em cinco poetas portugueses contemporâneos

Autor(es): Ferreira, José Ribeiro

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁTHESIS 5 1996437-462

o TEMA DE ULISSES EM CINCO POETAS PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS

JOSÉ RmEIRO FERREIRA

Os mitos gregos são uma presença constánte na cultura europeia. Ulisses é um dos mais frequentes na literatura portuguesa. O elemento essencial deste mito na Antiguidade Clássica reside na prudência e astúcia, no espírito de aventura e gosto de tudo experimentar, na fidelidade e desejo de retomo à sua ilha e para junto dos seus.

A permanência do mito de Ulisses e Penélope na poesia portuguesa contemporânea foi um dos assuntos tratados no Seminário que dei na Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa, no ano lectivo de 1993/1994. Foi uma experência aliciante e muitas das ideias aqui expostas são fruto dessa reflexão comum.

Hoje vou tentar analisar a presença e significado do mito de Ulisses em Miguel Torga, David Mourão Ferreira, José Augusto Seabra, Fernando Guimarães, Sophia de Mello Breyner Andresen.

Miguel Torga, leitor assíduo da Ilíada e da Odisseia!, faz alusões frequentes à figura e mito de Ulisses, identificando-se a cada passo com o herói: nos Diários confessa que, depois da Ilíada, anda a ler a Odisseia e considera o episódio de Nausícaa perfeito (II, 41977, pp. 23 e 193-194); proclama Homero imprescindível a quem faz cultura (VI, 21961, p. 195); nega-se «a tapar os ouvidos com cera ou a deixar cair as pálpebras de sono», mas, «amarrado ao mastro da imaginação, quero ouvir as sereias, e vê-las, como ele fez» (VII, 21961, p. 51); equipara os Portugueses a «outros Ulisses amarrados aos mastros dos seus navios» (IX, 1964, p. 87). Ultrapassando as várias referências nas obras em prosa, sobretudo no Diário, vou aqui

1 Orfeu rebelde (21970, p. 30) - «tenho a Ilíada aberta à minha frente»; Diário IX 0973, p. 135) - que embala a imaginação «nos versos de Homero»; Diário XVI (1993, pp. 41, 93 e 127), considera Homero paradigma de poeta.

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438 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

analisar dois poemas que têm subjacente o mito grego: «Odisseia» e «Penélope»2.

Para Miguel Torga, «é numa Odisseia que se eterniza a inquietação de Ulisses e toda a nossa universal e mortal inquietação» (Diário VI, p. 39). E a primeira composição - com o título de "Odisseia", precisamente -alude aos errores de Ulisses, aos múltiplos perigos a que esteve sujeito e às variadas dificuldades que teve de superar e vencer. O poeta, em plena serra do Gerês, olha o céu por entre o arvoredo e afigura-se-lhe um arquipélago azul no meio do verde dos ramos: um mar sereno. No fluir do tempo na lembrança, as ilhas vão passando: Ítaca, Samos, Paros.

Tudo como na Grécia Que se decora

e existe impressa el!l cada um (vv. 7-8). Mas de repente uma onda atinge «o navio da mítica aventura» (v. 10). A visão harmoniosa do firmamento interior desfaz-se e rouba ao poeta «o sentimento de unidade» (vv. 12-13). Os retalhos suspensos que agora vê através das árvores, quais pedaços dispersos de um naufrágio a boiarem (vv. 15-16),

São a imagem Do que eu sou ...

referem os dois últimos versos do poema. E assim as errâncias de Ulisses aparecem a simbolizar a quebra que o eu poético sente da unidade cultural e espiritual desaparecida. Mas, se na Odisseia o protagonista encontrou os Feaces que lhe permitem o retomo a Ítaca, onde acaba por encontrar a paz, o poema de Torga conduz a resultados bem diversos: em vez da paz e da felicidade, a fragmentação interior, de quem se sente agarrado à sua grade, mas repartido na vida, disperso no mundo espiritual em retalhos de miragem. Vejamos o poema na sua totalidade:

.'

Olho o céu pelo ralo do arvoredo. Que plácido arquipélago azul Disperso na verdura, mar sereno! O tempo flui, e as ilhas vão mudando No aro caprichoso da retina.' Ítaca, Sarnos, Paros ... Tudo como na Grécia Que se decora.

2 Diário VII (21961), p. 197 eX (1968), p. 54,respectivamrente. Cf. ainda Diário XI (1973), pp. 20 e 191;

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o TEMA DE ULISSES

De repente, uma onda desarvora O navio da mítica aventura: A estranha arquitectura Do fIrmamento Rouba-me o sentimento De unidade. Os retalhos suspensos da miragem São a imagem Do que eu sou, repartido à minha grade.

439

A composição, como observa Maria Helena da Rocha Pereira, simboliza «a quebra de uma unidade cultural e espiritual desaparecida, que o poeta em si mesmo sente»3.

O poema «Penélope» tem subjacente o motivo da espera e fidelidade da rainha, durante a ausência do marido de quem não tem notícias há longo tempo, e nele estão presentes vários elementos do mito grego: ausência de Ulisses, a teia de Penélope, a fidelidade, a narração dos feitos e errores, a ânsia de regresso. O poema dá realce à esperança, ao desejo ardente de regresso para junto da esposa. Nele o eu poético identifica-se com Ulisses, mas agora «desterrado no mar da vida» (vv. 1-2). Penélope, cujo simples nome é capaz de encher a solidão, é a fonte que faz viver Ulisses. Ela espera a «tecer e destecer a teia» (v. 6), como símbolo de fidelidade conjugal, embora no poema se expresse o receio de que se canse de esperar. Mas agora estamos no reino da metáfora, perante «a teia da saudade», um meio de ocupai" o tempo e de preencher a solidão que a ausência provoca - a teia, um motivo usado mais vezes por Miguel Torga, e também com objectivos diferentes4• O sujeito poético apela a Penélope para que não desespere e mantenha firme a espera, até que ele volte e, «à sombra da velhice», lhe conte «as indignas façanhas» que cometeu (vv. 9-11), na «pele do semi­deus» que nunca foi. Note-se em três versos sucessivos (vv. 6-8) a antítese tecer/destecer, logo seguida de outra em sentido inverso, desesperar/ esperar.

Eis o poema «Penélope» que estamos a analisar: Ulisses desterrado

3 Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa (Lisboa, 1988), p.289.

4 No Diário vrn (21960, p. 164) aplica o motivo ao seu próprio tecer poético: «trabalho, trabalho, trabalho, mas faço como Penélope: desmancho à noite o que teço durante o dia, ou vice-versa». No XI (1963, p. 94), é usado a propósito da pintura de Vieira da Silva, depois de ver uma exposição sua: «desta vez Penélope não fez e desfez. A teia dos dias fIcou intacta, com o tempo preso nas malhas».

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440 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

No mar da vida, Digo o teu nome e encho a solidão. Mas pergunto depois ao coração Por quanto tempo poderás ainda Tecer e destecer a teia da saudade ... Vê se não desesperas E me esperas Até que eu volte, e à sombra da velhice Te conte, envergonhado, As indignas façanhas Que cometi Na pele do semi-deus que nunca fui. .. Sê tu divina, de verdade, aí, Nessa ilha de esperança, Fiel ao nosso amor De humanas criaturas. Faz que seja bonito Omito Das minhas aventuras.

Servindo-me das palavras de Maria Helena da Rocha Pereira, «Ítaca tornou-se uma abstracta ilha de esperança, onde a própria cons­tância de Penélope é que emprestará beleza ao mito/ das minhas aven­turas»5. Todo o poema parece um canto à beleza interior da mulher amada: tal como Penélope, enche todos os momentos de vazio e solidão do poeta, é a companheira das boas ou más ocasiões. Por isso talvez não seja forçada uma interpretação alegórica aplicada ao poeta e à mulher amada, ou mesmo ao homem e à mulher em geral. Ulisses encontra-se desterrado no mar da vida (vv. 1-2) e não sabe por quanto tempo poderá a mulher «ainda tecer e destecer a teia da saudade» (vv. 5-6) à sua espera. Mas, enquanto o poeta se sente envergonhado «na pele do semi-deus» que nunca foi, pede a Penélope que, ao menos, seja ela divina de verdade em Ítaca, como no mito uma «ilha de esperança» (v. 15), e que permaneça fiel ao amor, um amor «de humanas criaturas». Assim fará (vv. 18-20)

que seja bonito Omito Das minhas aventuras

Recorde-se a afirmação de Miguel Torga que se encontra no Diário VI (p. 148): o «homem é realmente Ulisses, e a mulher Penélope».

5 Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa (Lisboa, 1988), p.290.

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o TEMA DE ULISSES 441

David Mourão Ferreira aborda o tema de Ulisses e Penélope quatro vezes: «Penélope» (Obra poética I, p. 134), «Ulisses e Nausícaa» (Obra poética I, p. 225), «A gruta» (Obra poética n, p. 51), «Itinerário grego» (Obra poética II, p. 54). E nestes poemas, como aliás em toda a poesia de David Mourão Ferreira, o amor é axial, visto que, além do seu valor temático, é fonte do conhecimento humano. O amor torna-se assim a absolutização do instante. Relacionado com o tema do amor está o fluir do tempo, o tem pus fugit de Horácio que vai deixando as suas marcas. Fazendo-se eco dos problemas da existência, a criação poética de David Mourão Ferreira oscila de modo geral entre os vários tempos da vida, ora interessado pela adolescência e a juventude, ora preocupado com os problemas da velhice e da morte. Divide a vida em quatro idades que correspondem às quatro estações do ano - livro Os quatro cantos do tempo -, mas não se deixa vencer pela morte, pois acredita sempre no renascer e no retorno de nova primavera6

O poema «Penélope», publicado precisamente na obra acabada de referir, nasce desses pressupostos - que também estão subjacentes aos restantes três. Nele verifica-se uma transmutação entre o tecido e a carícia: é a carícia que num gesto de ternura cobre o corpo como se fora um tecido.

Numa bela metáfora, e hipérbole ao mesmo tempo, as mãos, ao percorrerem o corpo da amada como seu único vestido, ajustam-se-lhe e moldam as formas como o tecido. E é essa a única veste a refazer o pudor que, a pedido do eu poético, a amada desfizera «como uma teia sem sentido» (v. 8). Ora, como Penélope com a teia, embora em sentido inverso, esse pudor desfaz-se e de novo se recompõe no manto de carícias que, envolvendo-a por inteiro, se desfia e se volta a pôr. E nesse fazer/desfazer, que é doação e intimidade, reconhece o poeta os melhores dias do amor dos dois. Eis o poema:

Mais do que sonho: comoção! Sinto-me tonto, enternecido, quando, de noite, as minhas mãos são o teu único vestido.

5 E recompões com essa veste, que eu, sem saber, tinha tecido, todo o pudor que desfizeste como uma teia sem sentido;

6 Vide Maria de Fátima Marinho, A poesia portuguesa nos meados do século XX (Lisboa, 1990), pp. 195 e 196.

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442 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

todo o pudor que desfizeste 10 a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias, e que depois voltas a pôr, eu reconheço os melhores dias do nosso amor.

o poema realça a efemeridade do amor (<<os melhores dias do nosso amor»), sublinhada pelo "recompor/desfazer", "desfiar/voltar a pôr". Mas a alusão ao episódio da teia de Penélope, símbolo da fidelidade amorosa e conjugal, parece ser o desejo de vencer essa precaridade e pretender dar-lhe alguma consistência. Esta antítese despir/vestir volta a estar presente no poema "Ternura" (Obra poética I, Lisboa, 1980, p. 228), imitado de um texto da Antologia Palatina da autoria de Paulo Silenciário (5. 252). Tal como em "Penélope", aqui deparamos de novo com o despir rápido para o encontro amoroso e o posterior lento vestir. E enquanto a amada coloca a roupa, o sujeito poético vai vestindo ternura

para enfrentar lá fora aquela gente que da nosSa ternura anda sorrindo ...

Enfim trata-se da alternância constante, de que fala Vasco Graça Moura, entre o tecido e a carícia/ternura, que também vestem e também recobrem a pele7• Estamos em presença do que Óscar Lopes, de uma

. maneira feliz, denominou como «a subtil dialéctica do vestir/despir»8. O soneto "Ulisses e N ausícaa» tem subjacente o conhecido episódio do

encontro dos dois no canto 6 da Odisseia em que o herói suplica à donzela ajuda para poder regressar a Ítaca e, ao mesmo tempo, a compara a uma palmeira jovem que outrora vira em Delos. Desse modo, subtilmente, dá a entender que é pessoa de posição e temente aos deuses e elogia a beleza, elegância e juventude de Nausícaa. Vejamos o passo do poema grego (Od. 6. 160-168), na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira9

:

Jamais pus os olhos num mortal como tu, fosse ele homem ou mulher! A tua vista infunde-me veneração. Conheci outrora em Delos, junto ao altar de Apolo, uma beleza assim:

7 David Mourão-Ferreira ou a mestria de eros (Porto, 1978), pp. 44-47.

8 Apud Vasco Graça Moura, David Mourão-Ferreira ou a mestria de eros (Porto, 1978), p. 46.

9 Hélade (Coimbra, 51990), p. 62.

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o TEMA DE ULISSES

um rebento de palmeira que se erguia nos ares. Pois também já lá estive. Seguiam-me muitos homens pelo caminho, que havia de ser a minha perdição. Assim como alegrei o meu coração ao contemplá-lo por longo tempo, pois nunca lenho tão formoso saíra do solo, assim eu te admiro, mulher, e me deslumbro ..... .

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Também no soneto de David Mourão Ferreira está presente o encontro com uma jovem - ou a visão de uma figura feminina que provoca fascínio -, se faz alusão à palmeira e se sublinha a beleza, elegância e juventude dessa mulher (vv. 7-8):

Reconheço-te, ó palma tão sem par: és a graça da terra ao céu erguida.

Mas, apesar da insistência na realidade física dessa figura nas duas primeiras quadras, realçada por uma aliteração no verso 3 (<<vejo-te agora em água, areia, carne» e «cheiro a rocha», vv. 3 e 5), sucedem-se as expressões e palavras - por vezes em belas e sugestivas metáforas e hipérboles - que a tornam distante, inacessível: é «saudade/ de estar ao pé de mim sem estar comigo» (vv. 1-2), é culto, mas apenas «no sonho pressentido» (v. 4), tão inatingível como (vv. 5-6)

cheiro de rocha a que não chega o mar por mais que o mar invente marés vivas.

Os dois tercetos continuam a tónica da inacessibilidade, mas agora hiperbolizam e insistem na juventude ideal dessa figura que aparenta pairar fora do tempo. É tão ofuscante essa grácil frescura florescente que parece pisar, quando caminha, «o próprio vento,! que se embuçou no manto de uma duna» (vv. 9-10) e desfazer «sob os pés os grãos do tempo», por do Tempo não ter noção nenhuma (vv. 11-12). Eis o soneto completo:

Não tinha sido fábula a saudade de estar ao pé de mim sem estar comigo: vejo-te agora em água, areia, carne, e és o culto no sonho pressentido!

5 Cheiro de rocha a que não chega o mar, por mais que o mar invente marés vivas ... Reconheço-te, ó palma tão sem par: és a graça da terra ao céu erguida.

Pisas, ao caminhar, o próprio vento, lOque se embuçou no manto de uma duna ...

Desfazes sob os pés os grãos do tempo,

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por do Tempo não teres noção nenhuma ... De que me serve ter vencido sempre, se aqui me vence a tua juventude?

No soneto pressente-se também a nostalgia da juventude passada, a melancolia do tem pus fugit horaciano, de que fala Vasco Graça MouralO

• E ao poeta só resta reconhecer que se sente subjugado por aquela juventude esplendorosa e que não fora «fábula a saudade» de a ter «ao pé de mim sem estar comigo» (vv. 1-2). O soneto caminha de uma espécie de materialidade para a imaterialidade. E assim as duas quadras insistem em aspectos materiais, ligados à terra (água, areia, rocha, carne, palmeira), com a segunda a terminar com a comparação da gracilidade da palmeira que se eleva: «a graça da terra ao céu erguida» (v. 8). Esta elevação é corroborada nos dois tercetos, onde a vemos caminhar sobre o vento que se embuça sob o manto de uma duna a desfazer «os grãos do tempo»(v. 11). Desse modo, como no mito, permanece para sempre imortal e imortalmente jovem, uma ideia sublinhada num verso com dupla aliteração: «por do Tempo não teres noção nenhuma» (v. 12). Por isso, ela sai vencedora de quem, como o industrioso Ulisses, sempre havia vencido - mas sente agora as marcas do tempo. É essa permanente juventude vencedora que o adequado fecho do soneto põe em realce:

De que me serve ter vencido sempre, se aqui me vence a tua juventude?

A terra dos Feaces reaparece no poema «A gruta», uma composição de grande apuro formal: uma quadra central, precedida de dois dísticos e seguida por outros dois, todos sujeitos a rima sonante cruzada (ABAB, CDCD, EFEF). Nos dois primeiros dísticos refere que nem o recurso à astrologia e à ornitomancia nem a tentativa em decifrar os estrflgos da idade . (<<nos meus tectos o alfabeto do tempo», v. 2) lhe fornecem a explicação para o desastre sem remédio em que se vê, para a sua insatisfação (<<morro de sede», v. 4) e para o facto de nunca se prender. Desastre e insatisfação concretizada, de forma metafórica, na quadra que, como referi, tem uma posição central no poema: ardeu «o iate no meio da regata» (v. 5), deu «abrigo aos abutres que fugiam do vento» (v. 6) e a gruta está ressequida por dentro (v. 8). Apenas a cor «a areia molhada» dos olhos da amada poderia mitigar tal secura, mas a areia molhada encontra-se sempre à entrada da gruta em que se habita (vv. 8-9). De novo a sugestão de frescura

10 David Mourão-Ferreira ou a mestria de eros (Porto, 1978), p. 50.

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o TEMA DE ULISSES 445

inacessível a quem já sente as mossas da idade: «decifrei nos meus tectos o alfabeto do tempo», como confessa no segundo verso do poema.

A quarta estrofe, ou primeiro dos dois últimos dísticos, pro­cura identificar a relação de Ulisses com Nausícaa (encontro de um homem maduro com uma jovem florescente) à do eu poético com a figura feminina.

Tudo isto se passa no país dos Feácios Ou à luz dos teus ombros numa tarde cinzenta

Talvez tenhamos neste passo a transposição do mítico para o real e a incapacidade para o realizar, embora a tentativa traga em si a compensação (vv. 11-12). Este último dístico retoma ideias do segundo (vv. 3-4), repetindo mesmo os dois hemistíquios iniciais, mas invertendo a sua colocação, no segundo verso o que no dístico precedente abria o segundo e vice-versa.

Desse modo sublinha que continua a morrer de sede, mesmo que ela se não afaste dele. Por isso sabe que não haverá remédio. Apesar disso considera que valeu a pena o encontro e a relação.

Consultei as estrelas e as vísceras das aves Decifrei nos meus tectos o alfabeto do tempo

Sei que não há remédio para este desastre Sei que morro de sede Sei que nunca me prendo

5 Vi arder o iate no meio da regata Dei abrigo aos abutres que fugiam do vento E é da cor dos teus olhos a areia molhada à entrada da gruta ressequida por dentro

Tudo isto se passa no país dos Feácios 10 Ou à luz dos teus ombros numa tarde cinzenta

Sei que morro de sede mesmo que não te afastes Sei que não há remédio Mas que valeu a pena

o poema «Mar Jónio» é o primeiro de um conjunto de sete a que deu o título de «Itinerário Grego». Abre com uma bela metáfora ao referir que da vigia do navio que voga no Iónio sempre se lobriga uma ilha a oscilar «entre a gola do Mar e o turbante do céu». Mas de todas se distingue Ítaca, a única que «parece a rapariga à espera de eu ser eu» (v. 4):

Há sempre na vigia uma ilha que oscila entre a gola do Mar e o turbante do céu

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446 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Mas de todas somente a que se chama ítaca parece a rapariga à espera de eu ser eu

No poema, Ítaca - a rochosa Ítaca da Odisseia a que Ulisses desejava ardentemente regressar (cf. 9. 19-28) - aparece como um locus amoenus, como tantas vezes se verifica na literatura ao longo dos tempos.

José Augusto Seabra é um poeta que compreende bem a Grécia, onde passa regularmente férias. Várias das suas obras publicadas o revelamll

:

Tempo táctil (p. 118), glosa o epíteto homérico da Aurora, «dedos róseos»; Desmemória contém um poema ao rio do esquecimento, Letes (p. 21), e uma possível alusão à teia de Penélope (p. 32); Fragmentos do Delírio fazem referência a Édipo (p. 55) e a Orfeu (p. 61). Mas é sobretudo em Gramática grega que essa predilecção se manifesta. O título de imediato elucida da importância que nele assume, e tem para o poeta, a Grécia, em especial a Grécia clássica com a sua cultura, matriz da nossa: na compreensão e expressão do mundo e da cultura em que vivemos, exerce a mesma função que a gramática em qualquer língua. É a sua base e, por isso, constitui o poderoso veio que inicia e ao longo dos tempos vai (p. 62)

Delineando a lâmina tão límpida do rio:

s6 rigor ou signo.

Constituído por três partes, o livro vive da emoção que a Grécia motiva, sobretudo a Grecia clássica nas suas manifestações culturais. Na primeira dessas partes dominam os sítios arqueológicos, sobretudo Atenas e Delfos, com todo o seu peso cultural e histórico. Essas ruínas surgem como sinais de um alfabeto que, apreendido e interpretado por uma alma sensível, se vai revelando em novos sentidos e modelações.

A segunda parte, formada por uma série de dezasseis sonetos em verso curto de quatro sílabas, tem por tema figuras míticas e crenças da Grécia antiga: Apolo e sua instalação em Delfos como senhor do oráculo em detrimento da Terra (p. 32); a cosmogonia órfica (p. 33) e a ida de Orfeu ao

11 As citações são feitas pelas edições seguintes: Tempo táctil (Portugália, 1972), Desmem6ria (Porto, Brasília Editora, 1977), Gramática grega (Nova Renascença, 1985), Fragmentos do delírio (Signo, 1990).

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o TEMA DE ULISSES 447

Hades em busca de Eurídice (p. 34); Hermes, o mensageiro dos deuses (p. 35); o casamento de Minos com Pasífae, o nascimento do Minotauro e a construção do labirinto por Dédalo (p. 36); a ousadia imprudente de Ícaro (p. 37); Teseu, que mata o Minotauro com a ajuda de Ariadne, depois abandonada na ilha de Naxos, onde Dioniso a encontra e a desposa (pp. 38, 39 e 40); Egeu que, por desespero, se lança ao mar (p. 41); a Europa que rouba a Cronos «um Zeus mortal» (p. 44).

Enquadram esta secção dois sonetos que têm por tema o episódio da teia de Penélope (p. 31) e o regresso de Ulisses (p. 46). Tanto um como o outro sublinham a inutilidade do esforço: tudo se torna vão e desemboca no nada. No primeiro soneto - onde os dois versos que o abrem (<<qualmente as vagas! víneas volteiam») contêm uma aliteração inicial em v e denotam a inspiração do epíteto homérico do mar oinôps "cor de vinho" 12 - a bruma do tempo apaga «teia por teia» a luz que alaga Ítaca e só «a velha deusa», naturalmente Atena, «entre as pregas do tempo» continua «tramando o mito! de um infinito! e vão regresso». Transcrevo o soneto:

Qualmente as vagas víneas volteiam a bruma apaga teia por teia

a luz que alaga a ulisseia ilha onde as águas tecem a Ideia.

Só entre as pregas do tempo espia a velha deusa

tramando o mito de um infinito e vão regresso.

No soneto que fecha a série, Ulisses - aqui equiparado ao poeta -aporta ao cais do mito, o lugar e o momento em que «o infinito! se tece». Mas «tudo é escrito! ou declinado» pelas sereias, sedutoras mas falazes cantoras, e ao mesmo tempo Penélope em nada «destece o manto! da pura Ideia»:

12 Os comentadores discutem se o epíteto diz respeito à cor ou à espuma.

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448 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Aqui Ulisses vai aportando ao cais do mito, aonde e quando

o infinito se tece, enquanto tudo é escrito ou declinado

de canto em canto pelas sereias em seu descante

e em nada a deia destece o manto da pura Ideia.

Como observa M. H. Rocha Pereira, «a polissemia de "tecer", "tramar" e "destecer" permite a espiritualização da teia de Penélope como a da "pura Ideia" 13.

Ulisses andou perdido no mar, nele o tentaram seduzir as sereias e através dele aporta «ao cais do mito». Precisamente o mar, com o seu azul profundo - que, na primeira parte do livro, é o único que permanece, no meio de tanta ruína, e de onde nasce a beleza -, a água, o sol e a luz constituem o fulcro da terceira parte do livro.

Observa António Ramos Rosa que a poesia de José Augusto Seabra é «a formulação de um instante minucioso, subtil, frágil e fugidio, sempre ameaçado pelo tempo, pelo vazio, pela ausência, pelo nada», e que o espaço dessa poesia é «o do corpo ferido limitado cerradamente pelo nada»14.

A própria disposição formal do poema na página, na primeira e terceira partes de Gramática Grega - começo de modo geral por versos mais longos que se reduzem sucessivamente até terminarem por versos de uma curta palavra apenas -, sublinha essa tendêncià ou noção de aniquilamento, perda de sentido, nada. (p. 25)

Para Delfos, em que manhã grisalha pela Grécia assim pobre

13 «Temas clássicos em quatro poetas portugueses contemporâneos», Máthesis 3 (1994) 26.

14 respectivamente, Parede azul. Estudos sobre poesia e artes plásticas (Lisboa, Caminho, 1991), p. 71 e Incisões obUquas. Estudos sobre poesia portuguesa contemporânea (Lisboa, Caminho, 1987), p. 101.

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o TEMA DE ULISSES

e caminhante? Que oráculo traçaria a derrota dos astros? Que mortalha cobriria os vestígios da caída muralha?

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Da Grécia chegou-nos «o fulgor dos sons», mas só nos restam «as cinzas do sentido», sobre as quais se estende o silêncio (p. 63):

Entenda-se: o fulgor dos sons, as cinzas do sentido. Entenda-se: o silêncio ferido.

Sempre ao «invés do sentido», não se consegue nunca atingir a pátria desejada. Permanente sentimento de incompletude, a insatisfação, vemo­-nos sempre aquém do que queremos:

em nada a deia destece o manto da pura Ideia.

Fugidios e inapreensíveis, nunca os signos se deixam por inteiro decifrar. É que, como diz a epígrafe do livro (p. 11), retirada de um fragmento de Heraclito «O deus cujo oráculo está em Delfos não diz nem cala: faz sinal». E esses sinais, os seus oráculos, nunca são unívocos. Apesar disso, subscrevo a opinião de Maria Helena da Rocha Pereira de que, se em Gramática grega há composições que «registam um momento e consagram o nada, a ausência» «a um nível mais profundo, encontramos a oposição perene passado/presente, e, por toda a parte, "a vertigem do rigor"»15.

A figura de Ulisses marca também presença em Fernando Guimarães, em cuja poesia, intelectualizada, a matriz grega tem um papel relevante. Estamos perante uma poética que tende para o silêncio, que não aceita a divisão entre o físico e o espiritual e leva a uma recusa da dicotomia entre o sensível e o inteligíveP6. Com palavras e signos chave - como sombra, noite, contorno, cicatriz, silêncio e nome, casa, semente, fruto, memória, tempo - a poesia de Fernando Guimarães dialoga com outrem ou com

15 «Temas clássicos em quatro poetas portugueses contemporâneos», Máthesis 3 (1994) 25. A expressão "a vertigem do rigor" é citação de Ramos Rosa.

16 Vide Vasco Graça Moura, Várias vozes (Lisboa, 1987), pp. 184-185.

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imagens que, em consonância ou em tensão dialéctica com a memória, fulguram no rio do tempo. Trata-se de uma poesia que caminha para a essência, através de símbolos, imagens ou raízes que, como observa Óscar Lopes, acordam a memória extrema do outro corpo, da outra casa, da outra rosa, «lá no silêncio, no segredo, na morte, no centro sereno onde fica o rosto já consumado»17.

São quatro os poemas de Fernando Guimarães em que o mito de Ulisses aparece explicitamente consignado: "Ítaca", que saiu em Como lavrar a terra (1960-1975), "Algumas palavras de Penélope; outras de Ulisses", publicado em Casa: o seu desenho (1982-1985), um fragmento de A analogia das folhas (Porto, 1990, p. 51) e o poema de O anel débil (Porto, 1992, p. 85) que começa «Os escribas são influentes ... »18. No primeiro­em que estão presentes vários elementos do mito, como a guerra, as aventuras, a perda dos companheiros, a subsequente solidão, o canto das sereias - fala da flor que em Ítaca devora as entranhas e do adormecimento que surge (v. 1): um peso «sobre os ombros descaídos, onde fica a brilhar o óleo do sono» (vv. 2-3). O adormecimento em que se cai é como cegueira (vv.3-4):

........ Caminhamos cegos, como se Homero seguisse ainda com as [mãos estendidas

pelas veredas do poema.

Uma alusão naturalmente à tradição de Homero como um poeta cego, «mãos estendidas pelas veredas», como se tacteasse, mas no poema. Talvez uma alusão também ao sono de Ulisses, aproveitado pelos companheiros para comerem os bois do Sol, um acto que desencadeou a cólera do deus, ou ao facto de Ulisses ter sido deixado adormecido pelos Feaces na praia de Ítaca (Od. 13. 113-119). Desse modo «o espírito tornou-se ausente», um crepúsculo a que assistimos com indeferença, por estarmos habituados à perda final - «à perda final dessa luz» (vv. 4-5). Tal ausência mani­festa-se até no facto de a própria recordação - a que Fernando Guimarães atribui grande importância - ser apenas uma sombra (v. 6). E é feita a enumeração do que Ulisses perdeu: guerreiros, ameias (de cidades; ou talvez melhor de Tróia), tempestades, barcos. Mas tais perdas são aplicadas ao homem: ... «não estão já connosco» (v. 7). Pode o homem perante isso dizer com orgulho: «eu sou a destruição?» (vv. 7-8).

[7 ln A. J. Saraiva e Óscar Lopes, História da literatura portuguesa (Porto, 168

edição, s. d.), pp. 1110-1111.

[8 Os dois primeiros poemas são citados pela edição Poesias completas. Vol. 1-1952-1988 (Porto, 1993), pp. 93-94 e 200-203, respectivamente.

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o TEMA DE ULISSES 451

É como se Ulisses ébrio se perdesse nas encruzilhadas de uma cidade e entrasse, sem esperança, numa casa estranha, como se fora um novo combate - repare-se na bela metáfora «orla de um novo combate» (p.9-1 O) - na terrível luta «de um homem para sempre sozinho» (v. 11), evidente alusão ao facto de Ulisses ter· perdido os companheiros, barcos e se encontrar só; sobretudo o drama pungente de quem tudo perdeu e se sente só na vida.

Em Fernando Guimarães, ao contrário do que sucede na Odisseia, é já quando se encontra sozinho, perdidos os companheiros, que o herói sente de novo a voz das sereias, se vê «seduzido pelo inesperado canto do não ser» (v. 12) e «preso finalmente pelo círculo do sofrimento e da paz» (vv. 12-13), da quietude. Como se a voz das sereias ainda o chamasse a dar as boas vindas e a entornar nas «entranhas o sono voluptuoso» (vv. 13-14) e fizesse despontar uma flor apenas - a misteriosa Ítaca - no espírito perturbado, de Ulisses e nosso (vv. 11-17).

A voz interior - das sereias -, a aliciar, pergunta se quer colher a flor que desponta, a misteriosa Ítaca, ou prefere a companhia da esposa, «um perfume casto e salino». Eis o poema, onde os enjambements, um recurso formal frequente em Fernando Guimarães, se sucedem:

Ali, uma flor devora as suas entranhas. Foi assim que adormecemos? [Que peso

ainda existe sobre os ombros descaídos, onde fica a brilhar o óleo do sono? E as pálpebras? Caminhamos cegos, como se Homero seguisse

[ainda com as mãos estendidas pelas veredas do poema. O espírito tornou-se ausente, e ao seu crepúsculo

5 assistimos com indiferença, habituados à perda fmal dessa luz. Agora, a própria recordação é apenas uma sombra: os guerreiros feridos e

[as ameias, as tempestades e os barcos não estão já connosco. (Poderemos ter orgulho ao dizer: «Eu sou esta destruição»?) Talvez um pouco ébrio, Ulisses perdeu-se nas

[encruzilhadas de uma cidade qualquer. Sem esperança, entra numa casa estranha como se

[fosse a orla IOde um novo combate. Apoia-se junto a uma mesa silencioso: que

terrível luta, a de um homem para sempre sozinho! E ali fica, seduzido pelo inesperado canto do não-ser, preso finalmente pelo círculo do sofrimento e da paz: «Boas vindas a Ulisses!» assim ele escuta como se as sereias ainda o chamassem. «Entornamos pelas vossas entranhas

[o sono voluptuoso 15 e desponta (misteriosa ítaca) apenas uma flor em direcção ao teu espírito

perturbado. Queres colhê-la? Ou preferes aspirar um perfume casto e salino, [como a nudez

da esposa?» - Esse antigo estuário onde se pressente o rumo do sangue, para que os teus barcos regressem, abertos como feridas.

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Ítaca, O antigo estuário, onde os barcos aportam e regressam, onde se oferece a paz e a quietude. Mas trata-se de sedução de sereias - o «inesperado canto do não ser» - para um «sono voluptuoso», de que desponta a flor que é Ítaca. Será que o homem, que Ulisses simboliza, deve deixar-se embalar nesse canto sedutor ou continuar na insatisfação? Daí a interrogação final:

.... Queres colhê-la? Ou preferes aspirar um perfume casto e salino, [como a nudez

da esposa?»

No poema "Algumas palavras de Penélope; outras de Ulisses", nem sempre se torna fácil distinguir as falas da rainha e as do herói. No entanto, os elementos do mito sucedem-se: os diversos caminhos, o mar e os barcos, o tear. Mas aqui estamos na intimidade da casa e na presença de uma linguagem transposta para a esfera amorosa, pelo recurso à metáfora, como a de "fiar" e "tecer" que já encontrámos em David Mourão Ferreira (supra, pp. 9-10). Observa Vasco Graça Moura que, na poesia de Fernando Guimarães, é frequente haver «certa homologia entre a superfície, o exterior, a textura, da casa/invólucro e da pele/corpo no acto da reversão verbal que os torna momentos da trajectória de acesso a um real simultaneamente superior e íntimo, diríamos, ao lugar do ser»19. E assim temos «os caminhos do corpo» (v. 2) que, ao chegar a noite, é (vv. 2-6)

...................... tear erguido junto das árvores, para que as suas raízes entrem na espessura da lã, ali onde apenas chegava o odor que se eleva das mãos, ao trabalharem, pesadas como no estio as alfaias do ar.

Ou são ainda as mãos que percorrem esse corpo e dele recebem os fios com que continuam a tecer (vv. 28-31):

............ A noite desce se tu aprendes a receber esses fios menos pesados com que hás-de continuar a tecer e ficam os teus dedos caídos, agora imóveis no meu rosto.

Na casa fica suspenso «o calmo desenho, o bordado do mar, os últimos navios» (vv. 9-10), cujo rumor (vv. 11-16)

19 Várias vozes (Lisboa, 1987), p. 187.

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já não é nosso, apaga-se unido aos panos entreabertos, e aprendo a escondê-lo nos joelhos vergados. Esperaste sozinho e nas janelas vês os barcos como varandas; ah, tudo oscilava, a superfície do peito, mais longe os movimentos límpidos. Fica esquecido o teu nome, apaga-se finalmente o desenho das pregas pelas vestes húmidas.

E assim, em esfera diferente, se alude a elementos ligados aos errores de Ulisses: os barcos perdidos, a solidão do herói, depois de perder os companheiros, o esquecimento do seu nome. Telémaco acentua, no canto primeiro (vv. 235 e 242) que o pai desapareceu dentre os homens «invisível e ignorado". Na Odisseia Ulisses, após o naufrágio que o atira exausto para o país dos Feaces, aparece nu, maltratado e sujo de salsugem (6. 136-137) a Nausícaa que o acolhe, lhe dá vestuário e em seguida regressa à cidade no seu carro de mulas, ensinando ao herói como obter a ajuda dos pais. No poema de Fernando Guimarães, aplicados às relações amorosas, encontramos também o salitre como veste, «as rédeas fugazes», o manto (vv. 16-21):

........................... Onde o desejo vinha tocar os olhos, os cílios percorridos por esta seiva, feliz humidade ou carícia que nos cerca, aí se oculta o que me veste, um pouco de salitre; esperas aqueles que seguram as rédeas fugazes, o sombrio manto - indícios suspensos na areia, ao ouvires o mar que chegava.

Mas o rumor do mar traz outro elemento do mito aqui subjacente, outros indícios - referências a combate e a morte: as «lanças sobre os campos» (vv. 24-25), os «olhos dos que morriam» (v. 26), tudo «leve como cinza» (v. 27), as «espadas como crisântemos» (vv. 27-28), as «areias tingidas com o que era sangue» (v. 31-32). No regresso estavam à espera, junto da casa, «emissários de uma leve suspeita» (v. 34). O palácio perdera a vida (vv. 35-37):

Palácio, esquecido esse limiar entre as folhas; ninguém habita o que se torna compacto como se fosse de pedra, ao longe umalage.

Apesar disso, «o povo que se torna fiel» vinha de longe «com os seus livros de experiência abertos» (vv. 39-41) que falam de regresso a sendas marítimas perdidas, onde fulge a recordação destruída que se procurou (vv. 42-45):

............... Falam do regresso a perdidas sendas, as que eram também marítimas, onde destruída fulge

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a recordação daquilo que procuraste, as searas há pouco recolhidas, o [leite

como um olhar.

Difícil não sentir o pensamento resvalar para a recordação das rotas «também marítimas» que os portugueses procuraram, que hoje é recordação destruída, apenas «searas há pouco recolhidas». Mas logo o poema nos encaminha noutra direcção: eram «crianças com seu exausto poder» que «traziam inesperadas o que se tornava feliz em cada noite» (vv. 46-48) e que, nas mesmas salas, «adormeciam como um tecido entregue à luz» (vv. 49-52).

. ....................................... Eranosso talvez o que delas nos chega, onde se fecham poderosas as mãos que sabemos amadas. E, se despertam, incessante se torna o fruto que se derrama, as pupilas.

Apesar do regresso e do reencontro, Penélope - ou melhor, a mulher amada - aprendera tudo sozinha, «a travessia para outras praias» (v. 56) e a recolha do que «permanecia destruído» (vv. 58-63):

Vieste trazer livres os tecidos, o que neles gravavas .................................................... . ............ ; continua escrita a melancolia, uma jóia amarga, ao aprenderes sozinha como se recolhe o que permanecia destruído: era todo o amor que me deste?

De novo o motivo do tear e do tecer e a ideia de nostalgia, de certo desencanto que percorre todo o poema: são «os últimos navios», cujo «rumor já não é nosso» (vv. 10-11), «rédeas fugazes, o sombrio manto» (v.20), a morte e o sangue, o palácio sem vida «como se fosse de pedra» (v. 36), as «perdidas sendas» e a destruída recordação (vv. 42 e 44). Daí ajóia amarga da nostalgia, quando tem de aprender sozinha «como se recolhe o que permanecia destruído» (vv. 61-62). Por isso, embora estendida perto do seio, a solidão continua - sente «o seu rumor esquecido», com o silêncio apenas a perdurar (vv. 63-68):

............... perto de mim falavas e agita-se o voo húmido que nos mostram as aves; estendida sobre os mesmos teares a voz mais próxima agora do meu seio, casto para que fosse como os alimentos. Sentes o seu rumor já esquecido, e ficava apenas o silêncio que vinha procurar-te: ofício que se oculta, paciente ...

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Podemos concluir com as palavras de Vasco Graça Moura, a propósito do livro Casa: o seu desenho, a que pertence o poema, no «desenho e no desígnio da escrita e das suas figurações, entre outras coisas ela é mais literalmente relacionada com o lugar mítico onde se desdobra um habitar não limitado por paredes ......... a mais intelectualmente relacionada com a heideggeriana casa do ser. a língua. Somos, portanto, na palavra, instituí­mo-nos no que nos institui e nos restitui como acesso à totalidade possível. O verbo é um modo de reconstituir a unidade do ser e é também a mani­festação do ser do ser. Há que prosseguir o interrogante caminho, questionando para além da superfície»20.

O fragmento de A analogia das folhas compara o tecer de Penélope ao de uma aranha que, depois de construída a sua fina teia, quase invisível, espera ardilosamente as vítimas. Penélope todas as noites destecia a sua teia, para aumentar a confiança dos pretendentes. Vejamos o texto:

Semelhante a uma aranha que ardilosamente espera as vítimas para as devorar, assim Penélope. todas as noites a sua teia diminuía para que a confiança dos pretendentes aumentasse.

A analogia dasfolhas, p. 51.

No poema de O anel débil (pp. 85-86), talvez de forma um tanto irónica, fala da importância e influência que se atribuem os escribas e compara-os às sereias: há muito à espera de qualquer barco, a sua voz nunca foi tão acolhedora; o que escrevem - e todos os dias o fazem - obedece a uma estratégia e são por vezes jocosos; sabem a forma de todos os caracteres, têm segurança na mão aplicada e «os cinco dedos sabem qual é o seu poder» (vv. 14-15), passa através deles uma sabedoria estranha e cheia de outras cumplicidades. Por isso não podemos prescindir dos seus altos méritos e devemos (vv. 8-13)

............... pedir-lhes para que se não cansem de emitir os seus juízos. Não são afinal como as sereias? Há muito esperam

qualquer barco e em segredo principiam já a odiá-lo. Chamam-no [agora

e reconhecemos que nunca foi a sua voz tão acolhedora. Queridas [sereias­

-prostitutas! Todos os dias escrevem. Os seus olhos recolhem imagens, leves intuições, raciocínios ...

Na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen sente-se o fascínio pelas figuras da mitologia clássica, pelos contrastes que apresentam, pelos

20 Várias vozes (Lisboa, 1987), pp. 185-186.

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seus defeitos e qualidades, tão divinos por serem humanos21 Por isso não se estranha que não ficasse indiferente à figura de Ulisses e ao que ela simboliza. Além de fugidias alusões, são quatro as composições em que se notam referências mais ou menos longas, directas ou indirectas, ao herói e a Penélope que o esperava em Ítaca: "Penélope", "Ítaca", "Em Hydra, evocando Femado Pessoa" e "O rei de Ítaca"22.

O primeiro poema faz parte de Coral (1950), um livro em que, como aliás acontece em Poesia (1944) e em Dia do mar (1947), domina a nostalgia e o desejo de regresso à natureza com quase ausência da problemática das relações humanas23 . A composição, em que há uma identificação do sujeito poético com Penélope, parte do episódio da teia, interiorizando o motivo do tecer e desfazer, para problematizar a própria identidade. Naturalmente por reflexão, desfaz de noite o caminho até aí percorrido, já que verifica não ser verdade tudo quanto teceu (vv. 1-2). É apenas fluxo de tempo na memória, a preencher o vazio do tempo vivido (<<o tempo morto», v. 3). A memória invoca ou ~az apelo aos eventos encerrados no tempo. Diz Sophia no poema "Intacta Memória" de No Tempo Dividido:

Intacta memória - se eu chamasse Uma por uma as coisas que adorei Talvez que a minha vida regressasse Vencida pelo amor com que a lembrei24

Assim a azáfama e lides do dia dispersa e afasta de si mesmo o eu poético, enquanto o silêncio da noite, que traz a reflexão, pela evocação e apelo aos eventos passados, o reconduz à interioridade e lhe devolve a autenticidade:

Desfaço durante noite o meu caminho. Tudo quanto teci não é verdade, Mas tempo, para ocupar o tempo morto, E cada dia me afasto a cada noite me aproximo.

21 Vide Maria de Fátima Marinho, Poesia portuguesa 0, p. 183.

22 As citações são feitas a partir de Obra poética (3 vols., Lisboa, 1990), I p. 226, m p. 73, m p. 144-146 e m p. 209, respectivamente. Além destas encontram-se ainda alusões a Ulisses no poema "O Minotauro" (m. p. 147, vv. 11-13: «De Creta/Beijei o chão como Ulisses/Caminhei na luz nua»); nos quatro últimos versos do poema "Cíclades" (m p. 178).

23 Vide Silvina Rodrigues Lopes, Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, 1989), p. 18.

24 Obra poética ll.

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o perigo é a falta de atenção: passar sem ver as coisas simples25

"Ítaca" descreve a forte sensação vivida, durante uma viagem à Grécia, quando avista a ilha de Ulisses: a azáfama da partida, à noite, do cais de Brindisi «onde se agitam palavras passos remos e guindastes» (v. 2); a noite calma, sem qualquer brisa, que mantém a alegria «acesa como um fruto» (v. 3). Sem deixar a proa, aí no meio dos «negrumes da noite», nada mais sentirá o sujeito poético que o «sussurro de búzio no silêncio» (v. 5). A escuridão da noite não impedirá, no entanto, que pressinta os cabos e o mar da Grécia (vv. 6-9):

Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos Quando o barco rolar na escuridão fechada Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar Porque esta é a vigília de um segundo nascimento

Considera Silvina Rodrigues Lopes que em Sophia de Mello Breyner Andresen, em termos de relação com a Grécia mítica, «o carácter fundador da poesia origina-se na necessidade de combater a ausência que ficou quando os deuses se afastam da terra»26. E assim a chegada à Grécia aparece como um segundo nascimento, coincidente com o despontar do sol, a luz que permite ver a realidade física da Grécia, onde habitaram os deuses e heróis. Nesse novo nascimento o sujeito poético parece identificar-se com a ilha de Ítaca, um e outra emergindo da claridade da manhã. Deixa de se verificar a situação a que se refere o Coral (p. 76):

A raiz da paisagem foi cortada. Tudo flutua ausente dividido, Tudo flutua sem nome e sem ruído.27

Com «o sol rente ao mar», a ilha (e a poetisa) surgirá no azul in­tenso, subindo no horizonte «devagar como os ressuscitados» (vv 10-11). É possível que aqui também se encontre uma alusão à deposição de Ulisses, adormecido, em Ítacae ao seu despertar que já tem sido interpre­tado como se de uma ressurreição se tratasse. E assim, como se ressur­gisse da morte e recuperasse a «sabedoria inicial» (v. 12), apare­cerá «confIrmada e reunida» (v. 13), com o fascínio e frescura das está-

25 Vide Silvina Rodrigues Lopes, Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, 1989), p. 31.

26 Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, 1989), p. 29.

27 Obra poética I p. 222.

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tuas gregas arcaicas que ainda aparentam enrolar os gestos nas dobras do manto (vv. 14-15): uma bela análise das primeiras fases da arte da época arcaica. Eis o poema:

Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de [Brindisi

Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e [guindastes

A alegria estará em ti acesa como um fruto Irás à proa entre os negrumes da noite

5 Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no

Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos Quando o barco rolar na escuridão fechada Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar Porque esta é a vigilia de um segundo nascimento

10 O sol rente ao mar te acordará no intenso azul Subirás devagar como os ressuscitados

15

Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial Emergirás confIrmada e reunida Espantada e jovem como as estátuas arcaicas Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

[silêncio

Desse modo Ítaca, a rochosa Ítaca de que falam os Poemas Homéricos, transforma-se numa espécie de paraíso, num loeus amoenus, físico ou psíquico - um motivo frequente em Sophia de Mello Breyner Andresen, que a cada passo alterna com o loeus horrendus28

O poema evolui de uma certa desordem para o reencontro, a intei­reza: de início, insiste-se na confusão do cais, na escuridão da noite, na imobilidade, sublinhadas por aliterações nos versos 2, 4 e 5. Mas, na quietude e silêncio, a alegria acesa (v. 3) e a atenção vígil conduzirá a um novo nascimento e a uma ressurreição (vv. 9 e 11), quando o sol surgir e Ítaca se destacar iluminada no horizonte. Então o sujeito lírico emergirá «confirmada e reunida», com a mesma inteireza e frescor das estátuas gregas arcaicas (vv. 13-14). Aliás, essa é uma característica de Geografia (1961), livro a que o poema pertence. Segundo Silvina Rodrigues Lopes, nessa colectânea, «a celebração de lugares e monumentos, sobretudo gregos, é celebração do impulso artístico do homem e meditação sobre a arte, a justiça, o tempo de exI1io e a possibilidade/necessidade de um tempo

28 Maria de Fátima Marinho, A poesia portuguesa nos meados do século XX. Rupturas e continuidades (Lisboa, 1989), p. 179.

29 Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, 1989), p. 19.

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de inteireza»29. Características idênticas se encontram em Dual (1972), em que foi

incluído o poema «Em Hydra, evocando Fernando Pessoa». A composição, nascida das impressões de uma viagem de barco a Hidra, apresenta a ilha como locua amoenus e faz a identificação de Ulisses com Pessoa: o alvoroço da chegada do barco e o debruçar ávido da amurada «sobre o rosto do real- mais preciso e mais novo do que o imaginado» (v. 4). A surpresa da claridade límpida da manhã de Hidra é sublinhada pela repetição do verso (vv. 5-6):

Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto de uma ilha grega

É nessa limpidez que o sujeito poético murmura o nome de alguém (<<o teu nome! o teu ambíguo nome», vv. 7-8) e que, na terceira estrofe, descreve como tendo uma alma (vv. 12-14)

....... visual até aos ossos Impessoal até aos ossos Segundo a lei de máscara do teu nome

até que, em verso isolado, o identifica com Pessoa - já anterior­mente sugerido com a alusão à máscara (persona) - e este com Ulisses (v. 15):

Odysseus - Persona

Só os dois nomes num verso, isolados da estrofe, em pleno realce. O mesmo destaque volta a ser dado no verso 33, mas agora apenas Odysseus se especifica.

Esta aproximação de Pessoa a Ulisses não é exclusiva deste poema. Volta a surgir em "Cíclades" (III pp. 175-178), que tem como subtítulo «evocando Fernando Pessoa» - o mesmo sintagma, recorde-se, que faz parte do título do poema que estamos a analisar -, cujos últimos quatro versos aludem à fidelidade de Penélope que continua a esperar o herói nos «quartos altos» - sugestão do epíteto homérico «de altos tectos» - e ao episódio da teia:

Como se o teu navio te esperasse em Thasos Como se Penélope Nos seus quartos altos Entre seus cabelos te fiasse.

Fernando Pessoa é o poeta português com maior presença na obra de

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Sophia de Mello Breyner Andresen. Ora a apreensão do real-que a autora perseguia com a sua poesia, como diz no "posfácio" de Livro Sexto - é conseguida pela projecção de um Pessoa mitológico identificado com o herói de Ítaca30

Os dois percorrem o mar em busca do real, o mar azul e nítido do Egeu. O poema alude (vv. 16-18) aos errores de Ulisses de ilha em ilha

Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa Até às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias

Aqui não se faz uma comparação ou se notam semelhanças, é a própria palmeira que se chama Nausícaa; a alusão ao episódio das sereias apenas acentua aspectos negativos: são rochas negras o local en que reinam e é estridente o seu canto.

Mas a ausência de Odysseus-Persona de repente emerge e o sujeito poético imagina-se, em sua companhia, à procura de alguém pelas ruas da ilha ou a viajar na beleza azul do Mar Egeu (vv. 23-27):

Alheio ao rumor secundário dos turistas Atento à rápida alegria dos golfinhos Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos Estendido à popa sob o voo incrível Das gaivotas que o sol espalha impetuosas pétalas

Encontra-o nas «ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar» (v. 28) - uma sugestão de viagem, de partida, de busca - e identifica-o sempre com figuras, sejam elas lendárias ou históricas, que simbolizam a aventura, o desejo de viajar e conhecer, de procura e insatisfação: o infante D. Pedro das «sete partidas», Odysseus (vv. 28-33):

Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas Disse-me que tinha corrido as sete partidas O seu rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída pelo mar

Odysseus

E mais uma vez se alude a episódios da Odisseia, agora à promessa de imortalidade feita por Cal~pso a Ulisses, se ele quisesse ficar com ela, mas que o herói recusa, preferindo voltar para a sua ilha, para junto de Penélope

30 Vide Silvina Rodrigues Lopes, Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (Lisboa, 1989), pp. 20-21.

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vv.34-36):

o TEMA DE ULISSES

Mesmo que me prometas a imortalidade voltarei para casa Onde estão as coisas que plantei e fiz crescer Onde estão as paredes que pintei de branco

461

A anáfora e paralelismo dos dois últimos versos sublinham as razões de preferência do regresso à sua terra mantendo a condição de mortal: é lá que está o fruto do seu esforço e cuidado (<<as coisas que plantei e fiz crescer», «as paredes que pintei de branco») - a primeira pessoa realça o empenhamento pessoal. E nessa afirmação há uma alusão ao passo da Odisseia 5. 203-224: à oferta da ninfa responde o herói que lhe não leve a mal, reconhece até que Penélope lhe é inferior, mas mesmo assim prefere e deseja o regresso.

Os mesmos processos literários - anáfora e paralelismo formal- se encontram nos versos seguintes (vv. 37-40) para pôr em relevo a claridade e a nitidez da atmosfera e das coisas em Hidra, uma «concisão visual» identificada com a de Pessoa-Odysseus (<<que é a tua», v. 38); como se as penetrara o olhar de um deus que torna tudo «impetuosamente presente» (vv.37-40):

Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhado por

[um deus Aquilo que o olhar de um deus tomou impetuosamente presente -

Essa claridade, concisão visual e nitidez era o sonho perseguido por Alberto Caeiro. No poema "Estrada", também de Dual, refere Sophia que no país de Caeiro

....... cada coisa surge nomeada Clara e nítida Como se a mão do instante a recortassa.3\

A claridade e luz da manhã dá à ilha uma nitidez sem igual que quadra à clarividente inteligência de Ulisses-Pessoa (vv. 43-44):

Urna disponibilidade transparente e nua Que te pertence

e a torna por isso um local adequado a figurar como um ponto p~r onde o seu destino deve passar (vv. 45-47):

31 Obra poética m p. 135.

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462 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

o teu destino deveria ter passado neste porto Onde tudo se toma impessoal e livre Onde tudo é divino como convém ao real.

o último poema, "O rei de Ítaca" (Obra Poética III, p. 209) tem por tema central o elogio do trabalho e do esforço pessoal, simbolizado em Ulisses, contrapondo-o ao preconceito da errada civilização modema que desligou o pensamento da actividade manual:

A civilização em que estamos é tão errada que Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de ttaca carpinteirou seu barco E gabava-se também de saber conduzir Num campo a direito o sulco do arado

Eis mais uma explícita formulação de um ideal que desde os primeiros livros se vai afirmando na ideia obstinada de inteireza, a Grécia antiga.

O gosto de Ulisses pelo trabalho já fora exaltado na composição anterior, quando o produto do esforço é dado como a principal razão da recusa da imortalidade que lhe oferecia Calipso. Faz-se evidentemente alusão à habilidade de Ulisses na construção de um barco ou de um leito (Odisseia 5. 239 sqq. e 23. 183 sqq., respectivamente), na lavra de um campo (Odisseia 18. 356 sqq.), de que Ulisses se sente orgulhoso na Odisseia. E desse modo o herói e rei de Ítaca cumpre a máxima «trabalhar não é vileza, vileza é não trabalhar» (Erga 311) que Hesíodo erigiu como um dos dois componentes da excelência do homem - a justiça e o trabalh032

A ligação à natureza tem grande importância na poesia de Sophia de Mello Breyner. Nela as figuras e os locais da Hélade são sinais e o reflexo de uma época em que deuses, homens e a natureza conviviam e dão corpo a um ideal de claridade, nitidez e inteireza ..

Em conclusão, Miguel Torga, David Mourão Ferreira, José Augusto Seabra, Fernando Guimarães e Sophia de Mello Breyner Andresen - cinco poetas que trataram o tema de Ulisses, diferentes todos, embora tendo subjacentes diversos elementos do mito. Se uns preferem privilegiar a figura de Nausícaa como símbolo da juventude e da beleza (caso de David Mourão Ferreira), as aventuras de Ulisses, o canto das sereias, Ítaca como [ocus amoenus, o motivo da teia e a fidelidade de Penélope são elementos comuns.

32 Vide M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica 1-Cultura Grega (Lisboa, 71993), p. 163.